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Como definir, numa disciplina, uma abordagem específica ? Constituiria tal abordagem uma
corrente, um sub-domínio ? Seria teórica ou metodológica ? Estaria situada ainda no mesmo
campo disciplinar ?
No que tange ao discurso – sem deixar de lado o campo da língua – sabemos que constitui
um campo disciplinar próprio, com seu domínio próprio de objetos, seu conjunto de métodos,
de técnicas e de instrumentos. Entretanto, há diferentes maneiras de problematizar seu
estudo.
A maneira pela qual abordamos o discurso insere-o numa problemática geral que procura
relacionar os fatos de linguagem a alguns outros fenômenos psicológicos e sociais : a ação e
a influência. Nessa perspectiva, o que se pretende é tratar do fenômeno da construção
psico-socio-linguageira do sentido [1], a qual se realiza através da intervenção de um
sujeito, sendo, ele próprio, psico-socio-linguageiro.
São indagações que refletem a complexidade deste campo disciplinar. Diante disso, três
atitudes são possíveis : inserir-se num desses domínios ; inventar um novo (como ousar ?) ;
tentar conectar alguns dentre eles integrando-os numa problemática global (que será
necessariamente transdisciplinar).
Esta última opção, por mais arriscada que seja [9] corresponde à posição que adotamos já
há algum tempo, e que, ao longo dos anos, vem-se tornando mais precisa. Consiste em
relacionar entre si determinados questionamentos que tratam do fenômeno da linguagem -
sendo uns mais externos (lógica das ações e influência social), outros mais internos
(construção do sentido e construção do texto).
Eis porque a posição que tomamos na análise do discurso pode ser chamada [10]
de semiolingüística. Semio-, de “semiosis”, evocando o fato de que a construção do sentido
e sua configuração se fazem através de uma relação forma-sentido (em diferentes sistemas
semiológicos), sob a responsabilidade de um sujeito intencional, com um projeto de
influência social, num determinado quadro de ação ; [11] lingüística para destacar que a
matéria principal da forma em questão - a das línguas naturais. Estas, por sua dupla
articulação, pela particularidade combinatória de suas unidades (sintagmatico-paradigmática
em vários níveis : palavra, frase, texto), impõem um procedimento de semiotização do
mundo diferente das outras linguagens [12].
Postulamos então que, para que a semiotização do mundo se realize, é necessário um duplo
processo :
a causação, pois estes seres, com suas qualidades, agem ou sofrem a ação em razão
de certos motivos (humanos ou não humanos) que os inscrevem numa cadeia de
causalidade. A sucessão dos fatos do mundo é transformada (explicada) em
“relações de causalidade”.
Assim, numa notícia de jornal que tem por título : “Descaso : desaba o telhado de um
supermercado. 15 feridos”, a identificação é marcada por : “telhado”, “supermercado” e
“feridos”, com modos de determinação particulares desta identificação : “o”, “um”, “15” ;
a qualificação está incluída nas denominações precedentes : “supermercado” (pela dimensão
e peso), “feridos” (pelo estado das vítimas) ; a ação está expressa por “desaba” ;
a causação por “descaso”.
b) o processo de transação se realiza de acordo com quatro princípios, dos quais fornecemos
breves definições, já expostas anteriormente quando apresentamos nosso “postulado de
intencionalidade” [14] :
o princípio de influência : todo sujeito que produz um ato de linguagem visa atingir
seu parceiro, seja para fazê-lo agir, seja para afetá-lo emocionalmente, seja para
orientar seu pensamento. Por conseguinte, todo sujeito receptor-interpretante de um
ato de linguagem sabe que é alvo de influência. Isto confere a este último a
possibilidade de interagir, mas obriga os parceiros a levar em consideração a
existência de restrições ao exercício da influência. A finalidade intencional de todo
ato de linguagem se acha pois inscrita no dispositivo socio-linguageiro.
Esta série de hipóteses define, pois, o ato de linguagem como originário de uma situação
concreta de troca, dependente de uma intencionalidade, organizando-se ao mesmo tempo
num espaço de restrições e num espaço de estratégias, produzindo significações a partir da
interdependência de um espaço externo e de um espaço interno - o que nos leva a propor
um modelo de estruturação em três níveis [19] :
O nivel do situacional, para dar conta dos dados do espaço externo, e que constitui
ao mesmo tempo o espaço de restrições do ato de linguagem. É o lugar onde estão
determinados : a finalidade do ato de linguagem, que consiste em responder à
pergunta : “estamos aqui para dizer ou fazer o quê ?” ; a identidade dos parceiros
da troca linguageira, em resposta à pergunta : “quem fala a quem ?” ; o domínio de
saber veiculado pelo objeto da troca, respondendo à pergunta : “sobre o quê ?” ;
enfim (mas não se trata de uma cronologia), o dispositivo constituído pelas
circunstâncias materiais da troca, respondendo à pergunta “em que ambiente físico
de espaço e tempo ?”.
2. O quadro metodológico
A análise do discurso, do ponto de vista das ciências da linguagem, não é experimental, mas
empirico-dedutiva [22]. Isto significa que o analista parte de um material empírico, a
linguagem, que já está configurada numa certa substância semiológica (verbal). É esta
configuração que o analista percebe, podendo manipulá-la através da observação das
compatibilidades e incompatibilidades das infinitas combinações possíveis, para determinar
recortes formais, simultaneamente às categorias conceituais que lhes correspondem.
Uma análise do discurso deve pois determinar quais são seus objetivos em relação com o
tipo de objeto construído , e qual é a instrumentalização utilizada, de acordo com o
procedimento escolhido.
Tais questões são abordadas continuamente pelos pesquisadores, pois todos sabem que o
procedimento de análise é duplo, indo do particular para o geral, e do geral para o particular.
O que não impede que, segundo as tendências, se privilegie tal ou qual movimento,
induzindo a formação de tal ou qual modelo. Neste caso, definiremos nossa posição.
As condições, para nós, são estruturadas num “contrato de comunicação” [25] o qual preside
a toda produção linguageira. Para descrevê-las, é necessário, reunir produções que, por
hipótese, pertençam ao mesmo tipo de situação ; a isso denominamos de “corpus de textos”.
Este trabalho se faz ao mesmo tempo por um levantamento empírico (intuitivo)
das constantes que permitem reunir estes textos (por exemplo, para a publicidade,
destacam-se as constantes : produto, marca, slogan-promessa, assinatura de uma agência
de publicidade, suporte de difusão), e por um levantamento também empírico
das diferenças entre estes textos e os textos que se assemelham a eles mas não possuem
todas as constantes levantadas anteriormente (por exemplo, textos de propaganda política).
Estabelecem-se assim fronteiras que circunscrevem, de início, um (ou mais) corpus de textos
relativamente homogêneo. Este tipo trabalho determina uma das condições que
consideramos fundamental para a constituição de um corpus, e que é constitutiva do
procedimento de análise : a condição de “contrastividade”.
Assim sendo, o estudo das características discursivas próprias a esse corpus mostra o
funcionamento das condições do contrato de comunicação, pois tais características as
reativam ou as transgridem, e, ao mesmo tempo, mostra como funcionam as estratégias
(conscientes ou não) próprias ao projeto de fala do sujeito comunicante.
Uma vez determinado este objetivo global (não se trata de hipóteses), resta precisar alguns
critérios de construção do corpus.
O que propomos, é construir uma tipologia, não das formas nem dos sentidos, mas das
condições de realização dos textos – isto é, dos “contratos de comunicação” – considerando
que existem contratos mais ou menos gerais que englobam outros, e que cada um destes
pode comportar variantes. Por exemplo, o contrato de comunicação “propagandista” engloba
contratos particulares como os do “discurso publicitário” e do “discurso eleitoralista”, e, no
âmbito do discurso publicitário, encontram-se variantes tais como a publicidade de “rua”, de
“revista” ou de “anúncios televisionados” [26]. Do mesmo modo, o contrato de comunicação
do “debate” comporta contratos particulares como os do “debate midiático”, “debate
científico”, “debate político” (parlamentar), e no interior do “debate midiático” encontramos
variantes como o debate “cultural”, debate “social”ou “talk show” [27]. Tal modelo permite
estudar as modificações eventuais sofridas por um contrato através do tempo, assim como
as diferenças na realização de um mesmo contrato em contextos socioculturais
diferentes [28]].
Isto implica, então, que à condição de “contrastividade” de que falamos esteja atrelado um
critério de “abertura/fechamento”, que consiste em construir o corpus segundo um
movimento em caracol que procede por contrastes sucessivos.
Uma vez construído o corpus, e tendo este sido contrastado de maneira a definir o contrato
de comunicação (sendo esta a primeira tarefa da análise do discurso que defendemos aqui),
torna-se possível proceder tanto à análise de textos particulares, quanto (como
conseqüência) à proposta de uma tipologia.
Com efeito, a partir deste trabalho de construção e contraste do corpus, é possível descobrir,
destacar e interpretar (por um processo inferencial) os índices que caracterizam cada texto.
Tais índices apontarão : ora para a relação do texto com os dados do contrato a partir
de inferências situacionais - que podem configurar a conformidade ao contrato, (sua
reativação), ou sua negação (sua transgressão) ; ora para o jogo estratégico que é próprio
ao sujeito comunicante, no interior do contrato, quando tais índices são confrontados com
outros elementos do contexto (inferências contextuais) ou com um corpus (que seria
“virtual”) – constituído este último por um certo saber experiencial compartilhado
(inferências intertextuais) [29]. Isso tudo tem a ver com a análise de texto.
Eis porque sempre propomos diferenciar análise de texto e análise de discurso. A primeira
incide sobre um texto, consiste em analisar um texto (qualquer que seja sua configuração) –
que é o resultado de uma combinação de certas condições de produção com operações de
“discursivização”, isto é, com operações de construção do discurso – em seu
desenvolvimento linear, de uma forma ao mesmo tempo progressiva e recorrente. A
segunda (a análise de discurso) incide sobre um corpus de textos reunidos em torno de um
tipo de situação (contrato) que os sobredetermina, para que sejam estudadas suas
constantes (visando definir um gênero), e suas variantes (visando definir uma tipologia
de estratégias possíveis). Quando se diz que se está fazendo “a análise de discurso de um
texto”, é necessário explicitar se o texto constitui um fim em si ou se é um simples pretexto.
que lugar devem ocupar, na análise, as outras matérias semiológicas, tais como
o icônico e o gestual ? Devem ser tratadas separademente da análise do verbal ou
devem ser integradas a ela, visto que, em todo ato de comunicação, aparecem
fornando um só conjunto ?
Um modelo de análise do discurso deve poder dar conta de todos os atos de linguagem,
quaisquer que sejam. Deve, pois, dar conta tanto de diálogos quanto de textos escritos.
Construir um modelo tome por objeto o estudo apenas um destes tipos de textos equivaleria
a engajar-se numa construção necessariamente ad hoc que não teria alcance geral.
Entretanto, ambos os casos concernem o discurso. É por isso que, no estudo dos textos,
sejam quais forem, partimos de nossas hipóteses gerais sobre o funcionamento do discurso,
as quais constituem, aqui, um quadro de pesquisa :
para determinar :
No que diz respeito à questão do lugar que devem ocupar, numa análise de discurso, os
diferentes componentes da forma semiológica de um texto, a resposta não é simples. Isto é
comprovado pela terminologia diversificada que se encontra nos trabalhos que abordam o
domínio da relação entre o verbal e o não-verbal : “multicanalidade”, “pluricódico”,
“plurimodal”, “multi” ou “pluri-semiológico” (cf. N. Nel, 1990, p. 53).
Convém distinguir, então, o texto (como manifestação verbal e não verbal) daquilo que, em
torno dele, faz parte de suas condições de “discursivização”, a saber : o contexto (como um
outro texto manifesto que se acha antes e depois de uma seqüência considerada),
a situação (como condição contratual de produção-interpretação). Além disso, por outro
lado, deve-se considerar que um texto é compósito do ponto de vista de sua materialidade
semiológica (logo, efetivamente : “pluri-códico”), porque em sua significância ele depende de
uma pluralidade de matérias semiológicas, as quais se combinam numa integração textual,
remetendo-se mutuamente (em suas relações de “ancoragem” ou de “relê” tal como o
propôs R. Barthes [33] ), não podendo dissociar-se umas das outras.
Em face deste sincretismo, duas posições são possíveis. Uma, a de Cosnier (1982, 1984),
enfatiza a sincronicidade da troca verbal (recebida acusticamente) e não-verbal (recebida
visualmente), isto é, “a estrita sinergia entre o verbal e o mimogestual” (Cosnier et
Brossard, 1984, p. 20). Assim sendo, será preciso conduzir concomitantemente a análise dos
elementos da comunicação, considerando que o visual, isto é, o não verbal, predomina sobre
o verbal (op. cit. p. 15).
Toda instrumentação de análise depende tanto do quadro teórico quanto das hipóteses
metodológicas gerais que dele decorrem, para especificar em seguida, as ferramentas
adequadas ao tipo do objeto. É por isso que consideramos que a instrumentação de análise
deve destinar-se a dar conta do que está em jogo no objeto de estudo enquanto ato de
comunicação. Assim sendo, não nos parece muito útil proceder a análises de corpus ou de
textos que se limitem a confeccionar um catálogo de suas características (retóricas, lexicais,
enunciativas, etc.) sem nada dizer sobre a significância psicossocial do objeto.
1. Todo sujeito linguageiro, para engajar-se num ato de linguagem (seja ele
momológico ou dialógico) deve resolver o problema de saber como ocupar o espaço
de fala. Ele deve pois, de uma maneira ou de outra, legitimar e/ou justificar sua
“tomada da palavra”, sua fala.
Estas três hipóteses determinam três espaços de estudo dos atos de linguagem, os quais
designamos como espaço de locução, espaço de relação, espaço de tematização-
problematização [35].
A lingüística, de um certo ponto de vista, é “ingênua” quando sua teoria e seus intrumentos
de análise deixam de lado a descoberta interesses em jogo na significação psicossocial dos
atos de linguagem de uma comunidade sociocultural.
É na carga semântica das palavras, através dos modos de organização do discurso que as
integram, e em situação de troca que se pode recuperar os traços desses jogos de interesse.
Traduzido por :
Angela Maria da Silva CORRÊA
Do original inicialmente publicado na
Revista Langages, mars 1995
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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CHARAUDEAU P., 1992, Grammaire du sens et de l’expression, Paris, Hachette.
[4] Ver como colocamos este problema, sob o ângulo da compreensão, em nosso trabalho de
1994d.]
uma dimensão semiótica, termo que tomaremos aqui num sentido amplo, cujos
problemas dizem repeito à relação entre a construção do sentido e a construção das
formas : como se faz a semantização das formas ? Como se faz a semiotização do
sentido ? Correlativamente, esta semiotização seguirá um processo idêntico se
considerarmos os diferentes níveis - da palavra, da frase ou do texto ?
Disso decorre que, mesmo se tal ou qual lingüista, sociolingüista ou psicolingüista só
trabalhe com uma ou outra destas dimensões, a linguagem é multidimensional.
Entretanto, o jogo científico impõe que sejam discriminadas e selecionadas as variáveis que
determinam o objeto empírico, para construir conceitos e regras apropriadas à sua análise.
Daí existirem teorizações que circunscrevem domínios, e mesmo territórios[[Se aceitarnos
que é forçoso reconhecer que a determinação de um campo disciplinar é também uma
questão de poder (Bourdieu).