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ARTIGO: Regime de Bem-estar Social no Brasil: Três Períodos Históricos, Três Diferenças em Relação ao Modelo Europeu Social-democrata

Regime de Bem-estar Social no Brasil: Três Períodos Históricos, Três


Diferenças em Relação ao Modelo Europeu Social-democrata

Regimen of social welfare in Brazil: three historical periods, three differences with the European social
democratic model

Resumo
O regime de bem-estar social no Brasil pode ser comparado com o modelo social-democrata europeu em três períodos históricos,
apesar das especificidades e diferenças que aqui adquiriu. No período 1930-1964, serão abordadas a importância da concepção de
cidadania regulada para a definição de direitos sociais no Brasil e a comparação com o desenvolvimento da cidadania nacional e o
papel dos sindicatos no welfare state na Europa. No período 1964-1985, será apresentada a forma como se estruturou a política social
do regime militar, enquanto, na Europa, havia um ambiente democrático, com direitos sociais universais e participação social como
bases do regime de bem-estar social. No período após 1985, com ênfase na fase da segunda reforma social iniciada pós-Plano Real
(1994), será destacada a visão mais generosa e universalizante de direitos sociais. Para esse período, será importante apontar como,
na Europa, nesse momento, se questionaram as bases materiais e a concepção do welfare state, visando, ao mesmo tempo, revisar
alguns fundamentos para mantê-lo como padrão de solidariedade social.

Palavras-chave: cidadania; direitos; igualdade; democracia; desigualdade.

Eduardo José Grin - eduardo.grin@fgv.br


Bacharel em Ciências Sociais, Especialista em Sociologia, Mestre em Ciência Política, Doutorando em Administração Pública e
Governo. Pesquisador do CEAPG. Professor-tutor da FGV On Line.

Artigo submetido no dia 10.06.2012 e aprovado em 01.05.2013

Abstract
The social welfare system in Brazil can be compared with the European social democratic model in three
historical periods, despite the specificities and differences. The period of 1930-1964 will address the
importance of the concept of citizenship regulated to the definition of social rights in Brazil and compare it
with the development of national citizenship and the role of trade unions in the welfare state in Europe. The
period of 1964-1985 will present the structure of the military regime’s social policy while in Europe there was
a democratic environment with universal social rights and social participation as the basis for the system of
social welfare. The period after 1985, with emphasis on the second phase of social reform initiated after the
Real Plan (1994), will highlight the more generous and universalizing vision of social rights. This period will
be important to compare as Europe, at that time, questioned the material foundation and the design of the
welfare state while aiming to review some grounds to keep it as a pattern of social solidarity.
Key words: Citizenship – Rights – Equality – Democracy - Inequality.

Esta obra está submetida a uma licença Creative Commons

ISSN 2236-5710 Cadernos Gestão Pública e Cidadania, São Paulo, v. 18, n. 63, Jul./Dez. 2013
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1. Introdução sociais no Brasil após a década de 1990, em


bases mais universais; c) sua progressiva
O debate sobre direitos sociais e regime desconstituição como sistema público de
democrático é um importante tema na direitos sociais em países europeus de matriz
agenda de construção da cidadania no Brasil. social-democrata.
Mas será que a constituição da cidadania no
Brasil inverteu a ordem, criando um sistema O objetivo central do artigo não é gerar
de direitos sociais antes de consolidar os inferências analíticas, mas, sim, apresentar
direitos civis e políticos? Esse processo um quadro geral que, de maneira comparada,
teria gerado o que Carvalho (2006, p. 221) indique as inflexões nos regimes de bem-
chamou de estadania, fruto de “uma cultura estar no Brasil e na Europa. Nesse sentido,
orientada mais para o Estado do que para a dimensão essencial para gerar essa
a representação [e] em contraste com a discussão é a forma como, nas duas
cidadania”. Este artigo discute como, em experiências, as políticas sociais promovidas
perspectiva comparada com a experiência pelo Estado sofreram mudanças ao longo da
europeia do welfare state social-democrata, sua evolução. No Brasil, as políticas sociais
conforme Esping-Andersen (1990), ocorreu avançaram de um modelo mais restritivo para
a evolução do regime de bem-estar no Brasil uma forma mais generosa de universalização
em três momentos distintos, a partir de de direitos após 1985. No caso clássico do
1930. Mais especificamente, comparam-se welfare state de cunho mais universal que se
as duas realidades após a década de 1990. moldou na Europa, o que se observou, no
mesmo período, foi uma gradativa redução
Do ponto de vista dos tipos de welfare state dessa oferta de políticas públicas.
propostos por Esping-Andersen (1990), neste
texto, para fins da análise realizada, será Como se trata de um artigo exploratório,
compreendido como sinônimo do modelo com suas finalidades de comparação,
mais universalista ou redistributivista. Essa compreende-se que ele possui o limite de
forma de Estado de bem-estar social, típica apresentar as semelhanças e diferenças entre
dos países escandinavos, não se confunde o caso brasileiro e o welfare state clássico
com aquelas mais conservadoras (o caso europeu. Está fora do escopo deste trabalho
francês ou alemão) nem como o modelo produzir inferências analíticas com base em
mais residual (o caso inglês ou americano). variáveis políticas, sociais ou econômicas.
Welfare state, portanto, será utilizado para O artigo visa, assim, contribuir com uma
se referir ao modelo social-democrata linha de análise comparada, para o que
proposto por esse autor. Torna-se possível, sugere alguns temas e questões que possam
assim, comparar como essa concepção de servir para constituir hipóteses para futuras
Estado de bem-estar social e seu “tipo” mais pesquisas qualitativas e quantitativas. Como
avançado, em termos de direitos sociais, um ensaio amparado na literatura sobre o
sofreram mudanças no Brasil e nos países tema, a interpretação sugerida visa indicar a
europeus, que adotaram sob três ângulos possibilidade de estudos comparados sobre
opostos: a) sua inexistência no Brasil até os regimes de bem-estar social.
1988, pois estava mais próximo do modelo
conservador de regime de bem-estar social; Por outro lado, o enfoque adotado para
b) a constituição de um sistema de políticas realizar a discussão da literatura busca

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vincular o desenvolvimento econômico com o


desenvolvimento social e suas implicações para Os direitos sociais, porém, voltados a
os direitos sociais. Não foram consideradas atenuar desigualdades reais entre os
outras dimensões, como o desenho das cidadãos, só podem ser patrocinados
instituições políticas ou a construção de pactos pelo Estado, pois este possui funções
político-sociais dedicados a favorecer ou reduzir reguladoras para incidir na questão do
a universalidade dos regimes de bem-estar. No status formal de cidadão vs. situação
caso brasileiro, a Constituição Federal de 1988 real de classe, nos termos propostos por
ampliou sobremaneira o sistema de políticas Marshall (1967). O desenvolvimento da
sociais, e esse pano de fundo institucional democracia e as contradições entre o plano
foi adotado como variável de contexto para a real e formal da cidadania demandam,
promoção de políticas encetadas a partir da assim, a intervenção estatal para equilibrar
década de 1990. Compreende-se que já há expectativas e possibilidades de inclusão
vários estudos sobre o caráter “cidadão” da social. Segundo Marshall (1965), portanto,
Constituição de 1988, o que tornaria pouco as políticas públicas deveriam garantir
relevante inserir essa discussão no artigo. um mínimo de serviços essenciais
Para o caso europeu, considerando a tipologia viabilizadores do status real da cidadania
clássica do welfare state nos termos de Esping- para os indivíduos poderem usufruir da
Andersen (1990), além das possibilidades deste herança social e econômica do país. O
trabalho, estaria uma análise que comparasse Estado deveria, pois, atuar na regulação
suas instituições políticas e desenhos da ordem social e garantir o mínimo para
constitucionais. Isso porque seria necessário os indivíduos se inserirem na competição
discutir as particularidades, sobretudo dos nas oportunidades econômicas. Ao fazê-
países escandinavos, que servem de referência lo, intervém para reconhecer e estender
para essa tipologia de welfare state. direitos sociais.

A perspectiva de análise do artigo considera Em resumo, os direitos civis igualam os


os argumentos de Marshall (1967, p. 87-88) indivíduos pela possibilidade legal de terem
sobre a construção da cidadania, tomando o liberdades comuns. Os direitos políticos
caso inglês como exemplo. O autor destaca garantem aos indivíduos igualdade de
os problemas que houve, pois “os direitos participação na escolha do governo. Os
civis deram poderes legais cujo uso foi direitos sociais definem um mínimo de
drasticamente prejudicado por preconceito de igualdade, considerando a desigualdade
classe e a falta de oportunidade econômica”. A econômica e de oportunidades. Responder
estrutura social e econômica não favoreceu o a esse modelo de maneira integrada e
exercício efetivo da igualdade formal atribuída aproximar as expectativas do cidadão da
ao cidadão. Enfatiza que o status de cidadão realidade social parece ser o desafio das
conferiu igualdade aos indivíduos, mas o democracias de massa europeias. No
sistema de classes sociais gerou desigualdades modelo de Marshall, isso confere um papel
econômicas reais, contrarrestadas pelas lutas importante ao Estado e suas políticas
políticas da classe trabalhadora, visando públicas, além de alicerçar sua legitimidade
ampliar o reconhecimento dos seus direitos política e social.
civis e políticos.

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Se esse mesmo modelo for utilizado para para consolidar a cidadania nacional e a
se analisar a evolução dos direitos sociais participação na comunidade política. No
no Brasil, contudo, nada parece confirmar Brasil, com a exclusão dos analfabetos
a mesma trajetória de desenvolvimento. do direito de votar até 1985, não foi com a
Sobretudo, como será visto, houve um grande educação política pública universal que se
atraso histórico para o País se aproximar da constituiu a cidadania. Educação e direito de
trilha da universalização dos direitos. Antes voto tiveram um peso menor na construção
de garantir direitos mínimos para amplas da “cidadania nacional” 2.
parcelas da população, criou-se um sistema
que aprofundou a desigualdade social Na Europa, sobretudo na Inglaterra, a
e a exclusão, pautado por incorporação expansão da indústria influenciou a ação
meramente formal, ainda que legalmente política da classe trabalhadora em busca
amparada. Esse modelo, iniciado após 1930, de direitos sociais. No Brasil, com a
ao se basear na estratificação funcional industrialização, apenas os estratos inseridos
com base no mercado de trabalho, só fez no mercado de trabalho tiveram direitos
ampliar os níveis de desigualdade real entre reconhecidos. Antes de universalização,
setores da sociedade. No Brasil, pelo menos houve a construção de uma comunidade
até meados da década de 1980, o status política “regulada” pelo Estado e restritiva, ao
formal de cidadão e sua situação social real conferir direitos como tradução da ocupação
alimentaram, assim, uma lógica marcada funcional no mercado de trabalho (SANTOS,
por baixos níveis de inclusão dos indivíduos. 1979)3. Não houve luta política dos “de baixo”
É sob esse enfoque comparado que o para ampliar direitos, mas uma política das
artigo aborda, considerando três períodos novas elites dominantes para criar uma
históricos, até o final dos anos 1990, como cidadania limitada.
evoluíram os direitos sociais no Brasil e
no modelo clássico europeu. A primeira Na Europa, o operariado industrial lutou
parte trata dessa questão no período que para garantir o direito de associação e de
se estende de 1930 até o golpe militar em organização sindical (BENDIX, 1996). No
1964. Em seguida, discute-se o termo dos Brasil, o Estado regulou o conflito social
governos militares, que se encerrou em 1985. criando sindicatos dependentes legal e
A última seção abarca a fase da retomada da financeiramente. O “sindicato público” e
democracia e avança até o início dos anos a regulamentação da profissão foram os
2000. parâmetros legais da cidadania e de sua
incorporação na comunidade nacional
2. Cidadania Nacional e Cidadania (SANTOS, 1979)4. A estratificação funcional
Regulada: as Políticas Sociais no Brasil legalizou as bases da cidadania regulada,
entre 1930-1964 e a sindicalização foi o meio para gerar o
reconhecimento dos direitos da cidadania, que
Reivindicar igualdade foi central na luta da criou uma incorporação desigual ao controlar
classe trabalhadora europeia no século XIX. o acesso formal das massas trabalhadoras
Para Bendix (1996), a oferta de educação como cidadãos.
pública e o direito de voto materializavam
essas reivindicações e contribuíram Para analisar como os países estruturam

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seus sistemas de políticas sociais, Haggard sociais. Tampouco se pode comparar


e Kaufman (2008) propõem o conceito de o sistema corporativo brasileiro com o
realinhamento crítico: cortes históricos e papel dos sindicatos no modelo clássico
políticos que influem na trajetória posterior social-democrata de “parceria social”
dos regimes de bem-estar. Esse conceito que aproximava relações industriais e
aplica-se ao Brasil para analisar os efeitos representação de interesses (ESPING-
prolongados da cidadania regulada, pois ter ANDERSEN, 2000). Mais distante ainda
profissão reconhecida e emprego formal foram esteve o caso brasileiro do modelo social-
requisitos para o reconhecimento de direitos democrata de sindicatos de trabalhadores
sociais até a década de 1970. O seguro social assalariados que financiavam partidos
derivado de contribuições dos assalariados, trabalhistas na arena da política. Por serem
e não na previdência social como direito maioria e terem seus próprios partidos,
universal, foi a tônica (MARSHALL, 1965). A os trabalhadores seriam os grandes
partir dos anos 1930, criaram-se as condições beneficiados com a ocupação de postos
objetivas de políticas sociais estratificadas e no Estado para implantar políticas de bem-
dependentes da patronagem sindical e das estar social (AMENTA; SKOCPOL, 1986).
lideranças políticas (HAGGARD; KAUFMAN, No Brasil, mesmo entre 1945-1964, e com
2008). Com efeito, a cidadania nacional e os o Partido Trabalhista Brasileiro atuando
direitos sociais universais não embasaram nos sindicatos de trabalhadores urbanos e
esse realinhamento crítico. a burocracia do Ministério do Trabalho, tal
concepção não logrou ser o modelo.
Segundo Haggard e Kaufaman (2008),
no Brasil, as políticas sociais serviram Entre 1930-1964, teve início o processo
aos objetivos da elite dominante ao criar de regulação social e intervenção do
sustentação social nas cidades como lócus do Estado para estruturar o regime de bem-
emprego formal. A política social e a cidadania estar no Brasil (DRAIBE, 1994). Mas, a
regulada não conflitavam com os padrões de considerar a “lógica do industrialismo” e o
acumulação para promover o desenvolvimento welfare state como evolução social (Draibe;
capitalista (SANTOS, 1979). Esse foi o eixo RIESCO, 2006), o Brasil teria que esperar
central do realinhamento crítico no pacto um pouco mais. Gerou-se, contudo, uma
entre as elites dominantes e os sindicatos de síntese peculiar entre desenvolvimentismo,
trabalhadores urbanos pós-1930. Na Europa, o cooptação política dos sindicatos e
reconhecimento de direitos sociais foi produto restrições à democracia. Diferentemente da
da luta política e tornou-se universal. No experiência europeia, a cidadania regulada
Brasil, o custo das opções políticas, segundo foi o meio de incorporação à comunidade
Haggard e Kaufman, (2008), foram restrições política e um modelo meritocrático-individual
em realocar recursos para os mais pobres. de solidariedade social. Associada ao
Vincular acumulação desenvolvimentista, corporativismo do mercado de trabalho,
cooptação da classe trabalhadora urbana e essa foi a solução conservadora para as
política social estratificada foram os traços políticas sociais (DRAIBE; AURELIANO,
centrais no estado de bem-estar no Brasil 1989).
de 1930 a 1964. Não houve relação entre
democracia, participação eleitoral e políticas

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3. Expansão e Consolidação do Regime 1964, derivou da incapacidade de equilibrar


de Bem-estar Social no Brasil (1964-1985) democracia, acumulação capitalista e
conflito social. Essas rupturas institucionais
A consolidação do welfare state na Europa e o desequilíbrio entre desenvolvimento
deu-se na década de 1960, ao universalizar econômico, demandas sociais e normalidade
direitos sociais (ESPING-ANDERSEN, 2000), democrática não ocorreram na consolidação
e apoiou-se em governos democráticos e do welfare state na Europa após 1945.
direitos civis dos cidadãos. Havia uma base
econômica a sustentar a oferta de serviços Em 1964, economia, democracia e
sociais, amparada no pleno emprego para sociedade entraram em um descompasso
financiá-la. No Brasil, a consolidação e a incapaz de ser respondido pelo desenho
expansão do regime de bem-estar social teve político-institucional em vigor (DRAIBE,
início, pós-1964, sob um governo autoritário. 1994). O regime militar, ao romper com as
Não houve universalização dos direitos regras democráticas, buscou respostas à
sociais, tampouco o respeito aos direitos complexificação da estrutura social distintas
civis, e um modelo econômico concentrador daquelas voltadas a consolidar o welfare
de renda e socialmente excludente financiou state na Europa, visando construir o Estado
a ampliação da oferta de serviços sociais. sem mobilização da sociedade. Não houve
nada parecido com a “luta de classes
Para Draibe (1994, p. 271), as políticas democrática” entre sindicatos, partidos e
sociais ancoraram-se no arrocho salarial, no governo como base política do welfare state
cerceamento às organizações e na exclusão europeu. O antagonismo entre expansão da
social. Havia um nexo entre regime político, economia e o desenho das políticas sociais foi
padrão de acumulação capitalista e política resolvido de maneira conservadora (DRAIBE;
social carente de critérios para universalizar AURELIANO, 1989).
direitos. A agenda social era subordinada à
modernização da economia, no que Draibe As políticas sociais tiveram baixo impacto
(1994) chamou de “reforma conservadora” redistributivo, foram pouco inclusivas, tiveram
das políticas sociais pós-1974. O regime restritos programas universais, carentes de
militar buscou equilibrar redução de despesas seletividade e mal focados nas camadas
e ampliação de objetivos redistributivos ao mais necessitadas (DRAIBE, 2003; DRAIBE;
“redescobrir” a pobreza (FAGNANI, 1997). AURELIANO, 1989). Distintamente do modelo
social-democrata europeu, as políticas
Para Santos (1979), compreender a política sociais do regime militar não foram universais
social do regime militar requer observar que e carregaram a herança da cidadania
a cidadania regulada se tornou incompatível regulada e da estratificação ocupacional.
para equilibrar crescentes demandas dos Não se concebeu a política social como um
grupos sociais. “Em aparência e, novamente, direito e não se integraram participação social
como em 30, tratava-se de reformular as e democracia na construção da cidadania
instituições em que se processavam a nacional. Se, até 1964, havia a cidadania
acumulação e a distribuição compensatória, regulada, no regime militar, os patamares de
e novamente opor via autoritária” (SANTOS, cidadania estiveram aquém do mínimo de
1979, p. 82). A alternativa autoritária, em justiça (SANTOS, 1979).

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pressão das “classes baixas” por vagas nas


A política social do regime militar foi constituída universidades e reproduzir a ordem social
de maneira burocrática. Ao controle sindical, por meio do ensino.
assim, somou-se o controle administrativo
de salários sem a mediação da “luta de Um modelo mais compreensivo de bem-
classes democrática.” Mesmo programas estar social teve que esperar o período
como o Funrural, organizado sobre bases não democrático iniciado em 1985, sobretudo
contributivas e mais universalizante, foram pós-1994, como se discute abaixo.
implantados pela burocracia estatal. Não
aceitando os conflitos políticos para gerar 4. O “Desencontro” entre o Estado de
algum consenso social, o regime militar ampliou Bem-estar Europeu e o Brasil dos Anos
a centralização burocrática. Organizou-se 1990
um “regime de bem-estar burocrático” sem a
política para expressar demandas sociais. Para Esping-Andersen (2000), o welfare
state passou a enfrentar novos problemas
Para Draibe (1994), as estruturas centralizadas quando a economia pós-industrial deixou
que coordenavam os programas sociais se de garantir pleno emprego e igualdade.
repolitizaram com a crescente autonomia dos Mudanças no mercado de trabalho afetaram
técnicos. A política representativa foi substituída o trade-off emprego e igualdade, gerando
pela “política burocrática” (LINDBLOM, instabilidade familiar e perda de integração
1981). Os “anéis burocráticos” legitimaram a social. Mesmo que o desenvolvimento
burocracia para definir políticas sociais como histórico do estado de bem-estar tenha
interlocutores, sobretudo, perante grupos demonstrado que não há incompatibilidade
privados5. Por exemplo, a ampliação da oferta entre capitalismo e cidadania, o padrão de
de serviços de saúde favoreceu a rede privada solidariedade assentado no pleno emprego
em detrimento de políticas pública universais, começou a ruir. Demandava-se rever o
como viria a ser o Sistema Único de Saúde contrato entre o Estado e a sociedade
após 1988. para redefinir os novos riscos sociais a
serem enfrentados, a despeito de não se
Preservaram-se traços meritocráticos- questionar o princípio básico: os cidadãos
particularistas, o viés corporativo e clientelista têm direitos reconhecidos. Daí a importância
na concessão de benefícios (FAGNANI, de a “desmercadorização” ser uma política
1997; DRAIBE; AURELIANO, 1989). Buscou- pública para disponibilizar serviços sociais
se ajustar o convívio da cidadania regulada como direito dos cidadãos, para que estes
com a expansão dos serviços sociais. Para se mantenham sem depender do mercado.
Draibe (1994, p. 305), “tais políticas tenderam Com esse conceito, tem-se uma diretriz
a reproduzir e reiterar as desigualdades para avaliar a qualidade do regime de bem-
iniciais”. Enquanto o modelo socialdemocrata estar (ESPING-ANDERSEN, 1990).
se consolidava na Europa em bases
universalizantes, aqui, os serviços sociais Com as ameaças de desemprego estrutural
expandiram-se de maneira limitada para incidir decorrente da modernização tecnológica,
sobre a desigualdade. O caráter terminativo da porém, como criar bases econômicas
educação técnica é um exemplo para reduzir a para sustentar a “desmercadorização”?

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Se a nova economia de serviços amplia os na contribuição individual foram a tônica. Um


empregos mal pagos, tal situação incide sistema pouco afeto a ampliar a incorporação
negativamente sobre a arrecadação dos dos cidadãos para um padrão mais universal
governos. O modelo do pleno emprego, com de solidariedade, ao menos até a segunda
políticas sociais de qualidade, e que ampara metade dos anos 1980, quando, lentamente,
a “desmercadorização”, tem novos desafios se iniciam mudanças nessa direção.
de financiamento para manter sua visão
de solidariedade. Para o autor, a resposta No caso europeu, ao abordar a pobreza,
para a pouca oferta do mercado seria as Esping-Andersen (2000) destaca as políticas
famílias buscarem meios alternativos de públicas para protegê-la e evitar esse risco
sobrevivência, apesar de o autor ser pouco temporário e conjuntural. O desenvolvimento
claro sobre a forma como essa opção poderia de habilidades familiares seria de enfrentar
se materializar e ser sustentável. esse problema6. No Brasil, com será visto,
a pobreza é tratada como uma mazela
Esping-Andersen (2000) também argumenta estrutural decorrente do padrão histórico do
que o desemprego pode opor insiders desenvolvimento capitalista. Nesse sentido,
(homens) e outsiders (jovens e mulheres), programas como “Bolsa Família” parecem
enfatizando o risco, em longo prazo, de o não caber na concepção de Esping-Andersen
welfare state conviver com desemprego, (2000), pois são iniciativas de transferência
baixos salários e pobreza. Para o autor, o de renda de sobrevivência familiar. Frise-se
regime de bem-estar social consiste em que, nesse caso, não se aplica o conceito
reconstruir a “luta de classes democrática” e de “desmercadorização”, pois as famílias
uma estratégia “ganha-ganha” para impedir não estão diante da opção de se afastar
a emergência de um modelo formado por do mercado de trabalho como um direito
insiders e outsiders. No equilíbrio proposto reconhecido. Tampouco se pode dizer que se
entre política e mercado, todavia, não fica trata de um programa temporário para atacar
claro se os sindicatos seriam, assim como a pobreza. Nem mesmo se pode comparar o
na “era dourada” do welfare state, os atores Programa Bolsa Família com um processo de
privilegiados na relação com o Estado. “desfamiliarização”, como frisado por Esping-
Andersen (2000), pois, entre os objetivos do
Como já vimos, no Brasil, a cidadania regulada programa, não há uma estratégia para que
amparada no emprego formal embasou as o Estado provenha serviços, como creches,
políticas sociais, pelo menos, até meados que facilitariam a inserção das mulheres no
dos anos 1970. O capitalismo no Brasil nunca mercado de trabalho, por exemplo. Em face
buscou gerar um trade-off entre igualdade da dificuldade de utilizar o modelo de Esping-
e emprego, mas, sim, regular as bases da Andersen (1990; 2000) na realidade brasileira,
acumulação capitalista. A reprodução do faz-se necessário um novo conceito. Desse
capital historicamente conviveu com exclusão modo, Draibe e Riesco (2006, p. 21) propõem
social e baixos salários. Nunca houve, no que:
Brasil, uma “luta de classes democrática”,
pois, como mostra a literatura (Santos, O enfoque de regimes de bem-estar social
1979; Draibe, 1994; Fagnani, 1997), políticas tem contribuído decisivamente para evitar
sociais altamente regressivas e baseadas os dois riscos [a generalização indevida e

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a redução historicista – grifos do autor] mais participação, descentralização e


comuns em matéria de comparação histórica associação com a sociedade civil. Os
de complexos processos de desenvolvimento eixos estruturadores foram: reforma
econômico e social. dos serviços sociais básicos públicos,
melhoria na quantidade e qualidade das
A análise desses autores é útil para compreender oportunidades de trabalho e obtenção de
o sistema de políticas sociais5 no Brasil depois renda, ampliação das oportunidades de
de 1988, especialmente após o Plano Real, em acesso a ativos produtivos como terra e
1994. O sistema de políticas sociais passou a crédito, iniciativas para aliviar, no curto
ser visto pelo viés positivo de sua contribuição prazo, a pobreza aguda e programas de
para o desenvolvimento econômico. O Estado melhora e transferência direta de renda.
constituiu-se no promotor de programas Essa arquitetura foi concebida com base
públicos para estimular um ciclo virtuoso entre na estabilidade macroeconômica, mas
economia e política social com a participação buscando proteger sua continuidade contra
direta dos cidadãos (DRAIBE; RIESCO, 2006) variações cíclicas do desempenho fiscal e
para que a política social amplie a equidade orçamentário (FARIA, 2002)7. O sistema de
(DRAIBE, 2003). Para Draibe e Riesco (2006, política social foi, desse modo, concebido
p. 13-14): em bases mais universalizantes.

São os sistemas de políticas sociais ou, mais Nesse período, enquanto, na Europa, o
especificamente, o Estado de bem-estar, o desafio, segundo Esping-Andersen (2000),
ponto de partida da análise para articular o consistia em responder à crise do welfare
desenvolvimento econômico e a política social. state na economia pós-industrial, no Brasil,
Por mais que seja fragmentada a visão de um se avançava para um sistema mais generoso
ou outro programa social, é a perspectiva do de políticas sociais. Ao mesmo tempo, a
sistema de proteção social como um todo ampliação da democracia e a participação
que possibilita examinar os efeitos dinâmicos social passaram ser instrumentos-chave
da política social no tempo, acompanhando para, desde o final dos anos 1980,
o mesmo tratamento dinâmico com que se implantar as políticas sociais (DRAIBE,
examina o desenvolvimento econômico. 1998). Essa engenharia institucional possui
duas distinções em relação ao modelo
Na próxima seção, ver-se-á como essa “Estado, Mercado e Família” de Esping-
concepção é útil para a análise do sistema de Andersen (2000)8: a) a participação da
políticas sociais no Brasil após 1994. sociedade civil por meio de Organizações
Não Governamentais (ONGs) e outros
5. Sistema de Políticas Sociais e tipos de parceria e; b) a descentralização
Desenvolvimento Econômico no Brasil Pós- de políticas públicas, que não é abordada
1994 como forma político-organizativa do regime
de bem-estar no caso europeu9. Há outras
A partir de 1994, com o Plano Real já em vigor, distinções do sistema de políticas sociais
gerou-se uma estratégia de desenvolvimento no Brasil, desde 1995, se comparado à
social baseada na universalidade, visão clássica social-democrata na Europa,
solidariedade, igualdade de oportunidades, que buscam romper o legado do “deficit

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social”. A seguir, apresentam-se algumas social são institucionais e organizacionais,


características do modelo implantado e suas apesar de limites econômicos e fiscais. Entre
diferenças diante da visão “pura” do modelo esses fatores, destacam-se a fragmentação
social-democrata europeu. institucional e corporativa, elevado custo e
ineficiência, interesses da burocracia, de
Em primeiro lugar, a opção estratégica dos políticos, de provedores de serviços e a
governos Fernando Henrique Cardoso estrutura regressiva de benefícios.
(1995-2002) foi, para Draibe (1998), focalizar
ações em grupos vulneráveis, no interior dos Neri (2007) destaca que, a partir do Plano
programas universais, e ampliar o impacto Real, a pobreza e a desigualdade social se
redistributivo para setores de mais baixa reduziram de maneira quase continuada até
renda. A seletividade para grupos mais 2005, beneficiando, sobretudo, os setores
vulneráveis aumentaria a justiça social com mais pobres da população. Ainda que o
uma maior progressividade de gasto per Plano Real não objetivasse distribuição de
capita. Com setores da população à margem renda, e sim estabilidade macroeconômica,
do mercado de trabalho e incapazes de se geraram-se efeitos positivos para as
protegerem contra todo tipo de risco social, políticas redistributivas. Com o ambiente
o Estado, antes de universalizar um serviço econômico mais previsível, a capacidade
social, deveria elevar a qualidade de vida de planejar políticas públicas ampliou-se.
desses grupos, pelo menos até a linha da O governo intensificou estratégias focadas
pobreza (BARROS; FOGUEL, 2002). A nos segmentos mais vulneráveis e de
pobreza como problema estrutural nunca transferência de renda condicionada (Bolsa
se inseriu na visão social-democrata na Escola – 1998/2002 – e Bolsa Família – a
Europa, pois o pleno emprego sempre foi a partir de 2003). Orientar ações para os mais
base material e política dos direitos sociais pobres, porém, não deixa claros os limites
universais. temporais da ação pública e a linha de corte
entre aspectos compensatórios e estruturais.
Combater a pobreza, segundo Barros
e Carvalho (2003), passa por reduzir a Como destaca Neri (2007), as políticas
desigualdade social. Para se atingir esse públicas não visam reduzir a desigualdade
objetivo, deve-se aumentar a efetividade em si, mas melhorar o nível de bem-estar da
do gasto social, sem a necessidade de se população, o que depende da estabilidade
aumentar o orçamento público. Para os econômica e da geração de empregos para
autores, programas focalizados possuem atacar a pobreza de modo sustentável.
maior efetividade para reduzir a pobreza e são Como, diante das históricas deficiências em
centrais para alterar o perfil da política social desenvolvimento educacional do País, se
brasileira, qualificar o gasto e direcioná-lo aos poderia qualificar a força de trabalho e reduzir
segmentos que mais necessitam. Para esses sua dependência estrutural de políticas
autores, ainda há um fosso nos programas públicas compensatórias? Qual o limite da
sociais que marginalizam os mais pobres despesa pública para manter o atendimento
no acesso e nos benefícios. Também para a essa clientela sem que seja incorporada
Faria (2002), os principais obstáculos para na atividade econômica? Distinta foi a
implantar a estratégia de desenvolvimento experiência, segundo Haggard e Kaufman

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Regime de Bem-estar Social no Brasil: Três Períodos Históricos, Três Diferenças em Relação ao Modelo Europeu Social-democrata

(2008), do Leste Asiático, combinando das características estruturais de exclusão


política educacional e desenvolvimento social e baixo nível de reconhecimento
econômico. Reduzir a desigualdade de renda efetivo dos direitos dos cidadãos? Claro que,
e gerar empregos formais não só depende do com esses programas sociais, parece ter
desempenho da economia, mas também das ocorrido uma redução da sua fragmentação
condições de inserção competitiva da força e dispersão, melhoria na coordenação
de trabalho. A questão que fica, assim, é se intergovernamental e flexibilização regional
o ataque aos efeitos compensatórios gerará das ações, tal como Faria (2002) enfatiza,
mudanças sustentáveis no longo prazo. mas não se impedirá a reprodução da
pobreza sem a reinserção social produtiva.
Barros e Foguel (2002) mostram os desafios Por esse motivo, para Draibe (1998), não
no acesso e nos benefícios que havia para a basta só investir em política social sem uma
população mais pobre auferir dos programas agenda de desenvolvimento para as áreas
públicos até o final da década de 1990. Para mais pobres. Por isso, ampliar a igualdade
os autores, a maioria dos serviços sociais e equidade na vida coletiva nacional ainda
oferecidos pelo governo federal estava mal é tarefa inacabada do regime de bem-estar
focalizada na clientela prioritária, que era no Brasil.
mais vulnerável aos riscos sociais. Não seria,
assim, necessário ampliar o gasto social para Como vimos, ainda persiste, no Brasil, uma
erradicar a pobreza, desde que se direcionasse visão de cidadania que dista, em vários
aos mais pobres para melhorar sua efetividade. programas, da efetiva universalização no
Também se poderia combater a pobreza por acesso e nos seus benefícios. A efetividade
meio dos programas universais, pois estes do gasto público nas políticas sociais ainda
não são descontínuos e têm maior qualidade tem um ajuste de contas a fazer com o
dos serviços. Focalizar o universal e combinar legado histórico de exclusão, visando à
universalidade e seletividade seria, portanto, universalização da cidadania. Nesse caso,
a estratégia central no combate à pobreza parece que as políticas sociais deveriam
(DRAIBE, 1998). gerar, segundo Amenta e Skocpol (1986),
um efeito de feedback capaz de alterar as
Um debate com essas características, ao politics existentes para que o governo se
menos no plano normativo, distancia-se do pergunte acerca dos meios para melhorá-
modelo social-democrata, pois a focalização las com novas policies. Esse aprendizado
é um conceito estranho a um sistema cujo político institucional, até o final da década
princípio básico é a universalização dos de 1990, ainda esperava que as policies
direitos sociais dos cidadãos. O Brasil possui fossem mais universais no seu formato e
níveis de desigualdade social e regional que, nas clientelas atendidas.
historicamente, incidem negativamente sobre
políticas redistributivas. No Brasil, as políticas O segundo aspecto da reforma do sistema
sociais, para serem de fato universais no de políticas sociais no Brasil pós-1988 foi o
acesso e nos benefícios, precisam enfrentar desafio para financiá-lo e regulá-lo.A principal
esse peso histórico e institucional que remete mudança consistiu na descentralização,
a uma questão que parece importante: Como democratização e participação social
ampliar os níveis de integração social diante como novas formas de gestão. No âmbito

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do governo federal, porém, um problema maior racionalidade no gerenciamento


central foi a coordenação horizontal entre dos programas. Para Neri (2004), medidas
os órgãos que atuam na área social. Essa como o crédito social entre governo federal
questão impactou diretamente a efetividade e municípios serviriam para condicionar o
do gasto público, pela superposição de áreas repasse de verbas a resultados, e não apenas
de atuação ou pelo conflito de metas em às exigências de ordem legal. Segundo o autor,
programas distintos para a mesma clientela. se o núcleo da política social são os recursos
Barros e Carvalho (2003) exemplificam transferidos da União para os municípios,
essa situação frisando que as famílias deve existir um monitoramento que verifique
poderiam ser duplamente estimuladas, não só a correta aplicação do orçamento, mas,
e de maneira contraditória. Enquanto um sobretudo, os resultados obtidos pelos mais
programa incentivava a presença na escola, pobres. Já Barros e Carvalho (2003) tratam
outro oferecia qualificação profissional para da flexibilização dos programas federais às
reinserção no mercado de trabalho. Parece realidades regionais, que demanda maior
que essa incapacidade de coordenação capacidade de policy learning para realizar
intergovernamental não se alterou até o ajustes nos programas. Em um país federativo
final da década de 1990, pois estímulos como o Brasil, culturalmente heterogêneo e
desencontrados ainda ocorriam para os com clivagens regionais e socioeconômicas
públicos dos programas sociais. profundas, essa é uma questão importante
para a gestão das políticas sociais.
A realidade acima apresentada evidencia
que o sistema de políticas sociais brasileiro, De todo modo, a partir de 1995, e em
no período referido, carecia de mecanismos relação à maneira de executar os programas
mais efetivos de gestão operacional. Tanto em federais, dois vetores foram intensificados: a
termos de desenho como de implementação, descentralização de políticas públicas para
a tarefa do governo federal como financiador os municípios e para ONGs. Como frisado
e regulador do sistema não supriu essa anteriormente, tais inovações institucionais
lacuna. Como visto anteriormente, o binômio não são incorporadas por Esping-Andersen
ampliar a equidade e a efetividade dos (2000), pois seu modelo se restringe à tríade
recursos públicos era considerado central Estado, Mercado e Família no welfare state.
na área social. Para obterem-se avanços
nessa direção, contudo, uma gestão mais Analisando a descentralização das políticas
organizada dos programas, considerando públicas, Arretche (2002) mostra que,
as duplicidades acima referidas, foi uma em países federativos como o Brasil, os
lacuna não preenchida. Medidas corretivas municípios têm autonomia política e podem
ou mitigadoras dessa realidade tiveram se constituir em pontos de veto. O governo
que esperar até que o cadastro único dos federal, para contornar tais problemas, criou
programas sociais fosse implantado. estratégias de indução política e financeira,
variáveis conforme a política social, para a
Afora o esforço de unificação da clientela esfera local aceitar novas atribuições. Para
das políticas sociais, passada a experiência a autora, o sucesso da descentralização em
brasileira até o início dos anos 2000, alguns políticas como saúde e educação se deve,
autores sugerem medidas visando gerar sobretudo, à capacidade de o governo federal

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Regime de Bem-estar Social no Brasil: Três Períodos Históricos, Três Diferenças em Relação ao Modelo Europeu Social-democrata

garantir incentivos para que os municípios state europeu parece ter sido diferente: as
assumam novas responsabilidades. Superados políticas sociais eram ofertadas de maneira
os desafios iniciais, o regime de bem-estar no centralizada.
Brasil passou a ser implantado de maneira
descentralizada, cabendo ao governo federal No Brasil, a descentralização foi coerente
financiar e regular as políticas. Diferentemente com a maior universalização e ampliação do
do que dizem Haggard e Kaufaman (2008), acesso e benefícios a amplas parcelas da
a reforma das políticas sociais no Brasil foi população. A descentralização foi o formato
eficaz, mesmo que o sistema político conviva político e administrativo na organização
com veto points na arena federativa. federativa do regime de bem-estar social
no Brasil. Não se encontram referências a
Uma saída para esse problema, segundo um processo com essas características em
Arretche (2002) argumenta, é que, após a fase Esping-Andersen (2000) para propor, por
de aprovação das leis, se desloca para o governo exemplo, a reorganização do welfare state
federal a autoridade sobre os conteúdos das diante dos novos desafios colocados pela
políticas. E, nesse momento, as burocracias economia pós-industrial. No limite, o que se
passam a decidir, independentemente do depreende da visão desse autor seria uma
Legislativo, a tradução das leis em política descentralização para a sociedade, quando
efetiva por meio de regras de implantação sugere que as famílias poderiam ser atores
(como as NOBs para a saúde). A ação da relevantes, visando garantir direitos e
burocracia no contexto de descentralização manter a solidariedade social.
das políticas sociais, combinada com arenas
federativas de decisão, tal como a Comissão Devem ser apontados, contudo, os
Tripartite para a Saúde, gerou um peculiar problemas da visão que associa
desenho institucional. O sistema de políticas descentralização com mais democracia
sociais, além de ser descentralizado, criou no plano local, ampliação da equidade,
mecanismos de controle resultantes das redução do clientelismo e do desvio de
pressões democratizantes da sociedade e do recursos públicos destinados à área social.
policy learning das burocracias (ARRETCHE, A organização de conselhos de políticas
2002; AMENTA; SKOCPOL, 1986). públicas foi, segundo Draibe (1998), uma
das fortes inflexões para articular interesses
Distintamente do modelo europeu, não se da sociedade na formulação de políticas e
instalou um modelo de peak associations tomada de decisões. A forma “conselhos”
(sindicatos e partidos) que decidem políticas municipais de políticas públicas deveria
de bem-estar em conjunto com o governo, tal ser capaz de exercer controle social sobre
como a experiência social-democrata europeia. o poder público e canalizar energias
No Brasil, aprofundaram-se a descentralização democráticas. Conforme Draibe (1998),
da execução e a gestão de serviços sociais porém, esses fóruns foram limitados em
para as localidades. Ao mesmo tempo, criaram- controlar as ações dos governantes, em
se mecanismos federativos de articulação que face de sua dependência do poder público
incorporaram vários atores e interesses que e de sua baixa capacidade técnica. Diante
podem atuar como veto points. Mais uma vez, da histórica relação entre clientelismo e
o desenho político-institucional do welfare assistencialismo no Brasil, é plausível

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admitir-se uma distorção na concepção própria, não pode nem deve, sozinho, tudo
democrática dos conselhos diante da fazer, fórmula que se traduz no reforço das
influência dos governos locais, sobretudo suas parcerias com os setores privados
por se tratar de instâncias que autorizam ou não-lucrativos [...]” (DRAIBE, 1998, p. 119).
vetam o uso de recursos públicos. ONGs passaram, assim, a executar serviços
públicos, por exemplo, na assistência social
Outra inovação da descentralização na (convênios para serviços de creches ou
década de 1990 foi ampliar os canais de cuidados com a terceira idade) e na saúde
participação em relação à sociedade civil. (equipes de Programa Saúde da Família e
Para Barros e Carvalho (2003), a participação agentes comunitários).
comunitária ajustou melhor os programas
às necessidades locais e aumentou sua Quando confrontado com o provimento
eficácia operacional. A descentralização de serviços do modelo social-democrata,
e a participação da sociedade foram, estatal e centralizado, tal como concebido
como destacado por Draibe (1994; 1998) e por Esping-Andersen (2000), a configuração
Fagnani (1997), formas de contrarrestar a adotada no Brasil é inovadora. Pelo menos
centralização decisória que vigorou durante duas ressalvas, porém, podem ser feitas: a)
o regime militar nas políticas sociais. ineficaz controle gerencial do Estado para
Mecanismos de parceria com a sociedade avaliar como o recurso público é utilizado
civil, o apoio a ONGs e o reforço a entidades e se os serviços ofertados pela ONG são
com a presença direta da clientela, como eficazes e condizem com o perfil da demanda;
Associações de Pais e Mestres nas escolas, b) o repasse de ações como formular e
passaram a compor o cardápio de opções planejar políticas públicas às ONGs pode
governamentais para descentralizar as desestimular a construção de burocracias
políticas sociais. Ao final da década de 1990, mais qualificadas, especialmente no nível
com os programas sociais descentralizados local, se contratam tais serviços.
para os governos subnacionais, sobretudo
para municípios, as inovações institucionais Emblemático dessa concepção de parceria
passam a ser a aproximação com a com a sociedade foi o programa Comunidade
sociedade civil para ampliar a capacidade Solidária, que, para Draibe (1998), focou-
de atendimento das políticas públicas. se no combate à pobreza. Suas inovações
foram ações sociais integradas, com
Em setores como saúde, educação e delimitação territorial da clientela mais
assistência social, a descentralização e pobre e apoio do setor privado e filantrópico.
a participação da sociedade buscaram Buscava-se garantir, segundo Draibe
ampliar a oferta de serviços para responder (1998), uma concepção de direitos sociais
aos limites da provisão diretamente estatal. universalizantes e afastada do clientelismo.
A descentralização de serviços sociais Por outro lado, diante do desenho do welfare
configurou o que Bresser-Pereira (1997) state mais universalizante em que o Estado
definiu como um modelo de provisão é o provedor central de serviços sociais,
“público, mas não estatal”. Fortaleceu-se uma o programa Comunidade Solidária tem
“compreensão de que o Estado, sem abdicar distinções relevantes. Sua natureza focada
de sua responsabilidade e sua identidade nas localidades mais carentes, selecionadas

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Regime de Bem-estar Social no Brasil: Três Períodos Históricos, Três Diferenças em Relação ao Modelo Europeu Social-democrata

segundo o Índice de Desenvolvimento Humano construção de hipóteses para futuras


Municipal (IDH-M), talvez não tenha gerado pesquisas, o artigo buscou mostrar que a
um programa em bases universais. Ademais, evolução dos sistemas de políticas sociais,
a prioridade no combate à pobreza talvez não comparando a realidade brasileira e o tipo
tenha pautado o tema dos direitos sociais como social-democrata de welfare state, seguiu
prioridade, a exemplo da centralidade que esse diferentes trajetórias. A opção adotada,
assunto assumiu nos regimes de bem-estar na de apresentar de maneira comparada
Europa. três grandes períodos, serviu para essa
finalidade, pois fica mais nítida a distinção
Tais características desse programa distam de caminhos que sofreram os sistemas de
do modelo social-democrata, pois a “luta políticas sociais nas duas realidades. Mais
de classes democrática” e a definição das do que distintos, caminhos que, nos três
políticas de combate aos riscos sociais têm no momentos, se opõem nas suas opções
governo, nos empresários e nos sindicatos os políticas. Ainda que a prioridade tenha sido
atores centrais. As iniciativas como o programa o período posterior a 1990, colocar o tema
Comunidade Solidária voltaram-se para os em perspectiva mais ampla entre 1930 e
públicos não organizados e mais afetados pela o início do século XXI ajuda a mostrar as
exclusão social. Coube ao Estado menos arbitrar mudanças que se processaram e seu curso
a “luta de classes democrática” e mais ocupar provável. Para fins de conclusão, nada mais
os vazios sociais e territoriais não preenchidos que uma síntese para alinhar problemas de
pelo desenvolvimento econômico e social no pesquisa, uma observação geral para cada
Brasil. De outra parte, no caso clássico do um dos três períodos ajuda nesse objetivo.
welfare state, embora seja o Estado o provedor
de serviços, os sindicatos de trabalhadores Em primeiro lugar, em relação ao período
sempre atuaram como partes interessadas e 1930-1964, analisa-se o legado negativo
atores importantes na construção dos pactos do “realinhamento crítico” das opções
entre empresas e o poder público. A ênfase na adotadas pelas elites políticas em face do
participação da sociedade e na constituição de modelo societário ancorado na cidadania
um espaço com a presença do poder público, regulada. Os efeitos desse desenho
proposto pelo programa Comunidade Solidária, político-institucional geraram atrasos
não se compara, assim, ao tripé sindicatos- significativos na expansão da cidadania em
governos-empresas do regime de bem-estar bases mais universais. Essa expansão, de
europeu. maneira lenta e contraditória, iniciou ainda
no regime militar, mas apenas a partir da
6. Notas Finais: a Evolução do Regime de segunda metade dos anos 1980 começou
Bem-estar Brasileiro até a Década de 1990 a ser revertida. No Brasil, o tema dos
direitos sociais ficou truncado diante de
Foi frisado, no início do texto, o objetivo uma visão excludente de amplas parcelas
de apresentar três períodos históricos do da população não inseridas em termos
desenvolvimento do regime de bem-estar social produtivos no mercado de trabalho. O
no Brasil para destacar suas características Estado, no Brasil, não se responsabilizou
centrais e especificidades diante do modelo pela oferta de serviços para a população
social-democrata europeu. Para apoiar a marginalizada que não estivesse

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representada pelo modelo de cooptação regime de bem-estar teve outra característica.


política e social entre sindicatos, governo e O modelo econômico concentrador de renda e
empresas. a desigualdade social foram marcas centrais,
apesar da expansão das políticas sociais.
Na Europa, nesse mesmo período,
consolidou-se um padrão de universalização No modelo social-democrata europeu,
de direitos sociais e de cidadania nacional a política ocupou um lugar de destaque
distinto da estratificação social determinada como mediadora de acordos entre capital,
pelo mercado de trabalho e pela ocupação trabalho e poder público, com destaque
funcional. A tríade sindicatos, empresas para as peak associations, por sua natureza
e Estado gerou um arranjo político e de representação ampla e corporativa.
institucional em bases mais generosas ao A face econômica do capitalismo não se
garantir amplo acesso à sociedade para desenvolveu, assim, em detrimento das
as políticas sociais. O período pós-1945 foi possibilidades de estender uma rede de
marcado por uma crescente ampliação das direitos sociais que reduzisse os efeitos
franquias para setores sociais acessarem as deletérios de uma lógica mais pautada pela
ofertas de welfare state, independentemente concentração de renda. O Estado, em vez de
de sua posição na esfera produtiva como ser uma instituição e um ator político voltado
assalariado. O “realinhamento crítico” que a garantir as bases da exploração econômica
houve com a organização do modelo social- e a repressão da representação política das
democrata foi, assim, a constituição de classes trabalhadoras em seus sindicatos,
um pacto social em bases cada vez mais atuou como promotor de consensos sociais.
universalizantes em termos de direitos Nesse período, portanto, o welfare state
sociais. atingiu seu ápice como um sistema generoso
de políticas sociais em bases ainda solidárias
Em segundo lugar, no regime militar e universais em direitos.
brasileiro, expansão e consolidação do
Estado de bem-estar social não se valeram Em terceiro lugar, após 1994, comparar
de nenhuma mediação política para construir o modelo social democrata europeu com
consensos coletivos sobre o modelo de as políticas sociais no Brasil adquire outra
solidariedade social a ser implantado. A conotação. Na Europa, o desafio, segundo
burocracia tornou-se um ator privilegiado na Esping-Andersen (2000), era recriar as bases
definição de políticas e interlocutores sociais, do modelo societário universalizante em
especialmente no setor privado. Em vez do face das mudanças econômicas e sociais,
pacto entre governo e sindicatos para gerar notadamente a desintegração familiar.
políticas sociais, tal como no modelo social Mudanças na base econômica da sociedade
democrata europeu, no Brasil, fortaleceram- (alteração das bases tecnológicas de produção,
se os vínculos entre os interesses da novos players no mercado mundial etc.) foram
burocracia e das empresas privadas. aspectos que, gradativamente, minaram
Antes de reforçar políticas sociais mais os pilares materiais do modelo. A ênfase
universalizantes que, na experiência social na “desmercadorização” como garantia de
democrata na Europa, adquiriram sua feição direitos universais amparados pelo Estado foi
mais acabada nos anos 1970, no Brasil, o cedendo lugar a estratégias de sobrevivência

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Regime de Bem-estar Social no Brasil: Três Períodos Históricos, Três Diferenças em Relação ao Modelo Europeu Social-democrata

social menos dependentes do poder público, assentados na base econômica, a despeito


com o protagonismo assumido pelas famílias. A de ter sido uma opção mais justa da
esfera privada e doméstica, garantia do modelo sociedade brasileira em direção a padrões
ideal do welfare state centrado no mercado de menos predatórios de cidadania.
trabalho para os homens e priorizado como
espaço de construção da vida familiar, sofreu Referências
mudanças profundas: em primeiro lugar, diante
das alterações no mercado de trabalho e do AMENTA, E.; SKOCPOL, T. States and social
crescimento do desemprego estrutural, as policies. Annual Review of Sociology,
mulheres ampliaram sua inserção na oferta de Palo Alto, n. 12, p. 131-157, 1986.
mão de obra; em segundo lugar, a assunção
de novas responsabilidades, antes assumidas ARRETCHE, M. T da S. Federalismo e
pelo Estado na garantia de direitos sociais, relações intergovernamentais no Brasil:
alterou a dinâmica de vida desse grupo social. a reforma de programas sociais. Dados:
Revista de Ciências Sociais, Rio de
No Brasil, o regime de bem-estar social passou Janeiro, v. 45, n. 3, p. 431-458, 2002.
a se pautar por valores mais compreensivos
em defesa dos direitos e da cidadania, com BARROS, R. P. de; CARVALHO, M. de.
um sistema mais generoso de políticas sociais. Desafios para a política social brasileira.
Ainda assim, debates como a focalização IPEA, Rio de Janeiro, n. 985, p. 1-23, 2003.
de programas para combater a pobreza e a
desigualdade social são estranhos à visão BARROS, R. P. de; FOGUEL, M. N.
social-democrata na Europa. Isso porque Focalização dos gastos públicos sociais
esse modelo compreende que o welfare state e erradicação da pobreza no Brasil. In:
é, acima de tudo, um sistema de políticas HENRIQUES, R. (Org.). Desigualdade e
que se sustenta em cidadãos com direitos pobreza no Brasil. Rio de Janeiro: IPEA,
sociais reconhecidos e em bases universais. 2002. p. 719-739.
Ainda que as políticas sociais encetadas
pelo Estado visassem ampliar direitos e o BENDIX, R. Construção nacional e
acesso a segmentos sociais marginalizados, cidadania: estudos de nossa ordem social
o descolamento do mercado de trabalho ainda em mudança. São Paulo: Edusp, 1996.
se manteve. A opção “pelo social” adotada
no Brasil depois da Constituição de 1988 BRESSER-PEREIRA, L. C. Una reforma
esteve longe de criar um sistema ancorado gerencial de la administración pública en
em arranjos clássicos entre capital, trabalho Brasil. Revista Reforma y Democracia,
e poder público. Coube ao Estado o papel Caracas, v. 9, p. 1-27, 1997.
de protagonista, visando implantar políticas
sociais que combinassem compensação, CARVALHO, J. M. Cidadania no Brasil: o
focalização e universalização de direitos para longo caminho. Rio de Janeiro: Civilização
mitigar problemas estruturais de desigualdade Brasileira, 2006.
social e incapacidade de inserção produtiva. A
base econômica desse novo ciclo de políticas DRAIBE, S. M. As políticas sociais do regime
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Notas
FARIA, V. E. Reformas institucionales y
coordinación gubernamental en la proteción 1. O autor agradece os pareceristas anônimos
social de Brasil. Revista de la Cepal, por seus valiosos comentários, que contribuíram
Santiago, n. 77, p. 7-24, 2002. para elucidar pontos fundamentais deste artigo.
2. Ainda que Draibe e Aureliano (1989) enfatizem
Haggard, S.; Kaufman, R. Development, que, após 1930, a educação se tornou uma

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Regime de Bem-estar Social no Brasil: Três Períodos Históricos, Três Diferenças em Relação ao Modelo Europeu Social-democrata

questão nacional com sua centralização na União, saneamento básico que, só na década de 1990
o sistema era marcadamente urbano, embora, recuperaram o fôlego para investimentos.
até 1960, 55% da população vivesse no campo e, 6. Será utilizada a expressão sistema de política
até 1950, 51,6% da população fosse analfabeta social para discutir, no caso brasileiro, o regime
(SANTOS, 1987). de bem-estar social, como tradução do que a
3. Como a União legislava sobre a cidadania no literatura chama de welfare state. Essa opção
tocante ao exercício da profissão reconhecida também se deve ao fato de, conforme Esping-
para atividades técnico-científicas e liberais Andersen (1990), existirem três tipos de welfare
e, por meio do direito do trabalho, regulava as state na Europa, mas o Brasil não se encaixa
demais profissões, tem-se, assim, a dimensão do em nenhum desses.
monopólio estatal sobre o acesso da população 7. Para Draibe (2003), no primeiro governo
à sociedade organizada e seus direitos sociais Fernando Henrique Cardoso (1995-1998), a
(SANTOS, 1987). base social democrata dos programas teve três
4. A comparação com a Inglaterra é menos eixos: direito social, igualdade de oportunidades
histórica e mais da forma como se processou a luta e proteção aos grupos mais vulneráveis.
política dos trabalhadores e dos sindicatos e sua Os serviços sociais básicos ampliaram seu
incorporação no interior da cidadania nacional. aspecto redistributivo, a descentralização e
5. A relação entre ampliação do aparato burocrático a participação social. O combate à pobreza
estatal e a privatização do espaço público é deu-se por meio do programa “Comunidade
apresentada em Fagnani (1997). Para o autor, a Solidária”, em parceria com estados, municípios,
centralização decisória das políticas sociais deu-se iniciativa privada e a sociedade. A principal
com a construção de grandes estruturas burocráticas diferença do segundo mandato (1999-2002)
como o Sistema Financeiro de Habitação (SFH), foram os programas de transferência direta de
o Sistema Nacional de Previdência e Assistência renda focada nas famílias mais pobres, para
Social (Sinpas) e o Sistema Financeiro de melhorar a proteção contra situações de risco
Saneamento (SFS). Esses órgãos formulavam e social.
implantavam políticas públicas com autonomia 8. Parece que essa seria uma estratégia de
decisória e recursos financeiros. Os vínculos entre a sobrevivência familiar alternativa às regras
burocracia e os interesses privados manifestaram- de mercado e sua crescente exclusão da
se em diversas políticas sociais, sem considerar força do trabalho na sociedade pós-industrial
critérios de relevância e foco nas clientelas mais mencionada pelo autor.
necessitadas. Deu-se pouca importância à 9. Mesmo que na Europa prevaleçam
capacidade de sustentação no longo prazo, para democracias parlamentaristas, não parece
não inviabilizar os mecanismos de financiamento que a descentralização de políticas públicas
que poderiam produzir vácuos em diversas áreas seja uma característica intrínseca de países
de ação do Estado, como foi o caso da habitação e federalistas.

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