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MACHADO DE ASSIS E O REPULSIVO HERÓI DO

NOSSO TEMPO
 24 MARÇO, 2015

No conto “Evolução”, de Machado de Assis, publicado em Relíquias da Casa Velha (1906), Inácio, o


narrador, fala sobre sua amizade com Benedito. Movido por um “sentimento de compostura” — que “toda a
gente discreta apreciará” —, o narrador oculta os sobrenomes, seu e do amigo, mas o faz principalmente
para obedecer à intenção machadiana: apresentar ao leitor o “cheiro” do seu personagem, odor comum a
muitas pessoas, como se pode concluir da analogia que Inácio faz com as rosas.

Perceba-se que Machado não utiliza o substantivo “perfume”, preferindo o ambíguo “cheiro”, que pode se
referir a um odor agradável ou à fetidez. Trata-se de uma imprecisão que se diluirá ao longo da história.

O artificialismo de Benedito começa a ser construído já no segundo parágrafo: ele tinge os cabelos
utilizando um processo eficaz, só percebido por quem partilha da sua intimidade. E ainda que todo o resto
seja natural — “pernas, braços, cabeça, olhos, roupa, sapatos, corrente do relógio e roupa”, lista Inácio com
sutil ironia, não incluindo no rol nenhuma virtude ou valor —, Benedito é, moralmente, “pacato”; e
intelectualmente, “menos original”.

Ser “pacato” em termos de caráter é outra das ambigüidades machadianas, exuberantes de sentido,
ressaltada pela narração que afeta naturalidade ao utilizar um tom descomprometido para tratar de certo
tema crucial.

Ainda no terceiro parágrafo, a característica de ser “menos original” em termos intelectuais começa a
ganhar sua verdadeira dimensão — e iluminar o caráter “pacato” de Benedito.

A descrição de Inácio não deixa dúvidas:

Podemos compará-lo a uma hospedaria bem afreguesada, aonde iam ter idéias de toda parte e de toda
sorte, que se sentavam à mesa com a família da casa. Às vezes, acontecia acharem-se ali duas pessoas
inimigas, ou simplesmente antipáticas; ninguém brigava, o dono da casa impunha aos hóspedes a
indulgência recíproca. Era assim que ele conseguia ajustar uma espécie de ateísmo vago com duas
irmandades que fundou, não sei se na Gávea, na Tijuca ou no Engenho Novo. Usava assim,
promiscuamente, a devoção, a irreligião e as meias de seda. […]

A distância de algumas linhas entre a moralidade “pacata” e a “promiscuidade” do personagem não


diminui a contradição do relato — antes, agiganta o comportamento passivo do narrador, cujo pasmo se
concretizará somente no último parágrafo do conto.

Mas engana-se o leitor que pensa em Benedito como um relativista ou um hipócrita. O caso é mais
complexo.

À descrição da amizade que se aprofunda entre esses dois personagens soma-se a recorrência do
comportamento que explica a “menor originalidade”, em termos intelectuais, de Benedito.

O personagem que pode oferecer a Inácio a “mesa de Lúculo” — general romano conhecido por seus
fastuosos jantares —, mas não a “casa de Platão”, é um colecionador de lugares-comuns. Falando de
política, música, jardinagem ou da mulher que amou, utiliza apenas chavões. “Os princípios são tudo e os
homens nada” ou as observações de que a rosa “é a rainha das flores” e a mulher amada tinha dentes que
eram “verdadeiras pérolas” encontram-se no mesmo patamar: frases vazias de um repetidor incansável.

Na vida social, apesar da riqueza, Benedito move-se não graças à sua própria vontade. Não obedece aos
impulsos genuínos de uma personalidade madura, independente, mas, sempre induzido por Inácio, é o
amigo que inflama seu desejo de se candidatar a deputado ou se tornar ministro.

O núcleo da narrativa trata, no entanto, de algo ainda mais grave — e obriga o leitor a retornar, seguidas
vezes, num crescendo, à questão moral.

Quando se conhecem, Inácio “compara o Brasil a uma criança que está engatinhando” e “só começará a
andar quando tiver muitas estradas de ferro”. Os olhos de Benedito brilham e ele exclama: “Bonita idéia!”.

“Seria impertinência histórica pôr a mesa de Lúculo na casa de Platão”


O pensamento se concretiza na vida de Inácio, que tem personalidade própria: meses mais tarde, na
Europa, quando os amigos se reencontram, o narrador trata, com investidores ingleses, da construção de
uma estrada de ferro no Brasil.

Benedito não esconde seu deslumbramento diante da notícia. E passa a se comportar da mesma forma,
buscando informações em ministérios e bancos. O mimetismo de Benedito é evidente — e vergonhoso.

Ali, em Londres, forma-se o deputado Benedito, mas segundo suas medíocres possibilidades:

[…] Recolheu com muito mais gosto os anexins políticos e fórmulas parlamentares. Tinha na cabeça um
vasto arsenal deles. […] Saboreava-os tanto que eu não sei se ele aceitaria jamais a liberdade real sem
aquele aparelho verbal; creio que não. Creio até que, se tivesse de optar, optaria por essas formas curtas,
tão cômodas, algumas lindas, outras sonoras, todas axiomáticas, que não forçam a reflexão, preenchem
os vazios, e deixam a gente em paz com Deus e os homens.

Não se trata, portanto, de simples amor aos chavões, mas de viver sugando os outros. O “caráter pacato”,
eufemismo machadiano, esconde um parasita voraz — de discursos, atitudes e idéias.

Um ano depois, quando há um novo encontro, Benedito, já eleito, expõe a Inácio o que, meses antes,
aprendera com o próprio amigo. E lê um trecho do primeiro discurso que pronunciará na Câmara,
concluindo:

[…] E aqui repetirei o que, há alguns anos,  dizia eu  a um amigo, em viagem pelo interior: o Brasil é uma
criança que engatinha; só começará a andar quando estiver cortado de estradas de ferro.

Inácio já escutara sua frase antes, citada por Benedito como se pertencesse a ambos. Agora, vendo-a
definitivamente seqüestrada, fica “assombrado, desvairado diante do abismo que a psicologia rasga a seus
pés”.

Numa conclusão típica de Machado de Assis, Inácio descobre, mais que a personalidade doentia de um
plagiário contumaz, “um efeito da lei da evolução”: não a vitória dos que se mimetizam, mas da própria
fraude.

O cheiro de Benedito não lembra rosas. Seu “caráter pacato” exala um fedor nauseante. Como o
personagem de Mikhail Lérmontov, Benedito é o repulsivo herói do nosso tempo.

[Dedico este texto ao meu caro Luiz Cezar de Araujo, machadiano incurável.]

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