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A História das Mulheres e as representações

do feminino na história
História das mulheres e as Esses discursos recorrentes exerceram
influência decisiva na elaboração de códigos,
representações do feminino. leis e normas de conduta, justificando a
situação de inferioridade em que o sexo
TEDESCHI, Losandro Antonio. feminino foi colocado [...] Assim, a
desigualdade de gênero passa a ter um caráter
universal, construído e reconstruído numa teia
Campinas: Curt Nimuendajú, 2008. de significados produzidos por vários discursos,
144 p. como a filosofia, a religião, e educação, o
direito, etc. perpetuando-se através da história,
e legitimando-se sob seu tempo (p. 123).
Nessa perspectiva, Tedeschi utiliza-se das
Nas últimas décadas do século XX, a articulações entre história e gênero para
história sofreu grandes transformações teóricas demonstrar as inter-relações socialmente
e metodológicas que direcionaram os olhares construídas entre os sexos. Sobre os estudos de
dos historiadores a temas e grupos sociais que, gênero, o autor adverte serem importantes, na
até então, estavam à margem dos estudos medida em que possibilitam a análise “das
históricos, como as mulheres, os velhos, os relações entre os sexos, buscando
operários, os camponeses e os escravos. Daí a principalmente contribuir para os estudos sobre
história das mulheres emerge como um campo a condição feminina e a vida familiar na
de estudo, influenciada pelos novos interesses sociedade” (p. 10). Nesse sentido, o autor
da disciplina histórica e pelas campanhas apresenta importantes considerações sobre os
feministas. Os reflexos dessas renovações não estudos de gênero na atualidade, mostrando
demoraram a alcançar o Brasil, e o aumento os ganhos obtidos com essa nova abordagem
dos estudos sobre as mulheres nos programas histórica, que trouxe consigo “uma diversidade
de graduação e pós-graduação fez com que de documentações, uma teia de novos sentidos
a história das mulheres se consolidasse e significados, e requerem uma paciente busca
rapidamente em nosso país. de indícios, sinais e sintomas, uma leitura
Dentro desse contexto, o livro História das detalhada para descortinar a história das
mulheres e as representações do feminino, mulheres” (p. 11).
de Losandro Antonio Tedeschi, publicado em No primeiro capítulo – “História das
2008 pela editora Curt Nimuendajú, é mais uma mulheres: abordagens” –, como o próprio título
contribuição aos que se ocupam em entender evoca, o autor faz um breve apanhado sobre a
as mulheres na história. O autor, atualmente história das mulheres, bem como sobre as
professor da Universidade Federal da Grande diferentes abordagens da moderna
Dourados – UFGD, onde atua no curso de historiografia, que perpassam essa área do
graduação e pós-graduação em História, tem conhecimento histórico, tais como imaginário,
ampla experiência nesse tema, fruto de seus sexualidade, corpo, trabalho, relações de
estudos de mestrado e doutorado, bem como poder, relações de gênero, dominação
de sua atuação junto a organizações como o simbólica, práticas discursivas, religiosidade,
Movimento de Mulheres Trabalhadoras Rurais – relações sociais, vida econômica e
MMTR e a Red de Educación Popular entre representações. Nesse sentido, a história cultural
Mujeres de America Latina – REPEM. da maneira como é trabalhada por Roger
O livro, dividido em três capítulos, busca, Chartier mereceu especial destaque por parte
pela análise dos discursos filosófico-religiosos, do autor, que analisou formulações discutidas
compreender como em diferentes momentos por esse historiador sobre a importância da
históricos a sociedade enxergava o representação para o entendimento do universo
comportamento feminino e criava cultural, destacando os benefícios de se estudar
representações para as mulheres. Eram discursos a história das mulheres pelas representações:
legitimadores da inferioridade “natural” das “Ao abordar a história das mulheres pelas
mulheres. Nas palavras do próprio autor, representações, busca-se trazer para o cenário

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os discursos de construção das identidades e tradição cristã, “Eva pecadora” e “Maria
da interpretação masculina do mundo. Cabe virtuosa”, que, devido às suas características
então a nós, homens e mulheres, contribuir para antagônicas, são utilizadas pelo cristianismo para
desnaturalizar essa história” (p. 40). representar todo o universo feminino.
O segundo capítulo, intitulado No terceiro e último capítulo – “A
“Representações do feminino”, busca analisar, confluência dos saberes: as representações e
segundo o autor, “a construção histórico- os espaços sociais das mulheres” –, o autor se
filosófica dos vários discursos que em certa propõe a “pensar e aprofundar a questão dos
época conferiram um caráter científico e natural lugares e funções, que se constroem pelo
aos papéis da mulher, do que significa ser mulher” casamento e reforçam o ideal de lar e de
(p. 12). Para tanto, Tedeschi elegeu dois discursos maternidade – como papéis historicamente
fundamentais para a compreensão das primeiras construídos e legitimados pela moral cristã” (p.
representações construídas na história sobre o 101). O autor ressalta que os papéis atribuídos à
feminino: o discurso de matriz filosófica grega e mulher, de mãe e esposa, foram representações
o discurso da moral cristã no mundo medieval. que contribuíram para a definição de
No discurso de matriz filosófica grega, o alteridade e identidade feminina, resultando em
autor destaca o olhar masculino da teoria práticas culturais que a limitaram ao espaço
filosófica, que pensava a mulher como um privado. Tedeschi também trata das
objeto, ou seja, “criaturas irracionais, sem pensar representações sociais das mulheres na
próprio”, que deveriam viver sob o controle dos modernidade, destacando que nesse período
homens. Representações estas que, segundo o o poder patriarcal e a delimitação dos papéis
autor, é possível perceber no pensamento das mulheres no espaço privado não diferiram
filósofo de Platão, Aristóteles e Hipócrates, que, das representações do feminino observadas na
por meio de um discurso masculino sobre o Antiguidade e no Medievo.
corpo feminino, construíram mitos que Nesse sentido, a leitura da obra História
justificavam a inferioridade e a fragilidade das mulheres e as representações do feminino,
feminina. de Losandro Antonio Tedeschi, permite ao leitor
Quanto às representações femininas conhecer e analisar os discursos responsáveis
presentes no discurso da moral católica, o autor por construir a desigualdade de gênero como
ressalta que o modelo judaico-cristão exerceu “natural”, bem como as representações sociais
influência significativa na definição do lugar que esses discursos constroem sobre a mulher.
ocupado pela mulher na Igreja, na sociedade Sintético, porém temporalmente abrangente, o
e na cultura ocidental, não restando dúvidas de livro permite uma visão panorâmica sobre o
que esse discurso foi fundamental para reforçar tema tratado, sendo, dessa maneira,
as desigualdades de gênero. Ao buscar os extremamente útil aos estudantes dos cursos de
modelos do feminino veiculados e defendidos graduação e pós-graduação e aos demais
pela Igreja Católica, Tedeschi identifica dois pesquisadores que têm em comum o interesse
“paradigmas do feminino” que procuram pela história das mulheres.
enquadrar a percepção social das mulheres
para a criação de seus modelos de Marcilene Nascimento de Farias
autorrepresentação. Tais paradigmas são Universidade Federal da Grande
representados por duas mulheres centrais na Dourados

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