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ENTREVISTA

Do Pato Donald
ao McDonaldʼs AS ÁGUAS DO PACÍFICO guardam as palavras
do belga Armand Mattelart. Acolhem toda
RESUMO a edição do Para ler o Pato Donald jogada
Nesta entrevista, concedida por ocasião da sessão de ao mar duas semanas depois do golpe
autógafos do seu livro História da utopia planetária, Armand no Chile, em setembro de 1973. Atitude
Mattelart, fala sobre as possibilidades utópicas de se resolver estúpida e inútil dos militares. As idéias
questões urgentes e o papel da comunicação na construção do belga atearam fogo na cordilheira
da história da humanidade. funcionalista e incrustaram-se nas sinapses
latino-americanas feito a lava da reflexão.
ABSTRACT Graduado em direito na Universidade de
In this interview, Armand Mattelart talks about the utopic Louvain, na Bél gi ca, Mattelart fez pós-
possibility of solving urgent problems through the practice of graduação em demografia na faculdade
social communication, while he also comments about its role de Ciências Eco nô mi cas na Sorbonne.
in the construction of the history of mankind. Formado, resolveu sair da Europa e
enviou o currículo para várias instituições
PALAVRAS-CHAVE (KEY WORDS) de ensino superior das Américas. Em
- Utopia (Utopy) pouco tempo recebeu três convites para
- Comunicação (Communication) lecionar. Um da PUCRJ, onde precisavam
- Mentalidade de mercado (Market mentality) de profissionais na área de controle de
nascimento, outro da católica de Quito, no
Equador, e por último o da Universidade
Católica do Chile.
Em consultas a amigos e professores,
foi aconselhado a optar pelo Chile em
razão da estabilidade política. Em setembro
de 1962, Armand Mattelart aportou em
Santiago e começou a dar aulas, primeiro
no Cen tro de Demografia e depois no
Centro de Estudos da Realidade Nacional
(Ceren). Até ser enxotado por decreto
oficial, Mattelart escreveu - em alguns casos
em parceria - Atlas social das comunas no
Chile (1965), Para onde vai o controle de
natalidade (1967), A moradia e os serviços
comunitários rurais: uma me to do lo gia
de aproximação (1968), Poder político e
classes sociais no Estado capitalista (1969),
Juventude Chilena: rebeldia e conformismo
(1970), Os meios de comunicação de
massas. A ideologia da imprensa liberal no
Chile (1970), Imprensa e poder: Chile: a
imprensa de esquerda e o poder popular.
Argentina: a imprensa de direita e o poder
burguês (1971), Comunicação massiva e
Armand Mattelart revolução socialista (1972) e A ideologia da
Prof. de Ciências da Informação e da Comunicação dominação em uma sociedade dependente

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(1972), além de Para ler o Pato Donald
– comunicação de massa e colonialismo,
escrito em 1971 em co-autoria com o
chileno Ariel Dorfman e por alguns anos
proibido nos Estados Unidos da América.
O golpe não arrefeceu a verve de
Mattelart. Retornou a Paris e enveredou de
vez na área da comunicação. Aprofundou
os estudos da democratização dos meios
de comunicação, dos cantos das quimeras
globais, das interfaces da sociologia da
comunicação, das cercas demarcadoras
de campos reservados ao pastoreio de
cérebros, da inserção das tecnologias na
vida huma na, do en fren ta men to à des- a par tir da con quis ta das Amé ri cas. A
historização e do patrimônio social das mo der ni da de oci den tal co in ci de com o
utopias. Temas presentes, por exemplo, em despontar das utopias mundiais, podemos
Comunicação-mundo, A globalização da dizer globalistas, antes da existência desta
comunicação, A invenção da comunicação, palavra.
História das teorias da co mu ni ca ção e RF - E na contemporaneidade, como se
História da sociedade da informação. dão estas utopias?
Em Porto Alegre, para autografar o
História da utopia planetária – da cidade Mattelart – Bem, digamos que há dois
profética à sociedade global, editado no tipos de utopias: as que são herdeiras das
Brasil pela Sulina e lançado durante o utopias concebidas pelos reformadores
II Fórum Social Mundial, o professor de so ci ais do século XIX, voltadas para
Ciências da Informação e da Comunicação a justiça social, a igualdade, etc.; e as
da Paris VIII falou da farsa do discurso utopias que eu não chamaria de utopias,
bajulador da market mentality – o mundo mas quimeras ou tecnoutopias, que são os
como mercado –, conclamou à recuperação discursos que acompanham a entrada das
da poética da palavra utopia, propôs uma novas tecnologias no mundo. São utopistas
providencial injeção de ciências humanas da informação. Pensam que da tecnologia
na comunicação e alertou para o perigo da podem reconstruir o mundo. Idealizam uma
complacência acadêmica com a expansão ágora mundial, uma aldeia global. Mas não
do pensamento marqueteiro, responsável as chamaria de utopia, porque para mim a
por grande parte da corrosão da camada palavra utopia é demasiado nobre.
de ozônio do mundo comunicacional. É
compreensível a inquietação das águas do RF - Qual é a nobreza da palavra utopia?
Pacífico.
Mattelart – Utopia forma a parte de toda
Revista Famecos - Quais as utopias uma época em que se pensava ser possível
possíveis para resolver os problemas deste resolver as injustiças sociais. A utopia é
formigueiro humano chamado Terra? a esperança em um novo mundo, é um
imaginário esperançoso.
Armand Mattelart – Houve muitas utopias
desde o prin cí pio, so bre tu do na nos sa RF - As palavras têm perdido o sentido da
era, com a uto pia cris tã da gran de utopia, do social?
família humana, de São João. Então, na
modernidade, a verdadeira utopia começa Mattelart – Cada vez mais as palavras

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correspondem a projetos pragmáticos. A RF - É a hegemonia da market mentality?
globalização, por exemplo, é uma palavra
que se traduz primeiro pela integração da Mattelart – A market mentality é, finalmente,
rede financeira, antes de passar por outros a entrada das lógicas mercantis em
campos. É aí que nasce o ideal reto da todos os interstícios da vida humana. É
publicidade mundial. A palavra globalização importante isso, porque no princípio da
nas ce em dois lugares: primeiro nas história do pensamento sobre o mercado
problemáticas das campanhas publicitárias os li be rais pen sa vam como o escocês
globais, na época em que ocorreram as Adam Smith. Pensavam que finalmente o
megafusões entre grandes empresas mercado, o comércio, haveria de resolver
de publicidade e de mercado, nos anos os problemas da guerra. O mercado era
de 1984 e 85, e no mesmo período se lugar em que po de ria criar uma rede
implanta a noção de globalização a partir pacífica na qual se poderia entender as
do desregramento das redes financeiras pessoas pelo in ter câm bio. O princípio
e bancárias. Esse é um prag ma tis mo. do liberalismo é este: sacudir o domínio
Depois a globalização invadirá, penetrará do feudalismo. Mas já no prin cí pio do
os campos da cultura, etc. século XIX a lógica mercantil e a idéia de
comércio perdem este aspecto libertador e
RF - Como essa perda da poética se volvem cada vez mais na introdução da
das pa la vras se reflete no conceito da mentalidade mercadológica na sociedade,
comunicação? que triunfa nas décadas de 80 e 90. Porque
Kant, igual a Smith, dizia que o comércio
Mattelart – Progressivamente a noção era o garante do intercâmbio pacífico do
de comunicação - que corresponde à mundo.
co mu nhão, reparto, comunidade - tem
perdido este sentido porque a tem RF - Qual é a participação da universidade
substituído pela noção de progresso. A para o apogeu deste pensamento?
ideologia da comunicação tem empregado
a velha ideologia do progresso infinito, Mattelart – Bem, a universidade é muito
linear, que fracassou. Hoje não se diz que ambígua. Cada vez mais nas universidades
um povo progride, mas que se comunica. a noção de comunicação perde o seu
Então quer dizer que avança. Porém, não sentido social e se vai para os campos
vejo nenhuma cor res pon dên cia entre o pragmáticos, instrumentais. Um estudo do
avanço real de um povo e a comunicação. mercado que não toma distância frente a
estas lógicas aprofunda a degenerescência
RF - Isso pode ser o resultado da da idéia da comunicação como intercâmbio
submissão do conceito de comunicação às social.
teorias da organização, como é analisado
em História da utopia planetária? RF - A universidade está mais preocupada
em fazer o marketing do pensamento do
Mattelart – Este é o problema-chave. que pensar a mentalidade do marketing?
No final da Segunda Guerra Mundial
a co mu ni ca ção começa a se tornar Mattelart – Depende das universidades.
sinônimo de or ga ni za ção, e não é por Em geral, as formações em marketing
nada que nas teorias de organização das se apar tam, tomam distância de uma
empresas já não se fala em tecnologias de in ter ro ga ção, estão muito apegadas na
comunicação, mas na comunicação como realização de objetivos pragmáticos.
tecnologia de coordenação. RF - Quem são os conceituadores referidos
em História da utopia planetária?

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sendo assumido pelos ciberlibertários. Por
Mattelart – Há muitos. Toda a discussão, sua vez, eles traduzem, de certa maneira,
por exemplo, para legitimar a ocupação a idéia do anarquismo. Um toque muito
das terras indígenas inicia por intermédio importante é, por exemplo, Lewis Mumford,
do direito à comunicação, do direito ao historiador das cidades e das técnicas,
co mér cio. Começa a imaginar-se uma autor do livro Técnica e civilização. Ele
livre cir cu la ção através do mundo. No compartilhava das concepções de Jefferson
século XIX são os saint-simonianos e os e dos anarquistas.
comtistas, que tiveram tanta importância
no Brasil. Eles eram utopistas, pensavam RF - A possibilidade de se perceber a
que pela associação universal se poderia sociedade em vários aspectos pode confluir
resolver os problemas do mundo. Desde para a análise acadêmica da área da
o final do século XIX, com as utopias do comunicação?
internacionalismo, tanto marxista quanto
social-de mo cra tas. E, finalmente, o Mattelart – A área acadêmica da
internacionalismo de muitos movimentos da co mu ni ca ção está influenciada pelo
sociedade civil: há o movimento pacifista, ambiente geral que circula. No meio
etc. Há muitas formas de formação da acadêmico há os que pensam na idéia
utopia, mas a maior e última do século mítica que a rede vai re grar todos os
XIX é a utopia anar quis ta, sobretudo problemas. Em certa parte en tra na
formulada por geógrafos como Kropotkin. formalização das teorias.
Eles pensavam que a energia elétrica, à
diferença da energia do vapor, poderia RF - Quais as teorias que podem se
resolver o problema da descentralização, misturar para enriquecer o entendimento do
da criação de um território onde haveria mundo da comunicação?
a descentralização do poder. Então a
resolução da autonomia entre tra ba lho Mattelart – É muito difícil dizer isso.
manual e trabalho intelectual, urbano Uma coisa importante são as teorias, os
e rural, indústria e agricultura, etc. O de li ne a men tos teóricos que são como
anar quis mo foi uma das utopias mais gritos de alerta. Paul Virilio, por exemplo.
profundas na concepção de comunidades Ele tem uma aparência apocalíptica sobre
des cen tra li za das e a prova é que as redes, as novas tecnologias. Mas é
inventaram a primeira teoria pós-industrial. importante, porque é semelhante à função
que teria Cassandra, a de alertar. Parece-
RF - Este discurso pós-industrial, tão me importante como alarme. É difícil dar-te
propenso ao múltiplo, não se tornou um nomes.
novo universalismo?
RF - Frankfurtianos, estudos culturais...
Mattelart – É evidente que detrás do
sonho dos que chamo tecnolibertários Mattelart – Me parece que grande parte
– co mu ni da des virtuais, etc. – há dos Estudos Culturais não afronta os
duas concepções que legitimam este verdadeiros problemas culturais que estão
pensamento. A pri mei ra começou a presentes na realidade. Por exemplo, a
germinar nos Estados Uni dos, na sua no ção de globalização foi incorporada
formação, que é o sonho de Tho mas pelos Estudos Culturais sem nenhuma
Jefferson. Ele pensava que os EUA crítica. Não há uma perspectiva histórica
deveriam ser como comunidades desta formação da globalização. Isto é um
dispersas, com muitas redes, para ligar, problema. Existem, por sorte, exceções
contra a centralização. Este velho mito está dentro dos Estudos Culturais. Ocorrem,
porém, quan do os Estudos Culturais

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fazem aliança com outras disciplinas. Com final da Segunda Guerra Mundial com a
a geografia, por exemplo. Duas pessoas informação com o sentido matemático, de
interessantes deste ponto de vista são ser cortada da questão do sentido e da
David Morley e Kelvin Robins. Os Estudos cultura. Esta concepção da informação
Culturais, devido a mun di a li za ção do segue forte, como na época atual. Os
mundo por esta corrente, hão perdido a sua mitos tecnoutópicos, tecnoquiméricos, são
força crítica. Se avultam como uma moda. o resultado da informação reduzida a seu
conteúdo estatístico. Não é a força que
RF - Os frankfurtianos continuam com o havia no filósofo Leibniz, quando pensava
mesmo vigor crítico? que a ordem das cifras e dos números
haveria de fazer avançar a razão. Agora, a
Mattelart – O problema da escola de cifra e os dados são a razão instrumental.
Frankfurt foi a diversidade. É verdade que
há uma base comum entre Adorno, Hork- RF - Qual a relação existente entre esta
heimer, Benjamin, Marcuse e Habermas. hegemonia da informação fria e o que o
Mas são muito distintos. Habermas é o senhor comenta como a lobotomização dos
herdeiro da Escola de Frankfurt, se é que cidadãos?
se pode falar em uma escola. As escolas
um pouco borram as diferenças. Habermas, Mattelart – O problema-chave deste regime
como herdeiro deste pensamento, nos econômico é a tendência a criar um tipo de
aju da a pensar a formação de uma cidadão que corresponda a este regime
comunidade mundial, um espaço público. econômico. É um dado fundamental na
Posso estar em desacordo com ele na história. O neoliberalismo está substituindo
concepção de um governo federativo, a necessidade de cada um construir a
porém isso ajuda a pensar uma saída à sua au to no mia pessoal, de exercitar a
globalização única, unilateral. sua capacidade de determinar-se frente
às ofertas, por uma idéia que o indivíduo
RF - O senhor valoriza o Barroco. No que naturalmente é soberano, é um consumidor
ele é importante na linguagem, no mundo soberano que se espalha através do
da comunicação? mundo. Os verdadeiros objetos do mundo
neoliberal se en con tram no aspecto
Mattelart – Como dizia bem o filósofo psicoanalítico, na criação de um tipo de
fenomenólogo Merleau-Ponty, o sistema personalidade. É por isso que precisamos
mundial é um sistema barroco. Há muitas nos mobilizar.
assimetrias. O mundo não é linear, há
muitas possibilidades de reversibilidade RF - O senhor enfatiza muito a passagem
e in ter pe ne tra ções. É um precursor do fordismo à empresa-rede. Há condições
de um pen sa men to das mesclas, do surgimento do cidadão-rede?
das entremesclas, da creolização, da
mestiçagem. Mattelart – Não creio muito em um cidadão-
rede. Penso que incluso no mundo de
RF - O senhor fala da informação ter se redes existem diversos lugares donde se
tornado a caixa preta, a chave-mestra para cria a condição de cidadão. A começar pelo
tudo. É a conseqüência do esmorecimento território nacional, em que se dá o lugar do
do discurso da convergência cultural, do contrato social, do contrato da cidadania.
fim da heterogeneidade cultural, do declínio A prova é que nenhuma modificação no
do discurso dos fins? momento se efetiva sem a mediação do
Estado. No mundo de hoje é o Estado o
Mattelart – O problema começou no ne go ci a dor importante para resolver os

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problemas. Claro que o cidadão-rede e mas con ser va dor. McLuhan es ta va em
os grupos sociais-redes podem ajudar conta do ressurgimento da igreja. A idéia
muito, mas passa também pela pressão da aldeia global, em McLuhan, é religiosa.
que a so ci e da de civil – que são eles Aliás, ele copia dos anarquistas e a falseia.
– exerce sobre os Estados nacionais e a Ele tem uma visão do destino do mundo
comunidade internacional. No momento, que é uma utopia escatológica. E depois,
concretamente, se necessita do Estado e é esta idéia de aldeia global será retomada
por isso que um dos objetivos principais é pelos utopistas da informação, em que todo
pressionar o Estado para que cumpra sua o mundo compartirá.
missão de regulador do mercado.
RF - Todas as utopias planetárias têm este
RF - As grandes corporações de aspecto religioso, de religar?
comunicação formam os Estados Unidos
do Mundo? Mattelart – Marx, já dizia no século XIX, que
o liberalismo era uma religião, e referia-se
Mattelart – É a meta. Elas estabelecem aos liberais como predicadores.
uma conexão mundial em função de seus
interesses. Mas não são os Estados Unidos RF - E o marxismo também seria uma
do Mundo. A palavra Estados Unidos é religião que promete uma boa-nova?
uma palavra velha que nasceu antes dos
Estados Unidos da América. É um projeto Mattelart – O problema é que não creio
muito antigo, um projeto político. Não se que exista o marxismo. Houve tendências
pode confundir com a universalidade das dentro deste pensamento legado de Marx
empresas. muito distintas. Para mim, o marxismo é
uma coisa muito ampla, donde coexistem
RF - Esta sociedade da informação traz tendências dissidentes e outras totalmente
benefícios à humanidade? bu ro crá ti cas, or to do xas. Den tro do
marxismo há dissidentes que pensaram
Mattelart – A primeira coisa é desmistificar outra forma de organizar o mundo que
a ex pres são, tomá-la ao pé da letra. a bu ro cra cia so vi é ti ca. Como dis se
Você fala em sociedade da informação, Bourdieu, pouco antes de sua morte, a
acesso universal. Então, trabalhamos em pessoa que formula esta pergunta está mal
função dela. No momento é uma ponte intencionada. Por isso que digo que é muito
para empurrar e renovar os esquemas da mais múltiplo.
ocidentalização do mundo. Pela tecnologia
se pensa que se vá reconstruir as relações
de força internacionais.

RF - Quais as relações de força existentes


na idéia de ima gi nar a grande fa mí lia
humana?

Mattelart - Bom, a grande família humana,


na modernidade, começa com a idéia de
al deia global. É uma con cre ti za ção da
velha idéia cristã. Não é por nada que
McLuhan se con ver teu ao cris ti a nis mo.
Saiu do protestantismo para o catolicismo.
Tem uma mi to lo gia neocristã, de um
cristianismo que não é o mais progressista,

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RF - Há condições de se conceber utopias campos, como os his to ri a do res, os
atéias, sem a promessa do nirvana, do filósofos, os geógrafos, os antropólogos.
além-agora, mais presenteístas? É um momento distinto, faz apenas quinze
anos. É cada vez maior a ocupação do
Mattelart – Sim. A utopia é uma mundo da comunicação. É im por tan te
promessa de um porvir melhor, mas não que a gente que é antiga neste campo
necessariamente é religiosa. É verdade se dê conta deste aspecto, senão iremos
que algumas são. Mas o interessante nas despertar daqui a 10 anos e perceberemos
mudanças das utopias é que antes elas que a base original haverá desaparecido e
falavam em uma sociedade que não se estaremos somente em escolas técnicas.
podia situar em nenhuma parte. Utopia Na Europa se vê claramente esta crise. Os
queria dizer fora do tempo e do espaço. historiadores, por exemplo, entraram com
Entretanto, hoje elas se formulam em força na análise da história da publicidade,
lugares concretos, que te permitem chegar das redes, etc., e muito pouca gente da
a outra definição do universal, por exemplo. área da comunicação tem trabalhado sobre
este campo.
RF - Para esta idéia de utopia basta o
coração? RF - E a reflexão está à deriva, sem um
porto específico?
Mattelart - Como se pôde perceber no
II Fórum Social Mundial, o coração é Mattelart - A única maneira para assentar
fundamental. as bases do que constitui o campo da
comunicação é preservar, em cada um, um
RF - O senhor é um especialista nos ponto de partida. Podem ser a sociologia,
estudos da comunicação, tanto da Europa a economia, a antropologia, etc. Precisa
quanto das Américas. Como está a reflexão ter uma base forte porque o grande efeito
neste campo? dos estudos de comunicação e informação
é que se formam os estudantes, mas
Mattelart – O problema é que o campo não se sabe a partir de que cimento eles
interdisciplinar da comunicação desde o falam. Às vezes é totalmente frouxo.
princípio teve dificuldades para articular As dificuldades de algumas pessoas na
pontos de vista. No momento, em todas as questão do Estado, da ideologia, que
partes do mundo, há dois grandes perigos reclamam um pen sa men to centrado na
que podem ocasionar a degenerescência sociologia. O problema maior é que se
do campo da comunicação: a lógica do toca muitas coisas, muitos do mí ni os,
mercado, do marketing, do pragmatismo, epifenomicamente, e os estudantes saem
do tecnicismo, de transformar o campo com uma cultura superficial. Sempre digo
em uma caixa de ferramentas para servir aos meus estudantes: o ideal é que façam
operatoriamente. Este é um perigo porque dois anos de outros estudos e depois façam
pode trans for mar a comunicação em comunicação.
um campo da escola técnica; o outro é
a dificuldade de construir realmente um RF - Valorizar a transdisciplinaridade?
olhar que leve em conta várias disciplinas.
A grande competência que há entre as Mattelart - Exato, este é o verdadeiro objeto
ciências sociais e as ciências da informação da comunicação.
e da comunicação está se desencantando.
Os objetos de estudo, que normalmente RF - Em relação aos cursos de
seriam das ci ên ci as da informação e comunicação, o aluno sabe muita coisa,
comunicação, estão seduzindo a outros mas não aprofunda nada?

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Mattelart - Este é o problema-chave. Os sociedade da comunicação?
estudantes que mais se saem bem em suas Mattelart – Bom, seria muito importante.
carreiras são os que têm uma base anterior, Uma pessoa me entregou, ao final de uma
de história, sociologia, antropologia, etc. palestra no fórum, uma página que dizia:
É necessária uma injeção de ciências do Pato Donald ao McDonaldʼs. Penso que
humanas na comunicação. o McDonaldʼs não é tão inimigo. É o modo
de vida que representa. Como pensávamos
RF - O mundo da comunicação não pode quando atacávamos o Walt Disney. Não era
ficar restrito à academia, precisa chegar às ele, mas o american way of life, que hoje se
escolas? impõe como modelo absoluto e único .

Mattelart – É fundamental, porque é a


única maneira de socializar a preocupação, Nota
a interrogação cidadã sobre os meios
de comunicação, do que ocorre com as Entrevista concedida a Álvaro Larangeira, doutorando em
tecnologias da comunicação. Comunicação Social PPGCOM - FAMECOS/PUCRS.

RF - Quais seus últimos estudos na área da


comunicação?

Mattelart – Há dois campos que emergem.


Um, que é mais antigo, mas renovado
atualmente, é a questão do estudo dos
usos das tecnologias da comunicação, dos
processos de apropriação das ferramentas.
Na América Latina, sobretudo a partir
do consumo. Na Europa, principalmente
na França, é a partir da apropriação e
mediação de objetos técnicos. Isto será
cada vez mais im por tan te. Contudo, a
condição é não pensar que ao estudar
estes pontos se dispensa de estudar as
determinações sócio-históricas. Este é
um problema, como para as teorias da
recepção. Muitos pensam que as teorias
da recepção dão um jeito em tudo, mas
não dão um jeito em nada. É um dos
aspectos. Os outros são as políticas, as
determinações, etc. O segundo aspecto
é o problema da história. Autores como
Fernand Braudel e Michel de Certeau
estão entrando com força como referência
de uma nova concepção da história. Não
somente a dos meios, que é clássica, mas
também a história das re pre sen ta ções
coletivas, dos imaginários, parando de se
basear apenas nos mitos atuais.

RF - O senhor pretende escrever Para ler a

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