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UTILIZAÇÕES DA AVALIAÇÃO

NEUROPSICOLÓGICA
PARTE II
Conteudista
Prof.ª Dr.ª Rita de Cassia M. Moreira
IDENTIDADE CORPORAL E AVALIAÇÕES NEUROPSICOLÓGICAS
Em 1970, um pesquisador americano chamado Gordon Gallup e sua
equipe realizaram um experimento com chimpanzés que mudou a forma como
víamos a distinção entre o homem e os outros animais. De uma maneira
bastante simples, pintando uma mancha vermelha na sobrancelha dos animais,
eles mostraram que estes primatas eram capazes de se reconhecer no
espelho, ou seja, eles tinha a consciência de si mesmos em uma imagem
refletida. Fomos então obrigados a admitir que, ao menos neste ponto, não
somos tão diferentes assim (GALLUP, 1970).
Cada vez mais a ciência faz descobertas que nos aproximam de outros
primatas, revelando características cerebrais em comum, e restringindo aos
poucos as capacidades antes tidas como únicas do ser humano. Este é um dos
motivos pelo qual se justifica a utilização de animais como ratos ou macacos
em experimentos. Em um desses experimentos com primatas, descobriu-se a
existência de neurônios no córtex cerebral que funcionavam de maneira
bastante peculiar, sendo ativados tanto quando o animal realizava uma ação
como quando ele observava a mesma ação sendo desempenhada pelo
experimentador, os neurônios espelhos. Os mesmos neurônios foram
encontrados em outros animais, e hoje acredita-se que, de uma maneira geral,
os animais já nasçam equipados com este mecanismo, que pode formar a base
do sentimento de empatia. Mas qual seria a importância dos neurônios espelho
no desenvolvimnto de nossa identidade corporal?
Recém-nascidos são capazes de imitar movimentos orofaciais e da
cabeça logo após o nascimento. Após o nascimento, a maior parte das funções
cognitivas elevadas de um bebê ainda estão em desenvolvimento, como a
consciência absoluta de se identificar no espelho, ou de observar, identificar e
imitar sua mãe fazendo movimentos faciais. A rede de neurônios espelho, por
outro lado, é recrutada desde o nascimento. Dessa forma, assim que um bebê
observa sua mãe estendendo a língua para fora da boca, ele pode realizar o
mesmo movimento. Ao longo do desenvolvimento, a rede de neurônios
espelhos se molda de acordo com nossas experiências, baseando-se em
informações sensoriais táteis, vestibulares e proprioceptivas, com inúmeras
consequências e benefícios para nossa vida. Dentre outras coisas, a atividade

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desses neurônios nos ajuda a compreender as ações de outra pessoa, e
colabora para a construção mental do nosso corpo e de sua relação com o
outro.
Apesar de também ser possível observar a atividade de tais neurônios ao
imaginarmos uma ação, o que exclui a necessidade de um estímulo visual, a
representação do próprio corpo em nossos cérebros é fortemente relacionada à
nossa visão.
Em 2001, em um experimento no qual imagens eram apresentadas a
sujeitos que passavam por imageamento funcional do cérebro em ressonância
magnética (fMRI), pesquisadores mostraram que uma região localizada no lado
direito do córtex occipitotemporal (Fig. 1) respondia significativamente mais
quando as imagens eram de corpos, ou partes do corpo, do que quando eram
partes de objeto, faces, ou partes de faces (DOWNING et al., 2001). Esta área
foi denominada “córtex extraestriado do corpo” (EBA, do inglês, extrastriate
body area).
Posteriormente, outro estudo em fMRI revelou que essa região tem uma
forte conexão com uma outra área denomidada “córtex fusiforme do corpo”
(FBA, do inglês, fusiform body area). Estas duas regiões tem uma grande
importância na resposta visual a imagens do corpo, e se diferem basicamente
por EBA se relacionar mais a partes do corpo como os dedos, enquanto a FBA
se relaciona ao corpo como um todo ou grandes partes como o tronco ou
membros. Naturalmente, esta divisão não é precisa e, ao final, o mais
importante é a comunicação entre elas, que permite que tenhamos
processadas as informações visuais sobre o corpo que vemos. Recentemente,
cientistas na Alemanha reuniram 25 mulheres, dentre as quais 10 eram
anoréxicas e compararam a atividade destas regiões e a conectividade entre
elas. O resultado mostrou que esta comunicação, medida por dados de fMRI,
era diminuída no grupo de anoréxicas. Além disso, observaram que quanto
mais fraca era esta conectividade, mais distorcida era a estimação do próprio
peso, ou seja sua auto imagem (SUCHAN et al., 2013). Mas atenção, apesar
de que este estudo evidencia que estas áreas estão relacionadas com a
anorexia, nada pode ser afirmado como uma relação causal, ou seja, não é
possível dizer que este mal funcionamento das áreas é o responsável pelo

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distúrbio.
O nosso cérebro é bombardeado com informações multisensoriais o
tempo todo, e se por um lado a visão nos proporciona um reconhecimento
corporal e nos ajuda a formar nossa imagem, por outro pode nos iludir. Em um
curioso experimento, pesquisadores pedem que um sujeito coloque seus dois
braços sobre uma mesa, em uma posição confortável, e escondem um dos
braços, deixando-o fora do campo de visão. Em seguida, colocam à frente da
pessoa, em seu campo de visão e ao lado do braço escondido, um braço de
borracha. O experimentador toca com um pincel ambos os braços (o de
borracha e o de verdade) simultaneamente e após poucos minutos, o sujeito,
mesmo vendo que o braço não é o seu, experiencia a sensação de toque como
se aquele braço lhe pertencesse. O mais interessante é que se depois disso o
sujeito for solicitado a tocar o próprio braço estimulado, mesmo ciente de tudo
que ocorreu, ele toca o braço falso, ou próximo dele. Esse experimento mostra
de uma maneira curiosa, que ao longo da vida, aprendemos a juntar as
informações sensoriais e visuais, criando assim a nossa representação
corporal como imagem momentânea.

Figura 1. cPM = córtex Pré-motor, S1 = area somatosensorial, sIP = sulco


Intraparietal, EBA = córtex extraestriado do corpo, FBA = córtex fusiforme do corpo
(que se localiza medialmente e não é possível observá-lo na vista lateral).

Mas se a visão é importante para nossa auto imagem e identidade


corporal, o que dizer sobre pessoas congenitamente cegas? Em cegos, a
representação espacial do corpo é obviamente distorcida. E como elas
reagiriam por exemplo a um experimento semelhante ao do braço de borracha?
A princípio pode parecer estranho este teste, mas uma leve modificação pôde
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mostrar algo interessante. Pesquisadores utilizaram sujeitos cegos e outros de
visão normal, mas vendados, colocando-os na mesma posição descrita no
experimento anterior e com o braço de borracha à frente (PETKOVA et al.,
2012). Mas ao invés do experimentador tocar com o pincel, a tarefa do sujeito
era de tocar o braço de borracha com seu braço oposto, enquanto
experimentador tocava simultaneamente e da mesma forma o braço verdadeiro
posicionado ao lado. A ilusão do sujeito era de que ele próprio tocava o seu
braço, e quando era pedido para localizar seu braço no espaço após a
estimulação, notou-se a diferença entre o grupo de cegos e de visão normal.
Os primeiros tinham um menor erro de localização espacial que os últimos.
Esse resultado mostra que apesar de uma interpretação equivocada de sua
auto imagem, o que é naturalmente esperado de alguém sem visão, os cegos
podem ter uma representação mais verídica de sua posição no espaço.
Chamamos de membros fantasmas a sensação da existência de
membros que foram amputados. Em muitos casos, o paciente pode sofrer de
dores incessantes no membro inexistente. Por exemplo, uma pessoa sofre um
acidente de carro em que seu braço fica preso é decepado. No momento da
amputação, a pessoa estava com o punho fechado. A partir do momento da
amputação, a pessoa sentirá a dor que sentiu no momento do acidente e, para
ela, seu punho estará sempre fechado. Em um tratamento muito simples, o
paciente “engana” seu próprio cérebro através de um espelho. O paciente deve
posicionar a imagem mental do seu membro amputado dentro de uma caixa
espelhada de modo que a imagem refletida do seu membro intacto seja vista
por ele como se seu membro amputado estivesse lá. Após um período de
habituação, pede-se ao paciente para abrir a mão. Ao ver a imagem refletida da
mão normal no espelho, o paciente acredita que abriu a mão amputada, se
livrando da dor. Este fenômeno mostra que a contrução mental de nosso corpo
é mais complexa do que somente representação baseada na informação
visual, na proprioceptiva ou na soma das duas.
E quanto a pacientes que, ao contrário, mesmo vendo um de seus
membros, afirmam convictamente não ser parte de seu corpo? Essa é a
chamada somatoparaphrenia. Nela, mesmo diante de provas incontestáveis,
pacientes negam possuir aquele braço, e afirmam convictamente que aquilo

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que carregam consigo (seu braço esquerdo, por exemplo) é algo que alguém
colocou ali. Outro estado semelhante é a hemisomatoagnosia. Esta condição
de pacientes é geralmente acompanhada de uma heminegligência do mundo
externo. Em decorrência de lesões no lobo parietal posterior (na maioria das
vezes, direito), estes pacientes ignoram metade de seu campo visual e muitas
vezes, também a metade correspondente de seu corpo. Notavelmente, o
esquema corporal está alterado nesses pacientes, e eles perdem a sensação
de possuir aquele corpo como ele é.
Outros casos relevantes são de pacientes que, após lesões no lobo
parietal posterior esquerdo, sofrem uma alteração na sua identidade corporal
não sendo capazes de mostrar e apontar uma parte de seu próprio corpo,
mesmo sendo capazes de fazê-lo com objetos não relacionados ao corpo. É a
chamada autotopagnosia. Essa condição pode estar associada à
heterotopagnosia, na qual o paciente não é capaz de mostrar partes do corpo
de um terceiro. Recentemente, têm sido relatados casos em que ambas as
doenças ocorrem independentemente, relacionando-se a autotopagnosia a
lesões na parte inferior e a heterotopagnosia na região superior do córtex
parietal. Em pacientes com heterotopagnosia, quando o médico o solicita que o
paciente aponte para o nariz do médico, por exemplo, o paciente aponta para o
próprio nariz. Esta é uma condição que em grande parte desaparece com o
tempo, e o paciente volta aos poucos ao normal. Após terem vivenciado a
heterotopagnosia, alguns sujeitos dizem ter sentido como se “o nariz do médico
fosse dele”.
Em muitos casos de hemiplegia, uma paralisia de metade do corpo, o
paciente não tem consciência de estar nesta condição, sofrendo da conhecida
anosognosia para hemiplegia. Estes casos sugerem envolvimento da insula.
O córtex desta região esta implicado na integração de informações
somatosensoriais, vestibulares, motoras, auditivas, e subjetivas relacionadas
ao corpo, bem como sua condição homeostática, e sugere-se que participe da
consciência do ambiente e de si. Dessa forma, lesões dessa região causam
diversos distúrbios relacionados à identidade corporal, como experiências fora
do corpo, ou a perda da sensação de ser dono do próprio corpo ou de realizar
ações voluntárias.

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Em alguns sujeitos, a sensação não é apenas de estar fora do corpo, mas
de que esses sujeitos são capazes de ver um o próprio corpo projetado no
espaço extrapessoal e relatam sentir como “divididos em duas partes” ou
“como se existissem dois 'eus'”. A causa desta sensação ainda não é
totalmente esclarecida, mas estudos que simulam a experiência de ver seu
próprio corpo sugerem o envolvimento de diversas áreas: o sulco intraparietal,
córtex pré-motor, córtex sensorimotor, EBA, e córtex temporoparietal. Mais
consistentemente tem sido mostrado o envolvimento das duas primeiras áreas,
mas mais estudos são necessários para esclarecer esta questão.
Distúrbios de auto imagem e esquema corporal, de consiciência de si e de
seu corpo acontecem devido a questões físicas (acidentes vasculares, por
exemplo) ou psicológicas, mas dificilmente saberemos se estamos cientes da
nossa condição corporal exata. Estudos mostram que pequenas alterações
podem ocorrer sem grandes prejuízos, mas “como é meu corpo?” e “quem sou
eu?” ainda são perguntas difíceis de responder, inclusive para a ciência.
Desde o início do Módulo II do nosso curso, viemos discutindo diferentes
aspectos das funções neurológicas humanas de maneira generalizada. Com
isso, esperamos estabelecer uma linha de base sobre os conhecimentos
neurocientíficos relacionados a processos cognitivos humanos elevados. Como
neuropsicólogos, chegará o momento em que vocês deverão utilizar esses
conhecimentos para avaliar diferentes pacientes em relações a diferentes
demandas. Iniciaremos, portanto, neste módulo, uma discussão sobre as
avaliações neuropsicólogicas. Dessa forma, esperamos fechar um ciclo básico
com os fundamentos da neuropsicologia. A partir deste ciclo, vocês poderão
iniciar o estudo da aplicação da neuropsicologia na clínica.

Avaliação psicológica e avaliação neuropsicológica: caracterização e


procedimentos
A lei 4119/1962 regulamenta a Psicologia no Brasil e estabelece a
avaliação psicológica como atividade privativa do profissional da área. Para
Wechsler, a avaliação psicológica pode ser definida, em linhas gerais, como
“um processo de coleta de dados e interpretação de informações, realizada por
meio de instrumentos psicológicos, tendo por finalidade o maior conhecimento

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do indivíduo a fim de que sejam tomadas determinadas decisões” (1999, p.
134). Existem diversos tipos de instrumentos psicológicos, dentre os quais se
destacam as provas situacionais, as observações, as entrevistas e os testes
psicológicos. Ou seja, os testes psicológicos não devem ser considerados os
instrumentos psicológicos por excelência. Entretanto, inquestionavelmente
ocupam um lugar central em um processo de avaliação psicológica.
A avaliação psicológica se afigura como a atividade do profissional da
área mais conhecida pela população (TOURINHO E SILVA; MACEDO;
MORETZSOHN; VASCONCELOS; SOUSA, 2004). É nesse sentido que
Noronha e Alchieri (2003) afirmam que o exercício da avaliação psicológica
auxilia a difundir a Psicologia como ciência e profissão na sociedade. Porém, a
avaliação psicológica, em um passado recente, não gozava do mesmo
prestígio de outras práticas psicológicas, de modo que, recorrentemente, era
alvo de sérios questionamentos. Com o intuito de resolver esse problema de
credibilidade científica, o Conselho Federal de Psicologia (2003) lançou uma
resolução que dispõe especificamente sobre a elaboração, comercialização e
utilização de testes psicológicos e institui um dispositivo para a contínua
apreciação das qualidades psicométricas (sobretudo validade, fidedignidade e
padronização) dos mesmos: o Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos.
Como resultado direto desse movimento, a avaliação psicológica
experimentou um importante avanço no âmbito brasileiro e as pesquisas na
área foram fortemente impulsionadas. Justamente em função disso pode-se
afirmar que o cenário atual da avaliação psicológica no país é bastante
promissor, uma vez que diversos novos testes psicológicos foram
desenvolvidos e outros, já tradicionais, foram atualizados, revisados ou
reformulados, e, assim, passaram a apresentar condições de serem utilizados
em território nacional nos mais diferentes contextos e com as mais distintas
finalidades. Mas o que caracteriza um teste psicológico? Consideramos
imprescindível contemplar tal questão antes de abordar diretamente o tema de
que trata este texto.
De acordo com a clássica definição de Anastasi (1961), um instrumento
de avaliação deve ser designado como teste psicológico desde que represente
uma medida objetiva e padronizada de uma amostra de comportamento. Em

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uma definição mais recente, porém, Hogan (2006) oportunamente salienta que,
nos dias de hoje, é mais apropriado ampliar o objeto dos testes psicológicos de
modo a contemplar também processos cognitivos e funções mentais, ou seja,
variáveis psicológicas em suas diversas formas de expressão. Ademais, o autor
esclarece que conceituar um teste psicológico como uma medida padronizada
implica em colocar em relevo a existência de métodos claramente
especificados segundo os quais a aplicação e a avaliação do mesmo deverão
ser executadas.
De acordo com Mäder-Joaquim (2010), diversos tipos de instrumentos e
procedimentos de avaliação podem ser utilizados na avaliação
neuropsicológica, a qual será definida na segunda seção deste texto. Uma
parcela expressiva deles, embora fundamentada, em maior ou menor grau, em
conceitos concernentes à Psicologia, não pode ser designada como teste
psicológico, pois também têm suas bases teóricas localizadas no corpo de
conhecimento científico de outras disciplinas, como a Neurologia, a Biologia e a
Linguística, por exemplo. Além disso, muitos dos instrumentos e procedimentos
utilizados na avaliação neuropsicológica não atendem plenamente aos
requisitos necessários a um teste psicológico.
Logo, instrumentos e procedimentos de avaliação com tais características
fogem ao escopo do Sistema de Avaliação de Testes Psicológicos, de modo
que não são de uso restrito do profissional da área. Porém, os mesmos são
capazes de subsidiar o acesso a informações relevantes para a avaliação
neuropsicológica e não têm sua utilização condicionada à realização de uma
formação acadêmica específica, podendo ser adotados por qualquer
profissional devidamente treinado.
Em suma, parece razoável afirmar que tanto os testes psicológicos
quanto os instrumentos e procedimentos de avaliação de outros tipos são
capazes de prestar importantes contribuições para a avaliação
neuropsicológica, desde que aplicados e avaliados corretamente. Mas essa
assertiva geral é válida para quais testes psicológicos em específico? A quais
tipos de instrumentos e procedimentos de avaliação? Tais questões serão
contempladas no próximo texto. A seguir, apresentaremos uma definição
operacional para o processo de avaliação neuropsicológica, assim como suas

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principais indicações e domínios.

Avaliação neuropsicológica: definição, indicações e domínios


Partindo do princípio de que a neuropsicologia clínica pode ser definida
como a ciência aplicada que estuda a expressão comportamental do
funcionamento cerebral, Mäder-Joaquim (2010) aponta que a avaliação
neuropsicológica consiste, especificamente, na avaliação das funções
cognitivas e de aspectos do comportamento, de modo que contempla diversos
domínios, como a atenção, a memória, a linguagem e as funções executivas.
Já Hogan (2006) observa que a neuropsicologia clínica se afigura como uma
interface entre a neuropsicologia e a psicologia clínica. Assumindo tal premissa,
o referido autor acrescenta que a investigação do status mental e da
personalidade também devem ser consideradas de grande relevância na
avaliação neuropsicológica. De qualquer forma, ambos consideram que a
avaliação neuropsicológica é, tipicamente, uma atividade que cabe ao
neuropsicólogo clínico.
Portanto, para que se possa delimitar as indicações da avaliação
neuropsicológica e os domínios a serem contemplados nesse processo, é
preciso que se compreenda quais questões comumente são direcionadas ao
neuropsicólogo clínico. Hogan (2006) esclarece que, nesse sentido, podem ser
diferenciadas duas questões principais, a saber: 1) Qual o diagnóstico do
paciente? e 2) Quais são os pontos fortes e pontos fracos do paciente?
Quanto à primeira questão, o referido autor salienta que, com o advento
de exames médicos sofisticados, como a tomografia por emissão de prótons
(PET) e a tomografia por emissão de fótons únicos (SPECT), o neuropsicólogo
clínico tende a ser pouco solicitado a identificar a presença ou a ausência de
lesões ou disfunções cerebrais. Mais frequentemente, cabe ao mesmo, na
atualidade, contribuir com o diagnóstico avaliando em que medida a presença
de lesões ou disfunções cerebrais – como aquelas próprias de Traumatismos
Crânio-Encefálicos ou Acidentes Vasculares Cerebrais, por exemplo – afetam o
comportamento do paciente, uma vez que os exames médicos em questão não
são capazes de determiná-lo exatamente. Já nos casos em que a presença de
lesões ou disfunções não foi identificada, como muitas vezes ocorre nos

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estágios iniciais das Demências, a avaliação neuropsicológica pode detectar os
primeiros indícios de anormalidade.
No que tange à segunda questão, ainda de acordo com Hogan (2006), é
válido esclarecer que a avaliação neuropsicológica pode auxiliar na
identificação tanto das habilidades que se encontram afetadas quanto daquelas
que se encontram preservadas no paciente. Por exemplo: um indivíduo
acometido pela Doença de Parkinson, além dos tremores característicos da
doença, tende a apresentar alterações da memória, mas não da linguagem.
Informações dessa natureza são de grande relevância para o tratamento e para
a reabilitação, pois subsidiam recomendações específicas em termos dos
cuidados a serem oferecidos ao mesmo e podem apontar a necessidade de
mudanças em seu ambiente. Além disso, são bastante úteis para o
planejamento profissional do paciente. Como bem apontou Mäder-Joaquim
(2010), dificuldades na realização de tarefas que demandam cálculos tendem a
ser problemáticas se o paciente trabalha, por exemplo, nas áreas de
Engenharia ou Contabilidade, mas não para uma pessoa cuja atividade
profissional não envolva tal habilidade.
Hogan (2006) acrescenta que a avaliação neuropsicológica também vem
sendo empregada com frequência crescente em Medicina Legal. O
neuropsicólogo clínico, nessa área, pode ser solicitado tanto pela defesa
quanto pela acusação em um caso judicial para determinar, por exemplo, a
presença ou a ausência de déficits cognitivos capazes de implicar em
inimputabilidade, ou seja, que não possibilitam a atribuição de culpa a alguém
acusado de um crime ou delito.
Por fim, o referido autor destaca que a avaliação neuropsicológica pode
ainda ser utilizada para fins de pesquisa, quer seja para o estudo do
funcionamento cognitivo – tanto normal quanto anormal – ou para a avaliação
dos resultados promovidos por tratamentos. O estudo de Andrade, Brucki,
Bueno e Siqueira-Neto (2012) é um exemplo de pesquisa em avaliação
neuropsicológica, e teve como objetivo comparar as funções cognitivas em
indivíduos saudáveis e indivíduos com diagnóstico de Doença Vascular
Subcortical. Os autores empregaram uma bateria de instrumentos de
avaliação, de modo a contemplar diversos domínios, dentre os quais a atenção

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e a linguagem.
Tomando como base as informações apresentadas nesta segunda seção
do texto e articulando-as com aquelas apresentadas na primeira seção, é
possível concluir que, em síntese, a avaliação neuropsicológica “difere da
avaliação psicológica por tomar como ponto de partida o cérebro” (MÄDER,
1996, p. 12). Ou, em termos mais específicos, que a avaliação
neuropsicológica, em contraste com a avaliação psicológica, confere ênfase à
identificação do substrato neurológico presumido do domínio que está sendo
avaliado, de forma que necessariamente envolve o estabelecimento de
inferências sobre o funcionamento normal ou anormal do sistema nervoso
central (GAUER; GOMES; HAASE, 2010).

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