O Pensamento Revolucionário: da conflitantes, tendem a se
burguesia ao proletariado complementar. Desta harmonização dos interesses individuais deveria surgir a própria harmonia social. O pensamento revolucionário burguês, a partir do século XV até o século E finalmente a Economia Política, XIX, se desdobra em ampla e criada por esse pensamento diversificada frente de disciplinas, de revolucionário burguês. Uma teoria regiões do trabalho intelectual. Na econômica que veio para se afirmar frente da Filosofia, afirma a primazia contra a velha ordem feudal dos da Razão diante da Fé, o direito à privilégios, dos monopólios, dos dúvida metódica, à pesquisa, o regulamentos e das prescrições afastamento de quaisquer limites de restritivas. Por isto mesmo, proclama, natureza sobrenatural para a esfera do como a mais natural e conveniente conhecimento. Na frente do Direito, para os homens, a liberdade da com o jusnaturalismo, afirma os atividade econômica, a soberania do direitos naturais do homem, que mercado, a tendência espontânea do nenhuma instituição social pode mercado de regular os diferentes retirar. interesses individuais dos vários produtores. Para a burguesia, que Na frente da teoria do Estado - que é então afirmava sua supremacia, os explicada de várias maneiras, mas diversos tipos de coação unânime na idéia de que não pode extra-econômica já eram dispensáveis. haver um Estado sobre-humano, de Tanto para ela, como para a classe dos origem divina — o novo pensamento trabalhadores—os operários que já burguês declara que o Estado nasce da estavam nas manufaturas e iriam sociedade, por conseguinte, deve ter entrar nas fábricas com a Revolução tais ou quais compromissos com a Industrial—bastava a coação própria sociedade. Este processo meramente econômica. O fato dos discursivo vai terminar, como se sabe, trabalhadores estarem despossuídos na teoria do contrato social, de dos meios de produção e de Rousseau, depois de passar por subsistência os forçaria, pela própria Locke, Spinoza, Hobbes e outros. É a necessidade, pelo hábito criado com o afirmação, portanto, de um direito passar das gerações, pela obrigação igualitário dos cidadãos, em oposição desde a infância, a procurar as aos diretos dos estamentos e dos fábricas e a considerar natural a privilégios estamentais. Cria-se o circunstância de viver de um salário. conceito moderno de cidadão, Salário que seria regulado, no final separa-se a ordem privada da ordem das contas, pela existência do exército pública. industrial de reserva, combinado com a procura e a oferta de mão-de-obra No terreno da Ética, a burguesia no mercado. apresenta uma nova teoria das relações sociais, justamente a ética do Em face disso, o que deveria ser o indivíduo, que nela tem o seu centro e Estado para a burguesia soberano. Sob a nova perspectiva, os revolucionária? Um Estado liberal, interesses individuais, ao invés de apenas com a função de fazer cumprir as regras do jogo de mercado, porém uma nova teoria econômica do sistema não intervindo neste. Um Estado que capitalista, em que se demonstra que puniria aqueles que infringissem as este sistema não pertence à natureza regras, aqueles que violassem da espécie humana, e, por justamente esta ordem burguesa, conseqüência, é histórico. O sinônimo de ordem pública. O Estado capitalismo é um sistema que surge burguês não teria função econômica em determinado grau de direta. Não faria como o Estado desenvolvimento das forças absolutista, promovendo fábricas, produtivas do próprio homem. Por concedendo monopólios e privilégios. conseguinte é transitório e deve desembocar — pelo desenvolvimento Destoa desse pensamento, é claro, o das contradições internas — na próprio Hegel. Na sua Filosofia do substituição por outro sistema, que Direito, o que ele apresenta é o seria o sistema socialista. Estado constitucional, mas não liberal, uma vez que escrevia como filósofo O pensamento do proletariado se de um Estado ainda atrasado — apresenta, portanto, em primeiro lugar naquele momento — sob o aspecto da através da crítica da Economia revolução burguesa. Política burguesa e de uma teoria econômica oposta a ela. É a crítica Estas são as frentes principais do principalmente de Adam Smith e de pensamento revolucionário burguês. Ricardo, que vai servir de base para o Talvez eu tenha omitido alguma delas, desenvolvimento das teorias mas acredito que apresentei as mais econômicas posteriores: Kaustsky, importantes. Rosa Luxemburg, Lenin, Hilferding, Em que frentes se desenvolve o Bukharin e os contemporâneos. O pensamento revolucionário proletário pensamento econômico marxista no final do século XVIII — quando assumiu, portanto, um lugar central na emerge a Revolução Francesa — e no elaboração de uma concepção transcurso do século XIX, chegando revolucionária do proletariado. aos nossos dias? Apoiados no terreno preparado pelo idealismo clássico alemão e já atuando Passada a fase das utopias—que como intelectuais orgânicos dentro do constróem idealmente sociedades movimento operário, Marx e Engels coletivistas autogestionárias — e puderam lançar os fundamentos da entrando na obra dos fundadores do dialética materialista e de uma teoria socialismo científico, de Marx e geral da sociedade. Concepções Engels, podemos observar que o necessárias à edificação de um pensamento do proletariado pensamento revolucionário que se revolucionário e sua elaboração propunha a ganhar o aval de ciência. teórica se apresentarão também de maneira esquemática nos seguintes No entanto, é sintomático que Marx se terrenos: concentrasse nos trabalhos de Economia Política e só desenvolvesse Em primeiro lugar, na crítica da a teoria do materialismo dialético e Economia Política. Esta é a primeira histórico no corpo das obras frente, a principal, à qual se dedicará econômicas e historiográficas. Já se o grande fundador do pensamento disse que O Capital é a Lógica de revolucionário do proletariado: Marx, Marx. Em parte, e somente em parte, com a colaboração de Engels. Pela Engels procurou suprir esta lacuna. própria sistemática da sua concepção geral do materialismo histórico, que Daí que a segunda frente mais confere a instância fundamental ao importante no desenvolvimento do que chamamos de fator econômico, pensamento do proletariado viesse a Marx considerou que devia atacar ser a teoria da revolução. É que, primeiramente a Economia Política neste terreno, as indagações vinham burguesa, que deveria criticá-la. Desta com a imposição da urgência: o que crítica surge o desvelamento das era a revolução na época das contradições do capitalismo, surge contradições do capitalismo? Qual a sua trajetória previsível? Que papel partido revolucionário. Teoria que, teria nela o proletariado em face das nas suas origens, ficou marcada pelas outras forças sociais? condições peculiares da luta revolucionária na Rússia czarista e, Tais indagações vão constituir tema mais tarde, da construção do de constante polêmica no movimento socialismo na União Soviética. comunista até os dias de hoje. A teoria do Estado se segue em Desdobrando-se da teoria da ordem de importância no pensamento revolução, vem a teoria do partido revolucionário do proletariado. revolucionário. Esta ainda não tem Contudo, não podemos deixar de lugar elaborado em Marx e Engels. concordar com Norberto Bobbio que Mas, em seguida, com a II esta é uma frente insuficientemente Internacional, assume lugar abordada e menos avançada do que as proeminente. São sobretudo os outras. A tal ponto que, ainda teóricos russos, com Lenin à frente, segundo Bobbio, não existiria uma que vão erguer o corpus da teoria do teoria do Estado no universo marxista. Mas o próprio pensador italiano pública, mas por um prazo reconhece que se Marx não se dedicou determinado, retirando-se em seguida. à teoria política com tanto afinco O termo foi adotado na literatura quanto à teoria econômica, o que nos política, com esta acepção de legou já é suficiente para lhe dar um transitoriedade, até Marx. Para Marx, lugar eminente, o lugar de um ditadura de classe será sinônimo de verdadeiro marco na evolução das dominação de classe, designando uma idéias políticas. Pois é de Marx a tese situação duradoura. de que o Estado não é uma instituição para o bem comum, acima das classes Por que a classe dominante exerce sociais, conforme idéia generalizada dominação de maneira discricionária, no pensamento político anterior. Marx como uma ditadura? Porque ela faz o foi o primeiro a declarar que o Estado que lhe interessa e para isso não há é o Estado de uma classe particular. limite real na lei. As leis obedecem Esta ligação orgânica do Estado com aos interesses da classe dominante e uma determinada classe, com a classe se violam também no interesse da dominante, é essencial no pensamento classe dominante. Mas a ditadura, por político marxista, é a contribuição sua vez, pode ser exercida sob específica mais importante de Marx. O diferentes formas políticas. No caso fundador do socialismo científico da burguesia, tanto se exerce sob a inverte a relação de Hegel, de forma de um regime plenamente Estado-sociedade civil, do Estado discricionário, como através da criador da sociedade civil, para a república democrática, através de sociedade civil-Estado. A sociedade governos representativos e que, na civil, como o reino em que os linguagem usual, seriam indivíduos realizam suas necessidades aparentemente o oposto da ditadura. materiais, suas necessidades econômicas, é que será a criadora do Em virtude de semelhante Estado, a base do Estado. No entanto, ambigüidade, o termo ditadura dá Marx, como Engels, assim como origem a numerosas confusões. O fato Lenin, irão dar ênfase sobretudo ao de, na linguagem mais usual, nós só o Estado como instrumento de coerção — empregarmos como expressivo de o Estado é a coerção legítima. Daí governos discricionários, não nos poder funcionar como regulador dos permite compreender que, na conflitos sociais entre as várias terminologia de Marx, ele tem sentido classes, porém como um regulador de discricionário para a dominação que age de maneira a preservar a burguesa geral, não se restringindo à ordem existente e o modo de produção forma que esta assume nos governos em vigência, assim como a formação autoritários. A ditadura de classe pode social que confere supremacia à classe se apresentar também sob a forma de dominante. No caso, a classe governos parlamentares dominante burguesa. representativos e constitucionais, obedientes à legalidade. Mesmo liberal, este Estado não se Com relação ao novo Estado ausenta da vida econômica. Sua socialista, a teoria política foi pouco ausência é uma ilusão ideológica, pois elaborada, tanto por Marx e Engels, o Estado liberal intervém na ordem como por Lenin. Salienta-se, aí, a econômica ainda que evite a gestão idéia da destruição do aparelho do direta de empresas. Estado burguês, e a sua substituição por um novo aparelho de Estado. Em Marx dá novo sentido à palavra seguida a idéia de deperecimento do ditadura, ao falar em ditadura de Estado, ou seja, da sua extinção classe. Originalmente, o termo gradual. O que significa, de um lado, ditadura vem da antiga Roma, a recusa da concepção reformista de designando um governo que o Estado burguês pudesse necessariamente provisório, admitido adaptar-se às necessidades da futura em situações conflitivas, convulsivas, dominação do proletariado. E, por que deveria pôr ordem na vida outro lado, a recusa do princípio do anarquismo, segundo o qual o Estado que a ideologia da classe dominante é deve ser extinto de uma vez de a ideologia dominante. Neste sentido, maneira imediata, assim que for os teóricos marxistas estudaram as derrubada a burguesia. Segundo os diversas ideologias da burguesia, com teóricos marxistas, sendo a revolução algumas incursões no terreno da um ato autoritário por excelência, o Filosofia. Estudou-se a Religião, até proletariado, que se apossa do poder, certo ponto a Arte, muitíssimo pouco não dispensará o Estado como a Ética. Neste ponto, não se pode instrumento de afirmação desse dizer que há uma teoria da Ética mesmo poder. O proletariado tem socialista ou algo que mereça este necessidade do Estado, o qual não nome. Há certas contribuições, mas pode desaparecer exatamente no não possuem nível teórico à altura do momento da revolução. Trata-se de que o marxismo elaborou no terreno um novo tipo de Estado, que da economia, na teoria da revolução e necessariamente deve atravessar uma na teoria política do partido. transição: a da extinção gradual. Talvez pela previsão de que o Estado Tanto Engels como Lenin notaram a do proletariado fosse necessário, mas submissão ideológica do proletariado transitório, destinado a se extinguir, é inglês à burguesia inglesa. Mas Lenin, que não se teorizasse sobre o que em particular, atribuiu isso ao fato de seria este Estado. o imperialismo inglês ter a disponibilidade de oferecer migalhas, Esta seria uma razão de ordem teórica. do que saqueava do seu império, ao Existem também motivos de ordem proletariado inglês. Subornava, histórica, pela forma como ocorreram corrompia o proletariado inglês. Mas as revoluções, primeiro na URSS, o estudo dos processos ideológicos depois em outros países do Leste que tornavam essa submissão Europeu, na China, em Cuba etc. consolidada, que davam a ela Neste ponto, eu dou razão a Norberto estabilidade, um prolongado grau de Bobbio. O que aconteceu, na duração, isto não foi objeto de estudo realidade, em todos esses países, é por parte de nenhum daqueles grandes que o Estado, ao invés de realizar um teóricos. processo de deperecimento, iniciou um processo de expansão. Porque, ao contrário do previsto por Marx e É com Gramsci que irão ser estudados os processos consensuais de direção e Engels, o Estado assumiu os bens de de dominação. Ele ressaltou a produção em nome da sociedade. Com complexidade das funções do Estado. isso, adquiriu um poder que nunca O Estado com sua força legitimada, o teve antes em nenhuma sociedade Exército, a Polícia, a Administração burguesa. O Estado se expandiu mais Publica, os Tribunais etc., órgãos do que se poderia prever. O processo depositários da função de coerção. de sua extinção não se iniciou ainda Esta é uma face. A outra face é a em nenhuma sociedade do chamado extensão do Estado, que ele chamou socialismo real e uma teorização a de Sociedade Civil, num sentido respeito ainda está por ser feita. diferente de Marx. A Sociedade Civil seria o âmbito em que se moveriam as Estado—Coerção e Consenso instituições destinadas a obter o Vamos deter-nos, agora, na consenso das outras classes sociais contribuição especial de Antônio que formam com a classe dominante Gramsci. aquele bloco histórico, que dá estabilidade à formação social. Aqui Em Marx, Engels e Lenin, foi dada entram a Igreja, os Partidos Políticos, ênfase sobretudo à face coercitiva do os Sindicatos, as Escolas, obviamente Estado, o Estado-coerção. As formas a Universidade, a Imprensa (hoje se consensuais de dominação de classe incluiriam o rádio e a televisão, com não mereceram tanto esforço teórico. sua tremenda força de comunicação), Não que se omitisse o problema da a Alta Cultura, o Senso Comum—a ideologia. Marx falou dela e declarou chamada sabedoria popular, com os provérbios, o folclore etc. Este seria o consenso das classes subalternas, na terreno onde se formariam as medida em que supera a visão consciências que aceitariam a ordem corporativa, em que não pensa apenas vigente. Mas, aceitação, aqui, não nos seus interesses imediatos e signiñca submissão passiva e consegue interpretar os interesses das resignação ou ilusão de uma ordem outras classes sob o enfoque do seu ideal. Uma classe subalterna pode domínio, da sua posição de aceitar determinada ordem social, supremacia. Se a classe dominante mesmo vendo-a injusta. Porém, ao consegue fazê-lo, obtém o consenso. considerá-la eterna, impossível de Se ela se restringir a uma visão mudar, adquire a confiança de que corporativa, a interesses imediatos, poderá melhorar sua posição, então perde o consenso. conquistar reformas. Nesse sentido, ela dá o seu consenso, sua adesão e A burguesia conseguiu o consenso da apoio à existência dessa ordem social. classe operária e de outras camadas de E a isto que Gramsci chama de trabalhadores com seu vasto trabalho, hegemonia de uma classe dirigente. ideológico e multissecular. No Uma classe é hegemônica, é dirigente, processo de formação de sua na medida em que consegue obter o hegemonia, ganharam a adesão dos camponeses e do operariado industrial Consenso e coerção fazem um jogo, nascente e puderam realizar assim a em que um elemento aumenta à custa sua tarefa revolucionária. do outro, em certas conjunturas, mas, em nenhum momento, qualquer dos É indispensável a função de dois desaparece. Para fundamentar dominação, a função de coerção, mas esta teorização, Gramsci se apoiou na a função de direção pode precedê-la. historiografia das revoluções Francesa Gramsci dizia que uma classe pode ser e Italiana. Duas revoluções, uma dirigente, antes de ser dominante. muito radical e vinda de baixo, que Nesse terreno, é que também o foi a Revolução Francesa, e outra, pensamento de Gramsci se voltou para uma revolução de cima, passiva, que o papel dos intelectuais e nenhum foi a Revolução Italiana, realizada outro teórico marxista deu mais por um ato da classe burguesa, contribuição tão criativa para o estudo através de um Estado italiano, o de do papel dos intelectuais. Porque são Piemonte, e, por conseguinte, com os intelectuais, exatamente, os uma iniciativa vinda de cima. funcionários do consenso. São eles que trabalham como ideólogos para a Quero acrescentar que dou razão, sob obtenção do consenso como homens este aspecto, a Perry Anderson. Não a da Igreja, como dirigentes de tudo o que escreveu sobre Gramsci, sindicatos, de partidos políticos, como porque conclui que ele foi um jornalistas, produtores da alta cultura, reformista. Na minha opinião, produtores de arte, seja a grande arte Gramsci foi um revolucionário. Mas ou a arte popular etc. creio que Anderson tem razão quando Mas basta ter o consenso para ter a afirma que o próprio Estado — dominação? Aqui a divergência é considerado à parte da sociedade civil muito grande entre os intérpretes de — já é consenso, ou pode prefigurar Gramsci. A obra de Gramsci, como também o consenso. Nem sempre ele é todos sabem, foi escrita no cárcere em somente coerção. O Estado condições muito penosas, obrigando-o representativo parlamentar pode ter a disfarçar o que escrevia, pois estava caráter consensual. Por seu próprio sob vigilância constante dos mecanismo, apela para o consenso das carcereiros. Trata-se de uma obra classes subalternas, porque lhes escrita durante cerca de dez anos, na oferece um jogo do qual elas podem forma de anotações, sem nenhuma participar: a periodicidade das pretensão de publicação. Assim, esta eleições, a liberdade de organização obra fragmentária tem contradições, de partidos originários das classes ziguezagues, voltas e reviravoltas. A subalternas, com a possibilidade legal propósito do assunto, aqui tratado, desses partidos chegarem ao poder, uma das interpretações é a de que, desde que aceitem as regras do jogo para Gramsci, a classe que se torna do Estado representativo. Assim, não dirigente, que obtém o consenso, já só o que Gramsci chamava de pode se tomar dominante exatamente sociedade civil pode ser consensual, por isso. Semelhante interpretação também o Estado como tal pode sê-lo. omite o momento da ruptura, que é o Eu acrescentaria que o consenso, momento revolucionário. Penso que necessariamente, nem sempre é Gramsci não via as coisas desta democrático, também pode ser maneira reformista. Pelo conjunto do despótico. Ou seja, também pode que escreveu e por certas passagens existir um despotismo consensual. muito incisivas, sua idéia era a de que Nos dias atuais, o fundamentalismo o consenso preparava a dominação. A xiita não oferece no Irã um consenso conquista da hegemonia prepara a ao despotismo do aiatolá Khomeini? ruptura revolucionária, que é necessariamente violenta e não A obtenção do consenso nem sempre dispensa a coerção, quer dizer, a se traduz através de canais ou de função coercitiva do Estado não pode formas representativas e democráticas, ser dispensada pelo próprio fato de mas pode ter, em alguns casos, que facilita a obtenção do consenso. manifestação através de formas despóticas. O que varia é a correlação de coerção com a contrapartida de um entre coerção e consenso. máximo ou um mínimo de consenso. Num Estado parlamentar democrático, Do Populismo ao Golpe Militar a coerção é predominantemente latente, manifestando-se Partindo desse universo conceitual, ostensivamente de maneira tópica, nos vou fazer algumas considerações casos em que a ordem pública é sobre a nossa História recente, violentada. Essa coerção se mantém referindo-me primeiramente ao que se num sentido mais geral, como ameaça, denomina em nossa literatura uma ameaça legítima, porém, que não sociológica e historiográfica como deixa de existir, e a área do consenso populismo. Via de regra, este termo é deixada, por assim dizer, livre: a tem sido entendido como manipulação imprensa é livre, não há censura, os por parte de uma liderança carismática partidos se organizam legalmente e de massas recém-urbanizadas, que competem livremente nas eleições, vieram de áreas rurais ou pequenas embora em condições desiguais, pois cidades, ainda destituídas de uma os recursos de uns e outros não são os consciência autônoma no universo das mesmos. Os sindicatos também são grandes cidades. livres: fazem-se greves, até certo ponto admitidas, embora a repressão Os aspectos da manipulação e da policial, em alguns casos, pratique liderança carismática existem, porém agressões e até assassinatos a líderes não são o fundamental do fenômeno. sindicais. A própria vida universitária O essencial — e aqui desejo recupera a sua autonomia, funciona restringir-me ao caso brasileiro, visto com um grau de liberdade ser este um fenômeno internacional — consentâneo com a competição entre é que o populismo foi um processo de as várias idéias. Aproximadamente, hegemonia consensual da burguesia esta é a situação atual do Brasil. ascendente, a partir dos anos 30, para obter a colaboração do nascente Eu diria que nos Estados fascistas ou proletariado com vistas à construção nas ditaduras militares sul-americanas, da nação burguesa. Foi exatamente como a que tivemos no Brasil até uma política do próprio Estado, tendo poucos anos atrás, a coerção atinge no seu leme o primeiro e o maior dos um máximo, invadindo a área da populistas — Getúlio Vargas. Getúlio sociedade civil onde se processa o acreditava que o populismo seria consenso. Nestes casos, não só a benéfico tanto para os trabalhadores coerção se torna exposta — intervindo como para a burguesia. Nos anos 30, em tudo, generalizadamente, sem dá-se início ao processo de transição recuar diante dos processos mais da liderança da burguesia Korpes, a exemplo da tortura — como agrário-exportadora — de orientação invade a área do consenso. Então, a antiindustrializante—para a liderança Imprensa é censurada, os Partidos, de uma burguesia industrial, que vai como ocorreu na Argentina, são se afirmar já nos anos 30 e que irá suprimidos ou só se permitem dois crescer celeremente nos anos 40, até Partidos, um da situação e outro da adquirir o domínio pleno nos anos 50, oposição. Foi o que se fez no Brasil. sobretudo no qüinqüênio de Juscelino Os Sindicatos são controlados de Kubitschek. Eu diria que nosmaneira rigorosa, as greves proibidas, Estados fascistas ou Esta burguesia industrial, com seus as publicações submetidas à censura, nas ditaduras o mesmo ocorrendo com o cinema, o políticos e estadistas populistas, militares conseguiu ganhar o consenso em grau sul-americanas, como teatro, as diversas formas de a que tivemos nomanifestação artística. A Universidade elevado dos trabalhadores urbanos Brasil até poucos anosé mutilada: determinadas correntes de para o projeto de uma nação burguesa pensamento são impedidas de se atrás, a coerção atinge independente, através da um máximo, manifestarem dentro dela etc. industrialização. Assim, o populismo invadindo a área da está essencialmente associado ao sociedade civil onde se Assim, temos duas situações típicas projeto da industrialização burguesa processa o consenso. extremas: um mínimo ou um máximo no Brasil. É o primeiro projeto político de hegemonia da burguesia visão mais avançada do que os brasileira. Hoje um projeto próprios industriais, em sua grande abandonado, mas que serviu durante maioria, com a exceção de homens três décadas, dos anos 30 até o como Roberto Simonsen e poucos começo dos anos 60. O populismo outros. tanto pôde operar no regime A título de referência pessoal, eu me autoritário do Estado Novo, como no recordo que, ainda jovem, entrando no regime liberal da Constituição de movimento antifascista, e logo depois 1946, portanto, sob as condições de no movimento comunista, eu tinha um regime parlamentar representativo. aversão a Getúlio Vargas, que E o que oferecia o populismo aos personificava o Estado Novo. E me operários? O paternalismo estatal, nas espantei depois, em 1945, ao notar suas relações conflitivas com o que Getúlio era popular, que dispunha patronato. Os operários ganhavam de enorme prestígio entre os uma legislação, que lhes permitia trabalhadores. O movimento defender alguns direitos perante os queremista de 1945 mostrava isto e, tribunais da Justiça do Trabalho. Os depois, a própria eleição espetacular trabalhadores deixavam de ser do ex-ditador. Quer dizer, o ditador desamparados, mas, em troca, os odiado era um homem popular. Ele Sindicatos ficavam atrelados ao não havia sido somente um ditador e Ministério do Trabalho, e eram exercido apenas a função da coerção, considerados órgãos de colaboração mas havia exercido também a função com o poder estatal. Os Sindicatos do consenso. Havia conseguido o perdiam assim a sua autonomia. Os consenso de grandes massas operários ganharam outras trabalhadoras, por ele arregimentadas concessões: salário mínimo, para o Partido Trabalhista Brasileiro, previdência social, conjuntos que chegou a ser o segundo maior habitacionais, assistência médica etc. partido brasileiro antes do golpe de Tudo isso não deixou de facilitar a 1964. obtenção do consenso dos Getúlio inicia a industrialização nos trabalhadores, em relação ao Estado, anos 40, com a fundação de grandes inicialmente à revelia da burguesia empresas estatais. É com ele que industrial que estava crescendo. Nesse começa o setor estatal da economia sentido, Getúlio Vargas tinha uma com a indústria de base. São os seus sucessores que vão levar esta da inflação, da dívida externa, da industrialização adiante. O segundo dificuldade de importação de bens governo de Getúlio foi um prólogo do essenciais, do déficit orçamentário governo de Juscelino. Os grandes etc. Jânio tentou enfrentar tais objetivos dos planos de metas de problemas com uma renúncia, que, no Juscelino, como hoje se sabe, já fundo, era uma manobra para obter haviam sido previamente formulados maiores poderes em detrimento do por Getúlio, só que eram uma Congresso. Esta manobra fracassou e formulação precoce, numa época em o poder veio ter às mãos de João que ainda não estavam maduras as Goulart, discípulo direto de Getúlio e condições para que o País pudesse o último dos presidentes populistas. interna e externamente implementar uma industrialização acelerada. Ainda No governo Goulart, há todo um jogo não haviam recursos internos atropelado para deter e anular o suficientes e, do lado de fora, os populismo, jogo no qual o próprio países capitalistas desenvolvidos — Jango se compromete para dar uma vindo em primeiro lugar os Estados saída - dentro do modelo recessivo do Unidos — não tinham a disposição de FMI — à situação de crise cíclica em fazer pesados investimentos na que entrava a economia brasileira. A indústria brasileira. Os Estados partir de 1962, a economia começa a Unidos eram francamente contrários à apresentar índices mais baixos de industrialização acelerada do Brasil e crescimento. 1963 é um ano em que o a Europa ainda estava se recuperando produto per capita decresce. A da n Guerra Mundial. Contudo, o economia entra num período Brasil já possuía um mercado interno depressivo, que vai se prolongar até o atraente para o capital dos países da ano de 1967. Ao mesmo tempo em Europa Ocidental e do Japão. O que a economia se debate em agudas capital desses países investiu no dificuldades, o populismo já não Brasil e obrigou o capital americano a constitui uma receita adequada para a mudar de posição e vir disputar uma classe dominante, porque ela não pode posição no investimento industrial mais fazer concessões aos dentro do Brasil. Com isso, o trabalhadores. Já estes, diante da qüinqüênio Juscelino pôde realizar erosão do seu poder aquisitivo, fazem aquele salto industrializante que, reivindicações cada vez maiores, ao induscutivelmente, mudou a qualidade mesmo tempo que ganham experiência da economia brasileira, e deu e consciência política. Os supremacia à indústria, já acoplada trabalhadores começam a apresentar com setores mais modernos - reivindicações que ultrapassam o condizentes com os seus interesses — universo populista. Assim, o no comércio e nas finanças. populismo vai sendo superado pela classe operária e pelos trabalhadores O governo de Juscelino fez a em geral. Ao mesmo tempo, o industrialização de tal forma, que populismo já era uma política legou aos seus sucessores um elenco desvantajosa e inconveniente para a de problemas cruciais. O Estado classe burguesa. O populismo devia interveio na industrialização com por isso mesmo ser descartado por uns inversões maciças, que apelaram para e por outros. a inflação, para a emissão de papel-moeda, o que, no fundo, Este é o drama, o dilema do governo constituiu um imposto forçado, João Goulart, que vai ter um oneroso principalmente para a desenlace extremamente infeliz, população mais pobre. Ao mesmo porque ao mesmo tempo em que o tempo, as inversões de capital governo se debate com esses estrangeiro sob a forma de problemas, dá-se um impetuoso empréstimos expandiram a dívida crescimento do movimento pelas externa. reformas de base. Não aprofundarei aqui o que significou o movimento O governo sucessivo de Jânio se viu a pelas reformas de base, hoje braços com os problemas imperiosos depreciado pelos analistas porque terminou em derrota e não se Congresso. Tampouco regulamentou costumam valorizar as derrotas. esta lei, depois de aprovada, Apesar de que, na História, há impedindo assim que ela entrasse em derrotas mais fecundas do que certas vigor. Jango só irá regulamentar a lei vitórias. em janeiro de 1964, mais de um ano após sua aprovação. Além disso, o O movimento pelas reformas de base movimento pelas reformas de base pôs em xeque a classe dominante em reivindicava a encampação de três pontos fundamentais: refinarias particulares, das concessionárias estrangeiras de Em primeiro lugar, questionou o serviços públicos, porque, naquela princípio da propriedade privada. O época, principalmente a eletricidade movimento incentivou, pela sua própria dinâmica, um grande número era dominada por duas grandes de invasões de terras pelos concessionárias estrangeiras, a Light camponeses despossuídos ou and Power e a Amforp. despejados de suas terras, em Em terceiro lugar, porque foi posto conseqüência do desenvolvimento do em xeque o poder coercitivo do capitalismo no campo. Quem estudar Estado. Surgiram, entrosados com a aqueles anos, poderá assinalar luta pelas reformas de base, os centenas de casos de invasões de movimentos dos sargentos das três terras de Norte a Sul do País. Os Armas e também de algumas Polícias camponeses entraram impetuosamente Militares estaduais que acintosamente no movimento social com as ligas desrespeitavam os regulamentos camponesas e, logo em seguida, com disciplinares. Seus representantes os Sindicatos Rurais, que se falavam em público nas assembléias disseminaram por todo o País. Daí se de estudantes, nos Sindicatos e originou a luta pela reforma adotavam os pontos de vista constitucional, de maneira que se nacionalistas e democrático-radicais. tornasse viável a desapropriação de E mais o movimento dos marinheiros terras para a realização da reforma e fuzileiros navais, que fundaram uma agrária. É o intocável princípio da associação considerada ilegal pelo propriedade privada da terra que é Ministério da Marinha. Marujos e posto em xeque. fuzileiros navais também apresentavam reivindicações de Em segundo lugar, o domínio das caráter profissional e de caráter multinacionais, o domínio do político. Esta indisciplina, inusitada imperialismo. Neste particular, o fato durante dois anos ou mais, que considero mais significativo é a aprofundou-se dentro das Forças aprovação pelo Congresso da lei de Armadas e abalou o poder coercitivo remessa de lucros em 1962. Foi uma máximo do próprio Estado. Além da lei que restringiu em 10% a remessa atuação, que não se pode deixar de anual de lucros pelo capital mencionar, da oficialidade estrangeiro, considerando capital nacionalista, incluindo almirantes e estrangeiro somente aquele que generais, ostensivamente ao lado do efetivamente entrou no País. O capital movimento pelas reformas de base. estrangeiro reinvestido, originário de Isto, é claro, provocou uma reação lucros obtidos dentro do País, não autopreservadora nas Forças Armadas, contaria para as remessas de lucros e porque, como instituição total, elas para os dividendos. Isto seria limitar tendem à autopreservação, baseada drasticamente a remessa de lucros. nos princípios da disciplina rígida e Não conheço nenhum país capitalista da hierarquia, da subordinação em que uma lei tão radical houvesse incondicional dos graus mais baixos sido aprovada. João Goulart, por isto aos graus mais altos dentro da escala mesmo — porque estava no jogo de profissional. adaptação com seus adversários, em que ele próprio procurava frear o Nessas condições, não é preciso dizer populismo —, não sancionou a lei, que o golpe militar de 1964 foi deixando que ela o fosse pelo vitorioso, pois todos já sabem. O que é importante assinalar aqui é a como Castelo Branco, que se mudança de orientação política precisasse de uma ditadura de longa fundamental, então ocorrida. O duração. Mas o que aconteceu foi significado da ditadura militar, exatamente isso. Não fomos com ela iniciada após o golpe, foi a eliminação até o ano 2000, como pretendeu prof. definitiva do populismo consensual e Alfredo Buzaid. Não tivemos uma o realce do elemento de força, de ditadura militar com duração tão coerção do Estado. A coerção prolongada mas, assim mesmo, durou exacerbou-se e chegou a um ponto 21 anos. Para isso, ela recebeu toda extremo, ficando o consenso como um uma doutrinação, da qual a matriz resíduo. No processo de avanço da principal veio na doutrina da ditadura, da vitória golpista de 1964 Segurança Nacional elaborada na até o AI-5 de 1969, a Imprensa foi Escola Superior de Guerra. Esta submetida à Censura, os jornais doutrina forneceu o simulacro de oposicionistas foram calados ou legitimação para a sua vigência. A deixaram de circular. A Universidade ditadura militar não foi, no entanto, foi invadida, mutilada, aleijada, regressiva, e sim modernizadora, numerosos professores foram como havia sido o Estado Novo. Ela compulsoriamente aposentados e seguiu aquilo que se chamou de coagidos a saírem do País. Artistas modernização conservadora, termo foram coibidos e também obrigados a cunhado por Barrington Moore. De saírem do País. Cerca de dez mil um lado, o arrocho salarial, como funcionários públicos civis e militares pedra de toque da política econômica, foram alijados por processos junto a toda uma série de outras administrativos, IPMs ou suspensão medidas, com a correção monetária, de direitos políticos. Parlamentares que ensejou o nascimento do mercado eleitos pelo voto popular também de capitais, bem como novas fontes de sofreram este processo de expurgo. financiamento estatal, permitindo ao Governadores perderam os mandatos Estado voltar a ser um grande nos seus estados. Enfim, dá-se a investidor. Por outro lado, a reversão coerção discricionária, sem limites, do ciclo econômico, com os anos do pois, desde 1964, inicia-se a prática chamado "milagre brasileiro", como o do terrorismo de Estado, com as apelidou a Imprensa internacional. prisões arbitrárias e torturas. Assim, se estabelece no País uma ditadura Estes cinco ou seis anos de "milagre militar sem que isto fosse previsto por brasileiro", de altíssimas taxas de muitos dos protagonistas do golpe. crescimento econômico, constituíram Porque, não é correto dizer, que todos uma característica específica da os participantes ou os principais ditadura militar brasileira na América participantes do golpe militar do Sul. Foi uma fase de alta quisessem desde o início uma ditadura conjuntural, que não ocorreu na militar duradoura. Alguns deles nem Argentina, nem no Chile e no pensaram nisso, e concordoram Uruguai. Não quero me referir ao inicialmente que as Forças Armadas Paraguai, porque ali há uma ditadura assumissem o poder, mas pensavam tradicional e não, por assim dizer, num poder ditatorial no seu exato eventual. sentido filológico, ou seja, de breve duração. Imaginavam que, depois de Este "milagre econômico" tirou toda feita a limpeza do terreno, as Forças ou quase toda a base social da Armadas revertessem o poder aos esquerda armada daquela época. A O significado da civis, com a realização de eleições vitória do golpe militar de 64 não ditadura militar, presidenciais. Assim pensavam, pelo encontrou resistência, porque o iniciada após o golpe, presidente João Goulart evitou a luta e foi a eliminação menos, Carlos Lacerda, Adhemar de definitiva do Barros e Magalhães Pinto, capitulou, por temer que a ela se populismo consensual protagonistas do golpe. Mas radicalizasse e ele perdesse o e o realce do elemento aconteceu algo diferente. Mesmo controle, o que poderia colocar a de força, de coerção do dentro das Forças Armadas não era ordem burguesa em situação precária. Estado. intenção, ao menos de um estadista Uma vez que as esquerdas confiaram na liderança de João Goulart, o que O que é que podemos sentir das houve foi inação. reações das diversas classes sociais neste momento, dentro da temática As esquerdas, em sua grande parte, que aqui procurei desenvolver? entenderam que deveriam reagir com a ditadura já consolidada, com as Da parte da classe dominante Forças Armadas expurgadas de seus burguesa, é incontestável que ela não elementos rebeldes. Sem o movimento pretende, de forma alguma, voltar a dos sargentos, dos marinheiros, dos qualquer tipo de política populista; o generais e oficiais nacionalistas, e populismo pertence ao passado. Tanto com a coerção já estabelecida no seu assim, que o último dos populistas, grau máximo. Leonel Brizola, é um homem malsinado, que deve ser isolado e Em tais circunstâncias, a tese da mantido numa espécie de gueto violência revolucionária político, com um pequeno partido, incondicionada, da violência sem possibilidade de atingir aquele não-submetida às determinações objetivo em que teimosamente se fixa, históricas, ganhou grande parte da que é chegar à Presidência da consciência das esquerdas, fazendo República. Por quê? Será que Leonel com que mergulhassem na luta Brizola por si mesmo seria um armada. Primeiramente na guerrilha inimigo? Nem tanto, penso eu, porque urbana, depois na rural e em se examinarmos hoje o discurso de condições tão desfavoráveis que Brizóla, vamos notar dilatadas dificilmente seria admissível e viável uma vitória. mudanças com relação ao seu discurso pré-64. Naquela época, Brizola foi um É claro, dizemos isto depois que tudo homem que desapropriou — quando ocorreu, já fazendo parte da História. governador do Rio Grande do Sul — Quem entrou na luta pensava na duas companhias concessionárias de vitória e tinha confiança nela, serviços públicos norte-americanos, a teorizava sobre a grande possibilidade ITT e a subsidiária da Amforp. O que dessa vitória e empenhou a vida para levou a uma reação drástica do que ela se concretizasse. Mas hoje nos Congresso norte-americano. A linha cabe examinar as coisas com uma de comunicação de Brizola com o seu visão crítica que procura as raízes público era radical, era uma pregação daqueles fatos, sucedidos dentro de antiimperialista e antilatifundiária determinado contexto político, radical. E hoje, o que prega Leonel econômico e ideológico. Brizola? Ele prega um programa cujo primeiro item é o leite das Perspectivas Presentes criancinhas, ou seja, a construção de Devo dizer, agora, alguma coisa do CIEPEs para tirar as crianças das ruas que está se passando atualmente. e lhes dar alimentação durante o dia Assim, passarei por cima de toda a inteiro, educação etc. Trata-se de um fase do regime militar, porque não objetivo que não podemos reprovar, estarei informando nada de novo porém não deve ser isolado de sobre o fato de que, em certo objetivos que têm em vista momento, o último general-presidente transformações estruturais da foi substituído por um civil na sociedade. Sem tais transformações, o Presidência da República Civil que, leite das criancinhas será algo por sinal, foi um dos políticos mais episódico e muito limitado. eminentes do próprio regime militar. O que temem as classes dominantes Hoje vemos que, após a recessão de com Brizóla na Presidência da 1981 a 1984, em que a economia República é o que viria após. Porque, brasileira submergiu numa fase de depois de um populista, o que poderá índices negativos, passamos à vir? Só poderá ser alguém mais recuperação de 1985-86 e em 1987 radical. Mesmo um populista voltamos a uma nova fase recessiva. atenuadíssimo, como é Brizóla, se O que, sem dúvida, traz uma fracassar na contenção das massas, conotação de dificuldades, de teria que dar lugar a uma composição contradições e de prenúncios críticos. social que levasse o País por um caminho de transformação política e lei pelo general Castelo Branco, o social avançada. Assim, o populismo primeiro dos generais-presidentes da é uma opção descartada para as fase ditatorial. O que vemos, neste classes dominantes. O que elas têm particular, por parte de setores em vista, na situação atual, é o projeto expressivos dos proprietários de terra, de sociedade em que os trabalhadores é o propósito de abolição dos mínimos aceitassem — e aqui entra o consenso — direitos dos trabalhadores rurais. o capitalismo, de tal maneira que eles se considerassem sócios dos O processo eleitoral, como sabemos, empresários. Os empresários terão sua deu origem a uma Constituinte de parte — sob a forma de lucros — como maioria conservadora. Esta empresários e os trabalhadores terão Constituinte tem realizado seus sua parte — sob a forma de salários — trabalhos em meio a uma mobilização como trabalhadores. É o que tem sido dos vários estratos sociais como não chamado de sindicalismo de negócios houve em nenhum caso das outras ou de resultados, em que os constituintes de nossa história. Neste trabalhadores disputam seu quinhão, sentido, recordo que a Constituinte de desde que não se proponham a uma 1946 foi centro dos debates políticos e política de transformação social. Pode os temas discutidos nas comissões e ser a política dos sindicatos no plenário recebiam repercussão na norte-americanos, como pode ser a imprensa. Em poucos casos, todavia, política da social-democracia houve mobilização de entidades européia. populares, mobilização realmente expressiva. Não existia ainda, naquela Do ponto de vista da estrutura época, esta rede, já significativa, de fundiária, da estrutura de propriedade entidades de base, de bairro, sindicais, agrária, o que se vê é que a classe eclesiais, e de várias outras correntes dominante não pretende fazer que se formaram nestes últimos anos absolutamente nenhuma concessão. no País. Empresários urbanos e Hoje, o que há de legislação agrária, proprietários de terras, muitas vezes no governo Sarney, encontra-se atrás os mesmos do ponto de vista das do Estatuto da Terra, aprovado como firmas ou pessoas jurídicas, já não confiam somente nos políticos e nos lanço, porque não pretendo ter a seus Partidos, que eles ajudaram a resposta para ela. Não penso, eleger, e encarregam entidades tampouco, que estejamos diante de corporativas de representá-los no desenlaces inevitáveis, mas diante de plano político. Assim, no caso dos um leque de probabilidades. Creio que proprietários de terras, sobressaem a o que há de mais perspicaz na classe Sociedade Rural Brasileira e a União dominante — seus políticos mais Democrática Ruralista, surgida clarividentes — compreende a exatamente em tempos recentes, com temeridade que seria a reversão para a uma atuação extremamente agressiva, coerção extremada por uma segunda na defesa da intocabilidade de todos vez, neste final do século XX. Porque os privilégios da propriedade rural. a ditadura militar instaurada em 1964 No caso dos empresários propriamente pôde se retirar do proscênio através de urbanos da indústria e dos setores uma transição que não eliminou a comerciais bancários, financeiros etc., tutela militar e que não arranhou a criou-se a União Brasileira dos imagem das Forças Armadas, não lhes Empresários, como sua principal e tirou nenhuma das prerrogativas mais autêntica representante, não só adquiridas, exceto a de se no plano corporativo, mas também no apresentarem como patronos próprio plano político. Se levarmos ostensivos do País. Os políticos mais em conta o início de um ciclo perspicazes da classe dominante recessivo agora, as enormes consideram a reversão uma solução dificuldades do governo Sarney para temerária. Consideram que a solução conter os efeitos do início de mais condizente com seus próprios recessão, como, por exemplo, o interesses seria a de prosseguir no processo inflacionário recrudescente e processo da democracia o agravamento da questão da dívida representativa, com uma Constituição externa, os atritos com os interesses conservadora. Um conservadorismo imperialistas norte-americanos e a que chamarei de moderado, porém que própria falência política e moral, se permitirá certo grau de competição considerarmos todos estes fatores, ideológica entre a classe dominante e estaremos dentro de um quadro em as classes subalternas, nos quadros que possibilidade de um novo golpe democrático-burgueses. militar se torna objeto de conjectura. Não há duvida, fica a indagação de Aí está para confirmá-lo a qual a perspectiva que, no final das revivescência da direita, que volta a contas, prevalecerá. De qualquer se mobilizar e que afrontosamente se forma, a única coisa que posso manifesta, não nos conciliábulos prefigurar, ou desejar que assim seja, secretos, mas nas associações registradas em cartório de entidades é a de que a esquerda, se tiver de velhas e novas com figuras também enfrentar futuros ciclones, futuras velhas e novas. reversões coercitivas, saia deste processo, não enfraquecida como saiu Isso seria uma demonstração da em 1985, consideravelmente incapacidade da classe dominante enfraquecida pela derrota em 1964 e burguesa de governar senão pela pela derrota da luta armada de 1968 a coerção extremada? Da sua 1974. Pelo próprio processo social incapacidade de governar através de dos últimos anos, pelo um regime que permita margem amadurecimento de suas lideranças, consensual ampliada, um regime pelo aprendizado com as derrotas democrático, em que as classes históricas, pois as derrotas servem subalternas também possam competir para ensinar, esta esquerda poderá sair e disputar ideologicamente com a fortalecida, e capaz de iniciar um classe dominante? processo realmente profundo de Esta é uma pergunta que apenas transformação social.
Jacob Gorender é jornalista, historiador autodidata e professor-visitante do