Jacob Gorender

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Coerção e consenso na política

Jacob Gorender

O Pensamento Revolucionário: da conflitantes, tendem a se


burguesia ao proletariado complementar. Desta harmonização
dos interesses individuais deveria
surgir a própria harmonia social.
O pensamento revolucionário burguês,
a partir do século XV até o século E finalmente a Economia Política,
XIX, se desdobra em ampla e criada por esse pensamento
diversificada frente de disciplinas, de revolucionário burguês. Uma teoria
regiões do trabalho intelectual. Na econômica que veio para se afirmar
frente da Filosofia, afirma a primazia contra a velha ordem feudal dos
da Razão diante da Fé, o direito à privilégios, dos monopólios, dos
dúvida metódica, à pesquisa, o regulamentos e das prescrições
afastamento de quaisquer limites de restritivas. Por isto mesmo, proclama,
natureza sobrenatural para a esfera do como a mais natural e conveniente
conhecimento. Na frente do Direito, para os homens, a liberdade da
com o jusnaturalismo, afirma os atividade econômica, a soberania do
direitos naturais do homem, que mercado, a tendência espontânea do
nenhuma instituição social pode mercado de regular os diferentes
retirar. interesses individuais dos vários
produtores. Para a burguesia, que
Na frente da teoria do Estado - que é então afirmava sua supremacia, os
explicada de várias maneiras, mas diversos tipos de coação
unânime na idéia de que não pode extra-econômica já eram dispensáveis.
haver um Estado sobre-humano, de Tanto para ela, como para a classe dos
origem divina — o novo pensamento trabalhadores—os operários que já
burguês declara que o Estado nasce da estavam nas manufaturas e iriam
sociedade, por conseguinte, deve ter entrar nas fábricas com a Revolução
tais ou quais compromissos com a Industrial—bastava a coação
própria sociedade. Este processo meramente econômica. O fato dos
discursivo vai terminar, como se sabe, trabalhadores estarem despossuídos
na teoria do contrato social, de dos meios de produção e de
Rousseau, depois de passar por subsistência os forçaria, pela própria
Locke, Spinoza, Hobbes e outros. É a necessidade, pelo hábito criado com o
afirmação, portanto, de um direito passar das gerações, pela obrigação
igualitário dos cidadãos, em oposição desde a infância, a procurar as
aos diretos dos estamentos e dos fábricas e a considerar natural a
privilégios estamentais. Cria-se o circunstância de viver de um salário.
conceito moderno de cidadão, Salário que seria regulado, no final
separa-se a ordem privada da ordem das contas, pela existência do exército
pública. industrial de reserva, combinado com
a procura e a oferta de mão-de-obra
No terreno da Ética, a burguesia no mercado.
apresenta uma nova teoria das
relações sociais, justamente a ética do Em face disso, o que deveria ser o
indivíduo, que nela tem o seu centro e Estado para a burguesia
soberano. Sob a nova perspectiva, os revolucionária? Um Estado liberal,
interesses individuais, ao invés de apenas com a função de fazer cumprir
as regras do jogo de mercado, porém uma nova teoria econômica do sistema
não intervindo neste. Um Estado que capitalista, em que se demonstra que
puniria aqueles que infringissem as este sistema não pertence à natureza
regras, aqueles que violassem da espécie humana, e, por
justamente esta ordem burguesa, conseqüência, é histórico. O
sinônimo de ordem pública. O Estado capitalismo é um sistema que surge
burguês não teria função econômica em determinado grau de
direta. Não faria como o Estado desenvolvimento das forças
absolutista, promovendo fábricas, produtivas do próprio homem. Por
concedendo monopólios e privilégios. conseguinte é transitório e deve
desembocar — pelo desenvolvimento
Destoa desse pensamento, é claro, o
das contradições internas — na
próprio Hegel. Na sua Filosofia do
substituição por outro sistema, que
Direito, o que ele apresenta é o
seria o sistema socialista.
Estado constitucional, mas não liberal,
uma vez que escrevia como filósofo O pensamento do proletariado se
de um Estado ainda atrasado — apresenta, portanto, em primeiro lugar
naquele momento — sob o aspecto da através da crítica da Economia
revolução burguesa. Política burguesa e de uma teoria
econômica oposta a ela. É a crítica
Estas são as frentes principais do principalmente de Adam Smith e de
pensamento revolucionário burguês. Ricardo, que vai servir de base para o
Talvez eu tenha omitido alguma delas, desenvolvimento das teorias
mas acredito que apresentei as mais econômicas posteriores: Kaustsky,
importantes. Rosa Luxemburg, Lenin, Hilferding,
Em que frentes se desenvolve o Bukharin e os contemporâneos. O
pensamento revolucionário proletário pensamento econômico marxista
no final do século XVIII — quando assumiu, portanto, um lugar central na
emerge a Revolução Francesa — e no elaboração de uma concepção
transcurso do século XIX, chegando revolucionária do proletariado.
aos nossos dias? Apoiados no terreno preparado pelo
idealismo clássico alemão e já atuando
Passada a fase das utopias—que como intelectuais orgânicos dentro do
constróem idealmente sociedades movimento operário, Marx e Engels
coletivistas autogestionárias — e puderam lançar os fundamentos da
entrando na obra dos fundadores do dialética materialista e de uma teoria
socialismo científico, de Marx e geral da sociedade. Concepções
Engels, podemos observar que o necessárias à edificação de um
pensamento do proletariado pensamento revolucionário que se
revolucionário e sua elaboração propunha a ganhar o aval de ciência.
teórica se apresentarão também de
maneira esquemática nos seguintes No entanto, é sintomático que Marx se
terrenos: concentrasse nos trabalhos de
Economia Política e só desenvolvesse
Em primeiro lugar, na crítica da a teoria do materialismo dialético e
Economia Política. Esta é a primeira histórico no corpo das obras
frente, a principal, à qual se dedicará econômicas e historiográficas. Já se
o grande fundador do pensamento disse que O Capital é a Lógica de
revolucionário do proletariado: Marx, Marx. Em parte, e somente em parte,
com a colaboração de Engels. Pela Engels procurou suprir esta lacuna.
própria sistemática da sua concepção
geral do materialismo histórico, que Daí que a segunda frente mais
confere a instância fundamental ao importante no desenvolvimento do
que chamamos de fator econômico, pensamento do proletariado viesse a
Marx considerou que devia atacar ser a teoria da revolução. É que,
primeiramente a Economia Política neste terreno, as indagações vinham
burguesa, que deveria criticá-la. Desta com a imposição da urgência: o que
crítica surge o desvelamento das era a revolução na época das
contradições do capitalismo, surge contradições do capitalismo? Qual a
sua trajetória previsível? Que papel partido revolucionário. Teoria que,
teria nela o proletariado em face das nas suas origens, ficou marcada pelas
outras forças sociais? condições peculiares da luta
revolucionária na Rússia czarista e,
Tais indagações vão constituir tema mais tarde, da construção do
de constante polêmica no movimento socialismo na União Soviética.
comunista até os dias de hoje.
A teoria do Estado se segue em
Desdobrando-se da teoria da ordem de importância no pensamento
revolução, vem a teoria do partido revolucionário do proletariado.
revolucionário. Esta ainda não tem Contudo, não podemos deixar de
lugar elaborado em Marx e Engels. concordar com Norberto Bobbio que
Mas, em seguida, com a II esta é uma frente insuficientemente
Internacional, assume lugar abordada e menos avançada do que as
proeminente. São sobretudo os outras. A tal ponto que, ainda
teóricos russos, com Lenin à frente, segundo Bobbio, não existiria uma
que vão erguer o corpus da teoria do teoria do Estado no universo marxista.
Mas o próprio pensador italiano pública, mas por um prazo
reconhece que se Marx não se dedicou determinado, retirando-se em seguida.
à teoria política com tanto afinco O termo foi adotado na literatura
quanto à teoria econômica, o que nos política, com esta acepção de
legou já é suficiente para lhe dar um transitoriedade, até Marx. Para Marx,
lugar eminente, o lugar de um ditadura de classe será sinônimo de
verdadeiro marco na evolução das dominação de classe, designando uma
idéias políticas. Pois é de Marx a tese situação duradoura.
de que o Estado não é uma instituição
para o bem comum, acima das classes Por que a classe dominante exerce
sociais, conforme idéia generalizada dominação de maneira discricionária,
no pensamento político anterior. Marx como uma ditadura? Porque ela faz o
foi o primeiro a declarar que o Estado que lhe interessa e para isso não há
é o Estado de uma classe particular. limite real na lei. As leis obedecem
Esta ligação orgânica do Estado com aos interesses da classe dominante e
uma determinada classe, com a classe se violam também no interesse da
dominante, é essencial no pensamento classe dominante. Mas a ditadura, por
político marxista, é a contribuição sua vez, pode ser exercida sob
específica mais importante de Marx. O diferentes formas políticas. No caso
fundador do socialismo científico da burguesia, tanto se exerce sob a
inverte a relação de Hegel, de forma de um regime plenamente
Estado-sociedade civil, do Estado discricionário, como através da
criador da sociedade civil, para a república democrática, através de
sociedade civil-Estado. A sociedade governos representativos e que, na
civil, como o reino em que os linguagem usual, seriam
indivíduos realizam suas necessidades aparentemente o oposto da ditadura.
materiais, suas necessidades
econômicas, é que será a criadora do Em virtude de semelhante
Estado, a base do Estado. No entanto, ambigüidade, o termo ditadura dá
Marx, como Engels, assim como origem a numerosas confusões. O fato
Lenin, irão dar ênfase sobretudo ao de, na linguagem mais usual, nós só o
Estado como instrumento de coerção — empregarmos como expressivo de
o Estado é a coerção legítima. Daí governos discricionários, não nos
poder funcionar como regulador dos permite compreender que, na
conflitos sociais entre as várias terminologia de Marx, ele tem sentido
classes, porém como um regulador de discricionário para a dominação
que age de maneira a preservar a burguesa geral, não se restringindo à
ordem existente e o modo de produção forma que esta assume nos governos
em vigência, assim como a formação autoritários. A ditadura de classe pode
social que confere supremacia à classe se apresentar também sob a forma de
dominante. No caso, a classe governos parlamentares
dominante burguesa. representativos e constitucionais,
obedientes à legalidade.
Mesmo liberal, este Estado não se Com relação ao novo Estado
ausenta da vida econômica. Sua socialista, a teoria política foi pouco
ausência é uma ilusão ideológica, pois elaborada, tanto por Marx e Engels,
o Estado liberal intervém na ordem como por Lenin. Salienta-se, aí, a
econômica ainda que evite a gestão idéia da destruição do aparelho do
direta de empresas. Estado burguês, e a sua substituição
por um novo aparelho de Estado. Em
Marx dá novo sentido à palavra seguida a idéia de deperecimento do
ditadura, ao falar em ditadura de Estado, ou seja, da sua extinção
classe. Originalmente, o termo gradual. O que significa, de um lado,
ditadura vem da antiga Roma, a recusa da concepção reformista de
designando um governo que o Estado burguês pudesse
necessariamente provisório, admitido adaptar-se às necessidades da futura
em situações conflitivas, convulsivas, dominação do proletariado. E, por
que deveria pôr ordem na vida outro lado, a recusa do princípio do
anarquismo, segundo o qual o Estado que a ideologia da classe dominante é
deve ser extinto de uma vez de a ideologia dominante. Neste sentido,
maneira imediata, assim que for os teóricos marxistas estudaram as
derrubada a burguesia. Segundo os diversas ideologias da burguesia, com
teóricos marxistas, sendo a revolução algumas incursões no terreno da
um ato autoritário por excelência, o Filosofia. Estudou-se a Religião, até
proletariado, que se apossa do poder, certo ponto a Arte, muitíssimo pouco
não dispensará o Estado como a Ética. Neste ponto, não se pode
instrumento de afirmação desse dizer que há uma teoria da Ética
mesmo poder. O proletariado tem socialista ou algo que mereça este
necessidade do Estado, o qual não nome. Há certas contribuições, mas
pode desaparecer exatamente no não possuem nível teórico à altura do
momento da revolução. Trata-se de que o marxismo elaborou no terreno
um novo tipo de Estado, que da economia, na teoria da revolução e
necessariamente deve atravessar uma na teoria política do partido.
transição: a da extinção gradual.
Talvez pela previsão de que o Estado Tanto Engels como Lenin notaram a
do proletariado fosse necessário, mas submissão ideológica do proletariado
transitório, destinado a se extinguir, é inglês à burguesia inglesa. Mas Lenin,
que não se teorizasse sobre o que em particular, atribuiu isso ao fato de
seria este Estado. o imperialismo inglês ter a
disponibilidade de oferecer migalhas,
Esta seria uma razão de ordem teórica. do que saqueava do seu império, ao
Existem também motivos de ordem proletariado inglês. Subornava,
histórica, pela forma como ocorreram corrompia o proletariado inglês. Mas
as revoluções, primeiro na URSS, o estudo dos processos ideológicos
depois em outros países do Leste que tornavam essa submissão
Europeu, na China, em Cuba etc. consolidada, que davam a ela
Neste ponto, eu dou razão a Norberto estabilidade, um prolongado grau de
Bobbio. O que aconteceu, na duração, isto não foi objeto de estudo
realidade, em todos esses países, é
por parte de nenhum daqueles grandes
que o Estado, ao invés de realizar um
teóricos.
processo de deperecimento, iniciou
um processo de expansão. Porque, ao
contrário do previsto por Marx e É com Gramsci que irão ser estudados
os processos consensuais de direção e
Engels, o Estado assumiu os bens de de dominação. Ele ressaltou a
produção em nome da sociedade. Com complexidade das funções do Estado.
isso, adquiriu um poder que nunca O Estado com sua força legitimada, o
teve antes em nenhuma sociedade Exército, a Polícia, a Administração
burguesa. O Estado se expandiu mais Publica, os Tribunais etc., órgãos
do que se poderia prever. O processo depositários da função de coerção.
de sua extinção não se iniciou ainda Esta é uma face. A outra face é a
em nenhuma sociedade do chamado extensão do Estado, que ele chamou
socialismo real e uma teorização a de Sociedade Civil, num sentido
respeito ainda está por ser feita. diferente de Marx. A Sociedade Civil
seria o âmbito em que se moveriam as
Estado—Coerção e Consenso instituições destinadas a obter o
Vamos deter-nos, agora, na consenso das outras classes sociais
contribuição especial de Antônio que formam com a classe dominante
Gramsci. aquele bloco histórico, que dá
estabilidade à formação social. Aqui
Em Marx, Engels e Lenin, foi dada entram a Igreja, os Partidos Políticos,
ênfase sobretudo à face coercitiva do os Sindicatos, as Escolas, obviamente
Estado, o Estado-coerção. As formas a Universidade, a Imprensa (hoje se
consensuais de dominação de classe incluiriam o rádio e a televisão, com
não mereceram tanto esforço teórico. sua tremenda força de comunicação),
Não que se omitisse o problema da a Alta Cultura, o Senso Comum—a
ideologia. Marx falou dela e declarou chamada sabedoria popular, com os
provérbios, o folclore etc. Este seria o consenso das classes subalternas, na
terreno onde se formariam as medida em que supera a visão
consciências que aceitariam a ordem corporativa, em que não pensa apenas
vigente. Mas, aceitação, aqui, não nos seus interesses imediatos e
signiñca submissão passiva e consegue interpretar os interesses das
resignação ou ilusão de uma ordem outras classes sob o enfoque do seu
ideal. Uma classe subalterna pode domínio, da sua posição de
aceitar determinada ordem social, supremacia. Se a classe dominante
mesmo vendo-a injusta. Porém, ao consegue fazê-lo, obtém o consenso.
considerá-la eterna, impossível de Se ela se restringir a uma visão
mudar, adquire a confiança de que corporativa, a interesses imediatos,
poderá melhorar sua posição, então perde o consenso.
conquistar reformas. Nesse sentido,
ela dá o seu consenso, sua adesão e A burguesia conseguiu o consenso da
apoio à existência dessa ordem social. classe operária e de outras camadas de
E a isto que Gramsci chama de trabalhadores com seu vasto trabalho,
hegemonia de uma classe dirigente. ideológico e multissecular. No
Uma classe é hegemônica, é dirigente, processo de formação de sua
na medida em que consegue obter o hegemonia, ganharam a adesão dos
camponeses e do operariado industrial Consenso e coerção fazem um jogo,
nascente e puderam realizar assim a em que um elemento aumenta à custa
sua tarefa revolucionária. do outro, em certas conjunturas, mas,
em nenhum momento, qualquer dos
É indispensável a função de dois desaparece. Para fundamentar
dominação, a função de coerção, mas esta teorização, Gramsci se apoiou na
a função de direção pode precedê-la. historiografia das revoluções Francesa
Gramsci dizia que uma classe pode ser e Italiana. Duas revoluções, uma
dirigente, antes de ser dominante. muito radical e vinda de baixo, que
Nesse terreno, é que também o foi a Revolução Francesa, e outra,
pensamento de Gramsci se voltou para uma revolução de cima, passiva, que
o papel dos intelectuais e nenhum foi a Revolução Italiana, realizada
outro teórico marxista deu mais por um ato da classe burguesa,
contribuição tão criativa para o estudo através de um Estado italiano, o de
do papel dos intelectuais. Porque são Piemonte, e, por conseguinte, com
os intelectuais, exatamente, os uma iniciativa vinda de cima.
funcionários do consenso. São eles
que trabalham como ideólogos para a Quero acrescentar que dou razão, sob
obtenção do consenso como homens este aspecto, a Perry Anderson. Não a
da Igreja, como dirigentes de tudo o que escreveu sobre Gramsci,
sindicatos, de partidos políticos, como porque conclui que ele foi um
jornalistas, produtores da alta cultura, reformista. Na minha opinião,
produtores de arte, seja a grande arte Gramsci foi um revolucionário. Mas
ou a arte popular etc. creio que Anderson tem razão quando
Mas basta ter o consenso para ter a afirma que o próprio Estado —
dominação? Aqui a divergência é considerado à parte da sociedade civil
muito grande entre os intérpretes de — já é consenso, ou pode prefigurar
Gramsci. A obra de Gramsci, como também o consenso. Nem sempre ele é
todos sabem, foi escrita no cárcere em somente coerção. O Estado
condições muito penosas, obrigando-o representativo parlamentar pode ter
a disfarçar o que escrevia, pois estava caráter consensual. Por seu próprio
sob vigilância constante dos mecanismo, apela para o consenso das
carcereiros. Trata-se de uma obra classes subalternas, porque lhes
escrita durante cerca de dez anos, na oferece um jogo do qual elas podem
forma de anotações, sem nenhuma participar: a periodicidade das
pretensão de publicação. Assim, esta eleições, a liberdade de organização
obra fragmentária tem contradições, de partidos originários das classes
ziguezagues, voltas e reviravoltas. A subalternas, com a possibilidade legal
propósito do assunto, aqui tratado, desses partidos chegarem ao poder,
uma das interpretações é a de que, desde que aceitem as regras do jogo
para Gramsci, a classe que se torna do Estado representativo. Assim, não
dirigente, que obtém o consenso, já só o que Gramsci chamava de
pode se tomar dominante exatamente sociedade civil pode ser consensual,
por isso. Semelhante interpretação também o Estado como tal pode sê-lo.
omite o momento da ruptura, que é o Eu acrescentaria que o consenso,
momento revolucionário. Penso que necessariamente, nem sempre é
Gramsci não via as coisas desta democrático, também pode ser
maneira reformista. Pelo conjunto do despótico. Ou seja, também pode
que escreveu e por certas passagens existir um despotismo consensual.
muito incisivas, sua idéia era a de que Nos dias atuais, o fundamentalismo
o consenso preparava a dominação. A xiita não oferece no Irã um consenso
conquista da hegemonia prepara a ao despotismo do aiatolá Khomeini?
ruptura revolucionária, que é
necessariamente violenta e não A obtenção do consenso nem sempre
dispensa a coerção, quer dizer, a se traduz através de canais ou de
função coercitiva do Estado não pode formas representativas e democráticas,
ser dispensada pelo próprio fato de mas pode ter, em alguns casos,
que facilita a obtenção do consenso. manifestação através de formas
despóticas. O que varia é a correlação de coerção com a contrapartida de um
entre coerção e consenso. máximo ou um mínimo de consenso.
Num Estado parlamentar democrático, Do Populismo ao Golpe Militar
a coerção é predominantemente
latente, manifestando-se Partindo desse universo conceitual,
ostensivamente de maneira tópica, nos vou fazer algumas considerações
casos em que a ordem pública é sobre a nossa História recente,
violentada. Essa coerção se mantém referindo-me primeiramente ao que se
num sentido mais geral, como ameaça, denomina em nossa literatura
uma ameaça legítima, porém, que não sociológica e historiográfica como
deixa de existir, e a área do consenso populismo. Via de regra, este termo
é deixada, por assim dizer, livre: a tem sido entendido como manipulação
imprensa é livre, não há censura, os por parte de uma liderança carismática
partidos se organizam legalmente e de massas recém-urbanizadas, que
competem livremente nas eleições, vieram de áreas rurais ou pequenas
embora em condições desiguais, pois cidades, ainda destituídas de uma
os recursos de uns e outros não são os consciência autônoma no universo das
mesmos. Os sindicatos também são grandes cidades.
livres: fazem-se greves, até certo
ponto admitidas, embora a repressão Os aspectos da manipulação e da
policial, em alguns casos, pratique liderança carismática existem, porém
agressões e até assassinatos a líderes não são o fundamental do fenômeno.
sindicais. A própria vida universitária O essencial — e aqui desejo
recupera a sua autonomia, funciona restringir-me ao caso brasileiro, visto
com um grau de liberdade ser este um fenômeno internacional —
consentâneo com a competição entre é que o populismo foi um processo de
as várias idéias. Aproximadamente, hegemonia consensual da burguesia
esta é a situação atual do Brasil. ascendente, a partir dos anos 30, para
obter a colaboração do nascente
Eu diria que nos Estados fascistas ou proletariado com vistas à construção
nas ditaduras militares sul-americanas, da nação burguesa. Foi exatamente
como a que tivemos no Brasil até uma política do próprio Estado, tendo
poucos anos atrás, a coerção atinge no seu leme o primeiro e o maior dos
um máximo, invadindo a área da populistas — Getúlio Vargas. Getúlio
sociedade civil onde se processa o acreditava que o populismo seria
consenso. Nestes casos, não só a benéfico tanto para os trabalhadores
coerção se torna exposta — intervindo como para a burguesia. Nos anos 30,
em tudo, generalizadamente, sem dá-se início ao processo de transição
recuar diante dos processos mais da liderança da burguesia
Korpes, a exemplo da tortura — como agrário-exportadora — de orientação
invade a área do consenso. Então, a antiindustrializante—para a liderança
Imprensa é censurada, os Partidos, de uma burguesia industrial, que vai
como ocorreu na Argentina, são se afirmar já nos anos 30 e que irá
suprimidos ou só se permitem dois crescer celeremente nos anos 40, até
Partidos, um da situação e outro da adquirir o domínio pleno nos anos 50,
oposição. Foi o que se fez no Brasil. sobretudo no qüinqüênio de Juscelino
Os Sindicatos são controlados de Kubitschek.
Eu diria que nosmaneira rigorosa, as greves proibidas,
Estados fascistas ou Esta burguesia industrial, com seus
as publicações submetidas à censura,
nas ditaduras
o mesmo ocorrendo com o cinema, o políticos e estadistas populistas,
militares conseguiu ganhar o consenso em grau
sul-americanas, como teatro, as diversas formas de
a que tivemos nomanifestação artística. A Universidade elevado dos trabalhadores urbanos
Brasil até poucos anosé mutilada: determinadas correntes de para o projeto de uma nação burguesa
pensamento são impedidas de se
atrás, a coerção atinge independente, através da
um máximo, manifestarem dentro dela etc. industrialização. Assim, o populismo
invadindo a área da está essencialmente associado ao
sociedade civil onde se Assim, temos duas situações típicas projeto da industrialização burguesa
processa o consenso. extremas: um mínimo ou um máximo no Brasil. É o primeiro projeto
político de hegemonia da burguesia visão mais avançada do que os
brasileira. Hoje um projeto próprios industriais, em sua grande
abandonado, mas que serviu durante maioria, com a exceção de homens
três décadas, dos anos 30 até o como Roberto Simonsen e poucos
começo dos anos 60. O populismo outros.
tanto pôde operar no regime A título de referência pessoal, eu me
autoritário do Estado Novo, como no recordo que, ainda jovem, entrando no
regime liberal da Constituição de movimento antifascista, e logo depois
1946, portanto, sob as condições de no movimento comunista, eu tinha
um regime parlamentar representativo. aversão a Getúlio Vargas, que
E o que oferecia o populismo aos personificava o Estado Novo. E me
operários? O paternalismo estatal, nas espantei depois, em 1945, ao notar
suas relações conflitivas com o que Getúlio era popular, que dispunha
patronato. Os operários ganhavam de enorme prestígio entre os
uma legislação, que lhes permitia trabalhadores. O movimento
defender alguns direitos perante os queremista de 1945 mostrava isto e,
tribunais da Justiça do Trabalho. Os depois, a própria eleição espetacular
trabalhadores deixavam de ser do ex-ditador. Quer dizer, o ditador
desamparados, mas, em troca, os odiado era um homem popular. Ele
Sindicatos ficavam atrelados ao não havia sido somente um ditador e
Ministério do Trabalho, e eram exercido apenas a função da coerção,
considerados órgãos de colaboração mas havia exercido também a função
com o poder estatal. Os Sindicatos do consenso. Havia conseguido o
perdiam assim a sua autonomia. Os consenso de grandes massas
operários ganharam outras trabalhadoras, por ele arregimentadas
concessões: salário mínimo, para o Partido Trabalhista Brasileiro,
previdência social, conjuntos que chegou a ser o segundo maior
habitacionais, assistência médica etc. partido brasileiro antes do golpe de
Tudo isso não deixou de facilitar a 1964.
obtenção do consenso dos Getúlio inicia a industrialização nos
trabalhadores, em relação ao Estado, anos 40, com a fundação de grandes
inicialmente à revelia da burguesia empresas estatais. É com ele que
industrial que estava crescendo. Nesse começa o setor estatal da economia
sentido, Getúlio Vargas tinha uma com a indústria de base. São os seus
sucessores que vão levar esta da inflação, da dívida externa, da
industrialização adiante. O segundo dificuldade de importação de bens
governo de Getúlio foi um prólogo do essenciais, do déficit orçamentário
governo de Juscelino. Os grandes etc. Jânio tentou enfrentar tais
objetivos dos planos de metas de problemas com uma renúncia, que, no
Juscelino, como hoje se sabe, já fundo, era uma manobra para obter
haviam sido previamente formulados maiores poderes em detrimento do
por Getúlio, só que eram uma Congresso. Esta manobra fracassou e
formulação precoce, numa época em o poder veio ter às mãos de João
que ainda não estavam maduras as Goulart, discípulo direto de Getúlio e
condições para que o País pudesse o último dos presidentes populistas.
interna e externamente implementar
uma industrialização acelerada. Ainda No governo Goulart, há todo um jogo
não haviam recursos internos atropelado para deter e anular o
suficientes e, do lado de fora, os populismo, jogo no qual o próprio
países capitalistas desenvolvidos — Jango se compromete para dar uma
vindo em primeiro lugar os Estados saída - dentro do modelo recessivo do
Unidos — não tinham a disposição de FMI — à situação de crise cíclica em
fazer pesados investimentos na que entrava a economia brasileira. A
indústria brasileira. Os Estados partir de 1962, a economia começa a
Unidos eram francamente contrários à apresentar índices mais baixos de
industrialização acelerada do Brasil e crescimento. 1963 é um ano em que o
a Europa ainda estava se recuperando produto per capita decresce. A
da n Guerra Mundial. Contudo, o economia entra num período
Brasil já possuía um mercado interno depressivo, que vai se prolongar até o
atraente para o capital dos países da ano de 1967. Ao mesmo tempo em
Europa Ocidental e do Japão. O que a economia se debate em agudas
capital desses países investiu no dificuldades, o populismo já não
Brasil e obrigou o capital americano a constitui uma receita adequada para a
mudar de posição e vir disputar uma classe dominante, porque ela não pode
posição no investimento industrial mais fazer concessões aos
dentro do Brasil. Com isso, o trabalhadores. Já estes, diante da
qüinqüênio Juscelino pôde realizar erosão do seu poder aquisitivo, fazem
aquele salto industrializante que, reivindicações cada vez maiores, ao
induscutivelmente, mudou a qualidade mesmo tempo que ganham experiência
da economia brasileira, e deu e consciência política. Os
supremacia à indústria, já acoplada trabalhadores começam a apresentar
com setores mais modernos - reivindicações que ultrapassam o
condizentes com os seus interesses — universo populista. Assim, o
no comércio e nas finanças. populismo vai sendo superado pela
classe operária e pelos trabalhadores
O governo de Juscelino fez a em geral. Ao mesmo tempo, o
industrialização de tal forma, que populismo já era uma política
legou aos seus sucessores um elenco desvantajosa e inconveniente para a
de problemas cruciais. O Estado classe burguesa. O populismo devia
interveio na industrialização com por isso mesmo ser descartado por uns
inversões maciças, que apelaram para e por outros.
a inflação, para a emissão de
papel-moeda, o que, no fundo, Este é o drama, o dilema do governo
constituiu um imposto forçado, João Goulart, que vai ter um
oneroso principalmente para a desenlace extremamente infeliz,
população mais pobre. Ao mesmo porque ao mesmo tempo em que o
tempo, as inversões de capital governo se debate com esses
estrangeiro sob a forma de problemas, dá-se um impetuoso
empréstimos expandiram a dívida crescimento do movimento pelas
externa. reformas de base. Não aprofundarei
aqui o que significou o movimento
O governo sucessivo de Jânio se viu a pelas reformas de base, hoje
braços com os problemas imperiosos depreciado pelos analistas porque
terminou em derrota e não se Congresso. Tampouco regulamentou
costumam valorizar as derrotas. esta lei, depois de aprovada,
Apesar de que, na História, há impedindo assim que ela entrasse em
derrotas mais fecundas do que certas vigor. Jango só irá regulamentar a lei
vitórias. em janeiro de 1964, mais de um ano
após sua aprovação. Além disso, o
O movimento pelas reformas de base movimento pelas reformas de base
pôs em xeque a classe dominante em reivindicava a encampação de
três pontos fundamentais: refinarias particulares, das
concessionárias estrangeiras de
Em primeiro lugar, questionou o
serviços públicos, porque, naquela
princípio da propriedade privada. O
época, principalmente a eletricidade
movimento incentivou, pela sua
própria dinâmica, um grande número era dominada por duas grandes
de invasões de terras pelos concessionárias estrangeiras, a Light
camponeses despossuídos ou and Power e a Amforp.
despejados de suas terras, em Em terceiro lugar, porque foi posto
conseqüência do desenvolvimento do em xeque o poder coercitivo do
capitalismo no campo. Quem estudar Estado. Surgiram, entrosados com a
aqueles anos, poderá assinalar luta pelas reformas de base, os
centenas de casos de invasões de movimentos dos sargentos das três
terras de Norte a Sul do País. Os Armas e também de algumas Polícias
camponeses entraram impetuosamente Militares estaduais que acintosamente
no movimento social com as ligas desrespeitavam os regulamentos
camponesas e, logo em seguida, com disciplinares. Seus representantes
os Sindicatos Rurais, que se falavam em público nas assembléias
disseminaram por todo o País. Daí se de estudantes, nos Sindicatos e
originou a luta pela reforma adotavam os pontos de vista
constitucional, de maneira que se nacionalistas e democrático-radicais.
tornasse viável a desapropriação de E mais o movimento dos marinheiros
terras para a realização da reforma e fuzileiros navais, que fundaram uma
agrária. É o intocável princípio da associação considerada ilegal pelo
propriedade privada da terra que é Ministério da Marinha. Marujos e
posto em xeque. fuzileiros navais também
apresentavam reivindicações de
Em segundo lugar, o domínio das caráter profissional e de caráter
multinacionais, o domínio do político. Esta indisciplina, inusitada
imperialismo. Neste particular, o fato durante dois anos ou mais,
que considero mais significativo é a aprofundou-se dentro das Forças
aprovação pelo Congresso da lei de Armadas e abalou o poder coercitivo
remessa de lucros em 1962. Foi uma máximo do próprio Estado. Além da
lei que restringiu em 10% a remessa atuação, que não se pode deixar de
anual de lucros pelo capital mencionar, da oficialidade
estrangeiro, considerando capital nacionalista, incluindo almirantes e
estrangeiro somente aquele que generais, ostensivamente ao lado do
efetivamente entrou no País. O capital movimento pelas reformas de base.
estrangeiro reinvestido, originário de
Isto, é claro, provocou uma reação
lucros obtidos dentro do País, não
autopreservadora nas Forças Armadas,
contaria para as remessas de lucros e
porque, como instituição total, elas
para os dividendos. Isto seria limitar
tendem à autopreservação, baseada
drasticamente a remessa de lucros.
nos princípios da disciplina rígida e
Não conheço nenhum país capitalista
da hierarquia, da subordinação
em que uma lei tão radical houvesse
incondicional dos graus mais baixos
sido aprovada. João Goulart, por isto
aos graus mais altos dentro da escala
mesmo — porque estava no jogo de
profissional.
adaptação com seus adversários, em
que ele próprio procurava frear o Nessas condições, não é preciso dizer
populismo —, não sancionou a lei, que o golpe militar de 1964 foi
deixando que ela o fosse pelo vitorioso, pois todos já sabem. O que
é importante assinalar aqui é a como Castelo Branco, que se
mudança de orientação política precisasse de uma ditadura de longa
fundamental, então ocorrida. O duração. Mas o que aconteceu foi
significado da ditadura militar, exatamente isso. Não fomos com ela
iniciada após o golpe, foi a eliminação até o ano 2000, como pretendeu prof.
definitiva do populismo consensual e Alfredo Buzaid. Não tivemos uma
o realce do elemento de força, de ditadura militar com duração tão
coerção do Estado. A coerção prolongada mas, assim mesmo, durou
exacerbou-se e chegou a um ponto 21 anos. Para isso, ela recebeu toda
extremo, ficando o consenso como um uma doutrinação, da qual a matriz
resíduo. No processo de avanço da principal veio na doutrina da
ditadura, da vitória golpista de 1964 Segurança Nacional elaborada na
até o AI-5 de 1969, a Imprensa foi Escola Superior de Guerra. Esta
submetida à Censura, os jornais doutrina forneceu o simulacro de
oposicionistas foram calados ou legitimação para a sua vigência. A
deixaram de circular. A Universidade ditadura militar não foi, no entanto,
foi invadida, mutilada, aleijada, regressiva, e sim modernizadora,
numerosos professores foram como havia sido o Estado Novo. Ela
compulsoriamente aposentados e seguiu aquilo que se chamou de
coagidos a saírem do País. Artistas modernização conservadora, termo
foram coibidos e também obrigados a cunhado por Barrington Moore. De
saírem do País. Cerca de dez mil um lado, o arrocho salarial, como
funcionários públicos civis e militares pedra de toque da política econômica,
foram alijados por processos junto a toda uma série de outras
administrativos, IPMs ou suspensão medidas, com a correção monetária,
de direitos políticos. Parlamentares que ensejou o nascimento do mercado
eleitos pelo voto popular também de capitais, bem como novas fontes de
sofreram este processo de expurgo. financiamento estatal, permitindo ao
Governadores perderam os mandatos Estado voltar a ser um grande
nos seus estados. Enfim, dá-se a investidor. Por outro lado, a reversão
coerção discricionária, sem limites, do ciclo econômico, com os anos do
pois, desde 1964, inicia-se a prática chamado "milagre brasileiro", como o
do terrorismo de Estado, com as apelidou a Imprensa internacional.
prisões arbitrárias e torturas. Assim,
se estabelece no País uma ditadura Estes cinco ou seis anos de "milagre
militar sem que isto fosse previsto por brasileiro", de altíssimas taxas de
muitos dos protagonistas do golpe. crescimento econômico, constituíram
Porque, não é correto dizer, que todos uma característica específica da
os participantes ou os principais ditadura militar brasileira na América
participantes do golpe militar do Sul. Foi uma fase de alta
quisessem desde o início uma ditadura conjuntural, que não ocorreu na
militar duradoura. Alguns deles nem Argentina, nem no Chile e no
pensaram nisso, e concordoram Uruguai. Não quero me referir ao
inicialmente que as Forças Armadas Paraguai, porque ali há uma ditadura
assumissem o poder, mas pensavam tradicional e não, por assim dizer,
num poder ditatorial no seu exato eventual.
sentido filológico, ou seja, de breve
duração. Imaginavam que, depois de Este "milagre econômico" tirou toda
feita a limpeza do terreno, as Forças ou quase toda a base social da
Armadas revertessem o poder aos esquerda armada daquela época. A
O significado da civis, com a realização de eleições vitória do golpe militar de 64 não
ditadura militar, presidenciais. Assim pensavam, pelo encontrou resistência, porque o
iniciada após o golpe, presidente João Goulart evitou a luta e
foi a eliminação menos, Carlos Lacerda, Adhemar de
definitiva do Barros e Magalhães Pinto, capitulou, por temer que a ela se
populismo consensual protagonistas do golpe. Mas radicalizasse e ele perdesse o
e o realce do elemento aconteceu algo diferente. Mesmo controle, o que poderia colocar a
de força, de coerção do dentro das Forças Armadas não era ordem burguesa em situação precária.
Estado. intenção, ao menos de um estadista Uma vez que as esquerdas confiaram
na liderança de João Goulart, o que O que é que podemos sentir das
houve foi inação. reações das diversas classes sociais
neste momento, dentro da temática
As esquerdas, em sua grande parte,
que aqui procurei desenvolver?
entenderam que deveriam reagir com a
ditadura já consolidada, com as Da parte da classe dominante
Forças Armadas expurgadas de seus burguesa, é incontestável que ela não
elementos rebeldes. Sem o movimento pretende, de forma alguma, voltar a
dos sargentos, dos marinheiros, dos qualquer tipo de política populista; o
generais e oficiais nacionalistas, e populismo pertence ao passado. Tanto
com a coerção já estabelecida no seu assim, que o último dos populistas,
grau máximo. Leonel Brizola, é um homem
malsinado, que deve ser isolado e
Em tais circunstâncias, a tese da
mantido numa espécie de gueto
violência revolucionária
político, com um pequeno partido,
incondicionada, da violência
sem possibilidade de atingir aquele
não-submetida às determinações
objetivo em que teimosamente se fixa,
históricas, ganhou grande parte da
que é chegar à Presidência da
consciência das esquerdas, fazendo
República. Por quê? Será que Leonel
com que mergulhassem na luta
Brizola por si mesmo seria um
armada. Primeiramente na guerrilha
inimigo? Nem tanto, penso eu, porque
urbana, depois na rural e em
se examinarmos hoje o discurso de
condições tão desfavoráveis que
Brizóla, vamos notar dilatadas
dificilmente seria admissível e viável
uma vitória. mudanças com relação ao seu discurso
pré-64. Naquela época, Brizola foi um
É claro, dizemos isto depois que tudo homem que desapropriou — quando
ocorreu, já fazendo parte da História. governador do Rio Grande do Sul —
Quem entrou na luta pensava na duas companhias concessionárias de
vitória e tinha confiança nela, serviços públicos norte-americanos, a
teorizava sobre a grande possibilidade ITT e a subsidiária da Amforp. O que
dessa vitória e empenhou a vida para levou a uma reação drástica do
que ela se concretizasse. Mas hoje nos Congresso norte-americano. A linha
cabe examinar as coisas com uma de comunicação de Brizola com o seu
visão crítica que procura as raízes público era radical, era uma pregação
daqueles fatos, sucedidos dentro de antiimperialista e antilatifundiária
determinado contexto político, radical. E hoje, o que prega Leonel
econômico e ideológico. Brizola? Ele prega um programa cujo
primeiro item é o leite das
Perspectivas Presentes criancinhas, ou seja, a construção de
Devo dizer, agora, alguma coisa do CIEPEs para tirar as crianças das ruas
que está se passando atualmente. e lhes dar alimentação durante o dia
Assim, passarei por cima de toda a inteiro, educação etc. Trata-se de um
fase do regime militar, porque não objetivo que não podemos reprovar,
estarei informando nada de novo porém não deve ser isolado de
sobre o fato de que, em certo objetivos que têm em vista
momento, o último general-presidente transformações estruturais da
foi substituído por um civil na sociedade. Sem tais transformações, o
Presidência da República Civil que, leite das criancinhas será algo
por sinal, foi um dos políticos mais episódico e muito limitado.
eminentes do próprio regime militar. O que temem as classes dominantes
Hoje vemos que, após a recessão de com Brizóla na Presidência da
1981 a 1984, em que a economia República é o que viria após. Porque,
brasileira submergiu numa fase de depois de um populista, o que poderá
índices negativos, passamos à vir? Só poderá ser alguém mais
recuperação de 1985-86 e em 1987 radical. Mesmo um populista
voltamos a uma nova fase recessiva. atenuadíssimo, como é Brizóla, se
O que, sem dúvida, traz uma fracassar na contenção das massas,
conotação de dificuldades, de teria que dar lugar a uma composição
contradições e de prenúncios críticos. social que levasse o País por um
caminho de transformação política e lei pelo general Castelo Branco, o
social avançada. Assim, o populismo primeiro dos generais-presidentes da
é uma opção descartada para as fase ditatorial. O que vemos, neste
classes dominantes. O que elas têm particular, por parte de setores
em vista, na situação atual, é o projeto expressivos dos proprietários de terra,
de sociedade em que os trabalhadores é o propósito de abolição dos mínimos
aceitassem — e aqui entra o consenso — direitos dos trabalhadores rurais.
o capitalismo, de tal maneira que eles
se considerassem sócios dos O processo eleitoral, como sabemos,
empresários. Os empresários terão sua deu origem a uma Constituinte de
parte — sob a forma de lucros — como maioria conservadora. Esta
empresários e os trabalhadores terão Constituinte tem realizado seus
sua parte — sob a forma de salários — trabalhos em meio a uma mobilização
como trabalhadores. É o que tem sido dos vários estratos sociais como não
chamado de sindicalismo de negócios houve em nenhum caso das outras
ou de resultados, em que os constituintes de nossa história. Neste
trabalhadores disputam seu quinhão, sentido, recordo que a Constituinte de
desde que não se proponham a uma 1946 foi centro dos debates políticos e
política de transformação social. Pode os temas discutidos nas comissões e
ser a política dos sindicatos no plenário recebiam repercussão na
norte-americanos, como pode ser a imprensa. Em poucos casos, todavia,
política da social-democracia houve mobilização de entidades
européia. populares, mobilização realmente
expressiva. Não existia ainda, naquela
Do ponto de vista da estrutura época, esta rede, já significativa, de
fundiária, da estrutura de propriedade entidades de base, de bairro, sindicais,
agrária, o que se vê é que a classe eclesiais, e de várias outras correntes
dominante não pretende fazer que se formaram nestes últimos anos
absolutamente nenhuma concessão. no País. Empresários urbanos e
Hoje, o que há de legislação agrária, proprietários de terras, muitas vezes
no governo Sarney, encontra-se atrás os mesmos do ponto de vista das
do Estatuto da Terra, aprovado como firmas ou pessoas jurídicas, já não
confiam somente nos políticos e nos lanço, porque não pretendo ter a
seus Partidos, que eles ajudaram a resposta para ela. Não penso,
eleger, e encarregam entidades tampouco, que estejamos diante de
corporativas de representá-los no desenlaces inevitáveis, mas diante de
plano político. Assim, no caso dos um leque de probabilidades. Creio que
proprietários de terras, sobressaem a o que há de mais perspicaz na classe
Sociedade Rural Brasileira e a União dominante — seus políticos mais
Democrática Ruralista, surgida clarividentes — compreende a
exatamente em tempos recentes, com temeridade que seria a reversão para a
uma atuação extremamente agressiva, coerção extremada por uma segunda
na defesa da intocabilidade de todos vez, neste final do século XX. Porque
os privilégios da propriedade rural. a ditadura militar instaurada em 1964
No caso dos empresários propriamente pôde se retirar do proscênio através de
urbanos da indústria e dos setores uma transição que não eliminou a
comerciais bancários, financeiros etc., tutela militar e que não arranhou a
criou-se a União Brasileira dos imagem das Forças Armadas, não lhes
Empresários, como sua principal e tirou nenhuma das prerrogativas
mais autêntica representante, não só adquiridas, exceto a de se
no plano corporativo, mas também no apresentarem como patronos
próprio plano político. Se levarmos ostensivos do País. Os políticos mais
em conta o início de um ciclo perspicazes da classe dominante
recessivo agora, as enormes consideram a reversão uma solução
dificuldades do governo Sarney para temerária. Consideram que a solução
conter os efeitos do início de mais condizente com seus próprios
recessão, como, por exemplo, o interesses seria a de prosseguir no
processo inflacionário recrudescente e processo da democracia
o agravamento da questão da dívida representativa, com uma Constituição
externa, os atritos com os interesses conservadora. Um conservadorismo
imperialistas norte-americanos e a que chamarei de moderado, porém que
própria falência política e moral, se permitirá certo grau de competição
considerarmos todos estes fatores, ideológica entre a classe dominante e
estaremos dentro de um quadro em as classes subalternas, nos quadros
que possibilidade de um novo golpe democrático-burgueses.
militar se torna objeto de conjectura.
Não há duvida, fica a indagação de
Aí está para confirmá-lo a
qual a perspectiva que, no final das
revivescência da direita, que volta a
contas, prevalecerá. De qualquer
se mobilizar e que afrontosamente se
forma, a única coisa que posso
manifesta, não nos conciliábulos
prefigurar, ou desejar que assim seja,
secretos, mas nas associações
registradas em cartório de entidades é a de que a esquerda, se tiver de
velhas e novas com figuras também enfrentar futuros ciclones, futuras
velhas e novas. reversões coercitivas, saia deste
processo, não enfraquecida como saiu
Isso seria uma demonstração da em 1985, consideravelmente
incapacidade da classe dominante enfraquecida pela derrota em 1964 e
burguesa de governar senão pela pela derrota da luta armada de 1968 a
coerção extremada? Da sua 1974. Pelo próprio processo social
incapacidade de governar através de dos últimos anos, pelo
um regime que permita margem amadurecimento de suas lideranças,
consensual ampliada, um regime pelo aprendizado com as derrotas
democrático, em que as classes históricas, pois as derrotas servem
subalternas também possam competir para ensinar, esta esquerda poderá sair
e disputar ideologicamente com a fortalecida, e capaz de iniciar um
classe dominante? processo realmente profundo de
Esta é uma pergunta que apenas transformação social.

Jacob Gorender é jornalista, historiador autodidata e professor-visitante do


IEA em 1989.

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