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burocracia – Do baú
do Boal
28/10/2016
HOMENAGEM À BUROCRACIA
ELA – Olha aquele menino andando de bicicleta – ele parece tão feliz e contente, vestido de azul.
ELE – E a menina brincando de boneca. Que gracinha, toda vestida de cor de rosa.
ELA – E aquele vovôzinho, lendo jornal com lupa e binóculo. ELE – Que bonito…
ELE – Mas aquele bebê está pisando, amassando a grama… É proibido, mas ele não sabe.
ELE – É a mesma coisa. A lei proíbe pisar pra proteger a grama, entendeu? O bebê está fora da lei.
ELE – Eu sou estudante de Direito e sei muito bem que nenhum cidadão pode alegar ignorância da
lei. O bebê existe, logo é um cidadão. Como tal, tem que se comportar como qualquer cidadão. O
que o bebê está fazendo é uma transgressão á lei. Desobediência civil.
ELE – Vamos continuar olhando as coisas bonitas que acontecem aqui neste parque.
ELE – Pitbull.
ELE – É feroz.
ELA – Mata?
ELE – Estraçalha.
ELA – Olha: ele também está pisando na grama. Isso também é desobediência civil!
ELE – Viu? O bebê deu o mau exemplo, agora todo mundo pensa que tem o direito de pisar na
grama.
ELA – Toma esse pau. (Dá-lhe um pedaço de pau que estava no chão). Dá na cabeça do cachorro.
ELE – Mas é proibido pisar na grama. É proibido matar cachorro, mesmo sem focinheira.
ELA – Vai.
ELE – Eu vou!
ELA – Vai!
ELA – Depressa! (Começa a andar devagar na direção de onde se supõe que esteja o bebê e o pitbull. Ouve-se
um apito. Aparece um guarda).
GUARDA – É proibido.
Ele – Qual?
ELE – Então, pede licença à Secretaria de Gramas e Flores Exóticas. Onde ela fica?
GUARDA – Mas eu tenho primeiro que salvar a minha pele. Se eu autorizo uma ilegalidade, quem
paga depois sou eu!
ELA – O cachorro já comeu o pé do menino e está mordendo a perna: vai correndo buscar a
autorização.
FUNCIONÁRIA – Aqui mesmo. Mas agora é hora do almoço e eu estou ainda no aperitivo.
ELE – Pelo amor de Deus: eu preciso de uma Autorização Especial para Pisar na Grama.
ELE – É um bebê que está sendo comido por um cachorro no parque, e o cachorro não tem
focinheira.
FUN – Então o senhor tem que ir primeiro à Secretaria de Animais Sem Focinheira. Não é aqui,
não.
FUNC – Procure me entender: quem está fora da lei, em primeiro lugar, é o cachorro, não é o
senhor. Por isso, temos que abrir um processo contra o cachorro, porque assim manda a
burocracia, e, se ficar provado que o cachorro tem dono, o dono também vai ser arrolado como
testemunha.
ELE – Mas, pelo amor de Deus, me dê algum documento pra eu mostrar pro guarda.
FUN – Olha aqui: como eu tenho muito boa vontade, mas não posso me comprometer, – eu estou
cumprindo com a minha obrigação, entende?, porque se não quem paga depois sou eu – eu vou
lhe dar uma Petição, provisória, autorizando o senhor a pisar na grama, desde que o senhor se
ofereça como garantia de que o cachorro, se não ficar provada a sua inocência, será obrigado a
devolver todos os pedaços da perna do bebê já mastigados.
ELE – Prometo e me comprometo, juro e re-juro, mas me dê aqui essa Autorização provisória.
Ele – (Quase chorando) – É o menino vestido de azul… ele não gosta de cachorro…
ELE – Do cachorro?
FUNC – Leve assim mesmo, pode ser que o Guarda tenha piedade do senhor. Tome. Leve. (Ele sai
correndo)
ELA – Deu uns gritos horríveis, você nem imagina, grito de gente grande.
GUARDA – Ah, agora eu me lembro: o senhor está falando daquele menino que vocês estavam
querendo salvar do cachorro?
ELA – Mas agora nós já temos todos os papéis em ordem pra pisar na grama.
GUARDA – Pode jogar no lixo porque não serve mais pra nada. O Pitbull comeu o menino inteiro.
GUARDA – Pra dizer a verdade, inteiro não: deixou só alguns ossos. Comigo ficou esse osso aqui,
mas eu não sei o que fazer com esse osso. (MOSTRA UM FÊMUR). Se quiserem, podem levar como
recordação.
ELA – Obrigada.
ELA – Não rasgo, não: eu vou guardar pra qualquer ocasião. Quem sabe, no domingo que vem,
um lobo vem aqui pra comer o senhor em cima da grama, e eu vou salvá-lo.
GUARDA – Obrigado.
ELE – O senhor é um ótimo guardião da lei. Guarde a lei, guarde pro senhor! Boa noite!
II
FUNCIONÁRIO – Pois é: isso que o senhor está contando é muito interessante, muito ilustrativo,
muito teatro, mas aqui na prestação de contas está escrito que vocês compraram passagens mais
caras pela manhã quando, no mesmo dia, havia passagens mais baratas de tarde. Por que é que
vocês não compraram das mais baratas?
CTO – Porque o nosso trabalho começava de manhã.
CTO – Nós trabalhamos com funcionários do Estado, eles têm horários que nós temos que
respeitar.
FUNCIONÁRIO – E tenho que ler o que está escrito, porque o TCU vai ler o que está aqui, não vai
ler o espírito.
FUN – Importantíssimo!
CTO – Em todas as prisões onde nós trabalhamos as relações entre os funcionários e o presos
melhorou, diminuiu a violência, todo mundo está contente, quer que o nosso trabalho continue…
FUN – Mas vocês compraram as passagens de manhã que eram mais caras…
CTO – Nós compramos as passagens mais baratas que estavam à venda de tarde…
FUN – E tem outro problema: três pessoas que trabalharam nesse projeto assinaram a Ata de
Fundação do Centro.
CTO – Porque acreditam no Teatro do Oprimido e queriam criar um Centro que fizesse o trabalho
que estamos fazendo.
CTO – São as únicas pessoas no mundo inteiro que podem realizar esse trabalho.