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02 · 4ª Feira · 16 de Março de 2011

Entrevista
Eduardo Sá Em vésperas do Dia do Pai, que se celebra já no próximo sábado, o psicólogo e psicanalista faz o retrato do que é ser pai no século XXI. Sem
medo das palavras, ou não estivesse seguro das suas convicções, põe em causa as ideias feitas e é feroz na defesa dos direitos das crianças. Direitos que,
defende, não podem ser atropelados por «incumprimentos» de pais ou de mães ou por decisões judiciais abusivamente utilizadas como maus-tratos.

A primeira função
de um pai é ser mãe
ISABEL STILWELL
que já morreram... deixando
as madrastas em seu lugar.
te ou porque iam abandonan-
do, em vida, engolidos por
O mundo sempre jogou à
italiana: as mulheres foram
Eporque é quea história de amor
é sempre entre o pai e a filha?
guma vez foi, em toda a Histó-
ria. Mudámos mais nos últimos
editorial@destak.pt
As madrastas, depois das so- todos os compromissos que dando o meio campo ao pai e, Porque, muitas vezes, há uma 40 anos do que em todos os
Nas histórias tradicionais gras, foram tendo um papel de não sabiam gerir, ou falar de regra geral, iam ganhando os filha, na vida do pai, que tempos até aqui. E, acredite,
o papel do pai é pratica- extrema utilidade pública. E se ‘maus da fita’, as histórias sem- campeonatos em contra-ata- parece ser a única mulher com mais pai é melhor família.
mente inexistente, porquê? fossem maldispostas melhor pre apostaram na coluna do se- que. Para cúmulo, os homens quem ele se consegue enten-
Porque o mundo sempre foi seria. Porque é à custa delas gundo. Protegia, por um lado, foram ensinados a não chorar der. Ao contrário do filho, a Costuma dizer que todos os pais
matriarcal. E os homens, que a cotação das nossas mães a consciência da dor. E sempre e a supor que aguentar os quem o pai exige que seja um devem ser mães, o que é que
repartidos pela necessidade de é, invariavelmente, revista em funcionava como uma espécie sentimentos seria um sinal de up grade de si próprio, sem quer dizer com isso?
garantirem meios de subsistên- alta. Mas as histórias falam, de desculpa quando se tratava virilidade. Por isso mesmo ho- grande margem para errar. É verdade que costumo dizer
cia e pelas suas omissões de sobretudo, do lado abandónico de arranjar um ‘mata-borrão’ je, quando se trata de dizerem E porque, feitas as contas, nas que a primeira função de uma
pais, sempre se resignaram a dos pais, que foi aquilo que me- para todos os males. ‘Amo-te Teresa!’, a Teresa nun- histórias – à excepção de O Rei pessoa é ser mãe. No sentido
um papel muito secundário na lhor os terá caracterizado, con- ca entende. Sofrem de ilitera- Leão – o pai faz de compére. de ouvir com o coração e de
vida das crianças. Eram úteis tra a vontade de todos, ao lon- O pai, por exemplo na Branca cia emocional. Sentem mas fin- Nunca de primeira figura. traduzir em gestos de ternura
para levar as bilhas do gás até go da História. Daí que entre de Neve ou na Cinderela, adora tam as palavras. E o resultado aquilo que se sente. Um ho-
ao terceiro andar. Eram reco- falar de pais abandonantes, a filha, mas é enganado pela no- é que, embora tenham coração A vida real parece, até agora, mem que não sabe ser mãe não
mendáveis para matar insec- porque morriam precocemen- va mulher, que consegue sempre e lágrimas, são... uns meninos. aproximar-se muito das histórias é um homem: é um medricas.
tos repelentes. E para expulsar dar-lhe a volta. Os homens são tradicionais. Será que jáestamos
vendedores de enciclopédias assim tão manipuláveis? a mudar?
intrometidos. Por isso, nas Os homens são, regra geral, ex- A diminuição da mortalidade
histórias, a ideia de um pai, « A ideia de um pai celentes pessoas. Mas levam a «O mundo sempre perinatal, os contraceptivos (e «A primeira função
atento ou brincalhão, não exis- atento e brincalhão vida toda a fazer de filhos mais jogou à italiana: as a consequente diminuição da de uma pessoa é ser
tia. Ou acha que, se existisse, a velhos das mulheres e, como os taxa de natalidade), a escolari-
Carochinha ia para a janela não existia, ou acha slogans na política, depois de mães davam o meio zação e o trabalho da mulher, mãe, no sentido de
fazer figuras tristes? que se existisse a Ca- se repetir, muitas vezes, que campo ao pai e, regra trouxeram, no século XX, dife- ouvir com o coração
mal se ajeitam a estrelar um renças profundas à família. E,
As mães também parecem ser
rochina fazia aquelas ovo, quando se trata de mudar
geral, ganhavam em sobretudo, ao papel do pai. Que
e traduzir em gestos
sempre mulheres doentes ou figuras tristes?» uma fralda é o que se sabe. contra-ataque» hoje é mais paritário do que al- aquilo que sente»

Quando o pai é transformado em ‘visita’


As estatísticas de divórcio dade de género que um Tribu- Que efeito tem este distancia- O número de incumprimen- Devia tomá-las como maltra- As escolas não deviam tomar
indicam que o poder parental nal e um Estado de Direito mento forçado na vida mental tos dos acordos feitos em tantes, retirando todas as partido do pai ou da mãe?
é em 90% dos casos entregue jamais deviam permitir. E se dos filhos? tribunal é enorme. Como ilações que deve retirar para Em que é que podem mudar
à mãe. Como é que um pai que permitem, então é porque as Primeiro, transforma uma acha que os tribunais o respectivo exercício da res- os seus procedimentos?
era próximo do seu filho se mulheres e os homens que o decisão judicial num maltrato, deviam lidar com pais ponsabilidade parental. Não As escolas estão obrigadas
sente quando o transformam toleram (e os tribunais que o em que todos são coniventes. que não pagam a pensão, esquecendo que somos pais a reconhecer que a figura
em ‘visita’? promovem) são, realmente, E, depois, há medida que o ou não visitam os filhos? violentos sempre que promo- de encarregado de educação
O direito de visitas como regra rascas. Porque se demitem até direito de visitas se perpetua, Privando-os, liminarmente, vemos, com intencionalidade é um resquício de Estado Novo
judicial, quando se trata de con- do direito à indignação. Quando converte um maltrato num dos seus direitos. Quem não e sem reparação, o sofri- na parentalidade. É como se
figurar as responsabilidades assim é, um pai, que era pró- dano, em que todos são reconhece responsabilidades mento de um filho. legitimasse o poder paternal
parentais do pai, sem que tenha ximo de um filho, sente-se cúmplices. Escuso, portanto, limita-se para os seus direitos. de um dos pais à margem de
cometido qualquer ilícito com- como intruso na sua vida. E de reafirmar que um distancia- Um dos direitos que os pais tudo o que diz a lei. Ora, com
paginável com o que a lei confi- uma mãe, que tolera e se apro- mento desses não é nem acto Como deviam lidar com separados dos filhos pedem as novas tecnologias, informar
gura como negligência ou como veita de uma injustiça como de parentalidade nem de jus- as mães que complicam é que as escolas os informem por e-mail ambos os pais, seja
maltrato de um filho, repre- essa, passa a ser, todos os dias tiça. É uma vergonha com a e impedem a presença das notas e das actividades acerca do que for, não me
senta uma limitação por identi- em que o permite, menos mãe. qual jamais devemos pactuar. do pai na vida dos filhos? e dias de festas da escola. parece nada de mais.
4ª Feira · 16 de Março de 2011 · 03
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Nome Eduardo Sá Nasceu Leiria, 1962 Pai de quatro filhos, «que o educaram e corrigiram de algu-
mas ‘tolices’ que aprendeu na universidade» Profissão Psicólogo clínico, psicanalista e professor
de Psicologia Clínica na Universidade de Coimbra e no ISPA Rádio Pode ouvi-lo diariamente em ‘Os
Dias do Avesso’, na Antena 1 Livros ‘Sindicato da Bondade’ é a mais recente de quase 20 obras

O lugar dos pais-padrastos


Os pais que são padrastos, Há padrastos que foram pais Ainda acreditamos que
com um pai biológico ainda de facto da criança que veio se não há pai biológico
vivo e presente, podem, no ‘pacote’, mas que após então é melhor uma
apesar disso, ambicionar ser um divórcio não têm sobre instituição?
pais ou serão sempre ‘tios’? aquela criança nenhum Há centenas de
Devem ambicionar ser pais. direito. Tentar esquecê-la crianças que só
Também. É claro que começam ou manter o contacto? não são adoptadas
por ser padrastos, não há outra Têm de manter o contacto. porque, às vezes,
forma. Sempre que merecem, Inequivocamente. E devem quem decide é
passam a ser ‘tios’. E se traba- ver esse direito salvaguardado. cobarde e não pensa
lharem muito para isso, tor- Que não é só um direito seu. nessas crianças como
nam-se um bocadinho pais. É um direito da criança. pensa nos seus filhos.

E isso jamais é aquilo que se de irmão mais novo. Porque Hoje, muitos pais recusam o
deve esperar de um pai. muitos homens se sentem tra- modelo de autoritarismo dos
ídos por uma gravidez para a seus pais – correm o risco de não
É importante para a futura qual se consideram empurra- exercer autoridade e acabarem
relação da criança com o pai que dos com alguma má-fé. Por- escravos de uns tiranos, que eles
ele esteja nas consultas durante que muitos homens acham próprios criaram?
a gravidez, veja as ecografias, que um filho consegue ser A autoridade é um exercício
assista ao parto? muito do que o pai desistiu de de bondade. Legitima-se com
Não, não é importante. É abso- ser, sem dar por isso. E isso bons exemplos.O autoritarismo
lutamente indispensável. Por- acirra a raiva. Em relação a é um exercício discricionário.
que também precisa de estar todos eles era importante que Consolida-secom maus exemp-
grávido e de se comover com a nunca nos esquecêssemos de los, com intimidação e com bo-
gravidez. E não é só por causa que os mal-entendidos se re- as intenções. Se hoje há pais que
do bebé. Mas por tudo aquilo solvem guardando para on- confundem autoridade e auto-
que compartilhar uma gravi- tem tudo aquilo que se pode ritarismo é porque ainda estarão
dez traz de amor ao pai e à mãe. dizer hoje. presos às suas experiências in-
fantis dolorosas onde os seus
Há pouco tempo em Portugal, o pais e os seus professores (por
obstetra Michel Odent disse que falta de legitimidade para exer-
o pai não deve estar na sala de cerem, com sensatez e com fir-
partos, porque perturba a ima- «A autoridade é um meza, a autoridade) confundi-
gem que tem da mulher, porque exercício de bondade. ram disciplinacom lei, autorida-
a sala de partos é um espaço de de com autoritarismo.
mulheres. Concorda? Legitima-se com
Não. De todo. Michel Odent bons exemplos, e Os pais ausentes – por vontade
será um belíssimo tecnocrata própria ou por imposição da mãe
da obstetrícia. Mas não é,
não se confunde – dão origem a ‘filhos da mãe’?
seguramente, um bom clínico com autoritarismo» Com que consequências para a
e um homem sensato. criança?
Trágicas. Porque alteridade e
Acha que os bebés muito peque- Tradicionalmente o pai era aque- coerência de cuidados permi-
ninos são sobretudo território lede quem se dizia«quando o teu tem partilhar gestos e respon-
das mães? pai chegar». O que é que aconte- sabilidades, parentalidade e vi-
Acho que os filhos são um ce às famílias em que este é omo- da própria, cuidados perso-
território fantástico para o con- delo vigente? nalizados e contraditório
traditório dos pais. Para tudo A autoridade conquista-se educativo.
aquilo que lhes traz sensatez, pela bondade, pela sabedoria
pluralidade e clarividência aos e pelo sentido de justiça. No meu tempo as crian-
gestos. Os filhos serão mais Por isso mesmo, as famílias ças, quando os outrosas
filhos com melhores pais. E to- em que o pai era a autoridade ameaçavam no recreio
dos aprendemos a ser pais uns não seriam famílias. Mas um da escola, diziam: «O-
com os outros. conluio de mal-entendidos em lha que chamo o meu
que o autoritarismo do pai li- pai que é polícia!» É
Porque é que há homens que sen- gava as pessoas pelo medo bom sentir que se tem
tem a chegada de um filho como mas jamais pelos laços, pelos um pai que pode vir a
um intruso e têm ciúmes – ou é gestos, pelas convicções ou correr defender-nos?
história? pelo sonho. Porque não há Um pai-herói é um
Porque muitos homens sen- autoridade sem alteridade. pai forte. E presen-
tem na mulher a mãe que A autoridade numa família te. Independente-
nunca tiveram. E rivalizam, não é do pai. É da mãe e do pai. mente da sua pro-
pelo amuo, com um filho co- E só assim é dos filhos e da fissão. É uma força
mo se ele fosse uma espécie família. tranquila.

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