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obra Discurso sobre a Dignidade do Homem1 publicada em 1486 ele já afirmava que o
ser humano se encontra colocado por Deus no centro do mundo para que com o seu livre
arbítrio possa escolher a meta de suas aspirações e viver conforme sua opção a vida dos
brutos ou a dos seres divinos. Para Pico della Mirandola, enquanto a grandeza dos anjos
consiste em ser constituído de uma natureza imutável, ao ser humano foi dado uma
grandeza ainda maior, pois este pode com a ajuda da Graça Divina tornar-se filho de
Deus2. Para expressar isto Pico della Mirandola faz Deus falar ao ser humano: “Não te
fizemos nem celeste, nem terreno, nem imortal, nem mortal, para que como livre,
que terá preferido”. E afirma então: “Oh, suma liberdade de Deus Pai, suma e admirável
felicidade do homem! ao qual é dado ter aquilo que deseja e ser aquilo que quiser”3.
Aqui se encontra já um dos pilares centrais da Modernidade: uma vez que “o homem é
possibilidades de auto realização. Cabe a cada indivíduo tornar-se sujeito de seu porvir,
plasmando-se segundo a sua vontade, possuindo e sendo aquilo que deseja. Este ponto
1
G. Pico dela Mirandola. Discurso sobre a dignidade do homem, Edições 70. Lisboa, 2006.
2
Veja-se B. Lacerda, A dignidade humana em Giovanni Pico della Mirandola em Revista Legis
Augustus (Revista Jurídica) Vol. 3, n. 1, p. 16-23, setembro 2010.
3
Pico dela Mirandola, op. cit, §5, 22; §6, 24-25.
4
Ibidem, §9, 46.
2
virá a se constituir na promessa central da Modernidade: que cada sujeito possa realizar-
se segundo sua vontade, sem obstáculos de qualquer natureza. Esta promessa mostra-se,
absoluto com a verdade e exclui todas as outras dimensões humanas que não se
realidade por vezes hostil, buscando construir alternativas para si, para além de uma
detrimento do sujeito que assim busca sustentar uma integralidade narcísica independente
em seu centro uma falta fundamental, e esta falta é condição para a autonomia do mesmo
5
Veja-se aqui também de M R Khel, Ressentimento, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2015. P. 13.
Para o desenvolvimento do conceito de ressentimento em Nietzsche, veja-se F. Nietzsche, A Genealogia
da Moral, Vozes, Petrópolis, 2017. Veja-se também a importante contribuição de Max Scheler para o
ulterior desenvolvimento deste conceito em M. Scheler, O Ressentimento na Construção das Morais em
M. Scheler, Da reviravolta dos valores, Vozes, Petrópolis, 2012, p. 43-182.
3
alguma coisa dele, a falta é vivida como um impedimento e não se torna a condição de
qualquer avanço social dos setores populares é feito em detrimento de sua situação de
classe, de seu bem-estar6. Estes indivíduos ressentidos nos fazem lembrar a observação
feita por Santo Ambrósio em uma homilia sobre As vinhas de Nabot (1 Reis 21) em torno
ao ano de 395: Vocês Ricos...estimam que é uma injúria feita a vocês se o pobre possui
algo que vocês julgam digno apenas da posse de um rico. Creem que é um prejuízo
infringido a vocês tudo aquilo que pertence aos pobres7. Assim, as dificuldades que estes
superegoico do gozo sem limites são quase sempre vividas como uma injúria, como se
alguém estivesse tirando algo deles, impedindo-os de serem o que desejam e terem o que
São eles, os petistas e todos os esquerditas e comunistas, que através da política de cotas,
da bolsa família, e de outras políticas sociais de promoção da igualdade estão tirando algo
dos que trabalham e merecem, para dar a pobres que são pobres por serem vagabundos,
preguiçosos, incapazes, a ralé. Aeroportos cheios, pobres que frequentam lugares que
6
J Souza, Subcidadania Brasileira, Leya, Rio de Janeiro, 2018, p. 153-178.
7
Veja-se o texto completo em Restituto Sierra Bravo, Doctrina Social y Economica de los Padres
de la Iglesia, COMPI, Madri, 1967. P.660-682; p.663; ML 14, 765 ss.
4
deixam de ser exclusivos, que têm acesso à Universidade, tudo isto é causa de profundo
ressentimento. E os culpados estão ali, nos que governam e roubam o país, ou melhor me
roubam, para continuar no poder, pois sem isto não se explica, nesta perspectiva, como
homossexual com o mesmo objetivo. Dentro deste quadro, para muitos a razão moderna
não é mais vista como portadora de sentido e nem menos é identificada com a verdade.
no entre Guerras. Em sua obra de 1935 ele afirma algo de incrível atualidade: “desde há
muito que todos nós deixamos de viver sob a férula dum raciocínio tiranicamente
consistente. Sabemos que nem tudo pode ser avaliado pela razão. O próprio progresso
do pensamento nos fez compreender a sua insuficiência. Uma intuição mais rica e mais
conhecimento. Mas enquanto o sábio encontra, graças a uma capacidade mais vasta e
mais livre para ajuizar, um sentido mais profundo nas coisas da vida, o néscio julga-se
absurdos de que durante muito tempo estivera imune”8. A disseminação hodierna das
Fake News que mesmo sem qualquer verossimilhança são assumidas como verdades, a
8
J. Huizinga, Nas Sombras do Amanhã...(1946) p 68-69.
5
redes sociais como verdades concorrentes com outras verdades, e a redução de toda a
ciência à mera opinião nos assombram. Os novos meios de comunicação e de difusão das
ideias tais como a Internet não criaram este cenário, apenas ampliaram o que já ocorria
na época de J. Huizinga. Se a razão gerou dominação, não é menos verdade que “o sonho
da razão produz monstros” como escreveu Goya em uma de suas gravuras que compõe a
sensações, que se tornam critério de verdade. Esta crise leva a que a conhecida afirmação
de Decartes “penso logo existo” é substituída por “sinto logo existo”. Isto acaba por afetar
cristianismo carismático iria ter nas próximas décadas a partir da Crise da Modernidade.
Neste ensaio ele escrevia: Hoje são precisamente as religiões mais racionais, mais
– que estão acabadas, arquejantes, no suspiro final. O que a Juventude Urbana quer da
práticas não-racionais, irracionais mesmo”9. Este movimento descrito por Tom Wolf
dos anos 70, ao oferecer bênçãos específicas para atender a aflição de pessoas que
Maclister fundou a Igreja Pentecostal de Nova Vida, de onde sairam depois para fundar
suas Igrejas Neopentecostais tanto Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus,
1977) como Romildo Ribeiro Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus, 1980).
9
Publicado originalmente na revista New Yorker Magazine em agosto de 1976 com o título “The
“Me” Decade and the Trird Great Awakening”. Seguimos aqui a edição brasileira publicada em T. Wolfe,
Décadas Púrpura, L&PM Editores, Porto Alegre, 1989, p. 339-374 com o título A Década do Eu e o
Terceiro Grande Despertar. O ensaio havia sido publicado em parte já anteriormente em 1973 na revista
The Critic. Veja-se aqui p.361
10
Veja-se A. Gouvêa Mendonça e P. Velasques Filho, Introdução ao Protestantismo no Brasil,
Loyola, São Paulo, 1990, p. 46-60; Também Ari Pedro Ouro, A. Corten, J-P Dozon (orgs) A Igreja
Universal do Reino de Deus. Os novos conquistadores da fé, Paulinas, São Paulo, 2003.
7
adeptos, através de uma massiva programação nas televisões e nas rádios, o que tem sido
logrado é uma grande transformação na cultura brasileira que parece substituir seu ethos
católico por um ethos neopentecostal. Esta mudança também tem sido possível graças ao
como “Só Jesus no comando”, “Deus está te dando um manto”, “Eu calcei sapatos de
fogo”, “Irmão vai soprar um vento na sua vida”, “Estou contigo neste decai”, “Deus vai
amassar vasos nesta noite”, “Dar Livramento” tornam-se comuns. Trata-se de uma nova
modo cada vez mais acentuado a Teologia da Batalha Espiritual ou do Domínio que
A Teologia da Prosperidade13 tem sua raiz no Estados Unidos, quando entre o final do
século XIX e o início do século XX o pregador cristão Essek William Kenyon (1867-
1948) sob influência de movimentos como Ciência da Mente, Ciência Cristã e Novo
perspectiva, tudo o que dissermos se tornará realidade. O cristão deve afirmar sua fé,
confessando positivamente o que deseja, sem dar lugar a dúvidas ou medo. A oração não
11
Veja-se M Bingemer e P Andrade (orgs), O Censo e as religiões no Brasil , ED Reflexão, 2014.
12
Veja-se C. Steil Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou de saída do Catolicismo?
Uma etnografia do Grupo São José, em Porto Alegre (RS), Religião e Sociedade, v 24, n 1, 2004, p. 11-
36.
13
Veja-se aqui: E. Tadeu Xavier, Teologia da Prosperidade: História, Análise e Implicações,
KERYGMA, ano5, n.2, 2009, p.120-147.
8
deve ser uma súplica, mas a proclamação do poder de Deus. Esta ideia funda-se em uma
alguém disser a este monte: ergue-te e lança-te ao mar, e não duvidar no coração, mas
crer que o que diz se realiza, assim lhe acontecerá. Por isso vos digo: tudo quanto
suplicares e pedires, crede que recebestes, e assim será para vós”). Para ele nisto consiste
a Palavra de Fé referida em Romanos 10:8 (“Mas que diz ela? Ao teu alcance está a
palavra, em a tua boca e em teu coração; a saber, a palavra de fé, que nós pregamos”),
em crer que Deus lhe dará aquilo que você pedir, desde de que você não tenha dúvidas de
que isto lhe será dado. Por isto a oração se torna mais uma ordem dada a Deus do que
uma súplica, um pedido, e o fiel deve se comportar como alguém que já foi atendido em
sua oração, independente do que efetivamente está ocorrendo. Se, por exemplo, peço a
pensamento de E. Kenyon desenvolveu sua doutrina, que ele expõe como sendo
de Deus. Esta doutrina pode ser compreendida a partir de cinco pontos fundamentais:
i. Sacrifício Vicário
agora uma vida plena, próspera, sem doenças, dor ou sofrimento e longeva.
ii. Salvação
é dada pelo Batismo nas águas e sim pela confissão sob a ação do Espírito,
iii. Fé e Autoridade
que crê e proclama esta autoridade, de modo especial aos que se tornam
crente tem por base II Cor, 4:13: “Acreditei e por isto falei”.
A oração para ser eficaz deve ser feita no modo da Confissão Positiva.
Deve-se (a) pedir com clareza o que se deseja, (b) agir de acordo com o que
se deseja, tendo a certeza que se receberá o que se pediu, e (c) deve-se relatar
aos outros o que recebeu para que os outros saibam que também podem
10
oração na forma de Confissão Positiva não deve ser feita como súplica,
como se o crente pudesse pensar que não seria atendido, mas em forma
temor ou dúvida, com a garantia de que assim meu agir é ele mesmo eficaz
v. Cura Física
não eficaz, apenas aos que não creem. O crente tem em Jesus seu único e
Palavra. Deve se abster de buscar qualquer recurso médico, pois seria sinal
A Editora Betânia traduziu parte importante da obra de Hagin para o Brasil e a sua
doutrina, sob a forma da Teologia da Prosperidade, se tornou uma das bases das novas
Igrejas Pentecostais que se fundam a partir do final dos anos 70. Em 1994, o pregador
Benny Him vem ao Brasil pela primeira vez, dando novo impulso à afirmação da Teologia
da Prosperidade nos meios pentecostais. Esta Teologia acaba também por influenciar
setores carismáticos católicos que a adotam em uma versão mitigada para poder ser de
o início, com uma outra base teológica, a Teologia da Batalha Espiritual e, de certo modo,
acabou por ser a ela integrada. Deste modo a compreensão da ação pastoral e da base
Teologia do Domínio.
e Eva)14. Nestes textos é narrado que após criar a Terra e ao homem, à Sua imagem e
semelhança, Deus convoca a corte celeste para prestar homenagem a Adão. Os Arcanjos
Miguel, Gabriel e Uriel prestam homenagem a Adão, mas Satanás, também um poderoso
Arcanjo, se recusa fazê-lo afirmando: “Eu fui feito de fogo e água e com anterioridade
14
Para A Vida de Adão e Eva veja-se o texto em Daniel-Rops, La Bible Apocryphe em marge de
Láncien Testament, Cerf-Fayard, Paris, 1975 p. 215-221. Para o Evangelho de Nicodemos veja-se M
Craveri, I Vangeli Apocrifi, Einaudi, Turim, 1976, p. 299-377. Para O Evangelho de Bartolomeu veja-se
A. Santos Otero, Los Evangelios Apocrifos. Edición Critica y Bilingüe, BAC, Madri, 1983, p.530-566
12
a esta criatura; eu não adoro o barro da Terra” e então se coloca contra Deus
expulse Satanás, exilando-o na Terra junto com os anjos que o seguiam e que também se
inimigo de Adão, causa de sua queda. Seduz a Adão e Eva que caem na sedução e
desobedecem a Deus. Deste modo o demônio ganha domínio sobre a Terra e sobre os
homens e mulheres e usa este domínio para fazê-los sofrer. Deus, porém, envia Jesus para
salvar os homens e mulheres. Ele, através de sua vida, morte, descida aos infernos e
ressurreição, vence o Demônio, retirando para aqueles que O aceitam o poder do demônio
sobre eles.
desde a Criação e a queda de Satanás, vivemos no Cosmo uma guerra, composta de muitas
batalhas tendo de um lado Deus e seus Anjos e do outro Satanás e seus Companheiros, os
mulheres, tem domínio sobre as nações, famílias, pessoas e usa as chamadas brechas, isto
é, atos de rebeldia à vontade de Deus feito pelos homens e mulheres, para ter poder sobre
eles e dominá-los. A Guerra um dia será vencida definitivamente por Deus e seus Anjos.
caso estes tomem a decisão de se colocar ao lado de Deus nesta Guerra aceitando a
salvação trazida por Jesus. O modo de se colocar do lado de Deus é proclamar a Palavra
de Fé, tornar-se Seu sócio, renunciando a Satanás e entregando através da Igreja parte dos
seus bens a Deus15. É neste ponto que a Teologia da Prosperidade é integrada como um
desdobramento da Teologia do Domínio. Se através do dízimo dou parte dos meus ganhos
15
Para justificar esta posição nas Igrejas Neopentecostais são referidas de modo especial algumas
citações bíblicas Antigo e Neotestamentárias tais como: Gn 3, Is 52,7-9, Is 59,1715; Mt 4, 1-11; 2Cor 10,3-
5; Rm 13.12-14; Ef 4,15; Ef 6,12-18.
13
a Deus, dou prova que reconheço a soberania de Deu, demonstro na prática que Deus é
meu sócio, com direito a parte do que ganho. Consequentemente Deus impede o poder
do Demônio sobre minha vida. Sob o domínio de Deus, sem o Demônio para me
prejudicar, eu, remido das maldições da Torá, prospero na vida. Meus negócios correm
certo modo diminuída, pois os atos contrários à vontade de Deus que cometo são frutos
da ação do demônio que me domina. Deus ao retirar este domínio e me livrar das
maldições da Torá, faz com que os atos que pratico sejam bons. A noção de moralidade
é ambígua, pode-se mesmo cometer atos ilícitos se estes forem colocados à serviço de
Deus na Batalha Espiritual, pois estes atos neste caso são considerados legítimas
estratégias e armas na batalha contra o Demônio. O lado no qual você está na batalha é
que dá legitimidade e define a moralidade do ato. Christina Vital da Cunha publicou uma
Santa Marta e Acari no Rio de Janeiro16. Existe hoje em Acari e em outras comunidades
Christina recolhe uma oração feita na época da pesquisa na rádio comunitária de Acari,
todos os dias, as 5:30 da manhã, por um traficante: “Senhor: Fazei com que a vida torta
que eu vivo sirva para ajudar as pessoas a viver uma vida melhor e direita. Senhor: Eu
16
C. Vital da Cunha, Oração de Traficante. Uma etnografia, Garamond, Rio de Janeiro, 2015.
14
te peço Senhor, que neste dia, nesta manhã, como em todos os dias, proteja os
trabalhadores que saem agora para o trabalho. Proteja as crianças que saem para a
escola. Senhor: eu te peço proteção para os líderes comunitários desta comunidade. Que
o Senhor ilumine suas cabeças e toque seus corações e os livre da ganância e do egoísmo
e olhem para o bem, que busquem o melhor para nosso moradores sofridos e pesados
pelos governantes poderosos. Senhor: eu te peço proteção não para mim, mas para meus
amigos. Que os livre da morte, Senhor que eles não sejam mortos covardemente e que
não matem nenhum polícia ou inimigo que venham atacar nossa favela. Em nome de ti,
Senhor é só o que peço. Agora vamos orar uma oração que todos conhecem e que serve
para todas as religiões: Pai Nosso que estais no Céu...”17. Dentro da perspectiva da
demoníacas, a violência dos traficantes evangélicos tem sido usada para atacar Centros
Satanás.
classes populares. Segundo os dados do Censo de 2010, 63,7% de seus fiéis ganham
17
Ibidem, p.381-382.
15
Existem hoje Igrejas neopentecostais voltadas para a classe média e até mesmo para
conforme observado, oferece um forte suporte para o sujeito ressentido e de certo modo
este papel.
escola austríaca que cria uma interpretação da sociedade, da economia e da ética que serve
seu corpo politico, administrativo e jurídico como o grande inimigo que impede que cada
austríaco, radicado nos Estados Unidos, Ludwing von Mises. Entre os principais
fundamental direito universal. Trata-se de um direito absoluto, que se inicia com o direito
à propriedade absoluta do próprio corpo e que inclui todos os bens que possa adquirir.
Deste direito fundamental deriva um outro que é o direito absoluto de não agressão à
revidando qualquer ataque com os meios necessários à tal defesa. O Estado é apontado
como o grande usurpador da propriedade. Por isto esta corrente é conhecida seja como
18
Para uma melhor compreensão desta corrente de pensamento veja-se: L. Von Mises, As seis lições,
Reflexões sobre o hoje e amanhã, LVM Editora, São Paulo, 2017 ; H-H Hoper, Uma Teoria do Socialismo
e do Capitalismo, Instituto Ludwig Von Mises Brasil, São Paulo, 2013; M. Rothbard, Anatomia do Estado,
LVM, São Paulo, 2018 e M. Rothbard. A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig Von Mises Brasil, São
Paulo, 2010.
16
é tido como sendo a única instituição ética. Qualquer contrato entre dois indivíduos no
mercado livre é considerado como sendo essencialmente ético. Todos devem ser
compreendidos como portadores dos mesmos direitos em um mercado livre, isto é, como
portadores do único direito fundamental: dispor de sua propriedade como achar melhor,
tendo em vista a disseminação das chamadas Fake News nas últimas eleições em diversos
países, é que M. Rothbard, defende a sua legitimidade ética em todo um capítulo de sua
obra Ética da Liberdade19. Segundo este autor para que cada indivíduo possa melhor
traçar suas estratégias para atingir seus objetivos, ele deve poder dispor de todas as
informações possíveis e ninguém tem o direito de selecionar quais informações ele deva
ninguém pode ser responsabilizado. Assim, se alguém consumir todo o seu capital para
gozar a vida na juventude e não poupar para a velhice, morrerá na miséria coerentemente
com seus objetivos e estratégias e ninguém deve ser obrigado a socorrê-lo. O mesmo se
tabaco, por exemplo, não deve ter nenhum socorro social se adoecer por causa deste uso.
19
M. Rothbard. A Ética da Liberdade...,p.187-195.
17
Temos aqui uma concepção do Estado Mínimo muito mais radical do que a
promulgada pelo Neoliberalismo. Nem saúde, nem educação, nem previdência, nem
segurança pública, nem justiça. O Estado é sempre ineficiente e todo imposto é uma
agressão à propriedade. Todo grupo político que chega ao poder no estado passa a usar o
isto. A segurança deve estar na mão de seguranças privados contratados inclusive para
exercer a justiça criminal, o exército deve ser composto por poucos homens e a defesa
garantida por grupos mercenários especializados. A justiça civil deve ser exercida por
No Brasil, este pensamento é produzido e divulgado pelo Instituto Mises Brasil, onde
Livre entre outros. Um partido no Brasil assumiu esta ideologia como sua: o partido
individuo ressentido das classes médias brasileiras aprende como nomear o autor da
modo especial os de esquerda, categoria que passa a incluir todos os que de algum modo
justiça social, expropriando a propriedade da classe média. Os pobres são vistos como
incapazes, ou por serem vagabundos ou por outro vício moral, e exigem posteriormente
serem socorridos. Estes devem ser abandonados à própria sorte, arcando com as
consequências de suas escolhas. O mérito deve ser o único critério de ascensão social e
que não conseguem ascender socialmente e são considerados pelos ressentidos, apoiados
Esta ideologia conflita em sua raiz com a Doutrina Social da Igreja. Desde a
Rerum Novarum até a Laudato Si’, o Estado é compreendido como um bem, pertencendo
à ordem da criação, pois os homens foram criados para a vida social e esta exige um
social é compreendida não como caridade opcional, mas como dever de justiça e
afirmação de feita por Bento XVI, em conformidade com a filosofia platônica e com
toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos
como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical:
o que é a justiça?” (DCE 28). A Justiça tem por base a Ética e também Bento XVI afirma:
específico para dar, que se funda na criação do homem « à imagem de Deus » (Gn 1,
19
27), um dado do qual deriva a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor
transcendente das normas morais naturais. Uma ética econômica que prescinda destes
mesmos. Além do mais, acabaria até por justificar o financiamento de projetos que não
são éticos” (CV 45). A defesa dos direitos dos pobres e das minorias é central na Doutrina
direito absoluto à propriedade privada, como único princípio e valor universalizável que
legitima inclusive qualquer forma de violência para sua defesa. Esta concepção é
a propriedade privada nunca foi compreendida como sendo um princípio absoluto, antes,
pelo contrário, sempre se afirmou sua subordinação ao Bem Comum. Desde a Patrística
se afirma o Princípio da Destinação Universal dos Bens segundo o qual Deus criou os
bens da terra para satisfazer a necessidade de todos os homens e mulheres. Baseado neste
princípio São Basílio Magno escreveu, no século IV, em sua famosa homilia sobre Lucas
12, 16-21 as seguintes palavras, que traduzem a doutrina comum dos Padres da Igreja:
“O que faço de errado, diz ele, guardando o que é meu? Dize-me, de que modo é teu?
Donde tiraste, tomando-o para teu sustento? É como alguém que, indo ao teatro, se
seu aquilo que é comum a todos os que se apresentam, conforme lhes parece bem. Assim
são os ricos. Pois, apoderando-se primeiro do que é de todos, tudo tomam para si por
uma falsa ideia. Se cada um tirasse para si o que lhe é necessário e entregasse ao
indigente o que sobra, ninguém seria rico, ninguém pobre. Não saíste nu do útero e não
20
retornarás nu para a terra (cf. Jó 1,21)? Os bens que possuis, de onde vêm? Se dizes que
provêm do acaso, és ímpio, não reconhecendo o Criador e não dando graças ao doador.
Se, ao invés, admites que são de Deus, dize-me por que os recebeste. É talvez injusto
Deus, que nos distribui os meios de subsistência de modo desigual? Por que tu és rico e
quando procuras abarcar tudo nos insaciáveis ventres da avareza, julgas não fazer
que não se contenta com aquilo que lhe é suficiente. Quem é o ladrão? Quem tira aquilo
que é de outro. Não és avaro? Não és ladrão, tu que fazes tua a propriedade que recebeste
para administrar? Quem espolia alguém que está vestido é tido como ladrão; e quem,
podendo fazê-lo, não reveste quem está nu merecerá outro nome? O pão que tu reténs
pertence ao faminto, o manto que guardas no armário é de quem está nu; os sapatos que
necessitado. Porque tantos são aqueles aos quais fazes injustiças, quantos aqueles que
poderias socorrer.20”
São Tomas de Aquino, na Suma Teológica, trata da questão da propriedade dos bens
na questão LXVI, da IIa IIae. No primeiro artigo dessa questão São Tomás afirma o
princípio da Destinação dos Bens e a legitimidade da posse dos mesmos pelos homens e
mulheres para que estes possam satisfazer a necessidade de todos, citando o Salmo 8,8.
Trata-se aqui não da posse privada, mas do ato de possuir. No segundo artigo defende a
porque como cada um trata melhor o que é seu do que é comum, os bens destinados a
20
Para o texto completo veja-se Restituto Sierra Bravo, Doctrina Social..., p.169-178, p. 177. M.G.,
31,261-277.
21
todos podem ser melhor aproveitados se cada um possui uma parte dos bens de modo
privado. Fala-se então que a propriedade privada é de Direito Natural secundário, pois
sua legitimidade está condicionada e subordinada à Destinação Universal dos Bens. Isto
é, segundo São Tomás, os bens destinados a satisfazer a necessidade de todos são melhor
se torna um obstáculo a que estes bens possam satisfazer a todos, ela não é legítima. Este
recordar mais uma vez o principio típico da doutrina social cristã: os bens deste mundo
necessário, mas não anula o valor de tal principio. Sobre a propriedade, de fato, grava
«uma hipoteca social»” (SRS 42). Não há nenhuma compatibilidade possível entre os
intrinsicamente dominada pelo Demônio que o usa para prejudicar e subjulgar as pessoas.
Os políticos são instrumentos dos demônios para exercer este domínio. Quando meu filho
entra para a Universidade por meio da política de cotas vejo nisto apenas um dom, uma
resposta de Deus à minha oração. Deus que me livrou das maldições da Torá, afastou o
demônio de minha vida, garantindo a vaga de meu filho na Universidade; não vejo neste
acesso à Universidade uma oportunidade gerada por políticas públicas voltadas à redução
aos políticos ladrões, instrumento de Satanás. Desta maneira aqui também o sujeito
ressentido aprende a nominar aquele que o prejudica, o injuria: são os políticos, todos
morais e sexuais aos políticos para demonstrar como estes estão ligados aos demônios e
são seus instrumentos. As Fake News amplamente utilizadas nas campanhas eleitorais
são aceitas como verdade a priori, pois se encaixam plenamente na lógica narrativa mais
se elegerem homens e mulheres que sendo Pastores e pessoas da Igreja saibam lidar com
os demônios e conter seu poder. Deste modo constrói-se uma ideologia que substitui a
lógica política pela religiosa, abrindo espaço para o populismo e o fascismo. Tudo se
resume à Batalha Espiritual, ao cuidado das pessoas nesta Batalha, conforme a campanha
para prefeito do Bispo Crivella no Rio de Janeiro, ao estar do lado certo, do lado de Deus,
anarcocapitalista, onde o Estado é visto como intrinsicamente mau, produz o apoio dos
ser todas ocupadas por pessoas “terrivelmente evangélicas” aptas a expulsar o demônio e
de novembro de 2018.
Dentro deste quadro, pode-se ver como a luta política pela construção de uma
sociedade mais justa e igualitário, constituída por sujeitos autônomos, livres e solidários,
i
O autor é Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e Professor desde 1982
do Departamento de Teologia da PUC-Rio, onde Coordena a Cátedra Paulo VI de Fé e Política. É membro
fundador do CEFEP da CNBB e atualmente (2020) é membro da Diretoria da SOTER (Sociedade de
Teologia e Ciências da Religião) e do INSeCT (Network of Societies for Catholic Theology).