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Neopentecostalismo, Anarcocapitalismo e a Teologia da Batalha Espiritual

Paulo Fernando Carneiro de Andrade i

Vivemos hoje uma profunda Crise da Modernidade. No cerne da Modernidade se

encontra a promessa de autorrealização de todos e de cada um, como já aparece formulado

seminalmente no renascimento italiano por Pico della Mirandola (1463-1494). Em sua

obra Discurso sobre a Dignidade do Homem1 publicada em 1486 ele já afirmava que o

ser humano se encontra colocado por Deus no centro do mundo para que com o seu livre

arbítrio possa escolher a meta de suas aspirações e viver conforme sua opção a vida dos

brutos ou a dos seres divinos. Para Pico della Mirandola, enquanto a grandeza dos anjos

consiste em ser constituído de uma natureza imutável, ao ser humano foi dado uma

grandeza ainda maior, pois este pode com a ajuda da Graça Divina tornar-se filho de

Deus2. Para expressar isto Pico della Mirandola faz Deus falar ao ser humano: “Não te

fizemos nem celeste, nem terreno, nem imortal, nem mortal, para que como livre,

extraordinário plasmador e escultor de si mesmo, tu possas forjar a si mesmo na forma

que terá preferido”. E afirma então: “Oh, suma liberdade de Deus Pai, suma e admirável

felicidade do homem! ao qual é dado ter aquilo que deseja e ser aquilo que quiser”3.

Aqui se encontra já um dos pilares centrais da Modernidade: uma vez que “o homem é

animal de natureza variada, multiforme e inconstante”4, a ele estão abertas todas as

possibilidades de auto realização. Cabe a cada indivíduo tornar-se sujeito de seu porvir,

plasmando-se segundo a sua vontade, possuindo e sendo aquilo que deseja. Este ponto

1
G. Pico dela Mirandola. Discurso sobre a dignidade do homem, Edições 70. Lisboa, 2006.
2
Veja-se B. Lacerda, A dignidade humana em Giovanni Pico della Mirandola em Revista Legis
Augustus (Revista Jurídica) Vol. 3, n. 1, p. 16-23, setembro 2010.
3
Pico dela Mirandola, op. cit, §5, 22; §6, 24-25.
4
Ibidem, §9, 46.
2

virá a se constituir na promessa central da Modernidade: que cada sujeito possa realizar-

se segundo sua vontade, sem obstáculos de qualquer natureza. Esta promessa mostra-se,

entretanto, irrealizável, gerando nos sujeitos na contemporaneidade uma grande ferida

narcísica. Não só o sujeito não consegue alcançar a plena e livre autorrealização

prometida, como também a razão instrumental sobre a qual se alicerçava a promoção da

liberdade humana mostra-se também tirânica na medida em que se identifica de modo

absoluto com a verdade e exclui todas as outras dimensões humanas que não se

subordinam incondicionalmente a ela. Assim aconteceu com a espiritualidade, os afetos,

a arte e as diferentes sensibilidades. Este sujeito não conseguindo realizar em sí a

promessa central da Modernidade de autodeterminação absoluta, ou desenvolve uma

capacidade de resiliência e passa a agir de modo crítico enfrentando os desafios de uma

realidade plena de injustiças e de mecanismos de dominação, aceitando os limites de uma

realidade por vezes hostil, buscando construir alternativas para si, para além de uma

ilusão da possibilidade de uma autodeterminação absoluta, o que pode incluir também o

engajamento em movimentos de mudanças econômico e sociais coletivas, ou internaliza

a culpa, se considerando pessoalmente incapaz, um perdedor, caindo em uma posição

melancólica, ou então torna-se um ressentido.

A lógica do ressentimento, como observa M R Khel5, privilegia o indivíduo em

detrimento do sujeito que assim busca sustentar uma integralidade narcísica independente

do sucesso de seus empreendimentos. Como mostrou Lacan o sujeito se constitui tendo

em seu centro uma falta fundamental, e esta falta é condição para a autonomia do mesmo

e para a vivência de relações de alteridade e a criação de laços sociais. No ressentimento

5
Veja-se aqui também de M R Khel, Ressentimento, Casa do Psicólogo, São Paulo, 2015. P. 13.
Para o desenvolvimento do conceito de ressentimento em Nietzsche, veja-se F. Nietzsche, A Genealogia
da Moral, Vozes, Petrópolis, 2017. Veja-se também a importante contribuição de Max Scheler para o
ulterior desenvolvimento deste conceito em M. Scheler, O Ressentimento na Construção das Morais em
M. Scheler, Da reviravolta dos valores, Vozes, Petrópolis, 2012, p. 43-182.
3

a versão imaginária da falta fundamental é interpretada como prejuízo. Alguém tira

alguma coisa dele, a falta é vivida como um impedimento e não se torna a condição de

possibilidade do próprio sujeito. O ressentido deseja vingança.

No caso brasileiro amplos setores das classes médias, ainda mergulhadas em um

imaginário escravagista, consideram que os pobres querem sempre fraudá-las e que

qualquer avanço social dos setores populares é feito em detrimento de sua situação de

classe, de seu bem-estar6. Estes indivíduos ressentidos nos fazem lembrar a observação

feita por Santo Ambrósio em uma homilia sobre As vinhas de Nabot (1 Reis 21) em torno

ao ano de 395: Vocês Ricos...estimam que é uma injúria feita a vocês se o pobre possui

algo que vocês julgam digno apenas da posse de um rico. Creem que é um prejuízo

infringido a vocês tudo aquilo que pertence aos pobres7. Assim, as dificuldades que estes

setores encontram no tardo capitalismo e sua incapacidade de satisfazer ao mandato

superegoico do gozo sem limites são quase sempre vividas como uma injúria, como se

alguém estivesse tirando algo deles, impedindo-os de serem o que desejam e terem o que

quiserem. Trata-se de encontrar o culpado contra o qual nutrem desde já sentimentos de

vingança. Neste contexto os meios de comunicação ligados às classes dominantes

encontraram um terreno fértil para criar o antipetismo militante e raivoso. Retorna a

narrativa anticomunista reativando anacronicamente um passado que parecia superado.

São eles, os petistas e todos os esquerditas e comunistas, que através da política de cotas,

da bolsa família, e de outras políticas sociais de promoção da igualdade estão tirando algo

dos que trabalham e merecem, para dar a pobres que são pobres por serem vagabundos,

preguiçosos, incapazes, a ralé. Aeroportos cheios, pobres que frequentam lugares que

6
J Souza, Subcidadania Brasileira, Leya, Rio de Janeiro, 2018, p. 153-178.
7
Veja-se o texto completo em Restituto Sierra Bravo, Doctrina Social y Economica de los Padres
de la Iglesia, COMPI, Madri, 1967. P.660-682; p.663; ML 14, 765 ss.
4

deixam de ser exclusivos, que têm acesso à Universidade, tudo isto é causa de profundo

ressentimento. E os culpados estão ali, nos que governam e roubam o país, ou melhor me

roubam, para continuar no poder, pois sem isto não se explica, nesta perspectiva, como

conseguem ganhar as eleições. A perspectiva machista e misógina também entra neste

caldeirão. Estão promovendo o empoderamento das mulheres para destruir a família e a

sociedade, jogando as mulheres contra os homens. Promovem o comportamento

homossexual com o mesmo objetivo. Dentro deste quadro, para muitos a razão moderna

não é mais vista como portadora de sentido e nem menos é identificada com a verdade.

Já o historiador J. Huizinga já havia observado isto na Crise da Modernidade que eclodiu

no entre Guerras. Em sua obra de 1935 ele afirma algo de incrível atualidade: “desde há

muito que todos nós deixamos de viver sob a férula dum raciocínio tiranicamente

consistente. Sabemos que nem tudo pode ser avaliado pela razão. O próprio progresso

do pensamento nos fez compreender a sua insuficiência. Uma intuição mais rica e mais

profunda do que simplesmente racional, concedeu um maior sentido ao nosso

conhecimento. Mas enquanto o sábio encontra, graças a uma capacidade mais vasta e

mais livre para ajuizar, um sentido mais profundo nas coisas da vida, o néscio julga-se

autorizado a dizer toda casta de disparates. Consequência verdadeiramente trágica: no

processo de aperceber as limitações da razão o espírito moderno tornou-se suscetível a

absurdos de que durante muito tempo estivera imune”8. A disseminação hodierna das

Fake News que mesmo sem qualquer verossimilhança são assumidas como verdades, a

negação contemporânea de princípios físicos e biológicos cujo conhecimento constitui o

patrimônio científico básico de nossa civilização, tais como a Teoria da Relatividade, a

Teoria da Evolução, o Heliocentrismo e a afirmação de concepções anticientíficas como

o Terraplanismo, o Criacionismo, assim como o negacionismo histórico, difundidos pelas

8
J. Huizinga, Nas Sombras do Amanhã...(1946) p 68-69.
5

redes sociais como verdades concorrentes com outras verdades, e a redução de toda a

ciência à mera opinião nos assombram. Os novos meios de comunicação e de difusão das

ideias tais como a Internet não criaram este cenário, apenas ampliaram o que já ocorria

na época de J. Huizinga. Se a razão gerou dominação, não é menos verdade que “o sonho

da razão produz monstros” como escreveu Goya em uma de suas gravuras que compõe a

série Los Caprichos de 1899.

Neste movimento de descrédito da razão abriu-se espaço para a constituição de uma

cultura onde a centralidade da razão é substituída pela centralidade das emoções e

sensações, que se tornam critério de verdade. Esta crise leva a que a conhecida afirmação

de Decartes “penso logo existo” é substituída por “sinto logo existo”. Isto acaba por afetar

também a dimensão religiosa. Tom Wolfe em seu ensaio paradigmático a “Década do

Eu” já havia percebido com clareza em meados da década de 70 o papel que o

cristianismo carismático iria ter nas próximas décadas a partir da Crise da Modernidade.

Neste ensaio ele escrevia: Hoje são precisamente as religiões mais racionais, mais

intelectuais, secularizadas, modernizadas, atualizadas, pertinentes – todos os heroicos e

inovadores movimentos da Cultura Ética, Unitário e Swedenborgiano do passado recente

– que estão acabadas, arquejantes, no suspiro final. O que a Juventude Urbana quer da

religião é um pouquinho de...Aleluia!...e falar línguas...Louvar o Senhor! Precisamente

isso! Nas escolas teológicas mais prestigiadas da atualidade, católica, protestante e

episcopal, o movimento de vanguarda – a ala avançada- é o “Cristianismo

carismático”...caracterizado pelas “línguas estranhas”, visões, beatices e outras


6

práticas não-racionais, irracionais mesmo”9. Este movimento descrito por Tom Wolf

encontra-se na base do desenvolvimento do neopentecostalismo no Brasil.

1. O Desenvolvimento do Neopentecostalismo no Brasil: A Teologia da

Prosperidade e a Teologia da Batalha Espiritual

No Brasil, na década de 60 surgem derivadas do Pentecostalismo tradicional as

chamadas Tendas de Cura Divina, precursoras do neopentecostalismo que surgiria no fim

dos anos 70, ao oferecer bênçãos específicas para atender a aflição de pessoas que

atravessavam crises pessoais, familiares e sociais. Ainda na década de 60 Walter Robert

Maclister fundou a Igreja Pentecostal de Nova Vida, de onde sairam depois para fundar

suas Igrejas Neopentecostais tanto Edir Macedo (Igreja Universal do Reino de Deus,

1977) como Romildo Ribeiro Soares (Igreja Internacional da Graça de Deus, 1980).

Também são Neopentecostais as Igrejas Comunidade Sara Nossa Terra, Renascer em

Cristo, Bola de Neve, Batista da Lagoinha, entre outras10.

Os Neopentecostais cresceram vertiginosamente no campo religioso brasileiro a partir

da década de 80. Hoje, conforme os dados do Censo de 2010, em conjunto com os

9
Publicado originalmente na revista New Yorker Magazine em agosto de 1976 com o título “The
“Me” Decade and the Trird Great Awakening”. Seguimos aqui a edição brasileira publicada em T. Wolfe,
Décadas Púrpura, L&PM Editores, Porto Alegre, 1989, p. 339-374 com o título A Década do Eu e o
Terceiro Grande Despertar. O ensaio havia sido publicado em parte já anteriormente em 1973 na revista
The Critic. Veja-se aqui p.361
10
Veja-se A. Gouvêa Mendonça e P. Velasques Filho, Introdução ao Protestantismo no Brasil,
Loyola, São Paulo, 1990, p. 46-60; Também Ari Pedro Ouro, A. Corten, J-P Dozon (orgs) A Igreja
Universal do Reino de Deus. Os novos conquistadores da fé, Paulinas, São Paulo, 2003.
7

Pentecostais chegam a atingir mais de 50% da população em algumas cidades. O número

de adeptos é particularmente alto no Rio de Janeiro11. Mas, para além do número de

adeptos, através de uma massiva programação nas televisões e nas rádios, o que tem sido

logrado é uma grande transformação na cultura brasileira que parece substituir seu ethos

católico por um ethos neopentecostal. Esta mudança também tem sido possível graças ao

crescimento do Movimento Carismático Católico, cuja cosmovisão é muito mais próxima

do Neopentecostalismo Evangélico do que de outras expressões católicas12. Expressões

como “Só Jesus no comando”, “Deus está te dando um manto”, “Eu calcei sapatos de

fogo”, “Irmão vai soprar um vento na sua vida”, “Estou contigo neste decai”, “Deus vai

amassar vasos nesta noite”, “Dar Livramento” tornam-se comuns. Trata-se de uma nova

visão de mundo que tem seu fundamento na cosmovisão neopentecostal brasileira.

Ao serem constituídas a Igreja Universal e outras Igrejas neopentecostais fundaram

sua ética e agir na Teologia da Prosperidade e na prática do exorcismo, elaborando de

modo cada vez mais acentuado a Teologia da Batalha Espiritual ou do Domínio que

passou a se constituir no horizonte onde se ancorou a própria Teologia da Prosperidade.

A Teologia da Prosperidade13 tem sua raiz no Estados Unidos, quando entre o final do

século XIX e o início do século XX o pregador cristão Essek William Kenyon (1867-

1948) sob influência de movimentos como Ciência da Mente, Ciência Cristã e Novo

Pensamento obtém sucesso ao proclamar o poder da palavra e do pensamento. Nesta

perspectiva, tudo o que dissermos se tornará realidade. O cristão deve afirmar sua fé,

confessando positivamente o que deseja, sem dar lugar a dúvidas ou medo. A oração não

11
Veja-se M Bingemer e P Andrade (orgs), O Censo e as religiões no Brasil , ED Reflexão, 2014.
12
Veja-se C. Steil Renovação Carismática Católica: porta de entrada ou de saída do Catolicismo?
Uma etnografia do Grupo São José, em Porto Alegre (RS), Religião e Sociedade, v 24, n 1, 2004, p. 11-
36.
13
Veja-se aqui: E. Tadeu Xavier, Teologia da Prosperidade: História, Análise e Implicações,
KERYGMA, ano5, n.2, 2009, p.120-147.
8

deve ser uma súplica, mas a proclamação do poder de Deus. Esta ideia funda-se em uma

interpretação particular de MC 11:22-24 (“Tendes Fé em Deus. Em verdade vos digo, se

alguém disser a este monte: ergue-te e lança-te ao mar, e não duvidar no coração, mas

crer que o que diz se realiza, assim lhe acontecerá. Por isso vos digo: tudo quanto

suplicares e pedires, crede que recebestes, e assim será para vós”). Para ele nisto consiste

a Palavra de Fé referida em Romanos 10:8 (“Mas que diz ela? Ao teu alcance está a

palavra, em a tua boca e em teu coração; a saber, a palavra de fé, que nós pregamos”),

em crer que Deus lhe dará aquilo que você pedir, desde de que você não tenha dúvidas de

que isto lhe será dado. Por isto a oração se torna mais uma ordem dada a Deus do que

uma súplica, um pedido, e o fiel deve se comportar como alguém que já foi atendido em

sua oração, independente do que efetivamente está ocorrendo. Se, por exemplo, peço a

cura de uma doença, devo imediatamente parar de tomar remédios.

Esta pregação influenciou Don Grosset (1929-2014) e Kennet F. Hagin (1917-2003).

Este último, considerado o estruturador ideológico do Movimento Palavra da Fé,

experimentou pessoalmente uma cura considerada milagrosa e sob influência do

pensamento de E. Kenyon desenvolveu sua doutrina, que ele expõe como sendo

exclusivamente fundada nas Escrituras, compreendidas como verdade literal da Palavra

de Deus. Esta doutrina pode ser compreendida a partir de cinco pontos fundamentais:

i. Sacrifício Vicário

Segundo a doutrina desenvolvida por Hagin, Jesus morre como substituto

de toda a humanidade, foi sepultado, desceu aos infernos onde derrotou o

diabo, retirando dele toda autoridade e nasceu de novo, vivificado pelo

Espírito na ressureição. Aqueles que confessam a fé em Cristo são

associados a Cristo morto, sepultado e ressuscitado, recebendo o livramento


9

proporcionado pela substituição. Nascem novamente e tornam-se partícipes

do poder de Cristo e de sua Vitória. Os que Confessam a Palavra de Fé são

associados a Cristo e tornam-se remidos das maldições que se encontram no

Antigo Testamento: pobreza, doenças e morte espiritual, alcançando aqui e

agora uma vida plena, próspera, sem doenças, dor ou sofrimento e longeva.

ii. Salvação

A Salvação, ou seja, a remissão das maldições do Antigo Testamento

proporcionada pela associação a Cristo morto, sepultado e ressuscitado, não

é dada pelo Batismo nas águas e sim pela confissão sob a ação do Espírito,

de que que Jesus Cristo é o Senhor e Salvador, o que significa assumir a

confiança absoluta do poder da Palavra de Fé.

iii. Fé e Autoridade

O que garante o sucesso infalível da oração do crente é a posição do crente

em Cristo. Cristo tem toda autoridade sobre os elementos deste mundo e os

elementos satânicos e prometeu responder positivamente à oração daquele

que crê e proclama esta autoridade, de modo especial aos que se tornam

profetas nos tempos atuais proclamando com vigor a Palavra de Fé. A

afirmação da infalibilidade da proclamação da Palavra de Fé por parte do

crente tem por base II Cor, 4:13: “Acreditei e por isto falei”.

A oração para ser eficaz deve ser feita no modo da Confissão Positiva.

Deve-se (a) pedir com clareza o que se deseja, (b) agir de acordo com o que

se deseja, tendo a certeza que se receberá o que se pediu, e (c) deve-se relatar

aos outros o que recebeu para que os outros saibam que também podem
10

receber segundo seus desejos, desde que exerçam a Confissão Positiva. A

oração na forma de Confissão Positiva não deve ser feita como súplica,

como se o crente pudesse pensar que não seria atendido, mas em forma

impositiva, usando expressões como eu exijo, declaro, decreto.

iv. Prosperidade Financeira

A prosperidade material é compreendida como sendo uma dimensão

fundamental da redenção. Os crentes em sua prosperidade são testemunhas

do poder e da salvação de Cristo que nos livras das maldições da Torá. O

crente deve Proclamar sua Prosperidade e se comportar como uma pessoa

prospera. Se quero realizar um negócio devo orar decretando o sucesso da

realização do negócio (Palavra de Fé, Confissão Positiva) e realiza-lo sem

temor ou dúvida, com a garantia de que assim meu agir é ele mesmo eficaz

e por isto conta infalivelmente com a benção de Deus.

v. Cura Física

Os crentes que confessam a Palavra não obtém apenas a prosperidade. Pela

Paixão e redenção de Cristo, estando livres das maldições da Torá, foi

promovida a cura física para todos os que Confessam a Palavra de Fé. É

vontade de Deus que todos os crentes sejam curados de toda e qualquer

doença. A cura é a manifestação da redenção. A medicina serve, e de modo

não eficaz, apenas aos que não creem. O crente tem em Jesus seu único e

eficaz médico. Para receber a cura deve proclamar com certeza de Fé a

Palavra. Deve se abster de buscar qualquer recurso médico, pois seria sinal

de dúvida, fraqueza, o que impede o recebimento da graça.


11

A Editora Betânia traduziu parte importante da obra de Hagin para o Brasil e a sua

doutrina, sob a forma da Teologia da Prosperidade, se tornou uma das bases das novas

Igrejas Pentecostais que se fundam a partir do final dos anos 70. Em 1994, o pregador

Benny Him vem ao Brasil pela primeira vez, dando novo impulso à afirmação da Teologia

da Prosperidade nos meios pentecostais. Esta Teologia acaba também por influenciar

setores carismáticos católicos que a adotam em uma versão mitigada para poder ser de

algum modo conciliada com a base doutrinal do catolicismo.

Deve-se observar, porém, que no Brasil a Teologia da Prosperidade articulou-se, desde

o início, com uma outra base teológica, a Teologia da Batalha Espiritual e, de certo modo,

acabou por ser a ela integrada. Deste modo a compreensão da ação pastoral e da base

teologia do neopentecostalismo no Brasil só pode se dar em profundidade se se tem como

referência o quadro maior da Teologia da Batalha Espiritual, também chamada de

Teologia do Domínio.

A Teologia da Batalha Espiritual ou Teologia do Domínio, recupera na

contemporaneidade, de forma anacrônica, antigas narrativas judaico-cristãs extrabíblicas

que se encontram particularmente em três textos apócrifos: A Vida de Adão e Eva

(apócrifo do Antigo Testamento), o Evangelho de Nicodemos (algumas vezes chamado

de Atos de Pilatos) e o Evangelho de Bartolomeu (que incorpora parte da Vida de Adão

e Eva)14. Nestes textos é narrado que após criar a Terra e ao homem, à Sua imagem e

semelhança, Deus convoca a corte celeste para prestar homenagem a Adão. Os Arcanjos

Miguel, Gabriel e Uriel prestam homenagem a Adão, mas Satanás, também um poderoso

Arcanjo, se recusa fazê-lo afirmando: “Eu fui feito de fogo e água e com anterioridade

14
Para A Vida de Adão e Eva veja-se o texto em Daniel-Rops, La Bible Apocryphe em marge de
Láncien Testament, Cerf-Fayard, Paris, 1975 p. 215-221. Para o Evangelho de Nicodemos veja-se M
Craveri, I Vangeli Apocrifi, Einaudi, Turim, 1976, p. 299-377. Para O Evangelho de Bartolomeu veja-se
A. Santos Otero, Los Evangelios Apocrifos. Edición Critica y Bilingüe, BAC, Madri, 1983, p.530-566
12

a esta criatura; eu não adoro o barro da Terra” e então se coloca contra Deus

ameaçando-o. Deus se enfurece e abre as comportas do Céu, determinado a Miguel que

expulse Satanás, exilando-o na Terra junto com os anjos que o seguiam e que também se

recusaram a prestar homenagem a Adão. Satanás, agora inimigo de Deus, torna-se

inimigo de Adão, causa de sua queda. Seduz a Adão e Eva que caem na sedução e

desobedecem a Deus. Deste modo o demônio ganha domínio sobre a Terra e sobre os

homens e mulheres e usa este domínio para fazê-los sofrer. Deus, porém, envia Jesus para

salvar os homens e mulheres. Ele, através de sua vida, morte, descida aos infernos e

ressurreição, vence o Demônio, retirando para aqueles que O aceitam o poder do demônio

sobre eles.

No núcleo fundamental do Neopentecostalismo brasileiro está esta concepção de que,

desde a Criação e a queda de Satanás, vivemos no Cosmo uma guerra, composta de muitas

batalhas tendo de um lado Deus e seus Anjos e do outro Satanás e seus Companheiros, os

anjos decaídos ou seja, os demônios. Satanás, o inimigo de Deus e dos homens e

mulheres, tem domínio sobre as nações, famílias, pessoas e usa as chamadas brechas, isto

é, atos de rebeldia à vontade de Deus feito pelos homens e mulheres, para ter poder sobre

eles e dominá-los. A Guerra um dia será vencida definitivamente por Deus e seus Anjos.

Deus oferece aos homens e mulheres a possibilidade de escapar do domínio do Demônio,

caso estes tomem a decisão de se colocar ao lado de Deus nesta Guerra aceitando a

salvação trazida por Jesus. O modo de se colocar do lado de Deus é proclamar a Palavra

de Fé, tornar-se Seu sócio, renunciando a Satanás e entregando através da Igreja parte dos

seus bens a Deus15. É neste ponto que a Teologia da Prosperidade é integrada como um

desdobramento da Teologia do Domínio. Se através do dízimo dou parte dos meus ganhos

15
Para justificar esta posição nas Igrejas Neopentecostais são referidas de modo especial algumas
citações bíblicas Antigo e Neotestamentárias tais como: Gn 3, Is 52,7-9, Is 59,1715; Mt 4, 1-11; 2Cor 10,3-
5; Rm 13.12-14; Ef 4,15; Ef 6,12-18.
13

a Deus, dou prova que reconheço a soberania de Deu, demonstro na prática que Deus é

meu sócio, com direito a parte do que ganho. Consequentemente Deus impede o poder

do Demônio sobre minha vida. Sob o domínio de Deus, sem o Demônio para me

prejudicar, eu, remido das maldições da Torá, prospero na vida. Meus negócios correm

bem e tenho sucesso na vida profissional e afetiva, obtenho saúde, etc...

Note-se que na articulação entre Teologia da Prosperidade e a Teologia da Batalha

Espiritual, a noção de conversão é reduzida a aceitar Jesus, proclamar a Palavra de Fé, na

forma da Confissão Positiva, e tornar-se sócio de Deus através da contribuição monetária

feita à obra da Igreja. A noção de pecado, em sentido católico e evangélico clássico, é de

certo modo diminuída, pois os atos contrários à vontade de Deus que cometo são frutos

da ação do demônio que me domina. Deus ao retirar este domínio e me livrar das

maldições da Torá, faz com que os atos que pratico sejam bons. A noção de moralidade

é ambígua, pode-se mesmo cometer atos ilícitos se estes forem colocados à serviço de

Deus na Batalha Espiritual, pois estes atos neste caso são considerados legítimas

estratégias e armas na batalha contra o Demônio. O lado no qual você está na batalha é

que dá legitimidade e define a moralidade do ato. Christina Vital da Cunha publicou uma

excelente etnografia da relação entre tráfico e neopentecostalismo nas comunidades de

Santa Marta e Acari no Rio de Janeiro16. Existe hoje em Acari e em outras comunidades

do Rio uma geração de traficantes evangélicos que frequentam as Igrejas

Neopentecostais, pagam dízimo e têm seu trabalho abençoado. Em sua etnografia

Christina recolhe uma oração feita na época da pesquisa na rádio comunitária de Acari,

todos os dias, as 5:30 da manhã, por um traficante: “Senhor: Fazei com que a vida torta

que eu vivo sirva para ajudar as pessoas a viver uma vida melhor e direita. Senhor: Eu

16
C. Vital da Cunha, Oração de Traficante. Uma etnografia, Garamond, Rio de Janeiro, 2015.
14

te peço Senhor, que neste dia, nesta manhã, como em todos os dias, proteja os

trabalhadores que saem agora para o trabalho. Proteja as crianças que saem para a

escola. Senhor: eu te peço proteção para os líderes comunitários desta comunidade. Que

o Senhor ilumine suas cabeças e toque seus corações e os livre da ganância e do egoísmo

e olhem para o bem, que busquem o melhor para nosso moradores sofridos e pesados

pelos governantes poderosos. Senhor: eu te peço proteção não para mim, mas para meus

amigos. Que os livre da morte, Senhor que eles não sejam mortos covardemente e que

não matem nenhum polícia ou inimigo que venham atacar nossa favela. Em nome de ti,

Senhor é só o que peço. Agora vamos orar uma oração que todos conhecem e que serve

para todas as religiões: Pai Nosso que estais no Céu...”17. Dentro da perspectiva da

Batalha Espiritual e de um imaginário que coloca as religiões afro-brasileiras como

demoníacas, a violência dos traficantes evangélicos tem sido usada para atacar Centros

de Umbanda e Terreiros de Candomblé, expulsando as práticas das religiões de matriz

africana do território das Comunidades. Este é um outro modo como a organização

criminosa do tráfico torna-se abençoada por participar da Batalha Espiritual contra os

demônios e seus seguidores, tirando deste modo a Comunidade do Domínio territorial de

Satanás.

2. O Encontro do Neopentecostalismo com o Anarcocapitalismo

O Neopentecostalismo congrega um grande número de pessoas que pertencem às

classes populares. Segundo os dados do Censo de 2010, 63,7% de seus fiéis ganham

17
Ibidem, p.381-382.
15

apenas um salário mínimo, enquanto entre os católicos este percentual é de 55,8%.

Existem hoje Igrejas neopentecostais voltadas para a classe média e até mesmo para

grupos pertencentes aos extratos econômicos superiores. A Teologia do Domínio,

conforme observado, oferece um forte suporte para o sujeito ressentido e de certo modo

sua cosmovisão converge com a do anarcocapitalismo, cuja ideologia também cumpre

este papel.

Hoje, para além do neoliberalismo desenvolve-se no contexto brasileiro a chamada

escola austríaca que cria uma interpretação da sociedade, da economia e da ética que serve

fortemente de suporte ao ressentimento na medida em que apresenta o Estado e todo o

seu corpo politico, administrativo e jurídico como o grande inimigo que impede que cada

indivíduo possa atingir sua autodeterminação absoluta. O fundador desta escola é o

austríaco, radicado nos Estados Unidos, Ludwing von Mises. Entre os principais

ideólogos desta corrente de pensamento encontram-se Hans-Hermann Hoppe e Murray

Rothbard, cujo livro Ética da Liberdade coloca claramente os fundamentos filosóficos

desta escola18. Segundo Rothbard, o direito à propriedade constitui-se como único e

fundamental direito universal. Trata-se de um direito absoluto, que se inicia com o direito

à propriedade absoluta do próprio corpo e que inclui todos os bens que possa adquirir.

Deste direito fundamental deriva um outro que é o direito absoluto de não agressão à

propriedade e o direito de defender minha propriedade através de qualquer meio,

revidando qualquer ataque com os meios necessários à tal defesa. O Estado é apontado

como o grande usurpador da propriedade. Por isto esta corrente é conhecida seja como

libertarianismo seja como anarcocapitalismo ou ainda ultraliberalismo. O livre mercado

18
Para uma melhor compreensão desta corrente de pensamento veja-se: L. Von Mises, As seis lições,
Reflexões sobre o hoje e amanhã, LVM Editora, São Paulo, 2017 ; H-H Hoper, Uma Teoria do Socialismo
e do Capitalismo, Instituto Ludwig Von Mises Brasil, São Paulo, 2013; M. Rothbard, Anatomia do Estado,
LVM, São Paulo, 2018 e M. Rothbard. A Ética da Liberdade, Instituto Ludwig Von Mises Brasil, São
Paulo, 2010.
16

é tido como sendo a única instituição ética. Qualquer contrato entre dois indivíduos no

mercado livre é considerado como sendo essencialmente ético. Todos devem ser

compreendidos como portadores dos mesmos direitos em um mercado livre, isto é, como

portadores do único direito fundamental: dispor de sua propriedade como achar melhor,

segundo seus objetivos e as estratégias adotadas para atingi-los. Um ponto de interesse,

tendo em vista a disseminação das chamadas Fake News nas últimas eleições em diversos

países, é que M. Rothbard, defende a sua legitimidade ética em todo um capítulo de sua

obra Ética da Liberdade19. Segundo este autor para que cada indivíduo possa melhor

traçar suas estratégias para atingir seus objetivos, ele deve poder dispor de todas as

informações possíveis e ninguém tem o direito de selecionar quais informações ele deva

receber, mesmo baseado em um critério de verdadeiro e falso que busque eliminar as

noticias falsas. Informação verdadeira é a que me é útil no estabelecimento de minhas

estratégias e objetivos. Trata-se de um conceito utilitarista da verdade, que de fato elimina

qualquer relação objetiva entre uma notícia e um fato ocorrido.

Cada indivíduo é o único responsável pelos objetivos escolhidos para si e pelas

estratégias desenvolvidas como sendo as mais adequadas para atingi-los. Se os objetivos

conduzirem a uma situação difícil ou se algo falhar nas estratégias desenvolvidas,

ninguém pode ser responsabilizado. Assim, se alguém consumir todo o seu capital para

gozar a vida na juventude e não poupar para a velhice, morrerá na miséria coerentemente

com seus objetivos e estratégias e ninguém deve ser obrigado a socorrê-lo. O mesmo se

dá se em decorrência de seu estilo de vida o indivíduo vier a adoecer. Um usuário de

tabaco, por exemplo, não deve ter nenhum socorro social se adoecer por causa deste uso.

19
M. Rothbard. A Ética da Liberdade...,p.187-195.
17

O Estado ao cobrar impostos e oferecer saúde gratuita, aposentadoria, escola gratuita,

obriga-me à solidariedade social e cria parasitas que vivem de minha propriedade, na

medida que qualquer imposto é considerado uma forma de confisco da propriedade.

Temos aqui uma concepção do Estado Mínimo muito mais radical do que a

promulgada pelo Neoliberalismo. Nem saúde, nem educação, nem previdência, nem

segurança pública, nem justiça. O Estado é sempre ineficiente e todo imposto é uma

agressão à propriedade. Todo grupo político que chega ao poder no estado passa a usar o

Estado para se beneficiar e para permanecer indefinidamente no poder, roubando para

isto. A segurança deve estar na mão de seguranças privados contratados inclusive para

exercer a justiça criminal, o exército deve ser composto por poucos homens e a defesa

garantida por grupos mercenários especializados. A justiça civil deve ser exercida por

empresas de conciliação contratadas livremente pelas partes em litígio.

No Brasil, este pensamento é produzido e divulgado pelo Instituto Mises Brasil, onde

se destaca o economista Ubiratam Iorio, pelo Instituto Millenium, Instituto Lide,

Movimento Brasil Competitivo, Estudantes pela Liberdade (EPL) e Movimento Brasil

Livre entre outros. Um partido no Brasil assumiu esta ideologia como sua: o partido

Novo. O Fórum de Liberdade reúne periodicamente em Porto Alegre partidários desta

escola. Sites de notícias como o Antagonista e a revista digital Crusoé também se

constituem como importantes veículos divulgadores desta ideologia através da qual o

individuo ressentido das classes médias brasileiras aprende como nomear o autor da

injúria sofrida: o Estado Brasileiro, os Políticos profissionais que vivem do Estado, de

modo especial os de esquerda, categoria que passa a incluir todos os que de algum modo

defendem o Estado, desde os comunistas, os socialista, os Sociaisdemocratas até o


18

Nazismo. A Esquerda é considerada particularmente culpada por tentar promover a

justiça social, expropriando a propriedade da classe média. Os pobres são vistos como

indivíduos que escolheram objetivos errados ou estratégias deficientes, ou por serem

incapazes, ou por serem vagabundos ou por outro vício moral, e exigem posteriormente

serem socorridos. Estes devem ser abandonados à própria sorte, arcando com as

consequências de suas escolhas. O mérito deve ser o único critério de ascensão social e

ele inclui necessariamente a escolha de bons objetivos e boas estratégias. O mais é o

chamado mimimi de perdedores, onde são incluídos afrodescendentes, mulheres, e lgbts

que não conseguem ascender socialmente e são considerados pelos ressentidos, apoiados

na ideologia libertarianista, como fracassados que exigem privilégios.

Esta ideologia conflita em sua raiz com a Doutrina Social da Igreja. Desde a

Rerum Novarum até a Laudato Si’, o Estado é compreendido como um bem, pertencendo

à ordem da criação, pois os homens foram criados para a vida social e esta exige um

princípio de autoridade que promova a harmonia e justiça no grupo. A solidariedade

social é compreendida não como caridade opcional, mas como dever de justiça e

constitui-se em um dos objetivos primordiais do Estado. Deve ser lembrada aqui a

afirmação de feita por Bento XVI, em conformidade com a filosofia platônica e com

Agostinho: “A justiça é o objetivo e, consequentemente, também a medida intrínseca de

toda a política. A política é mais do que uma simples técnica para a definição dos

ordenamentos públicos: a sua origem e o seu objetivo estão precisamente na justiça, e

esta é de natureza ética. Assim, o Estado defronta-se inevitavelmente com a questão:

como realizar a justiça aqui e agora? Mas esta pergunta pressupõe outra mais radical:

o que é a justiça?” (DCE 28). A Justiça tem por base a Ética e também Bento XVI afirma:

"Sobre este argumento, a doutrina social da Igreja tem um contributo próprio e

específico para dar, que se funda na criação do homem « à imagem de Deus » (Gn 1,
19

27), um dado do qual deriva a dignidade inviolável da pessoa humana e também o valor

transcendente das normas morais naturais. Uma ética econômica que prescinda destes

dois pilares arrisca-se inevitavelmente a perder o seu cunho específico e a prestar-se a

instrumentalizações; mais concretamente, arrisca-se a aparecer em função dos sistemas

econômico-financeiros existentes, em vez de servir de correção às disfunções dos

mesmos. Além do mais, acabaria até por justificar o financiamento de projetos que não

são éticos” (CV 45). A defesa dos direitos dos pobres e das minorias é central na Doutrina

Social da Igreja e em especial no Magistério do Papa Francisco.

O ponto de partida fundamental da Escola Austríaca se encontra na afirmação do

direito absoluto à propriedade privada, como único princípio e valor universalizável que

legitima inclusive qualquer forma de violência para sua defesa. Esta concepção é

radicalmente oposta à Doutrina Católica. Para a Teologia e o Magistério Social Católico

a propriedade privada nunca foi compreendida como sendo um princípio absoluto, antes,

pelo contrário, sempre se afirmou sua subordinação ao Bem Comum. Desde a Patrística

se afirma o Princípio da Destinação Universal dos Bens segundo o qual Deus criou os

bens da terra para satisfazer a necessidade de todos os homens e mulheres. Baseado neste

princípio São Basílio Magno escreveu, no século IV, em sua famosa homilia sobre Lucas

12, 16-21 as seguintes palavras, que traduzem a doutrina comum dos Padres da Igreja:

“O que faço de errado, diz ele, guardando o que é meu? Dize-me, de que modo é teu?

Donde tiraste, tomando-o para teu sustento? É como alguém que, indo ao teatro, se

apoderasse do espetáculo e quisesse excluir os que entrassem depois, pretendendo ser só

seu aquilo que é comum a todos os que se apresentam, conforme lhes parece bem. Assim

são os ricos. Pois, apoderando-se primeiro do que é de todos, tudo tomam para si por

uma falsa ideia. Se cada um tirasse para si o que lhe é necessário e entregasse ao

indigente o que sobra, ninguém seria rico, ninguém pobre. Não saíste nu do útero e não
20

retornarás nu para a terra (cf. Jó 1,21)? Os bens que possuis, de onde vêm? Se dizes que

provêm do acaso, és ímpio, não reconhecendo o Criador e não dando graças ao doador.

Se, ao invés, admites que são de Deus, dize-me por que os recebeste. É talvez injusto

Deus, que nos distribui os meios de subsistência de modo desigual? Por que tu és rico e

aquele é pobre? Certamente para que tu pudesses receber a recompensa da bondade da

fiel administração e aquele pudesse conseguir o magnífico prêmio da paciência. E tu,

quando procuras abarcar tudo nos insaciáveis ventres da avareza, julgas não fazer

injustiça a ninguém, privando tanta gente do necessário? Quem é o avarento? Aquele

que não se contenta com aquilo que lhe é suficiente. Quem é o ladrão? Quem tira aquilo

que é de outro. Não és avaro? Não és ladrão, tu que fazes tua a propriedade que recebeste

para administrar? Quem espolia alguém que está vestido é tido como ladrão; e quem,

podendo fazê-lo, não reveste quem está nu merecerá outro nome? O pão que tu reténs

pertence ao faminto, o manto que guardas no armário é de quem está nu; os sapatos que

apodrecem em tua casa pertencem ao descalço; o dinheiro que tens enterrado é do

necessitado. Porque tantos são aqueles aos quais fazes injustiças, quantos aqueles que

poderias socorrer.20”

São Tomas de Aquino, na Suma Teológica, trata da questão da propriedade dos bens

na questão LXVI, da IIa IIae. No primeiro artigo dessa questão São Tomás afirma o

princípio da Destinação dos Bens e a legitimidade da posse dos mesmos pelos homens e

mulheres para que estes possam satisfazer a necessidade de todos, citando o Salmo 8,8.

Trata-se aqui não da posse privada, mas do ato de possuir. No segundo artigo defende a

legitimidade da posse privada recorrendo apenas a um argumento de conveniência:

porque como cada um trata melhor o que é seu do que é comum, os bens destinados a

20
Para o texto completo veja-se Restituto Sierra Bravo, Doctrina Social..., p.169-178, p. 177. M.G.,
31,261-277.
21

todos podem ser melhor aproveitados se cada um possui uma parte dos bens de modo

privado. Fala-se então que a propriedade privada é de Direito Natural secundário, pois

sua legitimidade está condicionada e subordinada à Destinação Universal dos Bens. Isto

é, segundo São Tomás, os bens destinados a satisfazer a necessidade de todos são melhor

aproveitados se distribuídos em forma de propriedade privada. Porém se a posse privada

se torna um obstáculo a que estes bens possam satisfazer a todos, ela não é legítima. Este

princípio levou o Papa João Paulo II a formular a famosa sentença: “É necessário

recordar mais uma vez o principio típico da doutrina social cristã: os bens deste mundo

são originariamente destinados a todos. O direito à propriedade privada é válido e

necessário, mas não anula o valor de tal principio. Sobre a propriedade, de fato, grava

«uma hipoteca social»” (SRS 42). Não há nenhuma compatibilidade possível entre os

conceitos do Libertarianismo e a Doutrina Social da Igreja.

De outro lado, na Teologia neopentecostal da Batalha Espiritual desenvolvida no

Brasil, elaborou-se uma visão do Estado e da Sociedade que serve de suporte ao

anarcocapitalismo. O Estado é compreendido como sendo uma instituição

intrinsicamente dominada pelo Demônio que o usa para prejudicar e subjulgar as pessoas.

Os políticos são instrumentos dos demônios para exercer este domínio. Quando meu filho

entra para a Universidade por meio da política de cotas vejo nisto apenas um dom, uma

resposta de Deus à minha oração. Deus que me livrou das maldições da Torá, afastou o

demônio de minha vida, garantindo a vaga de meu filho na Universidade; não vejo neste

acesso à Universidade uma oportunidade gerada por políticas públicas voltadas à redução

de desigualdades. Já qualquer dificuldade, como encontrar-se desempregado, é atribuída

aos políticos ladrões, instrumento de Satanás. Desta maneira aqui também o sujeito

ressentido aprende a nominar aquele que o prejudica, o injuria: são os políticos, todos

corruptos e corruptores, instrumentos de Satanás. Associam-se inclusive perversões


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morais e sexuais aos políticos para demonstrar como estes estão ligados aos demônios e

são seus instrumentos. As Fake News amplamente utilizadas nas campanhas eleitorais

são aceitas como verdade a priori, pois se encaixam plenamente na lógica narrativa mais

ampla da Batalha Espiritual. Elas apenas confirmam o que já se sabia.

A partir desta concepção se compreende a importância para um fiel neopentecostal de

se elegerem homens e mulheres que sendo Pastores e pessoas da Igreja saibam lidar com

os demônios e conter seu poder. Deste modo constrói-se uma ideologia que substitui a

lógica política pela religiosa, abrindo espaço para o populismo e o fascismo. Tudo se

resume à Batalha Espiritual, ao cuidado das pessoas nesta Batalha, conforme a campanha

para prefeito do Bispo Crivella no Rio de Janeiro, ao estar do lado certo, do lado de Deus,

contra o Demônio. A convergência desta concepção de mundo com o ideário

anarcocapitalista, onde o Estado é visto como intrinsicamente mau, produz o apoio dos

neopentecostais ao ideário das políticas econômicas e sociais anarcocapitalistas, à

antipolitica e ao neopopulismo contemporâneo, assim como à luta contra as instituições

democráticas como o Congresso e o Supremo Tribunal Federal. As Instituições devem

ser todas ocupadas por pessoas “terrivelmente evangélicas” aptas a expulsar o demônio e

a promover a própria descontrução das Instituições já que são intrinsecamente más. No

Congresso forma-se a aliança entre a bancada neopentecostal e políticos eleitos pela

defesa de bandeiras libertarianistas, conforme já noticiado pela Folha de São Paulo em 7

de novembro de 2018.

Dentro deste quadro, pode-se ver como a luta política pela construção de uma

sociedade mais justa e igualitário, constituída por sujeitos autônomos, livres e solidários,

a defesa do Estado Democrático de Direito e do Estado de Bem estar Social, se relaciona


23

diretamente com o enfrentamento da Crise da Cultura e com a construção de alternativas

religiosas que permitam superar a Teologia da Batalha Espiritual e da Prosperidade.

i
O autor é Doutor em Teologia pela Pontifícia Universidade Gregoriana de Roma e Professor desde 1982
do Departamento de Teologia da PUC-Rio, onde Coordena a Cátedra Paulo VI de Fé e Política. É membro
fundador do CEFEP da CNBB e atualmente (2020) é membro da Diretoria da SOTER (Sociedade de
Teologia e Ciências da Religião) e do INSeCT (Network of Societies for Catholic Theology).

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