Você está na página 1de 28

Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 UNIDADE 1

PRINCÍPIOS E MÉTODOS DE
INTERPRETAÇÃO DOS TEXTOS BÍBLICOS

APRESENTAÇÃO
A Unidade, que aqui apresentamos, lidará com questões introdutórias que serão o arca-
bouço teórico do que virá nas subsequentes lições nas outras unidades. Por um lado,
a Unidade I prepara o aluno e a aluna para desenvolverem os primeiros pressupostos
sobre os estudos da Bíblia exegeticamente e hermeneuticamente.

Por outro lado, a pesquisa que desenvolveremos na presente Unidade lidará com ques-
tões a respeito do papel da história, arqueologia e do olhar literário para a interpretação
dos textos bíblicos.

No tópico 1, o estudante verá que a Bíblia Hebraica possui textos que foram elabo-
rados por meio de um processo de longa duração. Suas narrativas, antes de serem
colocadas por escrito por escribas, eram histórias orais.

A Bíblia Hebraica, então, foi organizada e dividida em três partes pelos judeus, a saber,
Torá (Leis), Nebiim (Profetas) e Ketubim (Escritos), e pelos cristãos em Pentateuco,
Livros Históricos, Livros Poéticos e Profetas Maiores e Menores.

Esse tópico ainda discutirá introdutoriamente as questões envolvendo a escrita e a


datação dos textos da Bíblia Hebraica em Israel, ao norte, e Judá, ao sul. O objetivo é
demonstrar a complexidade do processo de escrita e compilação dos textos.

Os textos da Bíblia Hebraica serviram diversas vezes como ferramenta de construção


de identidade e legitimidade em meio às deportações e conflitos com povos poderosos
da região do Antigo Oriente.

No tópico 1.1, a discussão será sobre O Novo Testamento. Da mesma forma que a Bíblia
Hebraica, os textos sagrados do Cristianismo em nossas bíblias foram divididos em blocos,
denominados Evangelhos, Livro Histórico (Atos dos Apóstolos), Cartas e o Apocalipse.

O Novo Testamento foca principalmente a figura de Jesus, que, para a fé cristã, é con-
siderado Cristo (Messias). É sobre ele que são narradas as histórias nos evangelhos e
é a sua proclamação que Atos e as cartas paulinas e universais focam.

1
Destacamos que os evangelhos não são biografias de Jesus, mas confissão de fé das pri- 1
meiras comunidades. O próprio termo “evangelho” encerra o significado de proclamação.

Os evangelhos de Mateus, Marcos e Lucas olham a figura de Jesus de Nazaré como


o Messias prometido, porém, cada evangelista narra o ministério de Jesus com olhar
teológico próprio.

O Evangelho de João destaca-se por sua cristologia alta. É discutido nesse tópico a
“diferença” no modo cristológico que João narra a respeito de Jesus de Nazaré. Jesus,
para João, é Messias antes do seu nascimento, pois era a Palavra divina.

Nesse bloco também falaremos resumidamente sobre questões de datação e das dis-
cussões a respeito dos ditos de Jesus, compilados nos três primeiros evangelhos. O
evangelho de Marcos e a chamada Fonte Q (Quelle, palavra alemã que significa fonte)
serão avaliados na abordagem.

Ao nos referirmos às Cartas Paulinas e às Cartas Gerais, trataremos sobre a forma


literária desses primeiros documentos do Cristianismo e a finalidade teológica deles.

Por último, ainda no tópico 1.2, o Apocalipse será visto, e comentaremos as caracte-
rísticas literárias do último livro do Novo Testamento. Apocalipse é um livro de visões.

Vale salientar aqui na apresentação que nosso entendimento não é ver o Apocalipse
como um livro que “prevê” o futuro, mas sim um livro de esperança para as comunida-
des da Ásia Menor e para todos os cristãos de todas as épocas.

Hermenêutica Bíblica 2
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 No tópico 2, o assunto abordado será os gêneros literários que aparecem nos textos
bíblicos, ou seja, formas literárias que lemos na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento.

O estudo desenvolvido nesse tópico analisará como detectamos diferentes gêneros lite-
rários nos livros bíblicos e quais as características de conteúdo que devemos perceber
na averiguação dos gêneros.

Ainda no tópico 2, estudaremos três tipos de gêneros: o Jurídico, o Narrativo e o Po-


ético. O gênero jurídico se caracteriza por textos cujos personagens aparecem exe-
cutando um veredicto. Daremos alguns exemplos para ilustrar como tal forma literária
aparece na Bíblia.

Já o gênero narrativo será explicado como o estudo do texto em sua forma final, ou seja,
a preocupação com esse tipo de gênero é com sua estrutura, trama, personagens etc.

Por último, veremos os aspectos literários de uma poesia, sua construção e função na
Bíblia, os tipos de paralelismos, os diferentes salmos e cânticos etc. Perceberemos a
beleza de aprender sobre alguns pontos da poesia hebraica.

No tópico 3, continuaremos a estudar os diversos gêneros encontrados na Bíblia e o


nosso olhar se voltará aos gêneros Profético, Apocalíptico e Sapiencial. Para cada um
deles, como foi feito anteriormente, serão dados exemplos da Bíblia.

O gênero profético é caracterizado por uma série de linguagens próprias, por exemplo,
o anúncio, o julgamento, a chamada fórmula do mensageiro e assim por diante.

O gênero apocalíptico se destaca por possuir em seu conteúdo visões, forte dualismo,
e se caracteriza por narrar o duelo entre as forças do bem e do mal e uma série de
números, monstros etc. Citaremos algumas obras que são parte desse tipo de gênero.

No chamado gênero sapiencial, focaremos nossa atenção em explicar que a preocupa-


ção dos sábios que desenvolveram os livros com essa forma literária era com aspectos
relacionais do cotidiano do povo.

A ética e o bom comportamento diante do outro são vistos pelos sábios como uma
maneira de viver bem. Os textos sapienciais possuem diversos ensinamentos, e perce-
bemos que os sábios são “observadores” da vida do ser humano.

No tópico 4 de nosso material didático, estudaremos mais quatro gêneros literários:


Evangelho, Epistolar, Narrativo e as Genealogias.

Sobre o gênero evangelho, destacaremos sua importância na Bíblia e a reunião, em


seu conteúdo, de sentenças de Jesus, que são ditos com ensinamentos falados pelo
Mestre. Além disso, nos evangelhos temos outros subgêneros literários, como relatos
de milagres, narrativa sobre a crucificação etc.

Veremos que os evangelhos também fazem uso da Bíblia Hebraica, por meio de uma
hermenêutica própria, e encontram nesses textos o anúncio da vinda do Messias Jesus.
Eles são lidos sob a ótica cristã.

3
Sobre o gênero epistolar, nosso enfoque será estudar como essa forma literária era 1
usada no mundo antigo da era cristã. Algumas características formais serão apontadas,
e olharemos como Paulo fez uso dos gêneros epistolares da sua época.

No gênero narrativo histórico também serão elencados alguns subgêneros que lemos
na Bíblia. Falaremos sobre determinados tipos literários, como a saga, a lenda e o mito,
que fazem parte dos livros da Bíblia.

Destacaremos, porém, que quando nos referirmos ao mito e à lenda, não estamos fa-
lando de falsidade, mentira, como é visto esses conceitos no mundo moderno. Esses
gêneros são narrativas nas quais os personagens são descritos com o colorido da fé
dos autores dos relatos.

Por fim, estudaremos a função das genealogias na Bíblia. Nosso enfoque destacará o
objetivo de se justificar e legitimar determinados acontecimentos do povo ou dos per-
sonagens bíblicos.

Além disso, as genealogias servem como costuras entre relatos, promovendo continui-
dades nas histórias narradas, por exemplo, das famílias de Abraão, Isaque e Jacó que
aparecem no Pentateuco.

Esperamos que esta Unidade seja bastante interessante para o estudo. Desejamos
uma ótima leitura a todos!

1. A INTERPRETAÇÃO DA BÍBLIA HEBRAICA (ANTIGO


TESTAMENTO)
A Bíblia Hebraica é chamada de Antigo Testamento pela tradição cristã. O termo pressu-
põe que Jesus Cristo atualizou a aliança feita com os judeus, testemunhada no Antigo
Testamento por meio de sua morte ou ressurreição.

Nesse material, preferiremos chamar de Bíblia Hebraica, por entendermos que esse conceito
fornece maior “neutralidade” e diálogos entre as tradições judaicas e cristãs do que o termo
Antigo Testamento. Para um judeu, a
Bíblia Hebraica não é “antiga”.

A Bíblia Hebraica é compartilhada


entre cristãos e judeus diferentemen-
te. Para a tradição judaica, a Bíblia
Hebraica é dividida em três partes
a saber: Torá (lei/instrução), Nebiim
(profetas) e Ketubim (escritos).

Diferente da divisão tripartite dos ju-


deus, os cristãos dividem seu Antigo
Testamento em Pentateuco, Livros
Históricos, Livros Sapienciais e Li-
vros Proféticos, que são repartidos
em menores e maiores.

Hermenêutica Bíblica 4
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 A Bíblia Hebraica é um livro complexo e extraordinário. Foi redigida durante um processo


histórico de longa duração. Portanto, ao lermos atentamente suas páginas, percebemos
diversas vozes que ecoam, muitas vezes com perspectivas diferentes umas das outras.

Na Torá, temos diversas camadas e escritos que possuem linguagem e teologia pró-
prias, com intenções que vão desde narrar os inícios de Israel e Judá até questões com
o culto, sacrifícios e a aliança.

Da mesma forma, os livros históricos (proféticos para os judeus) demonstram preocu-


pações com o culto correto em Jerusalém e a condenação dos deuses da fertilidade
estrangeiros, e de explicar o porquê de Jerusalém ter sido destruída pelos babilônios.

Para se entender e fazer uma boa análise da Bíblia Hebraica, primeiro devemos nos
atentar a alguns caminhos a serem percorridos para a decodificação de seus textos. A
primeira dica para realizar exegese de seus livros é percebermos que seus autores não
são de nossa época, ao contrário, são de tempos em que raramente havia escrita.

Seus textos, em um primeiro momento, foram transmitidos oralmente, até chegarem a


ser redigidos em rolos. É importante compreendermos isso para não lermos os textos
da Bíblia Hebraica equivocadamente e aplicarmos nossas visões de mundo ao teor.

A escrita começou, aproximadamente, no VIII século AEC, em Israel ao norte, e em Judá no


VII século AEC. O aumento do poder político de Israel e Judá na região do Levante provavel-
mente contribuiu para a proliferação razoável de textos escritos (ver SCHIMID, 2013, p.54-67).

AEC – Abreviatura de “antes da era comum”. Outros preferem a.C. que significa
“antes de Cristo”. No nosso material didático, optamos por AEC por entendermos
que a abreviatura faz jus aos diferentes grupos religiosos que não são cristãos.

Um segundo ponto que podemos elencar, para melhor traduzir e interpretar o mundo da
Bíblia Hebraica e de seus autores, é estudarmos o desenvolvimento histórico e arqueo-
lógico de Israel e Judá. Atualmente, temos um número razoável de livros de História de
Israel e alguns de arqueologia nas terras da Bíblia Hebraica, que ajudam o pesquisador
a trabalhar e entender melhor o período histórico dos autores.

Gabel e Wheeler (1993, p.59) assim afirmam:


Os escritores da Bíblia viveram em algum lugar, e os eventos sobre os quais
escreveram sempre foram concebidos como ocorrendo num lugar. Não so-
mente os escritos obviamente históricos da Bíblia, mas até suas passagens
poéticas e visionárias chegam até nós compostos pelas imagens da vida
contemporânea que esses escritores conheciam a partir do seu próprio am-
biente. Esse ambiente – o contexto físico da literatura bíblica – era o mundo
do que se denomina tradicionalmente Oriente Próximo.

Aqui damos mais um passo para analisar a Bíblia Hebraica, ou seja, a necessidade de enten-
dermos a ação do Egito, Assíria, Babilônia, Pérsia e Grécia para compreendermos como a fé
de Israel e de Judá foram moldadas, muitas vezes, negando-se as influências dessas nações
ou aceitando e transformando certas tradições de acordo com suas perspectivas teológicas.

5
Elencados os itens acima, precisamos anotar ainda algo particularmente relevante para 1
auxiliar a exegese dos textos da Bíblia Hebraica. Como já afirmado, a Bíblia Hebraica
foi compilada e escrita por longos períodos. Assim, podemos verificar que seus autores
apresentam teologias diversas e várias formas de ver a ação de seu Deus.

Temos portanto, memórias escritas e guardadas em uma grande biblioteca, que são os
textos da Bíblia Hebraica. Ernst Axel Knauf (2010, p. 73-74) afirma:
O Antigo Testamento está composto em grande parte de textos literários, para
a formação dos quais nem a corte, nem o templo, nem suas escolas, oferecem
um pano de fundo plausível. Nas mais antigas histórias de Abraão e de Jacó,
nos livros de Amós e de Isaías, de Oseias e de Jeremias, estão reunidas verda-
deiras obras-primas linguísticas. Onde os intelectuais do Oriente Próximo po-
deriam desenvolver um domínio tão grande no comércio da língua? A serviço
da corte, certamente. Mas essa literatura é muito crítica no tocante ao templo
e ao palácio. Depois do fracasso da política judaica oficial, após a queda do
Estado e de suas instituições (587 a.C.), foi naturalmente a oposição que se
sentiu legitimada e que estabeleceu o fundamento do novo ponto de partida,
do qual resultaram, na época persa, a Torá e os livros proféticos canônicos. A
sobrevida da religião judaica no exílio e a persistência da querela dos partidos
desde o último século do reinado dravídico devem com toda verossimilhança
ser atribuídos à posse de livros fora do templo e do palácio.

Por fim, para melhor entendermos e interpretarmos essas memórias escritas guarda-
das, teremos que analisar os gêneros literários que essa coleção de livros nos traz. Na
Bíblia Hebraica temos diversos gêneros literários que perpassam suas páginas. Traba-
lharemos alguns deles nesse material didático.

Ao percebermos como tal gênero se aplica ao livro pesquisado, poderemos ter o


auxílio necessário para interpretar o que o autor ou autores quiseram teologicamente
demonstrar com suas narrativas.

E o Novo Testamento? Como interpretá-lo? É o que veremos no nosso próximo tópico.

1.1 A INTERPRETAÇÃO DO NOVO TESTAMENTO


O Novo Testamento é a coleção de livros sagrados dos cristãos. Assim como vimos
no estudo da Bíblia Hebraica, também os livros do Novo Testamento são divididos
em partes, e cada bloco de textos tem suas características próprias.

A Bíblia cristã é dividida em Evangelhos, Livro


Histórico (Atos), Cartas, Apocalipse. Cada par-
te do Novo Testamento fornece testemunho de
Jesus, considerado O Cristo pelas igrejas cris-
tãs, tanto as católicas como as protestantes.

É importante salientar que não temos nenhum


escrito vindo de Jesus. O que foi compilado e
canonizado são os testemunhos de fé de seus
discípulos, que no primeiro século escreve-
ram esses documentos tão importantes para
o estudo da cristandade.

Hermenêutica Bíblica 6
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 O Novo testamento foi canonizado em meados do IV século EC. Muitos textos ficaram
de fora. Hoje sabemos que existiram diversos grupos cristãos que escreveram sobre a
figura de Jesus de Nazaré.

EC – Abreviatura de “era comum”. Outros preferem d.C. que significa “depois


de Cristo”. No nosso material didático, optamos por EC por entendermos que a
abreviatura faz jus aos diferentes grupos religiosos que não são cristãos.

Textos gnósticos, apocalipses apócrifos, cartas, entre outras obras literárias, foram con-
siderados não autorizados e de inspiração herege pela igreja antiga. Alguns critérios
foram usados, sendo que a premissa da tradição apostólica foi a principal. Tal escrito foi
elaborado pelos apóstolos ou discípulos destes?

Textos Gnósticos – Conjunto de textos de cristãos considerados hereges pelos


concílios da igreja cristã “ortodoxa”. Diversos textos gnósticos foram encontrados em
1945, em Nag Hammadi, no Egito.
Apocalipses Apócrifos – Conjunto de textos com conteúdos visionários e de
revelação da tradição judaico-cristã que não foram reconhecidos pela igreja primitiva
como “canônicos”. Apócrifo significa espúrio, falso etc..

Cada evangelho narra, com um viés próprio, a atuação e ministério de Jesus de Nazaré.
Os três primeiros evangelhos foram denominados pela pesquisa bíblica de “Evangelhos
Sinóticos”, por terem “um só olhar”. O quarto evangelho, o de João, não faz parte dos
evangelhos sinóticos.

Nos evangelhos não temos história, no sentido moderno da palavra, mas narrativas de
comunidades de fé, que viram em Jesus o Messias prometido em Israel desde os tem-
pos da Bíblia Hebraica. Esses textos mostram o início do ministério de Jesus até sua
morte e ressurreição.

Comumente, aceita-se na pesquisa do Novo Testamento que Marcos é o evangelho


mais antigo, provavelmente escrito entre os anos 66 a 70 EC. Os outros evangelhos, de
Mateus e Lucas, teriam usado Marcos como fonte e intérprete dos ditos de Jesus, de
acordo com suas circunstâncias existenciais.

Mesmo os evangelhos sinóticos apresentam diferenças interessantes no modo como


narram o ministério de Jesus. Para Marcos, por exemplo, a atuação do Messias começa
após o batismo (Mc 1, 1-9). Nos evangelhos de Mateus e Lucas, Jesus é escolhido a
filho de Deus desde o ventre de Maria (Mt 1, 1-24; Lc 1, 26-45).

Evangelhos Sinóticos – O três primeiros evangelhos que apresentam fortes


semelhanças de visão em seu conjunto. A palavra sinótico vem do grego “syn”, mais
a junção do termo “ópsis”, significando literalmente “visão de conjunto”.

7
As genealogias também são feitas conforme o público e a intenção teológica. Para 1
Mateus, a genealogia é mais particular, ligando o Messias Jesus a Israel. Em Lucas,
a genealogia é mais universalista, colocando Jesus como filho da humanidade (Lc 3,
23-38; Mt 1, 1-17).

O evangelho de João retrata Jesus como o Logos divino, aquele que estava no princípio
com Deus. João vai além dos evangelhos sinóticos e entende Jesus Cristo como eter-
no, a Palavra de Deus. A cristologia apresentada nesse evangelho é bem caracterizada.

Um exemplo da peculiaridade desse evangelho está demonstrado em João 1, 29-31:


“No dia seguinte, vê Jesus dirigindo-se para ele e diz: “Eis o cordeiro de
Deus, que tira o erro do mundo. É aquele de quem eu disse: ‘Depois de mim
vem um homem que me passou à frente, porque existia antes de mim. Eu
não o conhecia; mas, para que ele se manifestasse a Israel, por isso é que
eu vim batizar na água.”

De acordo com o evangelista, João Batista já conhecia a divindade de Jesus desde


seus primeiros passos no ministério, e que veio para tirar os pecados da humanidade,
como demonstrado no texto acima, o adjetivando teologicamente como “cordeiro de
Deus que tira o pecado do mundo”, ao contrário dos evangelhos sinóticos, em que João
Batista fica confuso e tem dúvidas a respeito de Jesus, como vemos em Lc 7, 19-23:
Os discípulos de João informaram-no de todos esses fatos. Chamando dois
deles, João mandou-os ao Senhor dizendo: “És tu o que está vindo, ou de-
vemos esperar outro? Ao chegarem junto dele, os homens disseram: “João
Batista mandou-nos encontrar contigo para te perguntar: “És tu o que está
vindo, ou devemos esperar outro?”

Por que mostramos essas diversidades narrativas nos evangelhos que aparentemente
são contraditórias? Ora, os evangelhos foram escritos em diversas épocas distintas e
em diferentes regiões do mundo dominadas pelos romanos.

É preciso ter isso em mente. Não podemos cometer um equívoco exegético e misturar
os textos, como dissessem a mesma coisa. Cada texto possui suas intenções teoló-
gicas particulares. É preciso analisar cada evangelho particularmente para entender-
mos como enxergavam a figura do Cristo.

Em seguida ao evangelho de João temos o livro de Atos dos Apóstolos, que conta a his-
tória da igreja primitiva, desde as perseguições até a pregação aos chamados gentios
pelo apóstolo Paulo. Atos é a continuação do evangelho de Lucas.

Assim como os evangelhos, não devemos ler o livro de Atos como narrativas preo-
cupadas em demonstrar os fatos de acordo como nós entendemos em historiografia
nos moldes moderno. O narrador está preocupado em demonstrar teologicamente os
acontecimentos.

Assim como na Bíblia Hebraica, a função dos relatos é teológica. Isso não significa
que não possa ter havido acontecimentos históricos, mas tais eventos são coloridos
sob a ótica da fé.

Hermenêutica Bíblica 8
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 Um exemplo para ficar mais clara a nossa observação: os historiadores trabalham com
documentos escritos que fornecem testemunhos sobre determinado fato. Assim, ele
constrói sua narrativa e interpreta o ocorrido de acordo com exames minuciosos das
fontes documentais.

Examinando os evangelhos, um historiador pode chegar ao seguinte juízo: existiu um ho-


mem chamado de Jesus, que pregava o reino de Deus, e com isso arrebanhou discípulos
que o acompanhava em suas peregrinações. Foi julgado, condenado e morto na cruz.

Do ponto de vista de um teólogo, a mesma análise afirmaria: Jesus, nascido Deus da


virgem Maria, pregou e fez diversos milagres durante seu ministério. Teve discípulos
que testemunharam seus milagres e o consideravam Filho de Deus. Foi julgado, conde-
nado e morto na cruz. No terceiro dia, ressuscitou.

Perceberam a diferença? Os evangelhos e os Atos dos Apóstolos estão no segundo


exemplo. Suas afirmações ocorrem no âmbito da fé e não no da história. O historiador
trabalha empiricamente.

Milagres, ressurreição, andar sobre o mar, não podem ser comprovados pelos métodos
científicos da História, mas pertencem ao domínio da fé. Para aqueles que narraram
esses milagres, os eventos foram reais.

No terceiro bloco do Novo Testamento temos as cartas paulinas e as Epístolas univer-


sais. Essas cartas lidam com vários temas. Paulo aconselha, admoesta e orienta as
comunidades, para as quais se dirige com questões práticas e concretas para a vida.

Geralmente, suas cartas começam com o endereço do destinatário e uma saudação, de


acordo com gênero epistolar do mundo antigo. Fornece suas credenciais para legitimar seu
apostolado, que em alguns casos é questionado (ver Gl 1, 1-5).

Já as cartas universais são dirigidas a outras comunidades espalhadas pela Ásia Menor
e por outros territórios do império romano. Tratam de diversos temas, desde questões
práticas das comunidades até a volta iminente de Jesus Cristo.

Por fim, o Apocalipse fecha o Novo Testa-


mento. É um texto caracterizado pela sim-
bologia e pela tradição apocalíptica. Apoca-
lipse significa revelação. João de Patmos é
o portador das visões dos últimos dias.

Esse texto não é para ser lido como


mapa para o futuro. É um texto de es-
perança para as comunidades cristãs da
Ásia Menor e para toda a cristandade.
Como livro apocalíptico, tende a afirmar
que por mais que os cristãos passem por
provações, Deus julgará a todos e, no fi-
nal, aqueles que estiverem firmes na fé
serão salvos.

9
O Apocalipse une canonicamente e tematicamente a Bíblia Hebraica e o Novo Tes- 1
tamento. Segundo essa perspectiva, com a queda do homem relatado em Gn 2-3 a
humanidade perdeu o jardim e o acesso que tinha a Deus. Porém, no Apocalipse, nos
últimos tempos, Deus restaurará o cosmos e o homem terá novamente acesso ao para-
íso perdido e a árvore da vida (Ap 22).

A Bíblia é um livro de proclamações de fé e não de historiografia!

Para estudar o processo de escrita dos escribas na Bíblia leia: SCHNIEDEWIND,


William M. Como A Bíblia se Tornou um Livro. São Paulo: Loyola, 2011.

Finalizemos por aqui essa seção. No próximo tópico estudaremos os gêneros literários
da Bíblia.

2. OS GÊNEROS LITERÁRIOS DA BÍBLIA


Na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento, os estudiosos, há bastante tempo, têm es-
tudado suas camadas e percebido que alguns relatos apresentam formas semelhantes
em sua estrutura e conteúdo.

Esse tipo de análise é desenvolvida quando se faz uma pesquisa diacronicamente, ou


seja, os exegetas (que trabalham com a interpretação bíblica) estão preocupados com
o processo que levou aquele texto a ficar pronto.

Quando textos semelhantes são detectados e comparados pelo estudioso, podemos


analisar o quanto eles compartilham de estruturas parecidas. Esse estudo é chamado
de gênero literário.

Quando falamos de gênero literário em relação à Bíblia, não devemos nos esquecer
que seus textos, em um primeiro momento, eram tradições orais. O estudo dos gêneros
literários se baseia no texto escrito (DA SILVA, 2007, p. 41).

Nos próximos tópicos de nossa primeira unidade, analisaremos diversos exemplos de


gêneros literários que aparecem na Bíblia Hebraica e no Novo Testamento. Nossa fi-
nalidade é fazer com que vocês conheçam e percebam como descobrir tais gêneros.

2.1 O GÊNERO JURÍDICO


Esse primeiro exemplo de gênero literário que estudaremos apresenta algumas ca-
racterísticas peculiares. Geralmente, em seu conteúdo, traz algum veredicto sobre
determinada ação praticada por alguém. Citemos o texto de Is 5, 1-7 para demonstrar
como esse tipo de gênero aparece no texto :

Hermenêutica Bíblica 10
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

Cantarei ao meu amado o cântico do meu amigo para a sua vinha. Meu amado
1 tinha uma vinha numa encosta fértil. Ele cavou-a, removeu as pedras e plantou
nela uma vinha de uvas vermelhas. No meio dela construiu uma torre e cavou
um lagar. Com isto, esperava que ela produzisse uvas boas, mas só produziu
uvas azedas. Agora, moradores de Jerusalém e homens de Judá, sede juízes
entre mim e minha vinha. Que me restava ainda fazer à minha vinha que não
tenha feito? Por que, quando esperava que ela desse uvas boas, deu apenas
uvas azedas? Agora vos farei saber o que farei da minha vinha! Arrancarei a
cerca para que sirva de pasto, derrubarei o muro para que seja pisada; redu-
zi-la-ei a matagal: não será mais podada nem cavada: espinheiros e ervas da-
ninhas nela crescerão. Quanto às nuvens, ordenar-lhes-ei que não derramem
a sua chuva sobre ela. Pois bem, a vinha de Yahweh dos exércitos é a casa
de Israel, e os homens de Judá são sua plantação preciosa. Deles esperava o
direito, mas o que produziram foi a transgressão; esperava a justiça, mas o que
apareceu foram gritos de desespero.

Percebam o esquema conflito – acusação – juízo no texto acima. Esse tipo de gênero
também aparece em II Sm 12,1-15; Lc 7, 36-50; Mt 21, 33-46. Cássio Murilo Dias
(2007, p. 49) nos mostra com algumas variações entre os textos e a estrutura comum
entre essas narrativas:

PRÉ-HISTÓRIA
O profeta vai ao encontro da pessoa questionada

Parábola (acusação velada)

O profeta pede o veredicto

A pessoa questionada emite o veredicto

Revelação: quem é a pessoa da qual se fala

Acusação explícita

Reações da pessoa questionada

2.2 GÊNERO NARRATIVO


Esse tipo de estudo analisa sincronicamente o texto, ou seja, deve-se examinar a Bíblia
a partir do texto pronto, como obra literária que está diante de nós, para realizarmos a
nossa leitura e interpretação.

Esse procedimento de leitura caracteriza-se pela verificação do vocabulário, da voz do


narrador, da construção dos fios condutores da narração, o que propiciará ao leitor que
faz parte do processo da recepção do texto uma compreensão da narrativa.

A trama é um elemento importante na compreensão de um relato bíblico. Geralmen-


te, é composta de uma ação entre personagens e demonstra ao leitor o problema
que irá ocorrer na história, pode ser um conflito ou uma espécie de obstáculo que o
personagem enfrentará.

1
Todos os textos citados daqui em diante são da tradução da Bíblia de Jerusalém.

11
Na trama, o intuito é demonstrar como, por meio de muitos obstáculos, o personagem 1
da narrativa encontra uma solução para o problema. Pode ocorrer que o final da história
mostre uma transformação do personagem, um “rito de passagem” (Cf. na Bíblia He-
braica os exemplos de Gn 32, 23-33; Ex 1-15;).

Nos evangelhos, Jesus é o personagem principal da trama. Podemos ler sua vocação,
provação, perseguição, morte e o desfecho da ressurreição, fazendo com que Jesus de
Nazaré se torne Jesus O Cristo. Ler a Bíblia na perspectiva da narrativa é valiosa para
a exegese. Traz outras informações que, em uma pesquisa somente histórica, limitaria
tais interpretações dos textos.

O estudo da narrativa e seus gêneros é chamado na pesquisa bíblica de Narratologia.


Para Jean Louis Ska (2000, p. 123) ela:
Sublinha no texto os pontos interrogativos, as lacunas e as elipses que inter-
rompem o fio da narrativa. Além disso, e é ponto essencial desse método, ela
mostra como esses indícios são sinais dirigidos ao leitor. Cabe a ele responder
a essas interpretações. E sem sua resposta o texto fica incompleto. Em outras
palavras, a narrativa requer contribuição ativa por parte do leitor para tornar-se
o que realmente é. Certamente, essa contribuição não é arbitrária, e a Narrato-
logia lhe fixará as regras, mas nem por isso a parte do leitor é dispensável. As
narrativas dormem até o leitor vir despertá-las de seu sono.

Portanto, é de suma importância para a exegese e hermenêutica bíblica estudar tanto os


textos bíblicos sob viés histórico como sob a ótica do estudo da estrutura e narrativa do texto.

2.3 GÊNERO POÉTICO


Um dos equívocos nos estudos bíblicos é não saber diferenciar poesia de narrativa. Am-
bas aparecem às vezes em um mesmo livro e é preciso diferenciar suas características
para não haver erro.

Já elencamos acima aspectos do estudo narratológico da Bíblia. Agora, veremos alguns


pontos característicos da poesia bíblica.

A poesia bíblica é complexa e apontaremos uma explicação básica. Sugerimos inten-


sificar o estudo em livros que usamos para a nossa referência. Lá vocês encontrarão
detalhadamente as explicações e exemplos da poética hebraica.

O primeiro ponto que destacamos é que a poesia na Bíblia se caracteriza por parale-
lismos. Os paralelismos são a justaposição de palavras ou frases que sintaticamente
e semanticamente são equivalentes. Nossos estudos seguintes são baseados em DA
SILVA, 2007, p. 35, 60-63.

Dentre os paralelismos, existem três categorias:

Hermenêutica Bíblica 12
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 Paralelismo Sinonímico – Quando as frases expressam equivalência, por exemplo, Jz 5, 28:

Á janela ela se debruça, espia

A mãe de Sísara através da grade:

“Por que o seu carro tarda a vir?

Por que são lentos os seus cavalos?”

(Cf. esse tipo de paralelismo no Novo Testamento em Lc 1, 46-47).

Paralelismo Antitético – Quando as frases expressam antagonismo nas suas ideias,


como em Cor 1, 22 -25:
Os judeus pedem sinais, e os gregos andam em busca de sabedoria; nós, porém,
anunciamos Cristo crucificado, que para os judeus é escândalo, para os gentios é
loucura, mas para aqueles que são chamados, tanto judeus como gregos, é Cristo,
poder de Deus e sabedoria de Deus. Pois o que é loucura de Deus é mais sábio
do que os homens, e o que é fraqueza de Deus é mais forte do que os homens.

Confiram também em Pr 10, 1 um outro exemplo, agora na Bíblia Hebraica, desse tipo
de paralelismo.

Paralelismo Sintético – Quando as ideias possuem uma relação de causa e efeito ou quan-
do a segunda frase demonstra mais precisão que a primeira. Vejamos o Salmo 19,8-9:
A lei de Yahweh é perfeita, faz a vida voltar; o testemunho de Yahweh é firme,
torna sábio o simples. Os preceitos de Yahweh são retos, alegram o coração;
O mandamento de Yahweh é claro, ilumina os olhos.

(Cf. também Sl 1,6; I Cor 1,27-28).

Dentre os livros poéticos, temos os livros dos salmos, que apresentam diversos gêne-
ros, e demonstraremos abaixo algumas de suas características:

Salmos de louvor a Yahweh – São hinos que exaltam ao Deus de Israel por sua
grandeza e majestade. Nesse gênero podemos encontrar o louvor ao Deus salvador,
criador, ao Deus rei etc.

Yahweh é o nome do Deus de Israel e de Judá. É a tradução para o português


das consoantes YHWH (tetragrama sagrado). Algumas Bíblias em português
preferem traduzir Javé.

Salmos de súplica - Nesse tipo de salmos, o salmista suplica a ação e a interven-


ção de Yahweh na sua aflição. Pode ser dividido também em súplicas individuais e
súplicas coletivas.

Salmos litúrgicos - São salmos que têm a função litúrgica de serem cantados em mo-
mentos de culto. Podem ser também cantados durante a peregrinação a Jerusalém ou à
porta do templo.

13
A Bíblia Hebraica e o Novo Testamento estão repletos de cânticos que perpassam seus 1
textos. Possuem várias categorias, a saber:

Cânticos de guerra – Esses cânticos eram usados em guerras para motivar o exército,
geralmente acompanhados de tambores e danças, como por exemplo, Jz 5, 12:

Desperta, Débora, desperta!

Desperta, desperta, entoa um cântico!

Coragem, Barac!

Levanta-te e reconduz teus prisioneiros, filhos de Abinoem!

Ou I Sm 18, 6-7:
Quando eles voltavam junto com Davi, depois de este ter matado o filisteu, as
mulheres vinham de todas as cidades de Israel para cantar e dançar na pre-
sença do rei Saul, com tamborins e alegria e ao som dos sistros. As mulheres
se divertiam e cantavam dizendo:

“Saul matou mil

Mas Davi matou dez mil”.

Cântico de descrição da pessoa amada – Esse cântico são canções entoadas na


vida cotidiana do antigo Israel. A principal característica desse gênero é a exaltação de
atributos físicos que o homem faz para a mulher amada. Exemplos desse tipo de gênero
literário nos cânticos é Cânticos dos Cânticos.

Cânticos cultuais – São ligados a ritos e festas litúrgicas. Temos exemplos tanto na
Bíblia Hebraica como no Novo Testamento. Como já falamos de Salmos usados nos
cultos, exemplificaremos esse gênero com dois textos do Novo Testamento:

I Tm 3,16
Ele foi manifestado na carne,

Justificado no Espírito,

Aparecido aos anjos, proclamado às nações,

Crido no mundo,

Exaltado na glória.

Hermenêutica Bíblica 14
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 E I Pd 2, 21-24:

Com efeito, para isto é que fostes chamados, pois que


Também Cristo sofreu por vós

Deixando-vos o exemplo,

A fim de que sigais seus passos.

Ele não cometeu nenhum pecado;

Mentira nenhuma foi achada em sua boca.

Quando injuriado, não revidava;

Ao sofrer, não ameaçava, antes

Punha a sua causa nas mãos daquele

Que julga com justiça.

Sobre o madeiro, levou os nossos pecados

Em seu próprio corpo, a fim de que, mortos

Para os nossos pecados, vivêssemos para a justiça.

Por suas feridas fostes curados, pois estáveis

Desgarrados como ovelhas, mas agora retornastes ao Pastor

E guarda de vossas almas.

Esses cânticos primitivos eram entoados nas primeiras comunidades cristãs e tinham
teor cristológico, ou seja, louvavam a Jesus como o Cristo ressurreto (Cf. outros cânti-
cos no Novo Testamento como Fl 2, 6-11; Cl 1, 15-20; Rm 11, 33-36).

O gênero poético não pode ser confundido com o gênero narrativo

Finalizemos por aqui a nossa conversa sobre a poesia hebraica. Em nosso próximo
tópico, continuaremos a discutir os gêneros literários na Bíblia.

3. OS GÊNEROS LITERÁRIOS NA BÍBLIA (CONTINUAÇÃO)

3.1 O GÊNERO PROFÉTICO


Nos livros proféticos podemos perceber algumas convenções estilísticas e discursivas
em seus textos. Dentre eles, existem diversos gêneros literários que, inclusive, já estu-
damos, por exemplo, cânticos, poesia, narrativas etc.

15
No entanto, gostaríamos de trazer outras informações que ajudarão na análise de um 1
livro profético. Segundo Robert R. Wilson (2006, p. 177), a estrutura abaixo representa
o gênero “anúncio de desastre a indivíduos” nos textos proféticos:

• A delegação do mensageiro;

• A acusação que se refere à transgressão específica do destinatário. A transgressão


mencionada viola uma lei israelita corrente, mas que ainda não foi punida. A acusação
pode ser na forma de pergunta ou de uma afirmação declaratória e, às vezes, inclui a
citação das palavras do destinatário;

• O anúncio do julgamento baseado na acusação e que consiste em:

• A introdução do anúncio em frase como “assim diz o Senhor”, “por isso, assim
diz o Senhor”, “pois, assim diz o Senhor”.

• O corpo do anúncio na forma de endereçamento direto. O anúncio costuma ter


somente uma parte, ainda que seja ampliada às vezes de vários modos.

Em textos proféticos podemos ver que o processo de intermediação entre Deus e o


povo é feita por visões. Vejamos um exemplo em II Reis 22, 17-23:
Então ele disse: Eu vi todo Israel disperso pelas montanhas como um rebanho
sem pastor. E Yahweh me disse: Eles não têm mais senhor, que cada um volte
em paz para a sua casa! O rei de Israel disse então a Josafá: “não te havia
dito que ele não profetizava para mim o bem, mas o mal?” Miqueias retrucou:
“Escuta a palavra de Yahweh: Eu vi Yahweh assentado sobre seu trono; todo
o exército do céu estava diante dele, à sua direita e à sua esquerda. Yahweh
perguntou: Quem enganará Acab para que ele suba contra Ramot de Galaad e
lá pereça?” Este dizia uma coisa e aquele outra. Então o Espírito se aproximou
e colocou-se diante de Yahweh: ‘Sou eu que o enganarei, disse ele. Yahweh
lhe perguntou: ‘E de que modo? Respondeu: ‘Partirei e serei um espírito de
mentira na boca de todos os seus profetas. Yahweh disse: ‘Tu o enganarás,
serás bem-sucedido. Vai e faze assim’. Eis, pois, que Yahweh infundiu um espí-
rito de mentira na boca de todos esses teus profetas, mas Yahweh pronunciou
contra ti a desgraça.

(Cf. também Jr 1,11-19).

Algumas passagens mostram que os profetas estão em estado de transe. Algumas ex-
pressões como “a mão do Senhor caiu sobre mim” (I Reis 18, 46; II Reis 3,15; Jr 15,17),
“o espírito repousou sobre eles” (Nm 11,25-26), “o espírito do Senhor revestiu Gedeão”
(Jz 6,34), (ver WILSON, 2006, p. 180).

Por fim, alguns relatos proféticos são categorizados como “lenda profética”. Essas nar-
rativas retratam o profeta como Homem de Deus e querem provocar no leitor admira-
ção, respeito. Suas vidas são caracterizadas por ações taumatúrgicas. Cássio Murilo
Dias (2007, p. 47) fornece a seguinte estrutura para essas narrativas:

Hermenêutica Bíblica 16
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 • Situação de crise

• Súplica pela intervenção do profeta

• Dúvida sobre a possibilidade de uma solução

• Instrumentos para o milagre

• Palavra durante a realização do milagre

• Efeito produzido

• Reações dos presentes e ou consequências

Podemos encontrar essas características no ciclo de Eliseu em II Reis 2, 19-22; 4,1-


7.38-41.42-44; 4,8-37; 5,1-27; 6,8-23.

3.2 GÊNERO APOCALÍPTICO


O gênero apocalíptico é sem dúvida o mais popular. Mesmo as pessoas não sabendo
estudar suas estruturas discursiva, na cultura ocidental aprendemos de uma forma ou
de outra a reproduzir sua visão de mundo. Basta assistirmos filmes de Hollywood para
percebermos como o fim do mundo é um tema atraente para os cineastas.

Na Bíblia, temos propriamente dois livros apocalípticos a saber: Daniel e Apocalipse.


Porém, em outros textos, tanto da Bíblia Hebraica como no Novo Testamento, temos
diversas passagens que são coloridas pelo pensamento apocalíptico (Is 24-27; Mc 13).
Apocalipse significa revelação e é um gênero literário.

Diversos apocalipses não entraram no cânon da Bíblia judaica e cristã. Temos por
exemplo, livros atribuídos a Enoque, Esdras, Pedro, Paulo etc.

Quais são as características de gênero? Primeiro, o uso da autoria pseudônima. Era


um artifício literário que fornecia prestígios às revelações relatadas por esses autores e
despertava confiança em suas “predições”. Geralmente eram nomes famosos, conhe-
cidos na cultura judaico-cristã.

Segundo, a apocalíptica judaico-cristã possui linguagem mitológica, fazendo uso de


animais, como leão, tigre, lobo, águias etc. Homens e anjos podem ser representados
de diferentes formas, caracterizados por roupas brancas, representando a pureza.

Terceiro, os números aparecem diversas vezes nos apocalipses, tais como 3,4, 7,10 ,12
e 70 ou de seus múltiplos. Números são incluídos para se calcular o tempo do fim. Os
escritores dos apocalipses acreditavam que o fim estava próximo e escreviam esses
textos não para mapear o futuro, mas sim para dar esperança ao povo.

Por último, destacamos o forte dualismo encontrado nos apocalipses, quando o mundo
presente será substituído por um mundo vindouro. Este mundo atual é corrompido, de-
baixo de ações demoníacas. Existem duas eras, a presente e a futura com Deus.

17
Os escritores dos apocalipses são visionários, ou seja, geralmente recebem suas men- 1
sagens por meio de visões. Essas visões seguem um padrão, conforme explicado por
Cássio Murilo Dias (2007, p. 51):

• As circunstâncias ou a ocasião da revelação.

• A participação de um acompanhante (anjo ou guia)

• A descrição do sonho ou da visão

• A reação de quem recebeu a revelação

• O diálogo com o acompanhante

• O acompanhante explica o significado da visão.

• A conclusão do episódio.

Para finalizar, temos os relatos de viagens a outros mundos, onde o vidente tem acesso a
mensagens, quando enxerga o futuro por meio de viagens celestiais no céu. A ideia cen-
tral desse tipo de gênero é afirmar que o portador da mensagem tem autoridade e deve
passar adiante o que viu. Ele é levado “pelo espírito”, como vemos em Ap 1, 9- 10 que diz:
Eu, João, vosso irmão e companheiro na tribulação, na realeza e na perseve-
rança em Jesus, encontrava-me na ilha de Patmos, por causa da Palavra de
Deus e do Testemunho de Jesus. No dia do Senhor fui movido pelo Espírito, e
ouvi atrás de mim uma voz forte, como de trombeta, ordenando [...].

Esse gênero pode ser encontrado também em Ap 4-21; I Henoc 14,8; Testamento de
Abraão 10-14, (Cf. DA SILVA, 2007, p. 52).

3.3 GÊNERO SAPIENCIAL


Na Bíblia Hebraica temos três livros que, pelo gênero literário, faz parte da literatura sa-
piencial: Jó, Provérbios e Eclesiastes. Nas Bíblias católicas, temos, além desses livros
citados acima, o Eclesiástico e Sabedoria de Salomão.

Esses livros representam textos e compilações de ideias, visões do mundo de sábios


do antigo Israel. Alguns pontos podem ser elencados para responder a pergunta: como
eram esses sábios? Citemos a explicação de Gabel e Wheeler (2003, p. 109-110):
Em primeiro lugar, os sábios dos séculos de antes, durante e depois do exílio
davam pouca importância ao “culto”, quer dizer, à religião organizada de Israel.
Há somente referências de passagem a observância cúlticas nos três livros sa-
pienciais canônicos. Num ponto dos Provérbios – que é a única alusão positiva
a questões cúlticas de todo o livro – o leitor é aconselhado a honrar a Yahweh
“com teus haveres/com as primícias das tuas rendas (Pr 3,9-10); mais tarde,
porém, há um conselho mais característico: “praticar a justiça e o direito”; isso
é mais agradável ao Senhor que sacrifícios” (Pr 21,3).

Outro ponto importante desses sábios é a não preocupação com questões naciona-
listas, assim como não se interessavam por questões conceituais de relacionamento
entre Deus e o homem.

Hermenêutica Bíblica 18
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 Suas preocupações geralmente eram em relação à prática cotidiana e o relacionamento


ético entre as pessoas. O comportamento humano gera consequências boas ou ruins,
como vemos em Pr 12,21:
Ao justo nada acontece de mal,

Mas os ímpios estão cheios de infelicidade.

Ou também em Pr 19,15:
A preguiça faz cair o torpor;

O ocioso passará fome

Segundo Cássio Murilo Dias (2007, p. 58), existem provérbios breves dentro da litera-
tura sapiencial que são formulados em duas ou três linhas, com finalidades diversas:
sátira, sarcasmo, crítica, ameaça etc.

Esses provérbios seguem estruturas que já aprendemos quando estudamos a poesia


hebraica, ou seja, paralelismos sinonímico, antitético ou sintético. Exemplificamos com
dois provérbios, o primeiro antitético, Pr 10,12:
O ódio provoca querelas,

o amor cobre todas as ofensas.

O segundo, sintético:
O temor de Yahweh é fonte de vida,

Para evitar as ciladas da morte.

Outro tipo característico de gênero literário encontrado nos Provérbios e nos livros sa-
pienciais são as sentenças-tov, pois usa o termo hebraico “tov” (bom, melhor): “melhor
y do que y” (DA SILVA, 2007, p. 58). Vejamos dois exemplos desse tipo de provérbio
em dois livros distintos:

Pr 16,8
Mais vale pouco com justiça,

Do que muitos ganhos sem o direito.

Ecl 7,1
Mais vale a fama do que o óleo fino;

O dia da morte do que o dia do nascimento.

Outro exemplo de gênero encontrado no livro de Provérbios são a “etopeia”. Vejamos a


definição de Cássio Murilo Dias (2007, p. 59):
O termo “etopeia” designa a descrição do caráter, das inclinações, dos cos-
tumes e das paixões humanas. A finalidade é eminentemente didática, pois
apresenta um comportamento a ser imitado ou, contrariamente, evitado. Não
há um esquema formal fixo.

19
Vejamos alguns exemplos:
1
Pr 6, 6-11
Anda, preguiçoso, olha a formiga,

Observa o seu proceder, e torna-te sábio.

Sem ter chefe, nem guia, nem dirigente,

No verão, acumula o grão e reúne provisões

durante a colheita.

Até quando dormirás, ó preguiçoso?

Quando te levantarás do sono?

Um pouco dormes, cochilas um pouco;

um pouco esticas os braços cruzados e descansas;

mas te sobrevém a pobreza do vagabundo

e a indigência do ladrão.

Pr 23, 29-35
Para quem os ais? Para quem os lamentos?

Para quem as disputas? Para quem as queixas?

Para quem os golpes sem motivo?

Para quem os olhos turvados?

Para aqueles que entardecem sobre o vinho

e vão à procura de bebidas misturadas.

Não olhes o vinho: como é vermelho,

Como brilha na taça, como escorre suave!

No fim ele morde como a cobra

E fere como a víbora.

Teus olhos verão coisas estranhas,

E teu coração dirá disparates.

Serás como alguém deitado em alto-mar

ou deitado no topo de um mastro.

Feriram-me...e eu nada senti!

Bateram-me...e eu nada percebi!

Quando irei acordar?

Continuarei a beber!

Hermenêutica Bíblica 20
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 Por fim, precisamos destacar uma síntese de como a literatura sapiencial no seu todo
apresenta-se literariamente. Se analisarmos o livro de Jó, percebemos que existem
camadas narrativas e poéticas.

Os outros livros sapienciais, como Eclesiastes e os Provérbios, apresentam em seus


respectivos livros a forma típica desse tipo de literatura: descrever o que acontece e ob-
servaram da vida, aconselhamento para seus ouvintes e leitores sobre como viver bem
e louvar a sabedoria como uma qualidade (GABEL; WHEELER, 2003, p. 117).

Portanto, interpretar corretamente os livros sapienciais são de suma importância, pois


são textos ricos em conteúdo e mensagem. Temas como sofrimento, felicidade, ética e
sabedoria são nomenclaturas que perpassam as vidas das pessoas ontem e hoje:
Cessa, meu filho, de escutar a instrução:

isso será afastar-te dos propósitos do saber!

Finalizemos por aqui o terceiro tópico do nosso estudo sobre os gêneros literários. Con-
tinuaremos a estudar outros tipos no quarto e último bloco de nossa primeira unidade.

Os livros sapienciais são chamados de Escritos na Bíblia Hebraica

4. OS GÊNEROS LITERÁRIOS NA BÍBLIA (FINAL)

4.1 GÊNERO EVANGELHO


Os evangelhos são textos de suma importância para a cultura ocidental. Tais textos
moldaram diversos setores da sociedade e, por isso, estudá-los e saber interpretar suas
páginas são aspectos que devem ser levados a sério pelo estudante.

O Novo Testamento conta com quatro evangelhos. A palavra grega euanggelion sig-
nifica “boas novas”, como está escrito em Mc 1,1: “Princípio do Evangelho de Jesus
Cristo, Filho de Deus”.

Nos evangelhos aparecem gêneros literários distintos, que conseguimos detectar com
certa facilidade por meio de uma leitura atenta. Essas formas literárias fornecem ajuda
imprescindível na interpretação dos textos.

Veremos agora alguns tipos de gêneros literários que aparecem nos evangelhos. Para
isso, seguiremos os exemplos selecionados por Gabel e Wheeler (2003, p 172-173).

Sentenças e relatos de sentença – Esse gênero se caracteriza pelas palavras de Jesus,


que, como mestre, ensinava na forma de ditos. Os quatro evangelhos são coleções de
ditos de Jesus, que foram trabalhadas e reformuladas de acordo com a busca de res-
postas de cada comunidade de fé.

21
A teoria mais comum na academia é supor que existia uma fonte de ditos de Jesus (Q 1
de quelle que significa fonte). Mateus e Lucas recorreram a Marcos e a Q para compor
os sermões de Jesus em seus livros.

Vale destacar que uma tal fonte Q é uma teoria que os exegetas criaram para responder
à complexidade da relação entre os três primeiros evangelhos do Novo Testamento.

Relatos de Apotegma – Como acontece nos gêneros literários que possuem gêneros
e subgêneros, o apotegma é uma subclasse dos relatos de sentença. O apotegma é
um relato curto, ou seja, narra um evento ou episódio breve que leva uma sentença de
Jesus. Exemplifiquemos com Mc 2, 16-17:
Os escribas dos fariseus, vendo-o comer com os pecadores e os publicanos,
diziam aos discípulos dele: “Quê? Ele come com os publicanos e pecadores?”
Ouvindo isso, Jesus lhes disse: “Não são os que têm saúde que precisam de
médico, mas os doentes. Eu não vim chamar justos, mas pecadores”.

Citações proféticas do Antigo Testamento – Os escritores dos evangelhos citavam


textos do Antigo Testamento para demonstrar que Jesus era o Messias prometido des-
de tempo imemoriais. Esse tipo de abordagem adentrou inclusive nos métodos de inter-
pretação dos Pais da Igreja.

Não só nos evangelhos, mas em todo o Novo Testamento, os autores citam diretamente
ou indiretamente a Bíblia Hebraica. A influência desses textos nos compositores dos
evangelhos foram enormes.

Narrativas da Paixão – Esse gênero narra os eventos da última ceia e da crucifica-


ção. Podem ter sido narrados independentemente antes de serem juntados no todo
dos evangelhos.

Essas narrativas são o núcleo da proclamação de Jesus como o Cristo, e que foi pas-
sada para os cristãos de geração a geração.

Relato de Milagres – Esse gênero perpassa todos os evangelhos e têm a finalidade de


demonstrar que o Cristo é o Filho de Deus. Cássio Murilo Dias (2007, p 47) esquematiza
a estrutura desse tipo de gênero literário:

• Introdução (descrição do ambiente e do encontro)

• O problema e os esforços para superá-lo

• A súplica do pedinte

• A Intervenção de Jesus

• O efeito produzido

• A reação do povo e do miraculado

Esses milagres podem ser divididos em curas, exorcismos, ressuscitações e milagres


sobre a natureza (ver Mc 1,29-31; 1,23-27; 3,1-6; 4,37-41; 5,1-20; 5,21-24).

Hermenêutica Bíblica 22
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 Parábolas – As parábolas são narrativas curtas e que ilustram detalhes da vida cotidia-
na do povo do antigo Israel. Nos evangelhos Jesus é um contador de parábolas. Elas
são um eficaz recurso pedagógico e podem também tratar de questões morais e éticas,
como é o caso de Mt 7, 24-27:
Assim, todo aquele que ouve essas minhas palavras e as põe em prática será
comparado ao homem sensato que construiu sua casa sobre a rocha. Caiu
a chuva, vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela
casa, mas ela não caiu, porque estava alicerçada na rocha. Por outro lado, todo
aquele que ouve essas minhas palavras, mas não as pratica, será comparado
ao homem insensato que construiu a sua casa sobre a areia. Caiu a chuva,
vieram as enxurradas, sopraram os ventos e deram contra aquela casa, e ela
desmoronou. E foi grande sua ruína!

Outros tipos de parábolas parecem supor que eram somente para os discípulos de Je-
sus, por exemplo, Mt 13,24-30.

Eventos da Vida Pública de Jesus - Esse tipo de gênero aparece nas narrativas que
mostram Jesus sendo batizado por João Batista, na escolha dos seus discípulos, trans-
figuração, entrada de Jesus em Jerusalém, expulsão dos vendilhões do templo etc.

Por fim, devemos salientar que os evangelhos são coleções de narrativas que pos-
sivelmente, em um estágio anterior, eram contadas separadamente e oralmente.
Cada evangelista juntou e interpretou o material recebido a seu modo e de acordo
com suas comunidades.

4.2 O GÊNERO EPISTOLAR


As cartas compõem, junto com os evangelhos e o Apocalipse, o cânon cristão. Ao ler-
mos seu conteúdo, podemos tirar informações preciosas sobre a conduta e visão de
mundo dos primeiros cristãos.

As cartas eram comuns no mundo antigo e não é uma novidade da cristandade Segun-
do Gabel e Wheeler (2003, p. 194-195):
É certo que escrever cartas era uma atividade comum naqueles dias: uma con-
tínua corrente de correspondência percorria por mar e terra todos os centros de
população. Boa parte dela era governamental, levada por portadores oficiais,
mas uma parcela considerável era comercial e pessoal, trocada entre cidadãos
particulares: marcadores pedindo bens, enviando instruções, tratando de re-
messas, pagando contas; filhos escrevendo aos pais; soldados saudosos es-
crevendo às esposas; pessoas comuns perguntando pela saúde dos amigos,
prometendo visitas, pedindo favores.

Como podemos ver, as cartas eram muito comuns no mundo antigo. Quem não sabia
escrever (boa parte da população) podia contratar um escriba, que era treinado na arte
da escrita.

Na tradição helênica, as cartas tinham formas típicas. Havia uma saudação, votos de
saúde para o destinatário, e ao final, escrevia-se uma despedida. As cartas paulinas
fazem parte dessa tradição (GABEL; WHEELER, 2003, p. 195).

23
Geralmente, quando lemos as cartas de Paulo, podemos perceber convenções estilísti- 1
cas que nos chamam a atenção. Suas cartas estão preservadas em um grego koine, o
que um estudante de grego pode traduzir com boa prática.

Grego Koine – Língua grega popular comum a todos no período da dominação


dos reinos gregos e romanos, principalmente na Palestina.

O que chama a atenção nas cartas paulinas é que elas transformam as convenções
usuais das correspondências da época com vocabulários “cristianizados”. A saudação
começa com um “graça e paz a vós”, combinando a ideia cristã de graça com o cumpri-
mento judaico tradicional paz (shalom).

Além disso, como já dissemos quando estudamos no tópico primeiro da nossa discipli-
na, Paulo inicia com uma fórmula que autenticava seu papel como apóstolo legítimo.

Podemos resumir algumas características literárias e de conteúdo que as cartas de


Paulo possuem de acordo com Gabel e Wheeler (2003, p.197-202):

Ansiosa expectativa – Paulo era uma pessoa que compartilhava do pensamento apo-
calíptico de sua época. Assim, esperava ansiosamente pelo fim dessa era e a irrupção
da vinda do Messias Jesus. A palavra grega para a volta de Jesus é “parousia”. Vejamos
um exemplo dessa expectativa em Fl 1,6: “E tenho plena certeza de que aquele que
começou em vós a boa obra há de levá-la à perfeição até o dia de Cristo”.

Cristologia – Paulo em suas cartas enfatiza o Cristo crucificado. É estranho notarmos


que o interesse pela vida histórica de Jesus de Nazaré tenha pouca importância para
Paulo. Mas, se pudéssemos afirmar desse modo, o olhar de Paulo para Jesus é cristo-
lógico, ou seja, é para o Jesus da fé, o que ressuscitou.

Paulo denomina Jesus por meio de diversos atributos cristológicos, como Kyrios, pa-
lavra grega que significa Senhor, título dado pela Septuaginta a Yahweh, e também o
chama de Cristo, que significa Messias.

Justificação pela Fé – É centro, se podemos dizer assim, da pregação paulina. Não existe
nenhuma lei, nenhuma barreira que possa afastar o cristão de Jesus. Essa teologia paulina,
de certa maneira, é uma ruptura das ideias que ele próprio defendia quando era fariseu.

Portanto, ler as cartas paulinas requer atenção às estruturas e aos seus conteúdos para
assimilar e entender o que o apóstolo fez e disse durante toda a leitura desse precioso
material do cristianismo primitivo.

4.3 GÊNERO NARRATIVO HISTÓRICO


Para encerrarmos nossa primeira Unidade, trataremos a questão do gênero narrativo
histórico e genealógico. Primeiro, o narrativo histórico. Como já afirmamos no tópico
primeiro de nossa Unidade, é preciso precaução ao afirmarmos que um determinado
texto é “histórico”. A narrativa bíblica encerra diversos tipos de formas literárias, como
temos percebido ao longo deste estudo.

Hermenêutica Bíblica 24
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 A narrativa bíblica tem conteúdos teológicos e ideológicos e busca levar o leitor ou a leitora
a determinadas concepções e interpretação da realidade. Falar que um texto bíblico é his-
tórico não é afirmar nas categorias modernas de objetividade do pesquisador cientificista.

Portanto, analisaremos alguns gêneros literários que aparecem nessas narrativas com
teor “histórico” e que auxiliarão na leitura desses textos. Seguiremos os exemplos da-
dos por Cássio Murilo Dias (2000, p. 190-192):

Saga – Nesse tipo de gênero, os personagens são deuses e interagem com os homens.
A Bíblia Hebraica filtra esse modelo literário, pois a fé javista faz desaparecer qualquer
interação de deuses com os homens que não seja Yahweh.

Contudo, a mentalidade bíblica e de seus autores sofreram a influência desse pensa-


mento. Gn 1-11 está repleto de visão de mundo com resquícios míticos. A saga conta
as histórias fantásticas e extraordinárias de um herói ou de um lugar. A saga é dividida
em subgrupos, a saber:

Saga de uma tribo ou de um povo – Esse gênero narra a história de um ancestral que
pode ser histórico ou fictício. Seu destino perpassa sua vida e influencia seus descen-
dentes. Os casos mais comuns para analisarmos são as narrativas patriarcais.

Saga de um herói – O personagem é visto positivamente e possui um antagonista que


funciona no enredo como o vilão. Essas histórias estão repletas de confrontos (Ex 17,
8-16; Js 10; I Sm 17, 1-54; I Sm 26).

Saga de um lugar – Esse tipo de gênero literário quer mostrar o surgimento de um


lugar especial, de culto, de uma cidade ou um acontecimento. Apresenta um caráter
fortemente etiológico, como a narrativa da Torre de Babel (que explica a diversidade das
línguas), Gn 19, 1-29 (que explica a esterilidade do Mar Morto etc.)

A Lenda – Caracteriza-se pelo santo e imitável, e é uma variante do gênero saga. A lin-
guagem é edificante e as cenas são milagrosas e mostram a imagem da ação de Deus
como vitorioso. Geralmente um profeta é o protagonista dessas narrativas.

Lenda Pessoal – O protagonista é um personagem religioso (profeta, sacerdote, ou


mártir) que é exemplar e possuído por Yahweh. Tal narrativa objetiva formar discípulos
ou devotos (ver ISm 2,12-17; Nm16,16-26; I Rs 17,7-16.17-24).

Lenda de Santuário – Narra a respeito de um determinado lugar sagrado. Preocupa-se


em explicar o surgimento do santuário, que geralmente foi local de uma manifestação
divina (Gn 16,7-14; 28, 10-22).

Lenda Cultual – Esses tipos de relatos querem legitimar um culto ou rito praticado no
antigo Israel. Na Bíblia Hebraica temos vários exemplos: Nm 21, 4-9; Gn 17; Ex 4,24-
26; Js 5, 2-9).

Como observamos, por meio dos gêneros demonstrados acima, as histórias da Bíblia
Hebraica apresentam formas variadas que problematizam qualquer afirmação simplória
de historicidade dos textos bíblicos.

25
Com isto, não estamos afirmando que não poderia ter havido eventos históricos que 1
foram registrados nos textos bíblicos. Mas, para fazer boa exegese, é preciso analisar
cada caso e verificar se estamos lidando com relatos históricos ou míticos.

Não confundamos narrativas históricas com míticas

Não confundamos narrativas históricas com míticas

4.4 GÊNERO GENEALOGIAS


Encerraremos nossa Unidade falando um pouco sobre as genealogias. Embora não
pareça muito importante nas narrativas da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento, elas
desenvolvem um papel interessante no enredo dos livros.

As genealogias querem, de alguma maneira, legitimar algo. Seja uma posse de terra
(Ne 7) ou mostrar continuidade e amarrar a trama (Gn 4). As genealogias demonstram
continuidades.

No Novo Testamento, ela possui aspectos interessantes quando analisamos teologica-


mente sua função na narrativa. Em Mateus, a genealogia do Cristo mostra que ele é
filho de Abraão, papel importante para o reconhecimento em uma comunidade judaica.

Em Lucas, a genealogia coloca Jesus como filho de Adão, afirmando o universalismo


teológico do evangelista, ou seja, Jesus é para todos e não para um só povo. Milton
Schwantes (2002, p. 129) assim descreve a função da genealogia no bloco da história
primeva em Gn1-11:
[...]As genealogias fornecem a estrutura geral. Expressam a continuidade. [...]
O capítulo 1 é tanto genealogia quanto história. É história porque narra: “Deus
criou...”. É genealogia porque assim define a si mesmo: “Esta é a genealogia
dos céus e da terra” (2,4a). A sequência dos dias é, por assim dizer, genealógi-
ca. As obras de cada dia são novidades. Com elas, a palavra criadora de Deus
introduz surpresas em meio ao caos.

A genealogia na Bíblia conecta pessoas a um grupo familiar, a pai, mãe etc. Está inse-
rida na tribo e no povo de Israel. Como dissemos, legitima e fornece função ideológica
e de pertencimento.

Genealogia é legitimação!

Hermenêutica Bíblica 26
Princípios e Métodos de Interpretação dos Textos Bíblicos

1 Encerramos por aqui nossa Unidade. Procuramos estudar os mais variados gêneros
literários da Bíblia. Vimos que a tarefa não é fácil. Requer muito estudo e dedicação. A
Bíblia é complexa e cheia de surpresas.

Analisar os textos bíblicos sob o viés dos gêneros literários nos dá amplas ferramentas
para desenvolvermos uma leitura atenta e séria dos textos sagrados. Nessa primeira
Unidade, pudemos sentir como é amplo os estudos bíblicos.

Nossa próxima Unidade vai lidar com a atribuição de sentidos e a crítica histórica da
Bíblia. Daremos mais um passo no estudo exegético e hermenêutico. Uma dica que
deixamos a vocês é a de se atentarem às referências dos livros usados em nossa
primeira Unidade. Nelas, vocês encontrarão detalhadamente os assuntos abordados
neste material didático.

REFERÊNCIAS
1. DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Leia a Bíblia 6. SCHWANTES, Milton. Projetos de Esperança:
Como Literatura. São Paulo: Loyola, 2003. Meditações Sobre Gênesis 1-11. São Paulo: Pauli-
2. DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Metodologia de nas, 2002.
Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2000. 7. GABEL, John B. WHEELER, Charles B. A Bíblia
3. Yofre, Horácio Simian (org). Metodologia do An- Como Literatura. São Paulo: Loyola, 2003.
tigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000. 8. WILSON, Robert R. Profecia e Sociedade No
4. SKA, Jean Louis. Como Ler o Antigo Testamen- Antigo Israel. São Paulo: Targumim/Paulus,2006.
to? In: Yofre, Horácio Simian (org). Metodologia do
Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000.
5. SKA, Jean Louis. Sincronia: A Análise Narrativa
in: Yofre, Horácio Simian (org). Metodologia do Anti-
go Testamento. São Paulo: Loyola, 2000.

27
1

Hermenêutica Bíblica 28

Você também pode gostar