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A Leitura e a Interpretação da Bíblia na Comunidade de Fé Hoje

UNIDADE 4

A LEITURA E A INTERPRETAÇÃO DA
4 BÍBLIA NA COMUNIDADE DE FÉ HOJE

Olá, alunos e alunas! Estamos iniciando a última unidade do componente curricular


Hermenêutica Bíblica. É muito importante analisar os percursos pelos quais tivemos
que passar para chegarmos até esta unidade.

A exegese e a hermenêutica são ferramentas complexas, que exigem do aluno dedica-


ção e disciplina para os estudos, pois a Bíblia, como já afirmamos anteriormente, é um
livro antigo que precisa ser lido adequadamente.

Nesta unidade, a preocupação será aplicar o que aprendemos até aqui. O que podemos
fazer com tudo que estudamos em nosso curso? Essa pergunta será tratada nesta unidade.

Faremos isso considerando mais detidamente:

• A leitura orante da Bíblia.

• A leitura da Bíblia na liturgia.

• A leitura popular da Bíblia.

• A leitura da Bíblia e os desafios sociais do tempo presente.

O estudante observador perceberá facilmente que não se tratam de leituras excluden-


tes entre si, mas que se aplicam a contextos diversos e podem ser combinadas, nos
diversos momentos aos quais a comunidade recorre à fonte escrita da sua fé.

1. A LEITURA ORANTE DA BÍBLIA


Diversas pessoas estudam teologia e a exegese bíblica com várias finalidades. Uma
delas é trabalhar em suas comunidades, na educação cristã, na formação catequética,
nas escolas dominicais, em reuniões de estudos e círculos bíblicos etc.

Mas existe um tipo de leitura que é comum tanto para católicos como para protestantes.
É um tipo de leitura que requer respostas existenciais para o indivíduo que lê as páginas
da Escrituras Sagradas. Referimo-nos aqui à Leitura Orante da Bíblia.

A leitura orante é uma prática comum entre membros de diversas igrejas. Esse tipo de
leitura compreende alguns procedimentos importantes. Cássio Murilo Dias (2000, p.27)
assim afirma sobre a leitura orante:

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É o direcionamento mais básico e espontâneo de nossa leitura: buscamos no
texto bíblico respostas para nossos anseios e luz para as nossas decisões, pois
nós o tomamos como instrumento para dialogarmos com Deus. Este nível está
sistematizado nos passos da “Lectio Divina”: o texto sagrado, a leitura, a medi-
tação, a partilha, a oração, a contemplação, a ação.
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Comentaremos a seguir os passos esquematizados acima da leitura orante:

• O Texto Sagrado – Ora, valorizar a Bíblia é o primeiro passo para a leitura orante,
pois é dela que partimos. Das páginas da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento
praticamos metodologicamente nossas exegeses e posteriormente a hermenêutica.

Fazer exegese é muito importante, como já estudamos em nosso curso, pois situa o
lugar, a cultura e o período das narrativas da Bíblia. Somente assim podemos ter uma
compreensão ampla do mundo bíblico.

Portanto, para praticar a leitura orante é imprescindível partirmos dos textos sagra-
dos bíblicos.

• Leitura do Texto – A leitura do texto é um dos pressupostos mais importantes da


exegese bíblica. Quando nos referimos à leitura da Bíblia, não estamos falando ape-
nas de passarmos os olhos pelas suas páginas.

Para uma leitura “ser leitura” é preciso prestar atenção. Essa explicação parece sim-
ples, mas não é. Quantas vezes lemos alguns textos da Bíblia e não prestamos atenção
aos detalhes, como os personagens, cenas, lugar do narrador, contexto histórico etc.?

A leitura do texto da Bíblia é fundamental para a prática da leitura orante. Ler, reler, fazer
análises da narrativa, estudos sob viés do método histórico-crítico, ou seja, desenvolver
o que aprendemos em nosso curso de Hermenêutica, cujo objetivo não é outro senão o
de nos capacitar a ler e a interpretar a Bíblia consistentemente.

• Meditação – A leitura atenta e consistente da Bíblia requer outro passo no desen-


volvimento da leitura orante: a meditação.

Ler os textos, fazer exegese, requer meditar sobre o que foi apreendido, descoberto. A
meditação é necessária para avaliarmos como um texto sagrado pode nos auxiliar no
nosso dia a dia e também às nossas comunidades.

Meditar é refletir. Quando estudamos a Bíblia, é fundamental aprendermos a “digerir”


o que lemos e aprendemos. É necessário nos distanciarmos por um breve momento
daquilo que foi lido para, posteriormente, procedermos a aplicação.

• Partilha – Estudar a Bíblia é um prazer imensurável. Tudo que estudamos até aqui
perderá o sentido se não partilharmos as experiências e aprendizados que obtivemos
ao ler os seus textos.

Existem diversas comunidades cristãs que se reúnem para compartilhar, em conjunto,


as experiências da leitura de determinado trecho das Escrituras.

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A Leitura e a Interpretação da Bíblia na Comunidade de Fé Hoje

A própria Bíblia Hebraica, por exemplo, foi escrita em mutirão, ou seja, na composição
de seus textos participaram diversas mãos, que nos deixaram experiências incríveis
sobre suas maneiras de crer em Deus.

Portanto, ler a Bíblia e partilhar sua leitura, isto é, sua interpretação, é outro dos requi-
4 sitos para a prática da leitura orante.

• Oração – Orar é conversar com Deus. Mas ao mesmo tempo, quando oramos,
experimentamos algo mais do que apenas dialogar com a divindade. Pedimos discer-
nimento para iluminar nosso entendimento sobre a Bíblia.

A oração é um pressuposto da fé. Aquele ou aquela que ora crê que Deus ouve e atende
às suas súplicas. Da mesma maneira, cremos que, por meio da oração, a leitura bíblica
e a sua interpretação podem ser partilhadas com sabedoria, em conformidade com a
vontade de Deus.

• Contemplação – A contemplação complementa o que afirmamos sobre a medita-


ção. Podemos dizer que meditar sobre as Escrituras Sagradas e contemplar o que foi
lido é uma experiência especial.

A contemplação envolve a leitura do texto, a meditação sobre o que foi lido e sobre o
seu significado, a interpretação e, em silêncio, a oração e o louvor ao Deus, que é a
fonte daquela mensagem.

• Ação – Por último e não menos importante temos a aplicação de que foi lido, inter-
pretado, orado, internalizado, meditado e contemplado: a ação.

A leitura orante da Bíblia requer do leitor e da leitora a atitude do amor, da compreensão,


dos bons relacionamentos com os irmãos e irmãs da comunidade e todas as demais
pessoas da sociedade.

Todos os passos da leitura orante perdem seu significado se não houver a prática, se
não se traduzirem em ações concretas do cristão, da cristã.

O que foi aprendido da leitura orante deve ter como consequência a ação. Sem a práti-
ca, a leitura orante se reduz à espiritualidade vazia.

No próximo tópico, estudaremos outro tipo de leitura da Bíblia tão importante quanto a
leitura orante: a leitura popular.

Orar e Agir em favor da sociedade andam de mãos dadas!

Para aprender um pouco mais sobre a Lectio Divina leiam: GARGANO,


Innocenzo. A Metodologia Exegética dos Padres da Igreja in: Yofre, Horácio Simian
(org). Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000, p. 180-186.

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2. A LEITURA POPULAR DA BÍBLIA
No tópico anterior de nosso estudo, vimos como a leitura orante da Bíblia é importante
para a espiritualidade do cristão. Aprofundaremos agora um pouco mais a aplicação dos
fundamentos apresentados até aqui.
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A Hermenêutica parte da exegese, ou seja, a partir da leitura exegética dos textos bíbli-
cos aplicamos suas interpretações ao cotidiano, à nossa vida ou mesmo à comunidade
na qual estamos inseridos.

Neste tópico, trataremos de um outro tipo de leitura hermenêutica dos textos bíblicos: a
chamada Leitura Popular da Bíblia. Esse tipo de abordagem possui um lugar especial
nas comunidades cristãs da América Latina e, principalmente, no Brasil.

O primeiro ponto para o qual precisamos chamar a atenção é a preocupação com a con-
textualização social, econômica e política. Os textos bíblicos podem nos ajudar a fazer
avaliações precisas sobre determinadas conjunturas da sociedade atual.

A questão do desenvolvimento do capitalismo, do aumento da pobreza, da falta de


educação, de saúde e de outros itens básicos, na América Latina e no Brasil, são con-
siderados de maneira crítica.

Sônia de Fátima Batagin (2000, p. 343-350) aponta alguns problemas de uma leitura
somente científica, sem a preocupação da contextualização e atualização da Bíblia:
Às vezes, utilizam-se linguagem e recursos mais sofisticados (Crítica Textual,
Crítica Literária, Litura Sociológica etc.), bem como outras mediações (ar-
queologia, antropologia, história) para se interpretar uma perícope. O autor/
redator utilizou os recursos literários próprios de seu tempo e de sua cultura.
Por vezes, ficamos assustados e confusos: será realmente imprescindível
utilizar tais instrumentos científicos para ler a Bíblia? Com efeito, tais instru-
mentos de análise são meios importantes para uma leitura fiel da Sagrada
Escritura e, ao mesmo tempo, para corrigir erros primários, tais como perma-
necer nos “achismos e chavões” de uma leitura simplista e reducionista. Além
disso, uma leitura meramente científica pode, igualmente, ser reducionista.
Faz-se, portanto, importante uma aproximação ao texto analisado de forma
mais existencial e meditada, fazendo-o falar, na medida em que recupera sua
função de luz para a vida da comunidade.

O aspecto levantado pela autora é relevante, pois os estudos metodológicos e acadêmi-


cos que desenvolvemos devem nos levar a disponibilizar tais conhecimentos em favor
de nossas comunidades.

A partilha bíblica é um dos pontos defendidos pela leitura comunitária e popular da Bíblia.
Além disso, a hermenêutica contextualizada, atualizada e crítica, deve surgir desse partilhar.

A leitura popular dos textos bíblicos deve, e muito, às perspectivas da chamada Teolo-
gia da Libertação. A Teologia da Libertação é ligada na América Latina a nomes como
Gustavo Gutierrez, Rubem Alves e Leonardo Boff. Surge com um olhar diferenciado de
outras teologias. Seu objetivo é responder às demandas reais da sociedade.

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A Leitura e a Interpretação da Bíblia na Comunidade de Fé Hoje

Leonardo Boff, expoente no Brasil da Teologia da Libertação, na obra “Jesus Cristo


Libertador”, esclarece sua preocupação hermenêutica:
Viver a fé em Jesus Cristo Libertador supõe um compromisso com a liberta-
ção histórica dos oprimidos. A partir de um compromisso real, (lugar social)
4 procura-se dar relevância a todas as dimensões libertadoras presentes no
mistério de Jesus Cristo. Enfatiza-se a prática libertadora do Jesus histórico,
pois, como filho encarnado, proclamou uma determinada mensagem e se
comportou de tal forma que tinha como efeito a produção de uma alvissareira
atmosfera de liberdade para todo o povo. Esses conteúdos fundam o segui-
mento dos cristãos em contexto de dominação, que deve ser superado por
um processo de libertação (BOFF, 2012, p. 11).

A Cristologia social proposta por Leonardo Boff é completamente diferente das repre-
sentações escolásticas e metafísicas das outras teologias. Esse Jesus apresentado
com base nos relatos dos evangelhos é o Cristo das andanças e preocupações com as
mulheres, com os pobres e oprimidos.

Jesus Cristo deve ser proclamado como aquele que liberta o ser humano na totalidade
do seu ser. As desigualdades que promovem pobreza são pecados sociais e contra tudo
que entendemos como ser humano. Isso é contrário ao evangelho.

Leonardo Boff (2012, p.13) afirma:


A Cristologia que proclama Jesus Cristo como libertador quer comprometer-se
com a libertação econômica, social e política dos grupos oprimidos e domina-
dos. Pretende perceber a relevância teológica que se acha na libertação históri-
ca das grandes maiorias do nosso continente e diz a si mesma: eis o que deve
pensar; eis o caminho pelo qual se deve incentivar a práxis. Quer articular de tal
maneira o conteúdo da Cristologia e criar um estilo que ponha em destaque as
dimensões libertadoras presentes no caminho histórico de Jesus.

Leitura bíblica contextualizada com as preocupações sociais da América Latina e do


Brasil, é isso que Boff propõe como chave hermenêutica. É a preocupação com o pró-
ximo, com a dor do mundo.

A leitura popular da Bíblia possui essas características. É uma hermenêutica que lida
com os problemas sociais, ou seja, como os profetas da Bíblia Hebraica e, como Jesus
de Nazaré, enxerga seu mundo como algo que precisa ser melhorado para a maioria
das populações necessitadas.

Sônia de Fátima Batagin (2000, p. 345) afirma:


A comunidade local, que tem seus pés situados no coração de um mundo
onde predominam as dores do cotidiano, é fazedora (com suas angústias
e esperanças, lágrimas e alegrias, lamentações e conquistas) de uma lei-
tura realista que, ao vivenciar a inquietude evangélica, desinstala a própria
comunidade e impõe a esta uma contínua dinâmica. É por isso, com efeito,
que a comunidade é aberta aos desafios emergentes e professa um credo
que transmite o sentimento de solidariedade. É impossível conviver com uma
situação que impede o outro de viver e crescer.

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E ainda:
A comunidade vive, de fato, sintonizada, angustiada e questionada pela reali-
dade que a envolve. Há uma tentativa solidária de solucionar os fatos absurdos
com os quais se depara no dia a dia. Por exemplo, como um trabalhador e pai
de família pode viver com um salário tão baixo, sem casa, sem usufruir de uma 4
assistência médica digna, sem poder oferecer a seus filhos uma educação que
favoreça e garanta um futuro melhor? E não podemos descartar a grande e
dolorosa via sacra do mundo do desemprego!

Ler a Bíblia criticamente e sob viés popular significa considerar que tal realidade está
presente em nosso país e que necessita ser alvo de reflexão da igreja. As pessoas que
frequentam nossas comunidades estão, muitas delas, inseridas nesses contextos como
os apontados acima por Sônia de Fátima Batagin.

As preocupações de um hermenêutica popular podem ser mais ampla ainda. Devemos,


como estudiosos da Bíblia, nos preocuparmos também com outras formas de opressão.

Desigualdades entre gêneros, racismos, violência doméstica, também devem fazer par-
te das discussões dos movimentos que leem popularmente a Bíblia. A Bíblia ajuda na
discussão e na busca de soluções para tais problemas.

Por último, gostaríamos de elencar dez pontos da leitura popular da Bíblia apontados
pelo Centro de Estudos Bíblicos (https://cebi.org.br/reflexoes/sobre-leitura-popular-da-
-biblia-parte-i/, data de acesso: 05/03/2020.

São eles:

• A Bíblia é reconhecida e acolhida pelo povo como Palavra de Deus. Essa fé já exis-
tia antes da chegada da leitura popular da Bíblia. É nessa raiz ou tronco bem firme da
fé popular que enxertamos todo o nosso trabalho em torno da Bíblia.

É o que caracteriza a leitura que fazemos da Bíblia na América Latina. Sem essa fé,
todo o processo e todo o método teriam de ser diferentes. “Não és tu que sustentas a
raiz, mas a raiz sustenta a ti” (Rm 11,18).

• Ao ler a Bíblia, o povo das comunidades traz consigo a sua própria história e tem
nos olhos os problemas que vem da realidade dura da sua vida. A Bíblia aparece
como um espelho, símbolo (Heb 9,9; 11,19), daquilo que ele mesmo vive hoje.

Estabelece-se, assim, uma ligação profunda entre Bíblia e vida, que, às vezes, pode
dar a impressão aparente de um concordismo superficial. Na realidade, é uma leitura
de fé muito semelhante à leitura que faziam as comunidades dos primeiros cristãos (At
1,16-20; 2,29-35; 4,24-31) e os Santos Padres nos primeiros séculos das igrejas.

• A partir dessa nova ligação entre Bíblia e vida, os pobres fazem a descoberta, a
maior de todas: “Se Deus esteve com aquele povo no passado, então Ele está tam-
bém conosco nesta luta que fazemos para nos libertar. Ele escuta também o nosso
clamor!” (Cf. Ex 2,24; 3,7).

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A Leitura e a Interpretação da Bíblia na Comunidade de Fé Hoje

Assim vai nascendo, imperceptivelmente, uma nova experiência de Deus e da vida que
se torna o critério mais determinante da leitura popular e que menos aparece nas suas
explicitações e interpretações. Pois o olhar não se enxerga a si mesmo.

• Antes de o povo ter esse contato mais vivido com a Palavra de Deus, para muitos,
4 sobretudo na igreja católica, a Bíblia ficava longe. Era o livro dos “padres”, do clero.
Mas agora ela chegou perto! O que era misterioso e inacessível, começou a fazer
parte da vida cotidiana dos pobres.

E junto com a sua Palavra, o próprio Deus chegou perto! “Vocês que antes estavam
longe foram trazidos para perto!” (Ef 2,13) Difícil para um de nós avaliar a experiência
de novidade e de gratuidade que tudo isso representa para os pobres.

Assim, aos poucos, foi surgindo uma nova maneira de se olhar a Bíblia e a sua interpre-
tação. A Bíblia já não é vista como um livro estranho que pertence ao clero, mas como
nosso livro, “escrito para nós que tocamos o fim dos tempos” (1 Cor 10,11).

Às vezes, para alguns, ela chega a ser o primeiro instrumento para uma análise mais
crítica da realidade que hoje vivemos. Por exemplo, a respeito de uma empresa opres-
sora do povo, o pessoal da comunidade dizia: “É o Golias que temos que enfrentar!”

• Está em andamento uma descoberta progressiva de que a Palavra de Deus não


está só na Bíblia, mas também na vida, e de que o objetivo principal da leitura da
Bíblia não é a de interpretá-la, mas sim interpretar a vida com a ajuda da Bíblia. Des-
cobre-se que Deus fala hoje, por meio dos fatos.

• A Bíblia entra por uma outra porta na vida do povo: não pela porta da imposição au-
toritária, mas sim pela porta da experiência pessoal e comunitária. Ela se faz presente
não como um livro que impõe uma doutrina de cima para baixo, mas como uma Boa
Nova que revela a presença libertadora de Deus na vida e na luta do povo.

A Bíblia confirma a caminhada que o povo está fazendo e, assim, o anima na sua espe-
rança. Os que participam dos grupos bíblicos, eles mesmos se encarregam de divulgar
essa Boa Notícia e atraem outras pessoas a participar. “Venham ver um homem que me
contou toda a minha vida!” (Jo 4,29). Por isso, ninguém sabe quantos grupos bíblicos
existem. Só Deus mesmo!

• Para que se produza essa ligação profunda entre Bíblia e vida, é importante:

a. Ter nos olhos as perguntas reais que vêm da vida e da realidade sofrida de hoje,
e não perguntas artificiais que nada têm a ver com a vida do povo. Aqui aparece a
importância de o estudioso da Bíblia ter experiência pastoral, fruto da convivência, de
quem vive uma vida inserida no meio do povo.

b. Descobrir que se pisa o mesmo chão, ontem e hoje. Aqui aparece a importância do
uso da ciência e do bom senso, tanto na análise crítica da realidade de hoje como no
estudo do texto e seu contexto social.

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c. Ter uma visão global da Bíblia que envolva os próprios leitores e leitoras, e que es-
teja ligada à situação concreta das suas vidas. Lendo assim a Bíblia, produz-se uma
iluminação mútua entre Bíblia e vida. O sentido e o alcance da Bíblia aparecem e se
enriquecem à luz do que se vive e sofre na vida, e vice-versa.

• A interpretação que o povo faz da Bíblia é uma atividade envolvente, que compre- 4
ende não só a contribuição intelectual do exegeta, mas também, e sobretudo, todo
o processo de participação da Comunidade: trabalho e estudo de grupo, leitura
pessoal e comunitária, teatro, celebrações, orações, recreios, “enfim, tudo que é ver-
dadeiro, nobre, justo, puro, amável, honroso, virtuoso ou que de qualquer maneira
merece louvor” (Fl 4,8). Aqui aparecem a riqueza da criatividade popular e a amplidão
das intuições que vão nascendo.

Para uma boa interpretação, é muito importante o ambiente de fé e de fraternidade, por


meio de cantos, orações e celebrações. Sem esse contexto do Espírito, não se chega
a descobrir o sentido que o texto tem para nós hoje. Pois o sentido da Bíblia não é só
uma ideia ou uma mensagem que se capta com a razão e se objetiva através de racio-
cínios; é também um sentir, uma consolação, um conforto que é sentido com o coração,
“para que, pela perseverança e pela consolação que nos proporcionam as Escrituras,
tenhamos esperança” (Rm 15,4).

Finalizemos por aqui nosso tópico sobre a leitura popular da Bíblia. No próximo tema,
avançaremos um pouco mais nosso olhar hermenêutico.

Discorreremos a respeito da leitura da Bíblia na liturgia.

Leitura Popular da Bíblia implica refletir criticamente sobre a sociedade e


suas desigualdades, a cultura, as questões políticas e econômicas do Brasil
e da América Latina

Para estudar a Cristologia libertadora leia: BOFF, Leonardo. Jesus Cristo


Libertador. Petrópolis: Vozes 2012.

3. A LEITURA DA BÍBLIA NA LITURGIA


No tópico anterior, estudamos a leitura popular da Bíblia e demonstramos quão im-
portante é esse modo de fazer hermenêutica. A contextualização da Bíblia é uma das
chaves interpretativas desta unidade.

Neste tópico, queremos considerar outro tipo de leitura, ou seja, aquela que diz respeito
ao uso da Bíblia na liturgia das igrejas cristãs.

Geralmente, em igrejas católicas e protestantes históricas (Presbiterianas, Luteranas etc.)


o culto possui uma ordem preestabelecida que, por meio de folheto ou boletim, orienta os
fiéis, oferecendo informações relativas às celebrações. O calendário semanal da igreja é
dirigido por uma espécie de esquema de leituras da Bíblia, cânticos espirituais, orações etc.

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A Leitura e a Interpretação da Bíblia na Comunidade de Fé Hoje

Esses conteúdos ajudam tanto os dirigentes como os membros de uma comunidade a


cultuar a Deus, a participar dos sacramentos, a meditar sobre os textos da Bíblia.

Essa ordem se chama Liturgia. A Bíblia tem uma função muito importante na liturgia,
pois é dela que partimos.
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Há várias propostas de organização das leituras bíblicas na liturgia. A mais comum é o
que chamamos de lecionário. O lecionário funciona como uma tabela de leituras indicadas
para cada domingo (e também para cada dia da semana), organizada trienalmente: anos
A, B e C. Nesse ciclo de três anos, lê-se com a comunidade praticamente toda a Bíblia.

Cássio Murilo Dias (2000, p. 27-28) afirma:


Os vários textos lidos durante uma celebração não querem apenas nos levar a
rezar e a refletir sobre determinados temas. Na verdade, em termos de liturgia,
o que celebramos não são temas, e sim acontecimentos (a vida é um aconteci-
mento, não um tema; a libertação é um acontecimento, não um tema; igualmen-
te o perdão, a dor, a morte, a ressurreição etc.), pois é nos acontecimentos que
Deus está presente e se revela.

Cássio demonstra o real significado da liturgia, ou seja, ao lermos textos bíblicos


nos apropriamos existencialmente dos seus relatos. Assim, no ambiente litúrgico so-
mos convidados a louvar a Deus por tudo o que ele fez no passado, faz no presente
e fará no futuro.

A liturgia auxilia o indivíduo na busca de Deus e os acontecimentos narrados na Bíblia


fazem com que ele, pela fé, sinta-se provocado, impactado pelo o que foi dito e lido
no culto litúrgico.

A leitura bíblica no ambiente litúrgico propicia que participemos dos eventos desenca-
deados pela História da Salvação. Os momentos de leitura bíblica na liturgia têm como
objetivos também fazer com que aquele que está presente na comunidade se envolva
nessa história, se reconheça participante.

Cássio Murilo (2000, p. 28) afirma:


Por isso que esse nível de leitura requer que conheçamos a História da Sal-
vação, a fim de que saibamos identificar os acontecimentos a que as leituras
da celebração se referem, os questionamentos que tais fatos provocaram na
caminhada do povo de Deus e quais respostas foram dadas. A partir de então,
vamos poder avaliar a semelhança entre a nossa situação presente e a situação
do povo bíblico, bem como as respostas que estamos dando.

A Bíblia é repleta de testemunhos da ação salvadora de Yahweh para com o seu povo.
Os atos salvíficos de Deus estão presentes desde os primeiros capítulos de Gênesis
1-11, na História dos Primórdios, no Ciclo Patriarcal no qual ele promete a terra de Ca-
naã a Abraão, Isaque e Jacó.

Yahweh se faz presente na libertação dos escravizados do Egito, tornando-se justo em


favor dos oprimidos pelo poderoso reino do Egito. São atitudes concretas de Deus em
favor do seu povo.

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Os salmos louvam a Yahweh pelos feitos no passado, momento em que o salmista se
alegra e reforça suas esperanças de que no presente e no futuro Deus estará agindo
em favor do povo de Israel.

A História da Salvação afirma que o bem maior de Yahweh foi ter enviado seu filho,
Jesus Cristo, para salvar a humanidade e colocar no coração de cada um a esperança 4
na renovação de todas as coisas e o fim de todas as opressões.

Todos esses eventos salvíficos são lidos, lembrados e fornecem o conteúdo para a
liturgia. A leitura e o estudo da Bíblia é um elemento primordial para as comunidades e
seus atos litúrgicos.

A respeito da forma como a Bíblia é lida na liturgia durante o culto, Wilhelm Egger
(1994, p. 217) diz:
No uso litúrgico, as perícopes aparecem integradas ao contexto de outros
textos bíblicos e litúrgicos, como também ao contexto da celebração e da
comunidade celebrante. No aspecto hermenêutico, o texto recebe assim uma
interpretação e atualização. “Presente está (Cristo) pela sua palavra, pois é
ele mesmo que fala quando se leem as Sagradas Escrituras na igreja.

A Hermenêutica é parte fundamental no desenvolvimento da liturgia. Ora, os textos são


atualizados. As leituras feitas no culto possuem um objetivo claro, levar o indivíduo ao
encontro com o sagrado.

Por fim, queremos citar o comentário sucinto de Innocenzo Gargano (2000, p. 187) a
respeito da relação e importância da liturgia para os Pais da Igreja:
Cresce hoje a consciência do contexto litúrgico em que o próprio NT, e talvez
também boa parte do AT, nasceu e tornou-se posse definitiva da comunidade
crente. Parece óbvio afirmar a mesma coisa, mutatis mutandis, acerca do pe-
ríodo patrístico. Toda a produção homilética dos Padres, a de tipo mistagógico
antes de tudo, não teria nenhuma possibilidade de ser compreendida adequa-
damente sem a necessária contextualização litúrgica. Considerando o que elu-
cidamos acerca do método da lectio divina com referência ao dito “divina eloquia
cum legente crescunt” de Gregório Magno, devemos frisar que para o mesmo
autor, herdeiro nisto de Basílio e João Crisóstomo, a maior penetração possível
do texto bíblico era garantida pelo toque do Espírito Santo, que operava no inte-
rior da assembleia celebrante disposta em seu conjunto a “realizar e escutar” o
sentido das Escrituras inspiradas. De resto, era obviedade inconteste na men-
talidade dos Padres que a autêntica “compreensão” do texto bíblico escutado
ocorria em sua atuação plena, vivida pela assembleia litúrgica celebrante.

Os Pais da Igreja levavam muito a sério a relação entre leitura da Bíblia, liturgia e inter-
pretação da comunidade ouvinte. A liturgia possuía para os pais papel fundamental para
a ação do Espírito Santo no meio da igreja.

Finalizemos por aqui nossa exposição sobre a liturgia. Em nosso próximo tópico discu-
tiremos, para finalizar nossa última unidade, a questão da leitura da Bíblia e os desafios
sociais para os dias de hoje.

Hermenêutica Bíblica 10
A Leitura e a Interpretação da Bíblia na Comunidade de Fé Hoje

Leitura da Bíblia, meditação, oração e aplicação hermenêutica são compo-


nentes indispensáveis para a liturgia.

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Para estudar a relação que os Pais da Igreja faziam entre exegese e liturgia
leia: GARGANO, Innocenzo. A Metodologia Exegética dos Padres in: Yofre,
Horácio Simian (org). Metodologia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola,
2000, p. 171-191.

Para estudar outras possíveis leituras da Bíblia veja: BRAKEMEIER, Got-


tfried. A Autoridade da Bíblia: Controvérsias – Significado – Fundamento. RS:
Sinodal, Centro de Estudos Bíblicos, 2003, p. 64-66.

Sugerimos para reforçar o conhecimento sobre liturgia a consulta ao site


oficial e ecumênico do Revised Common Lectionary em https://lectionary.
library.vanderbilt.edu/.
Ver também o site em português, de orientação Reformada: https://lecionario.com

4. A LEITURA DA BÍBLIA E OS DESAFIOS SOCIAIS DO TEMPO


PRESENTE
Chegamos ao nosso último tópico e estamos finalizando nossa unidade. Assim, re-
servamos essa parte final de nosso material didático para falarmos um pouco sobre a
leitura da Bíblia e os desafios do tempo presente.

Antes de mais nada, gostaríamos também de mencionar duas formas de leitura da Bíblia
que possuem relação com a sociedade. Não podemos deixar de falar de exegese bíblica
sem mencionar a leitura feminista das Escrituras Sagradas e a leitura socioantropológica.

Uma leitura feminista da Bíblia significa olhar os textos e relacioná-los com as abor-
dagens dos diversos movimentos pelos direitos das mulheres na América Latina e
em todo o mundo.

O método praticado pelas exegetas feministas e por pesquisadores que também


apoiam essa maneira de ler os textos é uma hermenêutica que tem como objetivos
superar o androcentrismo.

A problemática trazida pelas exegetas feministas está na questão do gênero ou no


método de gênero. Ela compreende uma ótica que se serve do gênero como uma ferra-
menta de interpretação da vida e do sentido do texto.

Muitos textos da Bíblia são condicionados em uma estrutura patriarcal e foram escritos,
quase em sua totalidade, em uma perspectiva androcêntrica. Outro problema apontado
pelas feministas é que em alguns textos da Bíblia, por estarem condicionados ao con-
texto patriarcal, influenciaram os trabalhos de tradução e interpretação da mesma.
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A maioria desses textos é resultado de homens falando de mulheres e colocando suas
próprias visões, sem que as mulheres mesmas pudessem ser ouvidas e falarem por
elas mesmas. Daí decorrem graves distorções a respeito da compreensão de quem foi
a mulher no mundo bíblico.

Essa abordagem, salientamos, é importante para revelar e questionar a estrutura pa- 4


triarcal que herdamos e libertar as comunidades em geral do androcentrismo, da dis-
criminação e da dominação predominante nas relações entre homens e mulheres (Cf.
SUAIDEN, 2000, p. 350-353).

A segunda forma de leitura que queremos destacar aqui é o método socioantropológico


de análise da Bíblia, que, como outros tipos de leitura, nos ajuda a olharmos a socieda-
de com mais criticidade.

Esse método de leitura não só pesquisa a literatura e a realidade social dos textos sa-
grados, como também as forças subjacentes à composição dos mesmos. Examina a
sociedade que está por detrás dessas obras.

Esse tipo de hermenêutica está relacionada com a leitura popular e com os métodos
históricos e críticos. Estuda-se a sociedade e sua economia, assim como a política e a
ideologia contida nos textos.

Alguns sociólogos como Emile Durkheim aplicavam seus métodos de análise socioló-
gica nas sociedades de maneira positivista, ou seja, que a sociedade humana é regida
por leis naturais, leis invariáveis.

Na aplicação do método de Durkheim, as ciências sociais são disciplinas objetivas,


neutras, livres de juízo de valor, de ideologias políticas. Nesse sentido, o positivismo
defende uma ciência social desligada de quaisquer vínculo com as classes sociais, com
as posições políticas, os valores morais, as ideologias, as utopias, as visões de mundo.
Esse tipo de pensamento tem se mostrado muito limitado.

Marx afirma que o conhecimento da realidade social é um instrumento político que pode
ajudar na compreensão da realidade e no engajamento dos grupos sociais na tarefa de
transformação da sociedade.

A análise sociológica, nessa concepção, não tem a finalidade do restabelecimento da


ordem social ou a determinação das normas do bom funcionamento como defendiam os
positivistas. Ela, como uma disciplina crítica, deve contribuir para a transformação social.

Do ponto de vista de uma leitura antropológica, privilegia-se o estudo da cultura e da


religião de uma determinada sociedade. Os papéis sociais, seus ritos, suas práticas
de culto, a moral e a ética, podem aparecer nesses tipos de análises (Cf. DA SILVA,
2000, p. 355-441).

Esses dois exemplos de leitura bíblica servem para que o estudante de exegese e her-
menêutica se dê conta da existência e da importância de outras leituras e formas de
aproximação dos textos da Bíblia e perscrutar a sociedade.

Hermenêutica Bíblica 12
A Leitura e a Interpretação da Bíblia na Comunidade de Fé Hoje

O estudioso da Bíblia deve, como já destacamos, perceber nos textos de qual pressu-
posto ele quer partir para desenvolver sua análise. Tal escolha é muito importante para
a compreensão dos textos à atualidade.

Uma outra questão que podemos levantar neste tópico é o crescimento dos movimentos
4 pentecostais e a leitura da Bíblia feita nessas comunidades. Diversas igrejas pentecostais
surgiram em contexto periférico, e seus membros são majoritariamente pobres e negros.

Nas comunidades pentecostais, o uso da Bíblia é um fator predominante e podemos ver


frequentemente, ao andarmos nas ruas de qualquer cidade, um membro dessas igrejas
carregando uma Bíblia.

Geralmente, a interpretação bíblica feita nesses cultos são predominantemente ale-


góricas, com pouca ou nenhuma preocupação exegética. Os textos são usados sem
critérios metodológicos e é difícil percebermos uma preocupação em relacionar exe-
gese e hermenêutica.

É claro que não podemos incorrer no equívoco de afirmarmos que todas as igrejas
pentecostais praticam as mesmas leituras da Bíblia. Existe hoje cada vez mais uma
preocupação entre esses grupos em abrir seminários e estudar Teologia.

Mas, ainda assim, também verificamos que a Bíblia nesses seminários são usados dog-
maticamente, ou seja, os textos da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento são lidos sob
o viés do dogma. A Bíblia é usada para confirmar crenças já preestabelecidas.

Infelizmente, a leitura popular da Bíblia não teve muito êxito em alguns grupos pente-
costais, como aconteceu com a Teologia da Prosperidade. Por existir nesses grupos
pessoas pobres e negras, a leitura popular poderia ter tido maior recepção.

O Brasil possui ainda uma taxa de desigualdade muito grande nas grandes cidades do
país. Qual a relação da Bíblia com essa camada social da sociedade brasileira? Got-
tfried Brakemeier (2003, p. 67) assim afirma:
Assim sendo, a Bíblia é em sentido integral a Sagrada Escritura dos pobres.
“Pobre”, isto é categoria sociológica, designando, como visto, os “despossu-
ídos”, os carentes em sentido material, os esquecidos pela sociedade. Mas
o significado não permanece preso a esse aspecto. Inclui a experiência de
multiforme opressão, de carência, sofrimento. Houve vozes, é verdade, res-
tringindo o termo excessivamente a uma classe social. Foram corrigidas pela
observação de que na Bíblia os grupos privilegiados por Deus não cabem
numa só gaveta. Também as pessoas de fora, mais solidárias com o povo
oprimido, são destinatárias das promessas de Deus. Por isto mesmo, a ca-
tegoria “pobre”, respectivamente “povo”, pode abranger diversos grupos a
exemplo de mulheres, crianças, doentes e muitos outros. “Pobreza” resiste
às tentativas de padronização. Não cabe numa teoria. Define-se na vida real,
em situações concretas, pelo grau de sofrimento.

Ora, a Bíblia demonstra em muitas de suas páginas a preocupação com os oprimi-


dos, com a pobreza. Na Bíblia Hebraica vemos os profetas denunciarem a explora-
ção dos mais fracos.

13
Da mesma forma, no Novo Testamento, a mensagem de esperança aos humildes são
reforçadas nas palavras de Jesus. A denúncia contra o acúmulo de bens em detrimento
da partilha é vista por Jesus criticamente:
Ao retomar o seu caminho, alguém correu e ajoelhou-se diante dele, perguntan-
do: “Bom Mestre, que farei para herdar a vida eterna?” Jesus respondeu: “Por 4
que me chamas bom? Ninguém é bom senão só Deus. Tu conheces os manda-
mentos: não mates, não cometas adultério, não roubes, não levantes falso tes-
temunho, não defraudes ninguém, honra teu pai e tua mãe”. Então ele replicou:
“Mestre, tudo isso eu tenho guardado desde minha juventude. Fitando-o, Jesus
o amou e disse: “uma só coisa te falta: vai, vende o que tens, dá aos pobres e te-
rás um tesouro no céu. Depois, vem e segue-me”. Ele, porém, contristado com
essa palavra saiu pesaroso, pois era possuidor de muitos bens (Mc 10, 17-22).

Ora, a desigualdade econômica acarreta em pecado social, ou seja, é impossível agra-


dar ao Deus de Jesus se acreditarmos que não devemos levar a sério o problema da
pobreza. Novamente Brakemeier (2003, p. 68) nos ajuda a averiguar sobre o papel da
Bíblia na reflexão crítica da sociedade:
Para alcançar o objetivo, importa estudar não somente os textos bíblicos. Da
mesma forma é relevante o estudo da realidade circundante. É o primeiro
passo do método que consiste no “ver, julgar e agir”. Na ótica libertadora,
“vida” se concretiza predominantemente em relacionamentos sociais, portan-
to, “políticos” e “econômicos”. Há estruturas sociais a identificar e perceber
como funcionam, para reagir devidamente a partir do compromisso da fé.
Pois o pecado se manifesta não somente em atos individuais. Assumiu tam-
bém formas estruturais a serem denunciadas e superadas. No processo do
“julgar”, a Bíblia se revela como instrumental indispensável. Fornece os crité-
rios de avaliação da realidade, correlacionando esta aos imperativos do Rei-
no de Deus. Decorre daí, quase que logicamente, o compromisso do “agir”.
Leitura bíblica pretende a motivação para a ação transformadora.

Ainda devemos, novamente, mencionar os pentecostais. Essas comunidades acabam


por fornecer aos seus membros participantes uma autoestima que muitas vezes o Es-
tado não fornece.

Pela falta de políticas públicas que garantam cidadania plena aos indivíduos, é nas igre-
jas pentecostais que eles encontram acolhida, vislumbram possibilidades de exercer
funções e serem reconhecidos, serem incluídos e tratados como irmãos etc.

Assim, o papel de uma leitura crítica e social da Bíblia deve levar em conta todos es-
ses fatores mencionados acima. O teólogo e a teóloga não devem se esquecer que a
hermenêutica, quando contextualizada socialmente, torna-se especialmente relevante.

Por último, queremos também mencionar a pluralidade religiosa no Brasil. Além das
diversas igrejas cristãs divididas em católicos, protestantes, pentecostais, temos em
nosso país uma gama enorme de grupos de religiões de matriz africana.

Nesse sentido, a Bíblia deve ser usada para promover o amor e o diálogo inter-reli-
gioso e não discursos fundamentalistas de ódio e ressentimento com outras religiões
existentes no Brasil.

Hermenêutica Bíblica 14
A Leitura e a Interpretação da Bíblia na Comunidade de Fé Hoje

Nossa sociedade é plural, a riqueza da cultura brasileira é reconhecida mundialmente.


No Brasil temos, além de cristãos católicos, romanos e protestantes, budistas, espíritas,
pessoas que professam o islamismo etc.

Sendo assim, é de caráter urgente a construção de contatos entre diferentes grupos


4 religiosos para fornecer exemplo para a sociedade. A Bíblia para o cristão é promotora
de paz e justiça. Ela deve ser lida honestamente e provocar a ação pacificadora e não
brigas e contendas.

Brakemeier (2003, p. 83) afirma:


A Bíblia confronta de modo particularmente agudo o desafio da unidade na
pluralidade. Traz em ambas as partes, o AT e o NT, marcas de multicultura-
lidade. Nasceu em ambiente plurirreligioso, sob as condições de um fervi-
lhante mercado politeísta. A Bíblia resiste à tentação do fundamentalismo.
Não sufoca a pluralidade. Mas também não cai na armadilha do relativismo.
Apregoa a diversidade reconciliada, a pluralidade solidária, imprimindo-lhe o
espírito da diaconia, assim como ele é peculiar dos membros de um corpo
sadio. É esse o único projeto social “sustentável”, não só em termos eclesiás-
ticos e religiosos, como também políticos e econômicos.

Que o sentimento ecumênico e de diálogos interreligiosos nos traga consciência e paz


em uma país rico em diversidade.

Encerramos aqui nosso último tópico e também nossa última unidade do curso de Her-
menêutica Bíblica. Desejamos que esse estudo tenha ajudado a modificar e a melhorar
seu olhar em relação aos texto da Bíblia Hebraica e do Novo Testamento.

Nosso intuito foi incentivá-los a estudar a Bíblia criteriosa e metodicamente, e, assim,


perceber a riqueza de suas páginas.

Nosso material didático se propôs a discutir exegese e hermenêutica.

Exegese, porque entendemos que o estudo do contexto, da cultura, dos discursos con-
tidos na Bíblia é de suma importância para a sua interpretação.

Hermenêutica, porque a exegese precisa ser atualizada de acordo com os contextos


brasileiros e latino-americanos. A relação exegese-hermenêutica foi proposta aqui com
a finalidade de proporcionar uma melhor compreensão dos textos da Bíblia tanto do
passado, quando de sua composição, quanto no presente, que é o tempo do leitor atual.

Esperamos que, com essas referências, você possa desenvolver posteriormente outros
estudos na área da pesquisa bíblica. Se isso acontecer, com certeza teremos o senti-
mento de dever cumprido.

Ótimos estudos!

15
Para a compreensão da abordagem hermenêutica e ecumênica da Bíblia
leiam: BRAKEMEIER, Gottfried. A Autoridade da Bíblia: Controvérsias –
Significado-Fundamento. RS: Sinodal/CEBI, 2003.

4
Para a compreensão da leitura bíblica e suas interpretações no cristianismo
leiam: DREHER, Martin N. Bíblia: Suas Leituras e Interpretações na História
do Cristianismo. RS: Sinodal/CEBI, 2006.

REFERÊNCIAS
1. BATAGIN, Sônia de Fátima. Leitura Popular in: 5. DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Leia a Bíblia Como
DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Metodologia de Exe- Literatura. São Paulo: Loyola, 2007.
gese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2000. 6. EGGER, Wilhelm. Metodologia do Novo Testa-
2. BOFF, Leonardo. Jesus Cristo Libertador. Petró- mento: Introdução aos Métodos Linguísticos e Histó-
polis: Vozes 2012. rico-Críticos. São Paulo: Loyola, 1994.
3. BRAKEMEIER, Gottfried. A Autoridade da Bíblia: 7. GARGANO, Innocenzo. A Metodologia Exegética
Controvérsias – Significado-Fundamento. RS: Sino- dos Padres in: Yofre, Horácio Simian (org). Metodolo-
dal/CEBI, 2003. gia do Antigo Testamento. São Paulo: Loyola, 2000.
4. DA SILVA, Airton José. Leitura Sócio Antropológi- 8. SUAIDEN, Silvana. Leitura Feminista in: DA SIL-
ca in: DA SILVA, Cássio Murilo Dias. Metodologia de VA, Cássio Murilo Dias. Metodologia de Exegese Bí-
Exegese Bíblica. São Paulo: Paulinas, 2000. blica. São Paulo: Paulinas, 2000.

Hermenêutica Bíblica 16

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