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Já andei por vias tortas

Me bateram portas
Já penei demais
Tenho um maço de receios
Não durmo direito
Onde está meu lar?
Mas se te encontrasse hoje
Ao menos essa noite
O chamaria pra dançar
(...)
E quanto mais lembro do calor que foi
mais eu sinto frio.

Jaloo, Last Dance


2015

Em 2018, escrevi um projeto curatorial para o edital Sala de Projetos do Auroras ( espaço
artístico localizado no bairro do Morumbi na cidade de São Paulo. O projeto se chamava O
frio e o Cruel e se tratava de uma exposição em dupla com um trabalho meu e um trabalho de
Lucas Alberto. Esse foi um de muitos projetos que fui recusada e tiveram de encontrar outras
maneiras para circular. Porém ele e eu existimos independente de onde estamos e hoje em
2020 me permito voltar a ele e encontrar coisas que imaginei e que quero imaginar.

O texto dessa exposição tirei de um filme que fala de um livro que expõe como o desejo pode
ser algo difícil de se lidar. E aceitar a complexidade das emoções como parte inevitável da
experiência de estar viva tem me ensinado a ter coragem. essa semana enterrei meu pai.
Antônio Jose Candido Filho que morreu aos 62 anos, esse texto como tudo mais que faço
existe por conta dele.

Escrevi esse texto a partir de uma conexão que tive com Lucas Roberto, artista que tenho o
prazer de chamar de amiga. Lucas e eu nos aproximamos em 2018 quando trabalhamos juntas
em Niterói, ele acompanhou minha relaçao com meu pai e foi fundamental no meu
desenvolvimento como artista. Lucas e eu compartilhamos muitas coisas inclusive em nossas
diferenças. Nessa exposição eu e lucas conversamos sobre como em nossas duas pesquisas
poéticas esbarramos com o medo de morrer e de que pessoas à nossa volta morressem.
Quando escrevi esse texto já havia experienciado a morte de minha mãe, agora voltar a ele
após a morte de meu pai me coloca de novo em contato com o medo .

Um dos pontos em que eu e Lucas nos encontramos era nosso interesse em ler certas
experiências através da linguagem e da psicanálise. Crueldade, em uma das definições
segundo o dicionário , define se como o prazer em fazer o ​mal. ​Gostaria de brevemente me
debruçar sobre essas duas palavras enquanto caminho para lidar com esse trauma e com essa
exposição.
Prazer está ligado a ideia de desejo, preocupação que aparece em nossos trabalhos. Desejo
pode ser lido por muitos psicanalistas ( eu e lucas nos debruçamos principalmente em Freud e
Lacan) como uma ambiguidade entre uma pulsão de vida e de morte. A saudade ( palavra que
só existe em português) é lida como uma pulsão de morte pois vai de encontro a um desejo
destrutivo; o de desperdiçar a vida.

Tenho aprendido nesse momento que há diversas maneira de se lidar com a morte, no
cemitério onde meus pais estão enterrados há uma faixa que diz : Saudade sim, Tristeza não.
Conversando com minha família nesse momento percebo como cada eu e um universo e
desafiando o impossível existe um encontro. Independente das diferenças etárias, religiosas e
subjetivas a morte é mistério que não se entende mas se sente no corpo, na lágrima e no
âmago.

A ideia de mal vem atrelada a muitos discursos teológicos e o que escolho abordar aqui e o
um dos significado dado pelo dicionário enquanto substantivo: aquilo que machuca. Por
muito tempo, após a perda da minha mãe imaginei a morte como castigo ou maldade divina.
Mas pensar sobre o mal é cair na minha criação evangélica e acreditar que justiça é qualquer
coisa mais que uma ideia humana. Arrogância minha pensar que consigo alcançar o
incompreensível. Mas como artista sigo tentando.

Minha família me apresentou um louvor evangélico chamado ​Descansa​, sobre pensar a morte
como um repouso. Outra arrogância minha era julgar a fé da minha família pois sua estrutura
a fazia me julgar, agora lembro de Ventura Profana dizendo para nos armarmos com poderes
espirituais e em face do vale da sombra da morte gostaria de poder dizer que não temo mal
algum, mas seria mentira (ou um desejo?). No meio da guerra, talvez toda arma seja igual.

Encaro a morte como um desejo de não esquecer e por isso intenciono lembrar desse
encontro que nunca aconteceu. Pelo desejo de tantos encontros com meu pai que não
aconteceram. Recentemente, descobri que meu pai sabia que me chamo Agrippina. Talvez
em algumas esferas esses encontros aconteceram e acontecem ainda que a linguagem não de
conta.

Paro por aqui enquanto dou conta. compartilho o texto que escrevi e que Lucas escreveu na
esperança e na certeza de não estar sozinha. Sobre o frio, sigo sentindo .

O Frio e o Cruel
Curadoria: Agrippina R. Manhattan

Sangue e pele em simplicidade e víscera se colocam para dentro da Galeria. O espaço


branco é infectado pelo vermelho do sangue e coberto pela nudez do celofane.

Lucas Alberto mácula o corpo que ainda vestido aparece nu. A transparência violenta do
celofane expõe sem pudor o corpo do artista em toda sua fragilidade. O corpo em
contrapartida responde ao celofane com a violência da vida. O celofane e o durex se
desmancham com o movimento constante da respiração, ou com qualquer tentativa brusca
de movimento. A roupa não se encaixa em um corpo vivo sem que seja destruída e nenhum
corpo entra nela sem ser violentado.

O perfume opera de modo semelhante. Sua fragilidade se dá pela delicadeza do material.


Frágil recipiente que contém o sangue. Pode quebrar em apenas um instante. Ele se origina
da violência em extrair o sangue do corpo. Concomitantemente a visceralidade do sangue
infecta o vidro. O vidro contém o sangue ainda quente recém-saído do corpo.A roupa se
protege em sua solidão, ela permanecerá intocada até o fim da mostra, seguirá intacta, mas
sem nunca abrigar um corpo, sua mais plena realização a matará. O perfume pede para ser
manipulado, ele encara seu destino tentando se manter vivo pelas mãos que o manuseiam.

Ele seduz o espectador pois precisa dele. A comunhão só partilha a morte.

Ambos coabitam o espaço expositivo, silenciosos e pacientes. São dois objetos destinados
a perecer. No fim da exposição o perfume terá coagulado e a roupa será destruída ao ser
usada pelo artista

O frio espera a morte


O cruel pergunta: quem morre comigo?
Comunhão, 2017
Perfume, 15 cm x 5cm x 8 cm
Vidro, água deionizada, álcool de cereais, propilglico, fixador e sangue
Comunhão consiste em um perfume feito com meu próprio sangue. Ele é na galeria a mercê
de quem quiser usá-lo. Ele vem do meu incômodo enquanto artista e do desejo de explicitar
os absurdos envolvendo trabalho e remuneração no campo das artes. Pensei enquanto
jovem artista que ainda ganha quantias mínimas (quando ganho), pensei enquanto
trabalhadora que deve pagar para trabalhar, pensei no meu pai. O desejo era me vender
para quem quisesse usar. Quando mostrei o trabalho me veio a questão: era sangue
travesti. Nunca serei uma artista serei sempre a travesti. O que era comunhão passou a ser
lido como prostituição. Meu trabalho é lido antes de o verem só por quem eu sou. De certo
modo foi interessante que me isto me puxasse de volta para o chão. Percebi nisso dois
aspectos fundamentais do meu trabalho: A palavra e o outro. A palavra que me cerca e o
outro que me decifra. O corpo e sua visceralidade (o sangue) está
subjugado ao poder da palavra.

Agrippina R. Manhattan, 2018


​O frágil e a Fúria, 2017. Vestimenta, Tamanho P. Papel celofane e Durex
A ideia é confeccionar a partir do meu corpo essa roupa com papel celofane e durex,
vesti-la e mergulhar no mar em ressaca. Antes disso, essa roupa tentava se compor como
uma peça de identidade, uma roupa que pretendesse desnudar, o material frágil
rapidamente se partia ao vesti-la, me lembrando da resistência do corpo, da verdade, da
imagem nua. Depois de alguns processos o nome anterior "finalmente você pode se
apaixonar por mim" foi substituído para "o frágil e a fúria".

Lucas Aberto, 2018

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