Nesse contexto, a figura de Charles Baudelaire se destaca. Adepto da beleza de
circunstância, lida através das visões clássicas e históricas, e da pintura de costumes, o poeta é o exemplo da quarta atitude. Experimenta a modernidade, ao mesmo tempo, que é o seu intérprete. A relação entre modernidade e tradição é a constante na produção de Baudelaire. A respeito da noção de passado, criticando o historicismo pesado, o poeta nos diz: ...é interessante não sómente pela beleza que dele souberam extrair os artistas para quem construirá o presente, mas igualmente como passado, por seu valor histórico. O mesmo ocorre com o presente.(2)
E continua, delineando a dialética passado-presente:
O prazer que obtemos com a representação do presente deve-se não apenas à beleza de que ela pode estar revestida, mas também à sua qualidade essencial de presente. (...) O passado, conservando o sabor do fantasma, recuperará a luz e o movimento da vida, e se tornara presente.(3)
Para Baudelaire, as atitudes que não marcam a modernidade, estruturam o
mundo e a arte como lei única e absoluta, sem perceber que a compreensão do mundo depende da relação entre racional e histórico. Ele demonstra isso quando toma o belo e interpreta-o como possuidor de dois aspectos que se intercruzam da mesma forma que o passado – tradição – com o presente através do sentido de eterno e de invariável, associado ao relativo, ao circunstancial, à época, à moda, à moral. O belo transforma-se, momentaneamente, no signo da forma aberta, circunstancial e universal, de viver a experiência moderna pois, implica numa visão das coisas do mundo, indicando o seu processo de metamorfose. É em função desse procedimento que a imagem do flâneur não pode ser compreendida como uma personagem da modernidade; na verdade, o flâneur é o novo homem, formado pela impressão dialética, ele é o filósofo e o observador que narra a cena moderna em todas as suas qualificações, usando a ironia como forma narrativa. O flâneur está aberto para o banal e para o erudito, sem estabelecer diferenças no modo de passar de um para o outro. A banalização da filosofia e a intelectualização do cotidiano são os resultados de sua movimentação na modernidade. O flâneur é um enamorado pela rua, pela multidão e pelo desconhecido. Suas viagens urbanas demarcam, na cidade, a tensão das atitudes opostas inerentes ao novo tempo, a nervrose moderna. O tempo da mudança, que caracteriza a modernidade, é capaz de ancorar a tradição e o moderno. Rápido e radical, veloz e nervoso, o novo tempo imprime um ritmo à tradição que a torna capaz de ter presença no moderno, e, por isso, é básico para a compreensão da modernidade, uma vez que embora rápido não desaloja as construções associadas ao passado e ao futuro. O flâneur também expõe o cosmopolitismo da cidade e da modernidade. A ânsia de controlar o cotidiano e interpretá-lo, sugere que ele se afirme como erudito e se transforme num homem do mundo, como diz Baudelaire: do mundo inteiro, homem que compreende o mundo e as razões misteriosas e legítimas de todos os costumes. Ser cidadão do mundo significa ser cidadão espiritual do universo, ou seja, um homem capaz de tornar familiar quaisquer coisas, por mais estranhas que sejam. A curiosidade é a marca do flâneur e a inteligência, o modo de interpretar a cidade. A reunião da inteligência e da curiosidade promove um sentimento próprio do flâneur que está enraizado na modernidade: a convalescência, que é a faculdade de se interessar intensamente pelas coisas, mesmo por aquelas que aparentemente se mostrem as mais triviais. Esta sensação deriva das impressões, no flâneur, das novidades que o enebriam e provocam-lhe a inspiração para narrar, de forma sublime, a sua experiência de estremecimento nervoso na cidade. Reúnem-se, no flâneur, a razão e a sensibilidade, transformando-o em poeta da modernidade. O flâneur, na visão de Baudelaire, é um observador apaixonado que transforma a cidade no objeto de sua interpretação e que para fazê-lo define a cidade como sua morada: ...estar fora de casa e sentir-se em casa onde quer que se encontre (...) ver o mundo, estar no centro do mundo e permanecer oculto no mundo.(4) A consciência do flâneur liga-se a todos os elementos da vida e qualquer um deles pode servir para o começo de uma nova narrativa. A atribuição da beleza à cena urbana é o prolongamento de sua consciência estética: ...admira a eterna beleza e a espantosa harmonia da vida nas capitais, harmonia tão providencialmente mantida no tumulto da liberdade humana. Contempla as paisagens da cidade grande, paisagens de pedra acariciadas pela bruma ou fustigadas pelos sopros do sol. (5) Essas características reunidas fazem com que Baudelaire defina a modernidade como o processo através do qual o prazer do efêmero, da circunstância abre caminho para a compreensão do novo: Trata-se, para ele, de tirar da moda o que esta pode conter de poético no histórico, de extrair o eterno do transitório(6). E novamente, A modernidade é o transitório, o efêmero, o convergente, é a metade da arte, sendo a outra metade o eterno e o imutável(7). E sintetiza a quarta atitude: Começou contemplando a vida e só muito tarde se esforçou para apreender os meios de expressá-la. Disso resultou uma originalidade extraordinária, na qual o que pode restar de bárbaro ou de ingênuo aparece como nova prova de obediência à impressão, como lisonja à verdade.(8)
Um outro aspecto do flâneur, que o une a modernidade como seu idealizador e
personagem, é a qualidade da memória. Como experiente personagem da modernidade, sua condição de superioridade está em sua memória, em não perder nada do que vive e que publiciza sobre a forma da recordação. Esse movimento de guardião da memória da modernidade faz dele, além de um poeta, o historiador da modernidade. Essa capacidade torna-o amarrado a modernidade e move a sua razão em direção ao trágico. A clareza da visão compromete o seu otimismo, circunstancialmente, transformando-o em melancólico. E a melancolia, em vez de diminuir o seu ímpeto de flanar pela cidade, propicia um mergulho mais radical no real urbano.