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STANLEY KUBRICK E A IMPERFEIÇÃO HUMANA

Essa revisão pretende explicar certas intenções e permitir melhor compreensão  da estrutura deste estudo:

1. Dividimos o material em partes, citando o filme Barry Lindon: Parte I – Na qual Redmond Barry adquire o título de
Barry Lindon; Parte II – Contendo um relato dos infortúnios e desgraças que ocorrerão com Barry Lindon.

2. Não pretendo realizar um trabalho definitivo a respeito de Kubrick. As interpretações que podem ser atribuídas à
obra de Kubrick são infinitas. Sabemos disso e respeitamos.

3. As ilustrações deste trabalho foram organizadas de tal modo que sugerisse um clima cinematográfico. Onde se narra
sobre a vida de Kubrick, vê-se ilustrações de seus filmes. Onde se narra sobre os filmes de Kubrick, vê-se ilustrações
sobre a sua vida. Baseamos isso na máxima da narrativa cinematográfica, onde até Jean Claude Carrière e Michel Chion
são capazes de concordar com Syd Field: “Um narrador ou um personagem não deve repetir as imagens”.

INTRODUÇÃO

O presente trabalho tem como objetivo apresentar o grande cineasta Stanley Kubrick. Caro leitor, acredite – essa é uma
tarefa muito difícil. Pois, Stanley Kubrick é um cineasta único que não gostava de repetir a outros cineastas e nem a si
mesmo. Cada filme de Kubrick também é único; ele navegou por quase todos os gêneros e intelectualizou sobre as mais
variadas temáticas. Por isso é tão difícil sintetizar “o que é Stanley Kubrick”. Mas... em seu âmago há um elo entre as
obras deste cineasta; algo que se repete em cada filme; está ali; entorpecido; esperando ser descoberto como o
monolito negro: A IMPERFEIÇÃO HUMANA. Elegemos este elo como a temática do nosso trabalho e, porque não,
também, o seu elo.

Stanley Kubrick foi o cineasta do século XX que produziu as relações mais perturbadoras e as mais sublimes entre
imagens e sons. Vislumbramos esta personalidade ímpar na história do cinema mundial. Precoce e autodidata, desafiou
Hollywood com filmes polêmicos e complexos. Dominou com mão-de-ferro e maestria todas as etapas e áreas da
produção à comercialização de suas obras. Deixou seu país, a capital do cinema industrial, para constituir um reino
próprio no qual teria liberdade para realizar seus controversos projetos de modo quase artesanal. Sua personalidade
enigmática e sua obsessão pelo sigilo tanto com relação aos seus projetos quanto à sua vida particular só fizeram
aumentar o fascínio e a especulação sobre sua vida e obra. Daí a importância de apreendermos também seus temas e
métodos de trabalho, na expectativa de que possamos nos afastar do mito e nos aproximar do homem e seu ofício.

Para atingir tais objetivos, abordaremos Kubrick sob a seguinte estrutura:

Parte I – Biografia de Stanley Kubrick, descrevendo um pouco da vida do cineasta, seus primeiros momentos até a
maturidade no exílio.

Parte II – Kubrick: Seus filmes e a imperfeição humana, descrevendo os filmes de Kubrick e sua temática universal - a
imperfeição humana.

Parte III – O Método Stanley Kubrick, descrevendo como o cineasta desenvolveu um método próprio, tornando-se um
artesão medieval.

Parte IV – Considerações Finais.

PARTE I

Parte I - Na qual Stanley Kubrick torna-se um dos maiores cineastas de todos os tempos, equiparando a Serguei
Eisenstein, a Charles Chaplin e a Orson Welles.

BIOGRAFIA

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Considerado por alguns um gênio comparável a Orson Welles, o cineasta americano Stanley Kubrick fez sucesso em
todo o mundo com seus filmes de estilo visual despojado, meticulosa atenção ao detalhe e um pessimismo quase
sempre irônico.

Stanley Kubrick nasceu em 1928, no Bronx em Nova Iorque. Sua trajetória para se tornar um dos maiores diretores de
cinema de todos os tempos não apresentou muitos altos e baixos, e pode-se dizer que Kubrick, ao lado de outros
gênios como Alfred Hitchcock, é um dos poucos que se destacou do início ao fim. Na infância, Stanley Kubrick era
conhecido pelo seu total desinteresse pela escola - a William Taft School e por sua inegável e extraordinária inteligência
fora dela. Os professores sempre detectavam a “genialidade desperdiçada” daquele garoto, que sempre passava de
ano com notas baixas.

Um dos hobbys preferidos de Kubrick era tirar fotos com uma câmera que ganhara de seu pai, um médico. Kubrick
queria ser um fotógrafo do tipo paparazzi, invadir lugares e fotografar celebridades. Em 1945, ele invadiu o camarim do
jovem Frank Sinatra, quando fazia uma turnê em Nova York. Naquele mesmo ano, no dia da morte do presidente
Franklin Roosevelt, Kubrick tirou uma foto de um jornaleiro abatido em sua banca e cercado de jornais que publicavam
o triste ocorrido. Kubrick enviou a foto para a revista Look e foi publicada. Isto resultou na contratação dele pela
revista. Na época em que trabalhou como fotógrafo para a Look, Kubrick preenchia suas horas vagas em cinemas
assistindo a todo tipo de filmes junto com amigos. Stanley reclamava contra o sentimentalismo da maioria dos filmes. 
Aos 23 anos de idade, em 1951, Kubrick produziu seu primeiro filme, um documentário em curta metragem sobre o
boxeador Walter Cartier, com equipamento alugado e no qual atuou como diretor, operador de câmera e editor. Sua
produção, chamada Day of the Fight, foi comprada pela RKO e usada na série Isto é América.

Naquele mesmo ano, Kubrick pede demissão na Look para exercer a atividade de cineasta em tempo integral e faz seu
segundo curta de 9 minutos de duração, chamado Flying Padre, sobre um sacerdote que voa cerca de 400 milhas no
Novo México em um monomotor. O documentário foi financiado pela RKO para compor uma outra série chamada
Pathe Screenliner. Em 1953, ele recebeu uma encomenda da Atlantic and Gulf Coast District, para dirigir e fotografar o
documentário empresarial chamado The Seafarers. Este foi o primeiro trabalho de Kubrick em cores e o seu último
curta. Percebendo as possibilidades que estavam se abrindo, em 1953 produziu seu primeiro longa-metragem, Fear and
Desire, com dinheiro emprestado dos pais – cerca de 13000 dólares. Este é o único filme de Kubrick que não existe em
vídeo em parte alguma do mundo e que é totalmente vetado para qualquer tipo de distribuição, por decisão do próprio
Kubrick: ele achava o filme muito ruim.

Em 1955, com dinheiro emprestado de amigos, Kubrick faz seu segundo longa metragem: A Morte Passou por Perto
(Killer"s Kiss).  Com esse filme, também sobre o boxe, o cineasta amador já se profissionalizara. Em 1956, já tendo
deixado dois casamentos para trás, Kubrick foi para Hollywood, se associou ao produtor James B. Harris, e realizou O
Grande golpe (The Killing), seu primeiro filme de estúdio.

Ainda em 1956, Kubrick e Harris assinaram com o produtor executivo Dore Share da MGM, um acordo de propriedade
(como os estúdios faziam na época, principalmente com atores), e Kubrick escreveu uma adaptação para um filme
chamado The Burning Secret - que nunca foi realizado.

O primeiro filme deste contrato foi Glória Feita de Sangue (Path of Glory). Desde então, a porta do sucesso abriu-se
para Kubrick, que passou a ter convites de grandes estúdios. A convite de Kirk Douglas – o protagonista de Glória Feita
de Sangue – Kubrick dirigiu Spartacus em 1959. Kirk Douglas estava produzindo esse filme e tinha Anthony Mann como
diretor. Porém, foi demitido apenas duas semanas após o início dos trabalhos e Douglas chamou Kubrick para o posto.
O filme, muito pela Academia de Cinema praticamente deu a Kubrick carta branca para a produção de seus outros
grandes filmes. Nos dois anos seguintes, Kubrick escreveu e produziu filmes que não conseguiu realizar: um que seria
feito pela produtora de Kirk Douglas chamado I Stole 16 Million Dollars; outro sobre uma força de guerrilha na Guerra
Civil Americana; e outro que ele gastou seis meses na pré-produção junto com Marlon Brando para um filme chamado
One-Eyed Jacks, que no Brasil é conhecido como A Face oculta. Mas, além de atuar, Brando decidiu ele mesmo dirigir o
filme.

Seu filme seguinte foi Lolita (1962), baseado no romance de Vladimir Nabokov. Ao filmar na Inglaterra, Kubrick se
identificou com a paz e o sossego das proximidades de Londres e se mudou para Hertfordshire permanentemente e
onde passou a fazer todos os seus filmes. Lolita foi o último filme de Kubrick em associação com o produtor James B.
Harris, mas não com a MGM. A produção de Lolita foi um pouco conturbada devido à censura. A protagonista teve sua
idade alterada de doze anos (como no romance) para quatorze. Depois de Lolita, Kubrick passou a produzir todos os

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filmes que faria dali em diante.

O primeiro filme desta nova fase (1964) foi Doutor Fantástico (Dr. Strangelove) baseado no livro "Alerta vermelho" de
Peter George. Na adaptação, Kubrick transformou a estória séria sobre a Guerra Fria em uma paródia de humor negro. 
Kubrick estava no auge da sua carreira, porém, o maior projeto de todos ainda estava por vir. Depois do sucesso de seu
último filme, Kubrick uniu-se ao escritor de ficção científica Arthur C. Clarke para escreverem uma história sobre o
contato com civilizações extraterrenas. Kubrick trabalhou como co-autor e o resultado foi a produção de 2001 – Uma
Odisséia no Espaço (2001- A Space Odyssey - 1968), um marco do cinema e referencial para praticamente todos os
outros filmes de ficção envolvendo espaço que foram produzidos após. Depois de 2001, Kubrick passou a realizar todos
os filmes pela Warner Bros.

O próximo filme de Kubrick teria sido Napoleão, mas foi deixado de lado devido ao custo monumental que tal produção
exigiria. Kubrick chegou a escrever o roteiro e elaborar idéias para algumas cenas de batalha.

Outra produção sem precedentes foi Laranja Mecânica (A Clockwork Orange - 1971). Recebeu três indicações ao Oscar. 
Novamente, Kubrick gerou polêmica; e a polêmica não veio apenas pela violência desse filme, mas sim pelo seu
conteúdo forte e agressivo, mostrando lados obscuros dos seres-humanos nunca visto desta maneira nos cinemas.

Depois de três filmes futurísticos e sucessos de público e crítica, Kubrick mudou de direção, produzindo Barry Lyndon
em 1975. A história passada no século 18, é baseada no romance de William Makepeace Thackery. Este filme ficou
conhecido pelo uso lentes desenvolvidas especialmente pela Nasa, de altíssima luminosidade, na qual foi possível
captar cenas internas somente à luz natural de velas. Esta técnica resultou no filme visualmente mais belo de toda a
história do cinema.

Cinco anos depois, mais uma obra-prima, dessa vez do cinema de horror. Em 1980, Kubrick baseou-se na história
homônima de Stephen King e produziu o excelente O Iluminado (The Shining). O público prontamente transformou o
filme em um clássico, embora a crítica tenha ficado receosa durante anos para aceitá-lo definitivamente. O destaque
deste filme é o uso da Steadycam.

Em 1987, após sete anos sem lançar um filme, Kubrick produz Nascido Para Matar (Full Metal Jacket), baseado no livro
do ex-militar Gustav Hasford. A guerra do Vietnã é retratada da forma mais dura e realista que se possa fazer em um
filme sobre essa ou qualquer outra guerra. A ironia e o deboche são os pontos fortes desse filme.

Nos anos que se seguiram, Kubrick começou a preparar alguns projetos que acabou não realizando. Entre esses
projetos se destaca A.I., que são as siglas em inglês de Inteligência Artificial. Na realidade, Kubrick vinha adiando este
projeto, pois achava que os efeitos especiais não estavam evoluídos o suficiente. Kubrick mudou de idéia em 1993,
quando assistiu Jurassic Park.

Kubrick interrompeu a pré-produção de A.I. e decidiu filmar primeiro De Olhos Bem Fechados (Eyes Wide Shut - 1999),
baseado no romance Rhapsody de Arthur Schnitzler. Durante as filmagens, no ano de 1997, ele foi homenageado com o
D. W. Griffith, o prêmio especial do Sindicato dos Diretores. Dias depois de ter finalizado o filme, Stanley Kubrick
morreu durante o sono em sua casa, na madrugada de Domingo 7 de Março de 1999.

PARTE II

Parte II - Na qual conhecemos mais a respeito dos filmes de Stanley Kubrick e a sua temática: A imperfeição humana.

KUBRICK: SEUS FILMES E  A IMPERFEIÇÃO HUMANA

Caro leitor, antes de ler e criticar as análises dos filmes que se seguem,  reflita sobre o seguinte:

Analisar um filme através da palavra escrita é uma tarefa árdua. Diretores e seus colaboradores se esforçam para
transmitir suas idéias através das sensações que imagens e sons possam gerar. É bem sabido que o roteiro
cinematográfico morre quando o filme é produzido e não se encaixa em nenhuma categoria literária. Analisar um filme
de Stanley Kubrick é um desafio, pois o próprio diretor pouco disse sobre suas obras e investiu tempo e dinheiro para
expressar-se cada vez mais em imagens e menos em palavras. Analisar os 13 longas de Stanley Kubrick em pouco

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tempo é uma tarefa impossível! Portanto, o que se segue é uma primeira tentativa de compreender a obra do diretor.
Fomos largamente auxiliados por diversos textos de livros, revistas, jornais e websites.

Essa difícil missão de interpretar os filmes de um diretor que foi adepto da ambigüidade e do enigma torna-se um
pouco menos árdua quando observamos suas influências filosóficas, literárias e fílmicas. Essas influências e afinidades
ajudaram a moldar o gosto e o estilo do artista em questão, bem como sua visão de mundo.

No campo da filosofia, podem observar influência principalmente de Sigmund Freud e Carl Jung, mas também um
pouco de Immanuel Kant e Jean Paul Sartre. Na literatura, Kubrick deixou-se influenciar por Franz Kafka, Ernest
Hemingway, Joseph Conrad, e Vladimir Nabokov. Já no campo cinematográfico, além da evidente e pessoalmente
confirmada influência do diretor Max Ophuls e sua câmera deslizante, outros grandes diretores conquistaram o
interesse de Kubrick: D.W.Griffith, Sergei Eiseinstein, Fritz Lang, Jean Renoir, Orson Welles, Vittório De Sicca, Luís
Buñuel, Federico Fellini, Alfred Hitchcock, dentre outros. É importante observar aqui a grande influência européia.

A partir destas informações, podemos utilizá-las como filtros para abrir caminhos interpretativos. Segue uma análise
sintética da temática de cada filme do diretor.

FEAR AND DESIRE

A primeira incursão de Kubrick em longa metragem se deu no universo que marcou metade da sua obra: a guerra. No
caso deste filme uma guerra incerta, num campo de batalha incerto, no qual o inimigo mais próximo se encontra dentro
dos próprios soldados. Já aqui o diretor mostra o conflito entre a pulsão dos instintos humanos (representada por um
jovem soldado que se sente atraído por uma camponesa que a equipe faz prisioneira de guerra) e sua contenção pelo
grupo social (representado pelos oficiais superiores que o comandam). Vicentt LoBrutto, um dos biógrafos do diretor,
fez uma importante observação, afirmando que neste período da carreira o diretor estava mais influenciado pela
literatura (Joseph Conrad e Sartre) do que pelos filmes que assistia. O clima enevoado e obscuro refletia a influência do
filme "noir".

A MORTE PASSOU POR PERTO

Neste trabalho Kubrick se envereda pelo gênero policial, percorrendo o submundo de Nova Iorque. O solitário herói é
um boxeador que literalmente luta pela sobrevivência e sua carreira está em fase ruim. A heroína é uma dançarina de
boate que não agüenta mais ser maltratada por seu patrão e protetor. Estes dois personagens decadentes unem-se
para enfrentar uma realidade não menos obscura. Mas apesar do pessimismo que permeia o filme, Kubrick quebra uma
regra básica do filme policial ao criar um final feliz. O diretor conhecia bem a realidade que estava retratando, pois
havia feito várias matérias fotográficas com lutadores para a revista Look e seu primeiro curta-metragem retratava um
dia na vida do boxeador Walter Cartier.

O GRANDE GOLPE

Confirmando sua identificação temática e estética, Kubrick mais uma vez mergulhou no gênero policial , adaptando o
romance "Clean Brake" de Leonel White. A estória é simples: um grupo de bandidos se reúne para realizar um assalto
perfeito a uma pista de corrida de cavalos. Mas o que chamou a atenção de Kubrick e de seu produtor James B. Harris
foi a estrutura não linear do romance, que foi sabiamente mantida e muito bem filmada pelos realizadores, apesar das
severas críticas que receberam (montagem não linear em muito incomum na época). A influência de Cidadão Kane de
Orson Welles é evidente e o filme foi considerado pelo próprio diretor como seu primeiro trabalho profissional. A
encenação demonstra sutilmente uma das paixões do diretor: o jogo de xadrez. Cães de Aluguel de Quentin Tarantino
tem a narrativa muito semelhante a esse filme de Kubrick; e em alguns momentos podem lembrar o recente Onze
Homens e um Segredo.

GLÓRIA FEITA DE SANGUE

Baseado no romance homônimo de Humphrey Cobb, o filme retrata um episódio polêmico ocorrido na França durante
a Primeira Guerra Mundial: o alto comando militar francês ordenou que toda uma divisão tomasse um objetivo
impossível na conjuntura do conflito. Assim que a missão falhou, custando as vidas de muitos soldados, o alto escalão
ainda levou os soldados para a corte marcial, acusados de covardia. Esta história controversa serviu bem aos interesses
de Kubrick que a transformou num dos mais incisivos filmes antimilitaristas. O abuso do poder explicitado pela

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manipulação das tropas pelos generais, mesmo que estes soubessem da morte certa de seus homens, a diferenciação
das classes sociais dentro da hierarquia militar (a opulência dos castelos iluminados do comando e a decadência das
trincheiras soturnas cobertas de lama e sangue dos soldados) retratam uma realidade impiedosa, na qual não havia
espaço para o melodrama que dominava a maior parte dos filmes do gênero. A guerra de Kubrick não enobrece os
homens, mas os coloca uns contra os outros, sejam inimigos ou aliados. O "herói" interpretado por Kirk Douglas não
passa de testemunha, incapaz de evitar a tragédia que recai sobre seus soldados. O único momento de alívio ocorre
quando na cena final , em que uma jovem alemã, portanto inimiga, é forçada a cantar para entreter os soldados
franceses numa taverna. Enquanto a assustada jovem canta, os risos sarcásticos dos soldados passam a acompanhar a
canção em uníssono e acabam em lágrimas.

SPARTACUS

Apesar de ter sido um projeto imposto ao diretor, que não teve nenhuma participação no roteiro e ficou submisso à
autoridade de Douglas, Spartacus não destoa do conjunto da obra de Kubrick, seja com relação à temática ou à
estética. Baseado no livro homônimo de Howard Fast e roteirizado por Dalton Trumbo (ambos de tendência
esquerdista em plena caça às bruxas), o filme conta a trajetória de uma figura histórica real, um escravo que liderou
uma rebelião e formou um exército de gladiadores que conquistou grande parte do sul da Itália, derrotando dois
exércitos romanos. Mais uma vez a temática da luta de classes e a guerra faziam parte de um filme de Kubrick. Além de
cenas de batalha espetaculares (o mínimo que esperamos de um épico), Kubrick aproveitou o elenco de grandes
estrelas extraindo desempenhos memoráveis, que constituíram este épico subversivo que ousou fazer críticas sociais
contundente num período conturbado da história norte-americana.

LOLITA

Adaptado do best seller de Vladimir Nabokov, Lolita é a primeira abordagem de Kubrick à comédia de humor negro,
gênero que ajudou a definir. O diretor utilizou o humor como estratégia para suavizar a tensão que tabus poderiam
gerar no público. O filme retrata a vida de um acadêmico maduro e professor de literatura que se torna amorosa e
sexualmente obcecado por uma adolescente. A tentação desse amor proibido, pedofílico, consome sua razão e moral.
O protagonista vive seu sonhado romance com Lolita e a acaba perdendo-a, levando a história a um desfecho trágico. O
destaque é Peter Sellers, que trabalharia no filme seguinte do diretor.

DR. FANTÁSTICO

A obsessão de Kubrick pela ameaça nuclear o fez pesquisar sobre o assunto e adaptar o romance sério "Red Alert" de
Peter George na forma de uma, nas palavras do diretor, "comédia de pesadelo". Para tanto contou com o auxílio do
autor do livro e do escritor de humor anárquico Terry Southern. Um general perturbado aciona uma patrulha de aviões
B-52 para atacar alvos na Rússia com bombas nucleares. Ele acredita que os Soviéticos envenenaram a água americana
e que isso lhe causou impotência. Dentre as diversas situações hilariantes, temos um major caubói, uma farsa circense
em plena Sala de Guerra onde os representantes da Guerra Fria brigam como crianças. Um dos aviões atinge o alvo na
memorável cena do major caubói montando a bomba como a um touro bravo. A figura sinistra do Dr. Fantástico surge
em meio ao caos com teorias absurdas e o mundo explode com a resposta Soviética que dá um fim ao planeta e à
humanidade. O planeta perece numa seqüência de explosões nucleares ao som da esperançosa canção "We"ll Meet
Again". Um final ousado, anárquico e subversivo.

2001- UMA ODISSÉIA NO ESPAÇO

O filme foi o resultado da colaboração entre o diretor e o renomado escritor de ficção científica Arthur C. Clark, a partir
de seu conto "A Sentinela". A obra cinematográfica não segue a forma tradicional ao evitar o mecanismo de
identificação. A seqüência de "fatos" mostra um misterioso monolito negro que testemunha um momento importante
da evolução do homem primitivo: a invenção do primeiro instrumento/arma. Após a bela transição entre o instrumento
e uma nave espacial, somos lançados para frente no tempo, num futuro dominado pela tecnologia no qual outros
monólitos surgem, participando de vários eventos que culminam com a revolta de um supercomputador de uma nave
contra sua tripulação. Apenas um astronauta resiste e passa por uma experiência de alteração do espaço-tempo, uma
espécie de portal. O filme termina com uma seqüência enigmática de imagens icônicas, uma especulação mitológica
entre o homem e o cosmos. Kubrick fez de 2001 uma experiência não-verbal, deixando a maior parte da leitura para o
subconsciente.

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LARANJA MECÂNICA

O livro de Anthony Burgess continha um conjunto de situações e temas irresistíveis para Kubrick: protagonista anti-
herói, um indivíduo que é tolhido pelo governo e uma mistura explosiva de sexo, drogas, crime e violência. Ele
vislumbrou no livro a possibilidade de uma interpretação psicanalítica, já que Freud era uma grande influência. A
história trata da vida de um adolescente que vive num futuro próximo, líder de uma gangue que comete os piores tipos
de crime. O jovem é preso e na cadeia se submete a um tratamento experimental que prometia curar o marginal, mas o
efeito colateral do processo o torna um sub-humano. A crítica recai sobre a atitude governamental de moldar o sujeito
à força e não pelas próprias experiências. Há ainda impagáveis críticas aos psicólogos e à política, na figura de um
governador que faz um pacto com o jovem após sua "recuperação". Em sua essência é um filme sobre violência e suas
variantes; a violência individual, a violência do social e a violência do Estado.

BARRY LYNDON

Assim como 2001, Barry Lyndon pertence mais às imagens do que às palavras. Baseado num palavroso romance do
século XIX de William Makepeace Thackeray, a estória narra a trajetória de um vagabundo irlandês que vive aventuras e
desventuras como soldado, desertor, jogador e amante. Ascensão e queda marcam este trabalho que explorou os
espaços e personagens do séc. XIX . A fotografia e a direção de arte impressionam. Utilizando uma lente superluminosa
especialmente desenvolvida pela NASA, utilizada em seus satélites espaciais, Kubrick pôde filmar no interior de palácios
apenas a luz de velas. Parte da fotografia do filme foi inspirada em pinturas de artistas do séc. XIX. Um dos filmes
visualmente mais belos da história do cinema.

O ILUMINADO

Dando continuidade à incursão em vários gêneros, Kubrick escolheu o terror. Mais uma vez o apelo psicanalítico
conquistou o diretor, que retratou a caminhada de um pai de família à loucura, isolados durante um inverno num hotel
vazio e sinistro. Adaptado a partir do livro de Stephen King, Kubrick aceitou o terror no nível da patologia psicológica do
personagem. O filme acabou resultando num drama psicológico travestido de terror e com algumas cenas tragicômicas.
O verdadeiro protagonista acaba sendo o hotel, cuja onipresença é revelada pelos jogos de ponto de vista entre as
personagens e o ambiente. Kubrick utilizou neste filme a SteadyCam um recurso no qual a câmera é apoiada no corpo
do operador através de um sistema de amortecimento; deste modo, o operador da câmera pode se mover livremente
sem que ocorram trepidações.

NASCIDO PARA MATAR

Roteirizado a partir do romance autobiográfico de Gustav Hasford, "The Short Timers" foi o último filme de Kubrick a
abordar o assunto guerra; assunto que o acompanhou da juventude à maturidade. O alvo de Kubrick desta vez é a
máquina governamental que transformou jovens recrutas em armas letais durante a guerra do Vietnã. A primeira parte
do filme, o treinamento dos recrutas, critica com um humor ácido a violenta cultura militar e o processo de
desumanização imposto aos jovens recrutas. Na Segunda parte do filme, no Vietnã, Kubrick aproveita para mostrar o
choque entre a cultura oriental e a ocidental, a relação desconcertante entre a imprensa. Mais uma vez Kubrick cria um
filme inovador num gênero extremamente batido.

DE OLHOS BEM FECHADOS

Destilado pela mente de Kubrick por muito tempo, De Olhos Bem Fechados foi roteirizado pelo diretor e o roteirista
Frederic Raphael a partir do romance "Traumnovelle" do escritor vienense Arthur Shnitzler. O filme encerra
apropriadamente um conjunto coerente de 13 provocantes obras. Em De Olhos Bem Fechados, Kubrick deixa de lado os
conflitos de grande escala e seus personagens simbólicos para mergulhar na crise conjugal com a pulsão do desejo
individual. Casamento e fidelidade são discutidos num ambiente que mistura sonho e realidade. A aparência de
felicidade e harmonia no relacionamento do casal é abalada quando a esposa, diante do excesso de autoconfiança e
ingenuidade do marido, resolve abrir o jogo utilizando uma indesejável, mas necessária honestidade. Ela desnuda sua
suscetibilidade aos imperativos impulsos do desejo. E assim que a mulher descortina o véu da hipocrisia, o marido,
aturdido, sai para atender a um chamado envolvendo o óbito de um paciente e depois anda pelas ruas de Nova Iorque
à noite, envolvendo-se em situações oníricas relacionadas a um desejo sexual que não consegue satisfazer, pois está
cercado pela ameaça da morte. O diretor não se esquece de seu viés da crítica sócio-política e finaliza a jornada noturna
do marido numa mansão na qual ocorre uma orgia misteriosa. Todos os participantes usam máscaras para esconder

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suas identidades e libertar suas fantasias carnais. A suntuosidade da propriedade mostra que a fachada da mansão
cumpre a mesma função das máscaras: ocultar os passatempos dos poderosos que constituem uma elite libertina. No
final, a paranóia e a culpa fazem o marido confessar suas desventuras. Apesar das turbulências libidinosas reais ou
imaginárias, o casal decide continuar a relação aceitando suas próprias limitações.

A Imperfeição Humana

Eis o elo temático presente nos filme de Stanley Kubrick. A imperfeição humana. A desumanização, a violência do
homem, da sociedade e do Estado, a obsessão, o sofrimento, a relação destrutiva entre o homem e a ciência, os podres
poderes, e a solidão. Esses temas, nada agradáveis aos olhos do público acostumado com o melodrama de hollywood,
serviram de inspiração ao cineasta. Kubrick virou os olhos do público para dentro e o fez ver sua verdadeira alma:
escura, má, agressiva, perversa, capaz tanto de atingir o progresso quanto a destruição.

Segundo a obra de Stanley Kubrick, o homem é um ser mais próximo de um animal do que de Deus; é um ser dotado de
razão, mas que não sabe lidar com suas paixões.

Doutor Fantástico, 2001: Uma Odisséia no Espaço, Laranja Mecânica e Nascido para Matar exibem essa imperfeição de
maneira grotesca, mas ela está presente mais sutilmente em todos os demais; na obsessão de Barry Lindon e do
professor Humbert de Lolita, na crueldade dos generais de Glória Feita de Sangue, no sofrimento de Bill Harford de De
Olhos Bem Fechados, na solidão e nas transformações de Jack Torrance de O Iluminado. Todos os protagonistas destes
filmes deixam de lado sua racionalidade e se entregam aos seus instintos mais profundos e enraizados; agem como
animais ameaçados, animais sob pressão, animais buscando sexo, animais tentando sobreviver.

PARTE III

Parte III - Contendo o método de produção de Stanley Kubrick.

O MÉTODO STANLEY KUBRICK

Com o passar do tempo, Stanley Kubrick foi desenvolvendo um método próprio de fazer cinema. Sua necessidade por
controle aumentava, assim como o intervalo entre suas produções. Seu padrão de exigência definiu uma marca, como
um selo de qualidade que determinava um estilo (estética) e temática próprios: "Um Filme de Stanley Kubrick".

A devoção de Kubrick ao cinema o fez se auto-exilar de seu país, em busca de um lugar que permitisse uma produção
mais barata e que lhe oferecesse liberdade total. Equipes pequenas, mão-de-obra barata, cenários e estúdios mais
baratos e que suprissem as necessidades de cada produção, Sua casa no interior da Inglaterra servia a seus propósitos
cinematográficos: era onde fazia toda a pesquisa, pré-produção e parte da pós-produção. Muitas vezes era o local onde
as equipes comiam. Os numerosos cômodos estavam repletos de câmeras, computadores, aparelhos de som, revistas,
discos, livros, fitas de vídeo, mapas, fotografias e tudo o mais que pertencesse a este universo. Seu amigo e jornalista
Alexander Walker o definiu como: "...um artista medieval vivendo sobre sua oficina."

O modo de vida do diretor implicava uma filosofia de trabalho que surpreendia seus colaboradores, sendo a
característica mais marcante sua utilização do tempo. Assim como os escritores, os pintores e os artesãos, Kubrick
apostava na qualidade do tempo como ferramenta que permite o aperfeiçoamento do trabalho. Ele se dava o tempo
que achava necessário para realizar uma obra que fosse criativa e inovadora. Era um dos poucos cineastas que chegava
ao set sem idéias pré-concebidas de como realizar uma cena; parava e questionava a equipe: "como fazer isso de um
modo que nunca foi feito antes? Tal coisa é realista, mas é interessante?" Aprendia como seria um filme no próprio
processo de fazê-lo.

Outra característica digna de nota era a preocupação exacerbada do diretor com relação ao sigilo envolvendo seus
projetos. Todos os membros da equipe do filme, dos atores aos carpinteiros, assinavam um termo que os proibia de
divulgar qualquer informação sem o prévio consentimento do diretor, que escrevia as frases que poderiam ser
reproduzidas para a imprensa a respeito do filme.

Devido à singularidade dos métodos de Kubrick, analisaremos as principais etapas da produção de um filme,
ressaltando as características específicas dos métodos de trabalho do cineasta.

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PESQUISA

Foi o ponto de partida da maior parte de suas obras. Ao contrário da maioria dos diretores de Hollywood, Kubrick fazia
pessoalmente toda a pesquisa necessária. Quando ele se via mergulhado em um assunto ao nível da obsessão, tinha
uma idéia a respeito da temática de seu próximo filme. Telefonava para especialistas de diversas áreas passando horas
colhendo as informações que queria Durante sua pesquisa para um projeto de filme sobre Napoleão, que não foi
realizado, Kubrick encomendou um contêiner com centenas de livros sobre o general francês.

Na busca de locações para Barry Lyndon, o cineasta despachou equipes para que fotografassem mansões do século XIX
que fossem próximas à casa dele. Para obtenção de um cenário realista em O Iluminado, o desenhista de produção
viajou por todo os Estados Unidos documentando os detalhes dos hotéis.

Em 2001- Uma Odisséia no Espaço, consultou empresas do mercado e agências do governo para saber suas previsões
de como seriam seus produtos e serviços no futuro. Também entrevistou as maiores mentes nos campos da ciência e
da religião para que respondessem questões que surgiam durante a escrita do roteiro.

ROTEIRIZAÇÃO

Um fato curioso, notado pelo crítico Richard Schickel da revista TIME num artigo de 1975, era a incapacidade do diretor
de inventar uma estória original a partir de suas próprias experiências ou fantasias. No mesmo artigo , o diretor revela
que a criação da ficção o fascina e a considera: "... uma das capacidades humanas mais fenomenais." E como não
possuía esta facilidade precisava fazer um "trabalho de detetive - descobrir acerca de coisas com as quais não tenho
experiência direta". Por isso o cineasta passou a utilizar a adaptação literária como prática constante, buscando obras
que tivessem afinidade com seus pontos de vista e que servissem de matéria-prima para realizar sua versão
cinematográfica. O diretor preferia os romances que detalhavam o interior das personagens aos romances de ação e
procurava criar o equivalente visual de tudo o que achava estimulante nos livros.
Para tanto, Kubrick contou com a colaboração de diversos roteiristas e escritores, muitas vezes os próprios autores dos
livros. O único livro que o diretor adaptou sozinho foi Laranja Mecânica. No caso de Barry Lyndon, Kubrick utilizou o
livro diretamente como roteiro de continuidade.

Na fase inicial do roteiro, Kubrick geralmente convidava o colaborador para uma reunião em sua casa para que
pudessem discutir as possibilidades da estória. Muitos dos roteiristas afirmaram que esta conversa se transformava
numa longa sabatina, na qual alguns chegavam à exaustão mental. O ritmo intelectual do diretor impressionou a todos,
levando o escritor Arthur C. Clark , colaborador em 2001- Uma Odisséia no Espaço, a concluir que: "...a obsessão lhe
dava energia."

Aparadas as arestas iniciais, os roteiristas passavam a trabalhar à distância, que era diminuída pelas freqüentes e longas
ligações do diretor. Assim que a parte do colaborador estivesse concluída, Kubrick editaria o material à sua maneira e
mais tarde, durante as filmagens, chegaria a reescrever seqüências inteiras.

DIREÇÃO DE FOTOGRAFIA

Stanley Kubrick iniciou sua vida profissional como fotógrafo da revista Look. E foi justamente a fotografia que despertou
seu interesse pelo cinema, chegando a filmar pessoalmente seus três curtas e os dois primeiros longas. Portanto, o
nível de exigência do diretor nesta área desafiava o mais preparado dos profissionais. Durante sua passagem por
Hollywood, o cineasta entrou em árduos conflitos com dois veteranos: Lucien Ballard em O Grande Golpe e Russel
Metty em Spartacus.

É possível observar nos filmes de Kubrick uma consistência visual e um estilo definido: a composição simétrica do
enquadramento denota clara estilização, a tendência a centralizar as personagens principais (notadamente nas célebres
cenas em que realiza movimentos de acompanhamento de personagem com a câmera), preferência pelas lentes
extremamente grande-angulares, algumas cenas feitas com câmera na mão (filmadas pelo próprio diretor), dentre
outras características.

Kubrick sempre esteve em sintonia com os avanços tecnológicos, sendo um dos primeiros a utilizar fotos instantâneas
como referência para monitorar a iluminação, a utilizar o Steadycam, o sistema de video-assist, os modelos de câmeras
mais leves da Arriflex, as unidades de iluminação portáteis da Lowell, para citar alguns exemplos.

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Quando a tecnologia disponível não era suficiente para satisfazer suas exigências técnicas, o diretor pesquisava e com o
auxilio de empresas especializadas montava o equipamento que necessitava. Foi o caso de sua parceria com a empresa
Cinema Products que adaptou câmeras para usos específicos. O mais surpreendente foi o pedido de Kubrick para
adaptar lentes de satélite numa câmera antiga para que pudesse trabalhar com baixos níveis de luz pois estava
determinado a filmar cenas noturnas no interior de mansões do século XIX somente com a luz de velas, em Barry
Lyndon.

DESENHO DE PRODUÇÃO

A autoridade e a presença constante de Kubrick em todas as áreas da produção facilitou a integração entre as mesmas,
gerando resultados interessantes em cada um de seus filmes. A união dos trabalhos do desenhista de produção, do
diretor de fotografia e do cineasta em Dr. Fantástico serviu de referência para a comunidade cinematográfica, da
estilização da Sala de Guerra (com sua fotografia contrastada e luzes embutidas) à precisão militar do interior do avião
B-52 (Ken Adam, o desenhista de produção havia sido piloto da RAF durante a Segunda Guerra Mundial). Mas a relação
entre Adam e Kubrick era delicada pois o desenhista trabalhava de modo intuitivo e o diretor questionava tudo,
exigindo uma razão para cada detalhe. O próprio diretor mandou mudar as cores das bombas nucleares três vezes.

Já em 2001- Uma Odisséia no Espaço, o maior desafio foi a criação da centrífuga, uma espécie de roda gigante que
representava o interior da nave Discovery em tamanho natural e que girava 360 graus. Todo o interior foi
meticulosamente revestido com módulos de cenário que foram soldados à base giratória. Cerca de doze projetores de
cinema foram instalados no interior da centrífuga para gerar as imagens das telas dos painéis da nave por
retroprojeção. O artefato chegava à velocidade máxima de 3 milhas por hora e pesava 30 toneladas, girava com luzes,
câmeras e todo tipo de equipamento junto.

Em O Iluminado, O desenhista de produção Roy Walker viajou tirando fotos e medidas de hotéis que serviriam de base
para a construção dos cenários do Overlook Hotel. Como Kubrick gostava de liberdade para mover a câmera pelo
cenário sem a interrupção das luzes tradicionais de cinema, que geralmente ficam sobre pedestais, o conceito de
fotografia foi totalmente integrado ao cenário: abajures foram adaptados com lâmpadas especiais e a fiação foi toda
instalada como numa construção real. Estas medidas foram tomadas tendo em vista a utilização da Steadycam.

As duas últimas ousadias do diretor se deram justamente na incursão no plano real, duas cidades que ele resolveu
recriar na Inglaterra: a Hue do Vietnã e a Nova Iorque dos Estados Unidos. Para recriar as batalhas urbanas em Hue, o
cineasta encontrou um bairro industrial decadente prestes a ser demolido. Kubrick pôde demolir prédios de maneiras
específicas, construindo o cenário com a destruição controlada. Para completar o ambiente, selecionou uma espécie de
palmeira e importou um carregamento de sessenta delas, complementando com duzentas árvores artificiais. Para
recriar Nova Iorque o diretor mandou uma equipe para fotografar e medir as ruas e calçadas da cidade. Mandou
trazerem até os postes de luz originais.

EFEITOS ESPECIAIS

Indubitavelmente, a contribuição de Stanley Kubrick no campo dos efeitos especiais alterou o rumo do cinema de
ficção. Em 2001- Uma Odisséia no Espaço ele desenvolveu novas técnicas que inspiraram toda uma geração de
diretores dentre os quais George Lucas, Steven Spielberg, James Cameron e Ridley Scott. E foi com este trabalho que
ganhou o único Oscar em seu nome.

No início de sua carreira em Hollywood, em Glória Feita de Sangue, o diretor já demonstrava sua exigência ao técnico
de efeitos especiais Erwin Lange, pois queria que as explosões dos morteiros no campo de batalha fossem realistas.
Lange passou horas experimentando novas técnicas até chegar a um resultado que o diretor aprovasse. Só na primeira
semana de filmagem gastou cerca de uma tonelada de explosivos.

A realização dos efeitos de "2001" foi um desafio aparte. Para manter as múltiplas atividades em andamento sob
controle, uma empresa européia de sistemas organizacionais foi contratada. A sala principal da produção que
centralizava as informações foi apelidada de "Controle da Missão". A animação dos modelos de naves espaciais
consistia em trabalho artesanal, quadro-a-quadro, e totalizaram com as outras cenas de efeitos 16 mil passos separados
para obter 205 cenas que envolveram efeitos especiais. Mas o grande salto seria dado na realização da seqüência final:
o Portal Estelar. Para obter o efeito dessa viagem dimensional, o especialista em efeitos especiais Douglas Trumbull

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(que trabalhou mais tarde com Lucas, Scott e Spielberg) utilizou uma técnica conhecida por cineastas experimentais, na
qual a câmera é mantida com o disparador aberto por longo tempo enquanto imagens são gravadas diretamente no
celulóide num fluxo contínuo e não quadro-a-quadro. Trumbull montou a câmera sobre uma estrutura que comportava
painéis gráficos móveis, que eram controlados por computador. O novo sistema foi batizado de Slitscan.

Mais tarde, em O Iluminado, Kubrick manteve uma equipe só para filmar a cena em que uma onda de sangue sai pela
porta de um elevador. Um dos atores que participou do filme relatou que ouviu comentários nos bastidores de que
levou cerca de um ano para que conseguissem uma tomada que satisfizesse o cineasta.

DIREÇÃO DE ATORES

A maneira de se obter a performance desejada de um ator é absolutamente relativa. Não existe fórmula. São diversos
os métodos de interpretação, sendo alguns deles até antagônicos. Cada ator tem um grau de sensibilidade e uma
maneira específica de atingir essa emoção. Portanto, cada personagem a ser desenvolvida inicia-se da estaca zero.

Kubrick distinguia muito bem estas varáveis e abordava cada ator e atriz de maneira diferente. O exemplo mais
explícito deste aspecto se deu no set de filmagem de O Iluminado: o diretor conversava calmamente com Jack
Nicholson, construindo a personagem em colaboração; já com Shelley Duvall Kubrick gritava e criticava o tempo todo,
tentando extrair uma personagem angustiada e assustada de uma atriz tranqüila e gentil (provavelmente ele não teve
outra saída pois a característica mais lembrada pelos colaboradores que trabalharam com o diretor é de que ele nunca
levantava sua voz, sempre mantinha um tom suave).

O cineasta não gostava de dar muitas indicações aos atores, pois gostava de ser surpreendido pela performance, por
alguma improvisação. Ele dava um longo tempo para que os atores desenvolvessem suas personagens durante o
período de ensaios. Mesmo durante as filmagens era dado todo o tempo necessário ao ensaio de cada cena antes de
rodar.

O processo de filmagem de Kubrick era muito diferente da prática da indústria cinematográfica norte-americana. O
padrão de exigência do diretor podia render apenas uma cena ou um plano num dia de filmagem. Certo dia em Barry
Lyndon, toda a equipe formava uma grande caravana em busca de locações interessantes, os atores estavam
maquiados e vestidos, todo equipamento preparado para rápida montagem. Rodaram o dia inteiro dentro das peruas e
não filmaram nada.

O mais temido e famoso artifício do diretor era a numerosa repetição de takes. Nenhum ator saiu ileso deste processo
que podia variar de uma média 30 a um máximo de 140. Kubrick se defendia dizendo que os atores não se preparavam
o suficiente, que só decorar a fala era pouco. Em seu conceito os atores começavam a render a partir vigésimo take,
quando não estavam mais conscientes do que diziam. E aguardava também o elemento surpresa, o algo mais - uma
variação do "instante mágico" de Cartier-Bresson - que acreditava que viria através da repetição indefinida. Apesar da
fama de controlador obsessivo, com atores como Peter Sellers, Jack Nicholson e Lee Ermey, Kubrick deixava a
improvisação fluir, assistindo de camarote as surpreendentes performances. A relação com Sellers foi a estrutura dorsal
de Dr. Fantástico, segundo Vicentt LoBrutto: "Como em Lolita, Kubrick permitiu que Sellers (grande improvisador)
primeiro explorasse [a cena] de um modo desenfreado , e então o diretor selecionava momentos e falas de suas
improvisações para reescrever a cena, moldando o fruto da inspiração." Podemos chamar o processo de uma
"liberdade vigiada".

MONTAGEM

Para Kubrick ritmo é história assim como personagem é destino. Como profundo conhecedor do cinema, o diretor
adaptava seu estilo ao tipo de estória que queria retratar. Buscava a harmonia entre forma e conteúdo. E a montagem
era para ele a fase decisiva (como fã de Orson Welles, Kubrick gostava de parafrasear o mestre dizendo que a
organização da cena vinha da fotografia, a interpretação do teatro, os diálogos da literatura mas a especificidade do
cinema vinha da montagem).

Basta notar os diferentes ritmos de seus filmes: as durações longas e contemplativas dos planos de "2001" e Barry
Lyndon e o ritmo cinético e anárquico de Laranja Mecânica.

Quando não estava tocando algum projeto específico, o diretor costumava gravar seus comerciais de tv preferidos e

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remontá-los, só para exercitar a linguagem.

TRILHA SONORA / MUSICAL

O estilo do uso que Kubrick fez com a música também influenciou muitos. Um grande exemplo dessa influência foi a
utilização do trecho da ópera "As Valkirias" de Richard Wagner durante a cena de bombardeio a uma vila de vietcongs
em Apocalypse Now de Francis Ford Coppola. O contraste entre cenas dramáticas ou de conteúdo polêmico e música
de valores mais "nobres" e eruditos ou divertidos e populares, esta mudança de contexto e significado com um ponto
de vista crítico, tornou-se uma característica indelével do cineasta.

Em seus primeiros filmes trabalhou com o compositor também jovem Gerald Fried, com quem dividia a paixão pela
música percurssiva (Kubrick havia sido baterista de uma banda de jazz na escola). Mas com o passar do tempo foi
dando cada vez menos importância para a criação de música original, principalmente após o sucesso das elegantes
cenas espaciais ao som de "Danúbio Azul" de Johann Strauss e o poder épico de "Assim Falou Zaratustra" de Richard
Strauss. Gostava de pesquisar músicas de todos os estilos, constituindo uma invejável discoteca e uma coleção de
diversos tipos de aparelhagem de som, ambos sendo constantemente atualizadas. Um método que costumava utilizar
com atores consistia em tocar uma música específica para estimular uma reação e criar um clima favorável no set
(somente em cenas sem diálogo, logicamente).

Contratava os compositores para fazerem versões ou variações de músicas que havia selecionado nas pesquisas, fato
que o impediu de trabalhar com grandes compositores como Bernard Herrmann, que recusou trabalhar em Lolita ao
perceber que o diretor queria uma versão orquestrada de uma música popular.

A utilização de músicas populares chegou ao auge em Nascido Para Matar, no qual a seleção das músicas da época do
combate ocupavam pouco mais que a metade do tempo da trilha incidental.

O ecletismo musical do diretor pode ser conferido também na trilha de sua última obra, De Olhos Bem Fechados.

Com relação ao tratamento sonoro, podemos destacar a utilização dos microfones de lapela, que o diretor preferiu,
pois eliminava a presença do boom, aumentando a liberdade de movimento da câmera pelo cenário.

Apesar de trabalhar apenas como mão-de-obra em Spartacus, Kubrick não conteve seu padrão de exigência. O relato de
Don Rogers, o gravador de som na pós-produção do filme, é revelador: "Foi demorado. Stanley é um verdadeiro
perfeccionista, um perfeccionista exigente. Ele quer tudo exatamente perfeito. [levou] Nove meses! Foi o mais longo
show que trabalhei em toda minha vida."

DIVULGAÇÃO E DISTRIBUIÇÃO

Apesar de trabalhar como diretor-produtor em dois filmes bem sucedidos até o final da década de 60, Kubrick só
conseguiu a liberdade que almejava ao se associar à Warner Bros., que lhe deu controle total sobre seus filmes. Laranja
Mecânica foi seu primeiro teste no mercado de promoção de filmes. O diretor montou uma equipe para analisar os
dados referentes às bilheterias das salas de cinema dos Estados Unidos e de outros mercados. Depois de analisar as
salas que rendiam mais com filmes no estilo do seu, Kubrick traçou um plano de lançamento que foi rejeitado pelo
chefe executivo da Warner. O cineasta redobrou suas energias e fez uma pesquisa de mercado tão intensa quanto suas
pesquisas de pré-produção, indicando que o estúdio estava fazendo o filme perder dinheiro na Europa, usando como
referência as bilheterias de "2001" no mesmo mercado. Marcou uma reunião e apresentou os dados aos executivos, e
ameaçou tirar o filme das mãos da Warner se nada fosse feito. Uma disputa interna pelo cargo de chefe executivo
facilitou a vida do diretor. O executivo que havia rejeitado o plano de Kubrick foi despedido e o diretor foi apresentado
num encontro anual do estúdio como um gênio que combinava senso estético com a responsabilidade fiscal.

No início, Kubrick lançava seus filmes de forma mais lenta, criando o efeito do boca-a-boca para aumentar os ganhos.
Mas o tempo foi passando e o mercado foi mudando. O efeito filme de verão estava se solidificando e a necessidade de
ganhar dinheiro rápido em várias salas simultaneamente tornou-se uma arma para a sobrevivência. Tal estratégia foi
utilizada para vender seus filmes a partir de O Iluminado.

Diferentemente da maioria dos diretores de cinema, que viajam para descansar e deixam os filmes nas mãos dos
estúdios, Kubrick acompanhava todo o processo de pós-produção. Fiscalizava e assistia todas as cópias que seriam

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distribuídas para as salas de exibição, tendo rejeitado várias vezes a qualidade da imagem ou a mixagem do som.

Quando chegava o momento de fazer uma premiére, o diretor manejava o projetor pessoalmente, certificando-se do
foco e controlando o nível do som. Além deste cuidado, mantinha seus amigos e colaboradores como fiscais de
qualidade pelo mundo, controlando sempre que possível a qualidade da projeção de seus filmes.

PARTE IV

Parte IV - Considerações Finais

Podemos observar que Stanley Kubrick criou um universo fílmico coerente com suas influências artísticas. Do jovem
autodidata do Bronx ao diretor intelectualizado e autoexilado na Inglaterra, Kubrick acumulou experiências e observou
com minúcia os mecanismos psicológicos e sociais que constituem o ser humano e sua cultura.

O ponto de vista anti-romântico e na maioria das vezes pessimista o afastou das grandes platéias, que foram
ostensivamente condicionadas pelo melodrama. Kubrick explorou os recantos da alma humana e encontrou em seu
lado mal, agressivo e perverso.

Como características temáticas recorrentes, temos:

- a guerra, que está presente em mais da metade de seus filmes;

- a desumanização, processo de redução da personalidade humana a algo bruto e fundamental;

- a obsessão, em seus mais variados matizes e que inevitavelmente leva a personagem à destruição, como uma hybris
(ousadia desmedida) do modelo de tragédia grega clássica;

-  criação/ciência e destruição, relação na qual uma leva à outra: a evolução da ciência conduz ao desequilíbrio entre o
alto grau de desenvolvimento tecnológico e o atraso moral da humanidade;

- violência social, analisa os mecanismos sociais da contenção dos desejos individuais a fim de moldar o sujeito;

- as relações de poder, que retratam a segmentação social e os conflitos de classes;

- a solidão, compreendida como condição humana universal, seja num quartinho de pensão, no meio do campo de
batalha ou no vácuo do espaço sideral.

Em nossos estudos conhecemos o jovem cineasta em busca da emancipação profissional, o diretor maduro que lançou
seu olhar clínico sobre os impulsos destrutivos da humanidade e o artista quase artesão que dedicou sua vida a
desenvolver métodos de trabalho meticulosos a fim de dominar seu ofício.

Três faces de um mesmo homem que nos fez caminhar por estranhos labirintos cinematográficos, nos quais trazia à luz
um mundo que queríamos esconder, ou ignorar. Como pudemos averiguar, a investida de Kubrick no universo trágico
do homem se deu através de técnicas inovadoras e métodos rigorosos. Stanley Kubrick era um diretor exigente,
controlador, obsessivamente perfeccionista e a sua temática corrente em toda sua obra era a imperfeição humana.

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