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01/05/2019

FILOSOFIA E AULA 4 – FILOSOFIA CONTEMPORÂNEA:


PSICANÁLISE O CASO NIETZSCHE

O Mundo Contemporâneo vai atacar as


duas mais importantes convicções dos
Modernos:

• A que o Ser Humano seria o centro do


universo ;

• A que considera a razão um


formidável poder libertador;
1 – INTRODUÇÃO

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“Melhorar a humanidade? Eis a última coisa que eu


A filosofia pós-moderna vai contestar prometeria. Não esperem de mim que eu erija novos

esses dois postulados. Ela será, pois, ao ídolos! – é assim que chamo todos os ideais -, esse é
meu verdadeiro ofício.
mesmo tempo crítica do humanismo e
Nós que reivindicamos uma outra fé, nós que
crítica do racionalismo; consideramos a tendência democrática não apenas como
uma forma degenerada da organização política, mas
como uma forma decadente e diminuída da humanidade
que ela reduz à mediocridade e cujo valor ela diminui,
onde depositaremos nossas esperanças?”
Nietzsche

Nietzsche pensa que todos os ideais,


explicitamente religiosos ou não, de direita ou de Essa é a tese central do pensamento de
esquerda, conservadores ou progressistas, Nietzsche: não existe nada fora da realidade da
espiritualistas ou materialistas, possuem a vida, nem acima nem abaixo, nem no céu nem
mesma estrutura, a mesma finalidade: no inferno, e todos os célebres ideais da política,
fundamentalmente eles partem, como lhe da moral e da religião são apenas “ídolos”,
expliquei, de uma estrutura teológica (valores inchaços metafísicos, ficções, que não visam
transcendentes); nada a não ser fugir da vida, antes de se voltar
É essa negação do real em nome de um ideal que contra ela;
Nietzsche chama de “niilismo”;

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Como o psicanalista, que procura buscar e Não encontramos em Nietzsche uma theoria,
compreender o inconsciente por trás dos uma praxis e uma doutrina da salvação no
sintomas de seu paciente, o filósofo sentido em que as encontramos nos estoicos ou
contemporâneo aprende, antes de qualquer mesmo em Descartes e Kant. Nietzsche é o que
outra coisa, a desconfiar das evidências chamamos de “genealogista” – é assim que ele
primeiras, das idéias prontas, para ver o que há próprio se designava -, um “desconstrutivista”,
por trás, por baixo, de viés se for preciso, a fim alguém que passou a vida dando surras nas
de detectar os preconceitos dissimulados que os ilusões da tradição filosófica;
fundamentam em última instância;

Para o desconstrutivista, para o


genealogista, não apenas não poderia
haver nenhum juízo de valor “objetivo”,
“desinteressado”, quer dizer,
independente dos interesses vitais
daquele que o carrega em si – o que já
supõe a ruína das concepções clássicas
2 – PARA ALÉM DA THEORIA: um “alegre
saber” livre do cosmos, de Deus e dos do direito e da moral;
“ídolos” da razão

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“O solitário [...] duvida até que um filósofo possa ter


Os Estoicos faziam do mundo um cosmos,

opiniões “verdadeiras e últimas”; ele se pergunta se não uma ordem harmoniosa e boa que nos
há nele, necessariamente, por trás de cada caverna uma convidavam a tomar como modelo para que
outra que se abre, mais profunda ainda, e abaixo de nela encontrássemos nosso justo lugar.
cada superfície um mundo subterrâneo mais vasto, mais
Nietzsche, ao contrário, pensa o mundo tanto
estranho, mais rico, e sob todos os fundos, sob todas as
orgânico quanto inorgânico, tanto em nós
fundações, um âmago mais profundo ainda. “Toda
filosofia é uma fachada” – tal é o juízo do solitário [...].
quanto fora de nós, como um vasto campo de

Toda filosofia dissimula uma outra filosofia, toda opinião energia, um tecido de forças ou de pulsões
é um esconderijo, toda palavra pode ser uma máscara”. cuja multiplicidade infinita e caótica é
Nietzsche
irredutível à unidade;

Mas, em vez de procurar a todo custo uma


Brevemente falando, pode-se dizer que a
racionalidade no caos, esse tecido de forças
diferença entre o pós-moderno e o moderno, a
contraditórias que é o universo e que ele
diferença entre Nietzsche e Kant é que esse
chama de Vida, Nietzsche vai propor a
último ainda procura com todas as forças
distinção entre duas ordens, dois grandes tipos
encontrar unidade, coerência e ordem no
de força – ou, como ele diz, “pulsões” ou
mundo, nele injetar racionalidade e lógica;
“instintos”: de um lado, as forças “reativas”;
do outro, as forças “ativas”.

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Forças reativas: são aquelas que só podem se


expandir no mundo e produzir todos os seus
efeitos, reprimindo, aniquilando e mutilando
outras forças. Ou melhor, elas só conseguem
se instalar opondo-se; elas partem da lógica
do “não” mais do que do “sim”, do “contra”
mais do que “a favor”;

3 – AS FORÇAS “REATIVAS” OU A
NEGAÇÃO DO MUNDO SENSÍVEL

Para Nietzsche, a busca da verdade revela-se até Nietzsche critica todas as grandes tradições
duplamente reativa, pois o conhecimento verdadeiro científicas, metafísicas e religiosas – ele pensa
não se constrói apenas num combate contra o erro, a especialmente no cristianismo – por terem
má-fé e a mentira, mas numa luta contra as ilusões continuamente “desprezado” o corpo e a sensibilidade
inerentes ao mundo sensível enquanto tal. A filosofia em benefício da razão. Pode parecer estranho que ele
e a ciência só podem de fato funcionar na oposição do ponha no mesmo saco as ciências e as religiões;
“mundo inteligível” pelo “mundo sensível”, de tal sorte
que o segundo será inevitavelmente desvalorizado
pelo primeiro. É um ponto crucial para Nietzsche, e é
importante que você o compreenda bem;

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Desde a Filosofia na Grécia, dois tipos de discursos,


duas concepções do uso das palavras sempre se
confrontaram. De um lado, o modelo socrático e
reativo que, pelo diálogo, busca a verdade e, para
tanto, se opõe às diversas faces da ignorância, da
estupidez ou da má-fé. De outro, o discurso sofístico
que não visa absolutamente à verdade, mas
simplesmente procura seduzir, persuadir, produzir
efeitos quase físicos sobre um auditório que deve, pelo
simples poder das palavras, ser levado à adesão;
4 – AS FORÇAS ATIVAS OU A
AFIRMAÇÃO DO CORPO

Ora, o problema é que, ao se entrechocar, as forças Muitos intérpretes de Nietzsche, sobretudo


ameaçam continuamente, em nós e fora de nós, opor-
recentemente, cometeram um erro enorme a
se e, por isso mesmo, bloquear-se, diminuir-se e se
respeito de seu pensamento: eles acreditaram
enfraquecer. É assim, no conflito, que a vida definha,
ingenuamente que, para tornar a vida mais
torna-se menos viva, menos livre, menos alegre, em
resumo, menos poderosa – é nesse aspecto que livre e mais alegre, Nietzsche propunha a
Nietzsche prenuncia a psicanálise. Segundo esta, com rejeição das forças reativas com o fim de
efeito, são os conflitos psíquicos inconscientes, os conservar apenas as forças ativas, liberar o
dilaceramentos internos, que nos impedem de viver
sensível e o corpo, abandonando a “seca e fria
bem, nos fazem adoecer e nos impossibilitam de,
razão”;
segundo a célebre fórmula de Freud, “fruir e agir”;

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Todos sabem, aliás, mesmo não sendo


finos leitores de suas obras, que ele
sempre se definiu como o “imoralista”
por excelência, que ele sempre atacou a
caridade, a compaixão, o altruísmo, sob
todas as suas formas, cristãs ou não;
5 – ALÉM DO BEM E DO MAL: a
moral do imoralista e o culto do
“grande estilo”

Não é, portanto, aberrante falarmos de uma


“Proclamar o amor universal da moral de Nietzsche?
humanidade é, na prática, dar preferência
a tudo o que é doloroso, defeituoso, Não seria necessário até mesmo declarar
degenerado... Para a espécie, é finalmente que todas as normas enquanto tais
necessário que o defeituoso, o fraco, o devem ser proscritas, que é “proibido proibir”,
degenerado pereçam”. que a moral é apenas uma invenção de padres,
Nietzsche a fim de liberar as pulsões em jogo na arte, no
corpo, na sensibilidade?

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Acreditaram nisso. Parece que alguns ainda Se não se pode compreender Nietzsche, basta
acreditam... Nas pegadas das contestações de lê-lo e constatar que essa hipótese não é
68, quis-se ler Nietzsche nesse sentido. Como apenas absurda, mas o antípoda de tudo aquilo
um revoltado, um anarquista, um apóstolo da em que ele próprio acreditava. Que ele seja
libertação sexual, da emancipação dos corpos... tudo, menos um anarquista, é o que ele nunca
deixou de afirmar alto e bom som;

A conciliação entre as forças reativas e ativas é,


“A grandeza de um artista não se mede
aos olhos de Nietzsche, o novo ideal, o ideal
pelos ‘bons sentimentos’ que ele suscita mas
enfim aceitável porque não é, como todos os
reside no “grande estilo”, quer dizer, na
outros, falsamente exterior à vida, mas, ao
capacidade de “se tornar senhor do caos
contrário, explicitamente sustentado nela;
interior; em forçar seu próprio caos a
assumir forma; agir de modo lógico, simples
A que se interrogar sobre a “moral de
categórico, matemático, tornar-se lei, eis a
Nietzsche”, aqui vai uma resposta possível: a
grande ambição”.
vida boa é a vida mais intensa porque a mais
Nietzsche
harmoniosa;

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É preciso esclarecer aqui um mal-entendido tão


grande quanto frequente: a vontade de poder
não tem relação com o desejo de ocupar sei lá
que lugar “importante”. Trata-se de outra coisa.
É a vontade que quer intensidade, que quer
evitar a qualquer custo os dilaceramentos
internos dos quais acabo de lhe falar e que, por
definição mesmo, nos diminuem, já que as
6 – VONTADE DE PODER COMO
forças se anulam umas às outras, de modo que
“ESSENCIA MAIS ÍNTIMA DO SER”
a vida em nós se estiola e apequena;

Portanto, não é absolutamente vontade de Pensemos, por exemplo, no movimento do arco nas
cordas do violino, dos dedos no braço de um violão ou,
conquistar, de ter dinheiro ou poder, mas o
mais simplesmente ainda, num revés ou num saque no
desejo profundo de uma intensidade máxima
jogo de tênis. Quando se observa a trajetória de um
de vida, de uma vida que não seja mais
campeão, parece de uma simplicidade, de uma
empobrecida, enfraquecida porque dilacerada, facilidade literalmente desconcertantes. Sem o menor
mas, ao contrário , a mais intensa e a mais viva esforço aparente, na mais límpida fluidez, ele envia a

possível; bola com uma rapidez que confunde: pé que nele, as


forças em jogo no movimento são perfeitamente
integradas;

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Todas cooperam para a mais perfeita


harmonia, sem resistência alguma, sem
desperdício de energia, logo, sem “reação”, no
sentido que Nietzsche dá ao termo.
Consequência: uma reconciliação admirável da
beleza e do poder que já se nota nos mais
jovens, desde que dotados de algum talento; 7 – UM PENSAMENTO INÉDITO DA
DOUTRINA DA SALVAÇÃO: a
doutrina do amor fati, a “inocência
do devir” e o eterno retorno

“Procurar a salvação num Deus, ou em


No entanto, isso significa que toda
qualquer outra figura da transcendência
aspiração à sabedoria e à beatitude
que se queira pôr em seu lugar, é, diz ele
deva, na opinião de Nietzsche, ser
ainda, “declarar guerra [...] à vida, à
rejeitada?
natureza, à vontade de viver!”, é a
fórmula de todas as calúnias “deste
mundo”, de todas as mentiras do ‘além’”.
Nietzsche

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Se não existem mais além, nem cosmos nem divindade,


se os ideais fundadores do humanismo estão
comprometidos, como distinguir não apenas o bem do
mal, ou, ainda mais profundamente, o que vale a pena
ser vivido e o que é medíocre?

Para operar essa distinção, não seria necessário elevar


os olhos para um céu qualquer e nele procurar um
8 – O SENTIDO DO ETERNO critério que transcendesse este mundo? E se o céu
RETORNO: uma doutrina da estiver desesperadamente vazio, onde procurar?
salvação enfim totalmente
terrestre, sem ídolos e sem Deus

É para oferecer uma resposta a essa pergunta que a “Eu vos conjuro, ó meus irmãos, permaneçam fiéis à terra e não

doutrina do eterno retorno foi inventada por Nietzsche. creiam naqueles que vos falam de esperança supraterrestre.

Para nos fornecer um critério, finalmente terrestre, de Voluntariamente ou não, são envenenadores.

seleção do que não merece ser vivido.


São contendores da vida, moribundos, intoxicados dos quais a
terra está cansada: que pereçam, portanto!
É no seio deste mundo, permanecendo nesta terra e
nesta vida, que é preciso aprender a distinguir o que
Blasfemar contra Deus era outrora a pior das blasfêmias, mas
vale ser vivido e o que merece perecer. É aqui e agora
Deus está morto, e com ele mortos seus blasfemadores. De
que se deve saber separar as formas de vida frustradas, agora em diante, o crime mais terrível é blasfemar contra a terra
medíocres, reativas e enfraquecidas, das formas de vida e conceder mais apreço às entranhas do insondável do que ao
intensas, grandiosas, corajosas e ricas em diversidade; sentida da terra”.
Nietzsche

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“Se, em tudo o que você quer fazer, começar perguntando:


“tenho certeza de que desejo fazê-lo infinitas vezes?”, isso
“Ah! Como não me consumiria de desejo de
se tornará o centro de gravidade mais sólido para você... eternidade, de desejo do anel dos anéis,
Eis o ensinamento de minha doutrina: “Viva de forma a ter
do anel nupcial do Retorno? Ainda não
de desejar reviver – é o dever -, pois, em todo caso, você
reviverá! Aquele para quem o esforço é a alegria suprema,
encontrei a mulher de quem eu quisesse
que se esforce! Aquele que ama antes de tudo o repouso, filhos, a não ser esta mulher que amo, pois
que repouse! Aquele que ama antes de tudo se submeter,
eu te amo, ó eternidade! Pois eu te amo, ó
obedecer e seguir, que obedeça! Mas que saiba para o que
dirige sua preferência, então recue diante de nenhum
eternidade!”
Nietzsche
meio! É a eternidade que está em jogo!”
Nietzsche

“Minha fórmula para o que há de grande


no homem é amor fati: nada desejar além
daquilo que é, nem diante de si, nem atrás
de si, nem nos séculos dos séculos. Não se
contentar em suportar o inelutável, e ainda
menos dissimulá-lo – todo idealismo é uma
9 – A DOUTRINA DO AMOR FATI: maneira de mentir diante do inelutável –
fugir do peso do passado, assim
mas amá-lo”.
como das promessas do futuro
Nietzsche

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Esperar um pouco menos, lamentar um pouco


menos, amar um pouco mais. Nunca
permanecer nas dimensões não reais do tempo,
no espaço e no futuro, mas tentar, ao contrário,
habitar tanto quanto possível o presente, dizer-
lhe sim com amor (numa “afirmação dionisíaca”,
diz Nietzsche, referindo-se a Dioniso, o deus
grego do vinho, da festa e da alegria, aquele que, 10 – A INOCÊNCIA DO DEVIR OU A
por excelência, ama a vida). VITÓRIA SOBRE O MEDO DA
MORTE

É assim e apenas assim que podemos, por “queremos devolver ao devir sua inocência: não existe
ser que se possa tornar responsável do fato de que
fim, ser salvos. De quê? Como sempre, do
alguém exista, possua esta ou aquela qualidade, nasceu
medo. Por meio do quê? Como sempre, em tais circunstâncias, em tal meio. É um grande

pela serenidade. Eis por que, reconforto que não exista ser semelhante... Não existe
nem lugar, nem fim, nem sentido ao qual possamos
simplesmente,
imputar nosso ser e nossa maneira de ser... E uma vez
mais é um grande reconforto, nisso consiste a inocência
de tudo o que é”.
Nietzsche

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- FIM -

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