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Crescimento
Roberta P. Alves, et Desenvolv
al. Hum. 2007;17(1):13-25 PESQUISA
Rev Bras Crescimento Desenvolv ORIGINAL
Hum. 2007;17(1):13-25
RESEARCH ORIGINAL

OS EDUCADORES DE CRECHE E O CONFLITO ENTRE CUIDAR E EDUCAR*

DAY-CARE CENTER CAREGIVERS AND THEIR CONFLICT BETWEEN


GIVING CARE AND TEACHING
Roberta C P Alves**
Maria De La Ó R Veríssimo***

Alves RCP, Veríssimo MLOR. Os educadores de creche e o conflito entre cuidar e educar. Rev
Bras Crescimento Desenvolv Hum 2007; 17(1):13-25.

Resumo: Promover saúde à criança é garantir cuidados de qualidade para seu desenvolvimento
integral. Visando a identificar percepções de educadoras e proposta institucional sobre cuidados
de saúde infantil, foram entrevistadas professoras e coordenadora pedagógica de creche municipal
em São Paulo, e analisados documentos institucionais. A integração educar-e-cuidar aparece
nos discursos como própria do trabalho em creche, mas dificultada pela precária formação para
os cuidados, principalmente de saúde, e sobrecarga de atividades, levantando dúvidas sobre a
exeqüibilidade dessa integração. Educar ainda é foco principal do trabalho, e cuidar é inevitável
pela dependência das crianças, mas restrito ao corpo e valorizado somente se atrelado à educação.
As propostas institucionais documentadas apresentam lacunas quanto à inclusão do cuidado
como categoria independente e inerente à função profissional do educador. É imperioso persistir
na construção de propostas integradoras do cuidado na formação inicial e permanente das
educadoras, apoiada pelas diferentes disciplinas que atuam na atenção infantil.

Palavras-chave: Saúde infantil. Creches. Educação infantil. Cuidados primários de saúde.


Enfermagem pediátrica.

INTRODUÇÃO assistencialista”, sem uma preocupação impor-


tante da medicina em compreender os saberes, as
As representações de saúde e de doença estratégias, os significados relativos aos proble-
são diferentes segundo a cultura, tempo histórico mas de saúde nos meios populares2.
e influências científicas. Até o século XIX, as Apesar dos inegáveis e importantes avan-
causas das doenças eram explicadas basicamente ços na área da saúde, tem se discutido que a con-
por teorias empíricas, de fundamentação científica quista de melhor condição sanitária e qualidade
escassa. As descobertas sobre microorganismos, de vida depende de estratégias que visem não
antibióticos e vacinas trouxeram modificações a somente à recuperação e proteção, mas principal-
esses conceitos, porém dúvidas quanto ao modo mente a promoção da saúde3.
de transmissão das doenças persistiram1 e ainda A visão de saúde para além da simples
persistem na população leiga. ausência de doença, determinada pela idéia hege-
Assim, foi induzido historicamente o mônica de caráter genético e biológico, tem sido
“conceito de saúde como ausência de doença, com debatida amplamente em conferências interna-
um modelo baseado na tecnologia, sendo o cionais de saúde, evidenciando-se hoje outros
hospital o centralizador desse atendimento fatores determinantes, relacionados ao modo de

*
Dissertação de Mestrado apresentada à Escola de Enfermagem da Universidade de São Paulo – EEUSP.
**
Enfermeira. Mestre em Enfermagem Pediátrica pela EEUSP - São Paulo. robertapascarelli@yahoo.com.br
***
Profa. Dra. da EEUSP. Av. Dr. Enéas de Carvalho Aguiar, 419. cep 05403-000. São Paulo-SP. mdlorver@usp.br.

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viver das pessoas. Portanto, interferir no processo Constituição Federal e explicitou mecanismos que
saúde-doença deve ser papel desempenhado por possibilitam a exigência legal dos direitos da crian-
todos os cidadãos, e para isso é preciso compre- ça. Somente em 1996 foi promulgada a Lei de Di-
ender que este processo é fruto das relações do retrizes e Bases da Educação Nacional - LDB7,
homem com o meio físico, social e cultural. que inclui efetivamente a educação infantil no sis-
Quando nos referimos às crianças, creches tema educacional brasileiro, compondo a primeira
e pré-escolas são cenário de destaque. Atualmente, parte da educação básica. A partir desse documento
é comum que estas fiquem grande parte do dia passou-se a considerar legalmente como função
em instituições de educação infantil+. Assim, da educação infantil tanto a educação como o cuida-
justifica-se compreender como a questão da saúde do da criança atendida em creches e pré-escolas.
é garantida na creche. O Referencial Curricular Nacional para a
Pode-se dizer que a origem das atuais Educação Infantil – RCNEI8 também assinala o
instituições médico-assistenciais e educacionais, cuidado como atividade permanente e essencial,
incluindo as creches, está nos abrigos ou asilos, ao firmá-lo como um dos componentes da
nos quais, desde a Idade Média, recolhiam-se os proposta curricular da educação infantil. O que
diferentes tipos de desvalidos, para que pudessem se pretende, segundo o Referencial, não é a
ser alimentados e não ficassem expostos à simples transposição do cuidado doméstico para
violência, ou seja, tinham caráter assistencialista4. o ambiente institucional, mas sim a construção
Com o processo de industrialização, as de uma prática de atendimento cujo princípio seja
creches passaram a apresentar também caracte- garantir as melhores oportunidades de desen-
rísticas de uma instituição destinada a permitir a volvimento às crianças.
utilização da força de trabalho feminina. Para as Sabe-se hoje que o bom desenvolvimento
mulheres da população de baixa renda que tra- físico, psíquico e social do ser humano depende
balhavam fora, a creche passou a ser essencial em grande parte dos cuidados referentes a aten-
para a viabilização da dupla jornada de trabalho, ção, nutrição, estimulação, acolhimento, compre-
ou seja, para a criação dos filhos e o ganho do ensão e carinho oferecidos especialmente nos três
sustento da família5. primeiros anos de vida. Quando estes cuidados
Somente a partir de 1930 o governo federal faltam, são inadequados ou insuficientes, as
assumiu oficialmente a responsabilidade de aten- consequências podem ser decisivas e de longa
dimento infantil, ao criar o Ministério da Educa- duração, determinando a capacidade de aprender,
ção e Saúde. Mas a creche manteve suas concep- de se relacionar e de regular emoções9.
ções filantrópicas e de práticas assistencialistas Uma importante justificativa para estes
por muito tempo, com políticas públicas voltadas princípios é o desenvolvimento da estrutura neu-
à assistência social e da saúde, não se valorizando rológica humana. Ao nascer, a criança já tem a
nessa época, na maioria das instituições, o tra- maior parte das células cerebrais de que precisará
balho dirigido à educação e ao desenvolvimento para o resto de sua vida, porém a maioria dos
da criança. 100 milhões de neurônios ainda não estabeleceram
Apenas com a Constituição Federal de sinapses. A principal tarefa do desenvolvimento
1988 legitimou-se a educação infantil enquanto cerebral inicial é a formação e o reforço dessas
direito da criança, como fruto da luta de entidades ligações. “As conexões entre os neurônios se for-
civis organizadas em defesa dos direitos da infân- mam à medida que a criança em crescimento
cia. É a partir desse direito proclamado que se experimenta o mundo que a cerca e estabelece
faz necessária a demarcação de algumas especifi- ligações com os pais, com os membros de família
cidades da educação das crianças de 0 a 6 anos. e com os outros cuidadores”10. Isto significa que,
Em 1990, o Estatuto da Criança e do quanto mais estimulada for a criança, mais
Adolescente – ECA6 regulamentou artigos da ligações entre os neurônios ela terá.
+
Segundo a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, a Educação Infantil compreende creches e pré-escolas,
que atendem crianças menores de 4 anos, e de 4 a 6 anos, respectivamente (Lei 9394/96)

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Os estímulos necessários são os mais varia- prestados são baseados no senso comum14 pois,
dos possíveis, como o olhar, o acariciar, o toque, na maioria destes serviços, até recentemente,
o abraço, a música, o falar com o bebê, o cantar, houve pouco investimento na formação e capaci-
o ler para a criança, o brincar, o aconchego, a tação de seus trabalhadores, o que inviabiliza o
atenção, os atos de alimentar, de orientar nas cuidado integral e sem riscos de iatrogenias às
questões de higiene, de colocar a criança para crianças ali atendidas. Nas práticas desenvolvidas
dormir. É importante aproveitar todas as oportu- prevalece a idéia de que o meio familiar pode ser
nidades para essa estimulação. transportado para a creche, o que tem favorecido
Tais cuidados passam prioritariamente pela o surgimento de um modelo mecânico como o
relação afetuosa e interativa dos pais e dos cuida- único capaz de dar conta do maior número de
dores, que devem aprimorar a sua observação das tarefas possíveis de maneira rápida e eficiente por
necessidades infantis para aquele momento de um número pequeno de pessoas5.
vida, vindo a oferecer as oportunidades apropria- Sempre houve duplicidade e desarticulação
das. O cuidado caloroso e responsivo exerce uma dos setores saúde e educação em relação à infân-
função biológica protetora, diminuindo ou elimi- cia, e mesmo documentos mais recentes, elabo-
nando os efeitos adversos do stress ou de traumas rados com o objetivo de estimular e apoiar pro-
posteriores. Sem as brincadeiras, o toque e outros gramas de educação infantil que atendam parâ-
estímulos, o cérebro de um bebê pode desen- metros de qualidade, têm deixado a desejar no
volver-se significativamente menos. que respeita à promoção da saúde15.
O cuidado de alta qualidade é aquele capaz Assim, diversos autores têm defendido que
de gerar confiança e vínculo afetivo entre a crian- as práticas de cuidado necessárias à manutenção
ça e o adulto. Nesse sentido, a discussão sobre o e recuperação da saúde infantil só podem ser
tema visa a que as famílias e outras pessoas que implementadas pelos cuidadores à medida que
cuidam delas, como educadoras de creches e pré- estes tenham sido capacitados para isso, o que
escolas, compreendam que, mediante o cuidado, torna evidente a necessidade de que a formação
a interação e a brincadeira, estabelecem-se vín- das educadoras de creches contemple esse
culos afetivos significativos e essenciais ao bem- componente do cuidado.
estar infantil. Isto quer dizer que a qualidade das Em resposta a esse debate, a LDB dispõe
experiências infantis deve permitir-lhes ter con- em seu título VI, art. 62 que, para atuar na
fiança em si próprias, sentirem-se aceitas, ouvi- educação básica, os docentes devem ter formação
das, cuidadas e amadas, de forma a lhes oferecer em nível superior, admitida, como formação
segurança para sua formação pessoal e social, mínima, a oferecida em nível médio, na moda-
para o desenvolvimento de sua identidade e lidade Normal7.
conquista da autonomia11. Analisando dados acerca dos profissionais
Portanto, nas instituições de educação docentes em creches, vemos que houve uma
infantil é imperativo focalizar e potencializar as melhora expressiva no grau de escolaridade des-
questões referentes à qualidade do cuidado e da tes, ao se comparar os dados de 1999 com os de
educação, especialmente o primeiro, sendo cabível 2005 16 . Apesar dessa mudança efetiva na
perguntar como os adultos estão provendo as contratação de pessoal com maior formação esco-
condições adequadas para que as crianças possam lar, um dos aspectos a ser destacado é que muitos
se desenvolver plenamente12. destes têm formação em áreas diversas à pedago-
No Brasil, constata-se que, na prática de gia, devendo-se assim considerar que há, na
seu atendimento, as trabalhadoras de creches verdade, um grande aumento de professores capa-
vêem o cuidado à criança como algo que não citados em nível médio de ensino. Cabe questionar
demanda habilidades ou conhecimentos especí- se a maior formação profissional redunda em
ficos, de menor valor e subsidiário em relação à melhor integração entre o educar e o cuidar.
educação, levando em conta o “instinto materno” O que se observa, na prática, é que as infor-
natural das mulheres 13. Muitos dos cuidados mações para os educadores acerca dos cuidados

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com a saúde são adquiridas em breves treina- igualitárias entre as pessoas, na construção da
mentos iniciais, e aprendem de forma artesanal, cidadania e democracia e reforça a solidariedade,
observando outros educadores trabalhando. Estas o espírito de comunidade e os direitos humanos18.
informações são assimiladas de forma parcial, ou Desta forma, a Saúde Escolar passa, neces-
são re-interpretadas segundo os conhecimentos sariamente, por uma revisão dos conceitos e
prévios dos educadores e o recorte que fazem sobre práticas higienista e assistencialista, e tem a possi-
o corpo e sua relação com a higiene e saúde14. bilidade de avançar e ampliar a sua concepção e
Além dos problemas de formação, outra práticas com uma visão integral e interdisciplinar
razão que contribui para esse quadro é que as do ser humano.
práticas de saúde mais freqüentes nas escolas se Cabe destacar que a Secretaria Municipal
fundamentam no paradigma tradicional de saúde de Educação de São Paulo, em sua gestão atual,
escolar17. Neste, as intervenções sanitárias no lançou o Programa “São Paulo é uma Escola”19,
âmbito escolar limitam-se à vacinação, desparasi- no qual definiu como uma das metas introduzir o
tação, controles médicos, palestras sobre temas modelo das EPS no sistema educacional. Entre-
da saúde. Muitas vezes, as ações dos professores tanto, esta proposta visa à ocupação dos espaços
reproduzem tal modelo, no controle do cartão de públicos e tempo livre dos estudantes, o que
vacinas, campanhas de prevenção, ações de detec- significa não estar inserida no currículo e, por-
ção e encaminhamento de problemas de saúde. Este tanto, ser opcional.
enfoque é o da lógica biomédica, centrada na A política da educação infantil define como
prevenção da doença, ficando a escola geralmente funções da creche e pré-escola cuidar e educar.
em posição passiva nas atividades, pois se concebe Sua efetivação é determinada por várias condi-
apenas como um cenário para tais ações17. ções, dentre elas, as concepções que orientam as
Por tudo isto, a construção de práticas de práticas dos trabalhadores no cotidiano. Deseja-
qualidade, que incorporem cuidados de promoção mos analisar nesse trabalho a implementação de
e manutenção de saúde na creche, depende do ações obrigatórias por lei, como a formação de
desenvolvimento de um referencial conceitual e educadoras de creche em nível médio e superior
operacional apropriado. Vários autores e entidades e a visão da criança como um ser indissociável,
têm defendido a educação em saúde como parte que enquanto está na creche precisa de educação
integrante da formação de professores, como uma e de cuidado simultaneamente.
forma de superação desses limites12-15. Acredita- Ao entender a promoção da saúde como
mos que, embora o referencial das Escolas Pro- uma meta que pode ser alcançada somente com a
motoras da Saúde tenha sido desenvolvido com definição de políticas que extrapolem o setor
foco no ensino fundamental e médio, seus saúde e participação de todos os setores sociais,
princípios podem ser apropriados para o nível da uma das frentes de ação dos trabalhadores da área
educação infantil, com as devidas adaptações. de saúde deve ser formar parcerias com institui-
O modelo das Escolas Promotoras da ções com as quais possam ampliar seu campo de
Saúde (EPS) vem sendo difundido desde 1995 ação e contribuir para a melhoria do cuidado à
pela Organização Panamericana de Saúde – saúde da população. Assim, o presente estudo tem
OPAS, e parte de uma visão multidisciplinar, que a finalidade de contribuir para o debate sobre a
considera as pessoas em seu contexto familiar, saúde no contexto educativo.
comunitário e social, e procura desenvolver o
autocuidado da saúde e a prevenção de condutas
de risco em todas as oportunidades educativas; OBJETIVOS
fomenta a reflexão sobre o que contribui para
melhoria da saúde e do desenvolvimento humano; A presente investigação teve como objetivo
facilita a participação dos integrantes da comu- geral caracterizar aspectos relacionados aos
nidade educativa na tomada de decisões; e cola- cuidados de saúde infantil em creche, e como obje-
bora na promoção de relações socialmente tivos específicos identificar percepções de edu-

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cadoras de creche e a proposta institucional acerca os aspectos éticos e legais deste trabalho. Além
destes cuidados. disso, as trabalhadoras participantes assinaram
um termo de consentimento livre e esclarecido.

MATERIAL E MÉTODO
RESULTADOS
Esta investigação foi realizada em uma cre-
che de administração direta do município de São Participaram do estudo quatro professoras
Paulo, situada na região do Butantã, zona oeste de educação infantil e a coordenadora pedagógica
da cidade, que funciona desde 1981 e atende a da creche. Suas idades variavam entre 26 e 43
140 crianças, em período integral, de segunda a anos de idade; relataram ter optado pelo trabalho
sexta-feira, das 6:30h às 18:30h. Este serviço foi com educação, e que iniciaram suas carreiras
selecionado por tratar-se de um local onde vimos entre 15 e 18 anos de idade.
realizando atividades educativas em saúde, Quanto à educação formal, duas con-
demandadas pela diretora, após contato anterior, cluíram o ensino superior e três estavam cursando
durante realização de pesquisa. esse nível de ensino, o que condiz com os requisi-
Foram utilizadas como fontes de dados do- tos acerca da atual formação escolar das profes-
cumentos e entrevistas. Os documentos selecio- soras do Ensino Infantil. Mas apenas duas delas
nados foram: o Referencial Curricular Nacional optaram pelo curso superior em pedagogia, e as
para a Educação Infantil (RCNEI); o Programa demais escolheram ciências sociais, letras e direi-
“São Paulo é uma Escola” da Secretaria Muni- to. Portanto, apesar do elevado grau de formação,
cipal de Educação de São Paulo; a cartilha “Tem- os cursos não abrangem conteúdos específicos
pos e espaços para a infância e suas linguagens da área.
nos CEIs, Creches e EMEIs da cidade de São Em relação aos cuidados de saúde na
Paulo”; o Projeto Político-Pedagógico (PPP)++ da creche, as educadoras referiram que:
creche, intitulado “O espaço do lúdico: brincando
e jogando para chegar ao mundo letrado”, “Cuidados de saúde na creche incluem:
elaborado durante o ano de 2005; e os planos de alimentar bem a criança; fazer sua higiene e
reuniões semanais e mensais das educadoras. ensiná-la a cuidar da própria higiene; manter a
As entrevistas semi-estruturadas, com qua- higiene do ambiente; identificar alterações de
tro educadoras e a coordenadora pedagógica da saúde e encaminhá-la ao médico quando
creche, seguiram roteiros baseados nos pressu- necessário”.
postos e hipóteses construídos na definição do “Tais cuidados são importantes para
objeto de investigação. Foram gravadas e transcri- prevenir doenças”.
tas integralmente, e compuseram o material de “As educadoras que são mães e as que
análise, junto com os documentos. trabalham há mais tempo com crianças têm mais
Os dados foram submetidos à análise te- conhecimentos e, conseqüentemente, mais faci-
mática de conteúdo, categorizados, e alguns de seus lidade para lidar com as doentes. Ainda assim,
trechos usados para ilustrar os resultados. A todas temos dúvidas e inseguranças porque esses
discussão baseou-se em estudos que abordam a conhecimentos não são suficientes. Isto, além
qualidade do atendimento face às necessidades e de dificultar o cuidado, torna-o não profissional,
cuidados essenciais ao Desenvolvimento Infantil. caracterizado como ´cuidar materno´, imitativo
O projeto foi apreciado e aprovado pelo e de senso comum. Seria importante haver
Comitê de Ética da Escola de Enfermagem da disciplinas sobre a saúde da criança nos cursos
Universidade de São Paulo, e submetido à direção de formação de educadores, e na formação em
do Centro de Educação Infantil, a fim de garantir serviço da creche”.
++
O Projeto Político Pedagógico de uma instituição educativa estabelece princípios, diretrizes e propostas que
sistematizam todas as suas atividades e pressupõe uma construção participativa dos diversos segmentos escolares.

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“A falta de funcionários, principalmente tanto de se exporem às doenças como de serem


os da limpeza, também dificulta o cuidado, pois culpadas pela família por maus cuidados às
compromete a higiene do ambiente e expõe as crianças. Ele deve orientar a limpeza da creche
crianças às doenças; às vezes, nós temos que e a alimentação das crianças, inclusive mudan-
varrer as salas e até limpar os banheiros, o que ças no cardápio em casos de doença. Com re-
ocupa um tempo importante que deveria ser lação à administração de medicamentos às
dedicado para as atividades didáticas. A falta crianças, que hoje é função da professora, não
de professores é igualmente uma barreira, já que somos preparadas nem competentes, pois não
dificulta a atenção às crianças tanto para evitar temos formação adequada para essa responsa-
agravos de saúde e acidentes, como para atendê- bilidade, o que pode levar a erros. Além disso,
las quando têm algum problema de saúde”. essas atividades demandam tempo que poderia
“A ausência da auxiliar de enfermagem, ser usado para outras atividades pedagógicas”.
além de prejudicial aos cuidados de saúde, prin-
cipalmente com os bebês, que não sabem referir Por outro lado, o discurso da coordenadora
queixas, também dificulta o trabalho, pois a pro- aproxima-se mais ao discurso oficial, demons-
fessora tem que assumir esses cuidados. Deveria trando um movimento no sentido de incorporá-lo
haver também a presença de nutricionista e à realidade:
psicólogo, e integração da creche com serviços
de saúde, para facilitar o encaminhamento das “A função das professoras de creche deve
crianças, e também para que houvesse troca de ser educar e cuidar, de forma a contribuir para o
conhecimentos entre a educação e a saúde”. desenvolvimento infantil, ao invés de se centrar
na formação educativa. Elas devem estar atentas
As professoras questionam o cuidado como às necessidades das crianças, através da obser-
sua função, e definem seu papel profissional na vação, da atenção, do respeito a seus direitos, da
creche do seguinte modo: realização de cuidados das que ainda não o fazem
sozinhas, especialmente daquelas que não conse-
“A professora deveria atuar no ensino, guem verbalizar suas dificuldades e vontades”.
na formação intelectual das crianças, e com “As educadoras ainda têm dificuldade em
relação à saúde teria uma função prioritaria- reconhecer como sua função o cuidar, já que
mente educativa; mas no trabalho em creches, este não pode ser mensurado, então dão maior
por se tratarem de crianças pequenas e que importância ao educar. Para garantir a observa-
permanecem muitas horas, surgem situações às ção do resultado de seu trabalho sobre o
quais devemos responder, mesmo que não seja desenvolvimento das crianças, devem registrar
papel de professor, realizando cuidados, como sistematicamente suas ações e os comporta-
os de higiene, e até aqueles que deveriam ser mentos das crianças. Elas sempre se queixam
realizados pela família, como cortar as unhas. de que cuidam demais, mas no trabalho com
Nesses casos, estamos exercendo função de mãe, crianças pequenas realmente as atividades são
e não de professora. Além disso, exercemos até mais físicas do que mentais, o que o torna muito
função de faxineira, pela falta de funcionários, o cansativo. Apesar disso, as professoras já estão
que gera uma sobrecarga de trabalho. Isto a leva se conscientizando da importância do cuidado
a questionar como funções do professor educar e para a criança na creche, mas este é um trabalho
cuidar, já a função educativa é a que deveria ser longo e dificultado pela entrada de novos
privilegiada, mas fica prejudicada pelas outras funcionários, que estranham e rejeitam essa
funções necessárias ao trabalho em creche”. função ao chegar à creche”.
“Compete ao profissional de saúde evitar
que as crianças tragam problemas de saúde de Em relação aos documentos, estes foram
casa para a creche, orientar as professoras sobre utilizados a fim de conhecer e analisar as deman-
questões de saúde, e até mesmo a protegê-las das do serviço em estudo e as propostas oficiais

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em termos de funções esperadas das professoras O Projeto Político-Pedagógico (PPP) da


na creche acerca dos cuidados de saúde infantil. creche, intitulado “O espaço do lúdico: brincando
O Referencial Curricular Nacional para a e jogando para chegar ao mundo letrado”, foi
Educação Infantil – RCNEI8 ilustra o que as elaborado durante o ano de 2005 e terá continui-
diretrizes atuais definem como orientações para dade durante 2006. Apesar de se afirmar em sua
a Educação Infantil; documento que, na intro- introdução que está expresso “no educar e no cui-
dução traz a idéia de que “representa um avanço dar”, a leitura de seu conteúdo revelou ausência
na educação infantil ao buscar soluções educa- de referência aos cuidados de saúde às crianças e
tivas para a superação, de um lado, da tradição ênfase em práticas pedagógicas. De acordo com
assistencialista das creches e, de outro, da marca a coordenadora pedagógica, este projeto consiste
da antecipação da escolaridade das pré-escolas” em aproveitar qualquer oportunidade na creche
8
. Tem como propósito superar a dicotomia entre para estimular a linguagem na criança e prepará-
cuidado e educação, através da incorporação dos la para a leitura. Assim, as professoras tentam
cuidados essenciais das crianças e suas brinca- promover um ambiente estimulante, através da
deiras às atividades educativas, pois refere que leitura de histórias, receitas, bilhetes, comunica-
não há como dissociar tais atividades. Apesar dos, músicas, e da oferta de materiais impressos
disto, explora com maior detalhamento aspectos com figuras e textos, permitindo que as crianças
relativos à aquisição de conhecimentos, tal como os manuseiem, com a finalidade de “que a
se dá nos estágios posteriores da educação. criança entre em contato com o mundo letrado,
O Programa “São Paulo é uma Escola”, da que perceba o uso social da língua escrita e
SME de São Paulo, foi lançado visando a atender aprenda sua decodificação”.
a duas iniciativas da Política Educacional: a am- Quanto aos planos de reuniões da creche,
pliação do tempo para o desenvolvimento do pro- estes incluem os conteúdos discutidos nas paradas
cesso de ensino e da aprendizagem; e a revitali- pedagógicas e nas reuniões semanais, que são
zação e uso dos espaços ociosos da cidade, a fim brevemente documentados em livros-ata. As pa-
de melhorar a formação educacional dos estudantes radas pedagógicas ocorrem mensalmente e têm
em todos os níveis19. Mas neste programa, tal como participação do maior número possível de funcio-
nas demais atividades, a EPS se coloca no momento nários, durante um dia letivo em que as crianças
paralelo à escola e, portanto, opcional, conforme são dispensadas. Pôde ser constatado que as ofici-
descrito em um de seus objetivos: “Usar o espaço nas realizadas por nós, e uma palestra de fonoau-
e o tempo pós-escola para desenvolver a prática dióloga, foram os únicos temas sobre saúde dis-
da Escola Promotora de Saúde” 19. cutidos nesses encontros no período de 2004-
A cartilha “Tempos e espaços para a 2005, os demais se referiram a conteúdos pedagó-
infância e suas linguagens nos CEIs, Creches e gicos. As reuniões semanais são conduzidas pela
EMEIs da cidade de São Paulo”20 trata das prá- coordenadora pedagógica, e duram 1 hora e 30
ticas, do currículo e do dia-a-dia das educadoras. minutos por semana com cada grupo de educa-
Ela é dividida em cinco grandes temas, e ao final doras. Houve menção a uma única atividade de
de cada um dos tópicos há questões relativas a saúde, que foi a elaboração de cartaz sobre impor-
estes para serem discutidas em grupos, com exce- tância da vacinação, e o tema do cuidado infantil
ção do primeiro tema, justamente o que aborda a foi debatido durante as discussões da citada
integração educar e cuidar. Pode-se afirmar que cartilha da Secretaria, embora não haja registro
este documento é muito condizente com a propos- do conteúdo das discussões.
ta de melhor qualificar as atividades infantis na
creche, entretanto, não há qualquer referência às
atividades de cuidado corporal, cuidados com a DISCUSSÃO
saúde, hábitos de higiene, o que nos mostra que
continua havendo uma dicotomia entre educar e Inicialmente, buscamos entender a baixa
cuidar, havendo maior ênfase à educação. adesão das educadoras às entrevistas, apesar da

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intensa participação nas atividades do projeto se trata de crianças pequenas e não há outras pes-
educativo que vínhamos desenvolvendo. Perce- soas para fazê-lo. Neste sentido, pode-se inferir
bemos que essas atividades ocorreram durante que ainda há muita dificuldade em reconhecer o
as paradas pedagógicas, em que há presença trabalho profissional como centrado no aten-
obrigatória. Além disso, durante os contatos, as dimento à criança de forma global.
participantes revelaram que, a princípio, estavam Além disso, as educadoras ressaltam que
com receio de participar, por acreditarem que geralmente realizam tais cuidados da mesma
poderiam não saber responder às questões e que forma que no ambiente doméstico, que suas ações
não contribuiriam para o estudo, o que as deixaria são baseadas em suas experiências como mãe e
constrangidas. de cuidado a outras crianças, de forma semelhante
Ainda que tenha havido dificuldade em ao que ocorre em vários outros serviços que
contar com maior número de educadoras no contam com trabalhadores com variados níveis
estudo, podemos concluir que seus objetivos de formação14,21-23.
foram atingidos, pois foi possível apreender como Afirmam que não usam conhecimento
o cuidado de saúde nessa unidade de educação formal ao oferecer cuidados às crianças, e que se
infantil é entendido e sua relação com a proposta sentem inseguras ao lidar com as doentes. Ao
institucional. mesmo tempo, destacam que há uma lacuna na
Ao referirem os cuidados de saúde ofereci- formação dos profissionais em relação a essa
dos na creche e sua importância, as educadoras competência, mas não relacionam a falta de
citaram temas relativos à alimentação, higiene formação à desvalorização que atribuem ao
pessoal e ambiental. Desses dados, depreende-se cuidado.
que cuidado à saúde restringe-se a prevenir doen- Apesar de, atualmente, o nível de escola-
ças ou tratá-las quando estão presentes, que a ridade mínimo exigido das professoras de creche
visão de saúde subjacente à prática é a de ausência ser o ensino médio completo, nem mesmo os cur-
de doença, e o que explica a doença são aspectos sos destinados à formação de docentes são espe-
dos modelos de uni ou multi causalidade. Assim, cíficos para a formação de profissionais para
tais cuidados estão essencialmente ligados à parte atuar na educação infantil. Aliás, esta tem pouco
física da criança e nenhum cuidado relativo a destaque em seus currículos, com conteúdos bem
aspectos emocionais ou de estímulo ao desenvol- restritos e inespecíficos.
vimento infantil foi citado. É possível que muitos Os próprios técnicos de secretarias de edu-
outros cuidados sejam oferecidos, porém elas não cação municipais reconhecem que, na ausência
os reconheçam como tal. de melhor qualificação para o trabalho, as educa-
A razão primordial de cuidar na creche, doras mobilizam suas experiências pessoais,
segundo as educadoras, é uma demanda da crian- principalmente como mães e, ao longo dos anos
ça que não pode ser negligenciada, pois ela carece em que trabalham nas escolas, vão construindo
do atendimento a suas necessidades e não é capaz um saber baseado no desempenho desses dois
de satisfazê-las por si própria, tal como eviden- papéis: mãe/professora21. A formação inicial nos
ciado em estudo anterior13. Isto implica a existência cursos de magistério é precária, os estágios são
de um provedor, alguém que se responsabilize por só formais e não preparam os professores para a
oferecer essa atenção. Mas o que é assumido por realidade que vão enfrentar, bem como há insu-
elas como posto, é também questionado quanto a ficiência da formação em serviço, pois muitas
quem cabe, se seria mesmo de sua competência. vezes não existem horários previstos para o
Assim, as educadoras ainda vêem com trabalho de planejamento e reflexão em equipe e
menos estranhamento haver pessoas diferentes os modelos de formação adotados não propiciam
para cuidar e educar do que a professora ter que a integração entre teoria e prática21.
assumir os cuidados com o corpo infantil. Isto Esses problemas de formação produzem a
aparece claramente nos discursos quando elas fragilidade da inserção da função cuidadora no
afirmam saber que “têm que cuidar e educar” pois arcabouço da construção do papel profissional

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do educador. No nosso estudo, isto aparece tanto nidade, impele ainda mais as educadoras a deseja-
quando a coordenadora pedagógica associa a rem garantir para si um status profissional median-
ausência de uma forma de mensurar e qualificar te rejeição a ações entendidas como maternas.
o cuidado à rejeição das educadoras em assumi- Nos discursos, vemos que as professoras
lo, como quando as educadoras manifestam que citam que sua função prioritária é o ensino, tanto
o cuidado tem sentido para elas quando atrelado nas atividades pedagógicas como em relação aos
ao ensino. cuidados de saúde, portanto o cuidado oferecido,
Percebe-se que há uma lacuna na siste- para ser sua função, deve ter interface com a
matização do cuidado, dificultando que ele possa educação. A coordenadora inclusive ressalta o
ser objetivado, mediante planejamento, com defi- quanto as educadoras se queixam do tempo que
nição de objetivos, estratégias e avaliação. A despendem com o cuidado.
ausência de um quadro conceitual que ampare e Resultados semelhantes de outro estudo
sustente esse cuidado não permite que ele seja evidenciaram que o cuidado, interpretado apenas
sistematizado e visto como produto de um traba- como higiene, prevenção de acidentes e oferta de
lho profissional e, mais ainda, impede pensar o nutrientes, era “acusado” de “atrapalhar” o desen-
cuidado como categoria individual e independente volvimento da ação pedagógica, por despender
da educação. tempo dos educadores e impor uma rotina rígida,
Maranhão defende a premissa de que os restringindo as ações educativas aos intervalos
cuidados constituem o elo entre as atividades edu- que “sobravam”14.
cativas e as ações de saúde na creche14. Lembra Igualmente, outra pesquisa observou o
que os cuidados com a criança na primeira infân- enfrentamento de um dilema por parte desses
cia exercem duplo papel: manter sua saúde, o profissionais no que diz respeito à dimensão de
conforto e bem-estar e dar à criança referências cuidado em suas práticas cotidianas, quando
sobre si mesma, o outro e o ambiente, o que é cosntatou que, apesar do cuidado estar fortemente
obtido por meio do toque, da linguagem, da presente, ele era ora negado, porque tido como
expressão facial de quem cuida, e da regularidade antiprofissional, ora visto como algo caracterís-
com que é atendida em suas necessidades24. tico ou mesmo inerente à condição feminina,
A desvalorização do cuidado enquanto materna, o que o tornava não uma característica
função profissional do educador de creche tem ou atributo profissional típico daqueles que traba-
sido creditada, entre outras razões, ao fato do lham com crianças, mas, antes, uma característica
cuidado infantil ser tradicionalmente atribuição doméstica, situada no âmbito da vida privada e,
materna e familiar, e entendido como natural- sobretudo, associada à condição feminina26.
mente feminino13,24. A despeito dos educadores tentarem cons-
A função educativa é vista na Educação truir uma visão de profissionalismo rejeitando o
Infantil, de maneira semelhante, como algo natu- cuidado e revestindo-se do papel de professor
ral, fortemente impregnada pelo mito da mater- transmissor de conteúdos, toda relação entre edu-
nidade, da mulher como educadora nata, e, por- cadora e criança no âmbito pré-escolar é permea-
tanto, destituída de profissionalismo25. Esse é um da por algum tipo de cuidado, seja ele explicitado
mito que perdura até nossos dias graças à visão e consciente ou não, seja ele mais ou menos
dos primeiros teóricos da educação infantil acerca adequado27.
das qualidades que deveria ter uma educadora de Isto aparece em nosso estudo quando as
criança pequenas: o fato de ser mulher, preparada educadoras relatam que cuidar é inevitável, pois
pela natureza para a maternidade, já a definiria são crianças pequenas e “não pode se recusar a
como educadora nata25. oferecer tais cuidados”. Ao constatar este fato,
Assim, pode-se inferir que o fato de tanto as trabalhadoras parece que tentam delimitar um
a educação como o cuidado nas creches sofrerem espectro de ações que seriam cabíveis na creche,
prejuízo por serem vistos como capacidades inatas excluindo as que consideram específicas das famí-
femininas, relacionadas à capacidade da mater- lias. Mesmo quando reconhecem que o cuidado

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com a criança pequena é inerente à ação educa- verificou-se que, crianças que freqüentaram ins-
tiva, ainda são encontradas dificuldades em de- tituições de qualidade superior apresentaram
finir os cuidados que são de competência melhores competências nas áreas cognitiva, social
exclusiva da família e os cuidados que seriam da e de linguagem. A qualidade dos serviços foi men-
competência da instituição, atribuindo os cuida- surada por variáveis como atitudes e comporta-
dos com o corpo à família14. mentos dos cuidadores, instalações físicas, ativi-
Quando o cuidado não está claramente dades apropriadas às idades, grupos de tamanhos
vinculado a uma ação entendida como educativa, adequados, baixa proporção criança/adulto,
as professoras sentem que não estão atuando formação e treinamento dos cuidadores. A despei-
como professoras e sim “exercendo função de to das diferenças entre as pesquisas, há evidências
mãe”. Ainda, reclamam a necessidade de manter de que a qualidade do cuidado oferecido está
profissional de saúde no serviço que se incumbisse relacionada com as competências subseqüentes
de acompanhar as ações que consideram especí- das crianças28.
ficas de saúde, portanto, fora de sua competência. Frente à magnitude da importância do cuida-
Embora efetivamente algumas necessidades in- do para o desenvolvimento infantil, não se deveria
fantis correspondam a uma demanda de outros pro- pensá-lo como algo que interfere nem atrapalha as
fissionais, cabe questionar se o cuidado diário, que ações próprias do professor na creche, tal como
inclui ações como trabalhar a aceitação alimentar, ainda aparece nos discursos dos educadores.
deveria mesmo ser incluído nessa categoria. No que diz respeito aos documentos,
Assim, evidencia-se a ambivalência na observa-se ainda uma aproximação tímida dos
definição de funções relativas ao cuidado. O que aspectos de cuidado.
aparece num momento do discurso – a integração Quanto à adoção do modelo de Escola
cuidar e educar – é questionado e até rejeitado em Promotora de Saúde pela Secretaria de Educa-
outro momento. Visualiza-se aqui que o discurso ção19, além de se constituir em uma ação paralela,
individual incorpora o discurso oficial, da lei e da a justificativa para sua utilização ainda recai
ciência, mas ainda não representa a introjeção dessa sobre a visão tradicional da saúde escolar, pois
visão sobre a função da educação infantil. seu objetivo é ratificar a importância do impacto
Por outro lado, entender as ações de da correção dos problemas de saúde sobre o
cuidado da criança como fatores de sobrecarga e aprendizado.
prejuízo por redução do tempo de atividades didá- Essa visão tradicional está baseada nos
ticas, é um ponto importante a ser melhor explo- modelos higienistas de Saúde Escolar, que cria-
rado, considerando que diversos estudos demons- ram a equivocada tarefa da Saúde de ter que
tram que alta qualidade na atenção à primeira responder pelo processo de aprendizagem de
infância compreende muito além do oferecimento crianças e adolescentes, medicalizando as ques-
de atividades pedagógicas28. tões da educação e privilegiando a prática tera-
Embora as discussões sobre o desenvol- pêutica como modelo de intervenção junto ao
vimento infantil em creches sejam complexas, sujeito e à sociedade29.
pois se baseiam em estudos não randomizados, No que diz respeito ao projeto político
indicadores variados e, muitas vezes, até em opi- pedagógico da creche, enfatiza um dos aspectos
niões, atualmente dispomos de trabalhos bastante do desenvolvimento infantil, qual seja, a lingua-
significativos que demonstram essa afirmação. gem, e reforça o papel do educador na função de
De uma forma geral, os estudos evidenciam a ensinar. A escolha da área de linguagem tem um
importância do ambiente, físico, social e emocio- aspecto positivo, uma vez que o período da vida
nal, sobre o desenvolvimento. em que as crianças freqüentam creches corres-
Especificamente no que diz respeito às ponde a uma fase crítica para o desenvolvimento,
instituições educacionais, a qualidade do cuidado e a linguagem é uma área em que a criança pode
importa em vários níveis28. Com base na análise ter dificuldades maiores uma vez que necessita
de estudos realizados nas décadas de 80 e 90, da intervenção de outrem12.

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Entretanto, na implementação do projeto formação anterior das educadoras e sobrecarga


na creche estudada, o foco é o estímulo ao apreço de atividades.
pela escrita, o que pode significar uma preocu- A cartilha “Tempos e espaços para a infân-
pação delimitada pela visão da escolarização, cia e suas linguagens nos CEIs, Creches e EMEIs
priorizando um aspecto em detrimento de pensar da cidade de São Paulo”20 é uma material que
a ação de forma mais ampla, uma vez que a pode auxiliar tal reconstrução, mas, seu conteúdo
linguagem tem muitas outras funções no de- também privilegia aspectos da aprendizagem.
senvolvimento, tais como a socialização e a Além disto, chama a atenção que cada um dos
expressão de sentimentos. capítulos traz questões relativas aos temas para
Embora na sua introdução aponte-se que reflexão e discussão em grupo, exceto o primeiro
o PPP está expresso “no educar e no cuidar”, - “Educar e Cuidar: por que a Educação Infantil
novamente percebe-se que o foco não é a criança, passou a tratar desses dois conceitos de modo
mas sim a visão de competência que os educa- integrado?”. Considerando que as questões da
dores pretendem de si mesmos, isto é, aproximar cartilha foram utilizadas na formação continuada
a criança da leitura é algo que dignifica seu tra- da creche, e que não havia questões sobre esse
balho nesse local. capítulo, nem outras questões específicas do
A esse respeito, para que faça sentido cuidado nos demais capítulos, podemos afirmar
caracterizar a instituição de educação infantil que a própria cartilha ainda não aborda o cuidado
como lugar de cuidado-e-educação, deve-se como se pretende.
tomar a criança como ponto de partida para a Assim, os documentos citados pontuam
formulação das propostas pedagógicas. Seu como função da creche integrar as ações de
sentido fica vazio ao se adotar essa caracterização cuidado e educação, o que possivelmente deter-
como se fosse um dos jargões do modismo peda- mina que as educadoras manifestem esse discurso,
gógico, o que leva a resultados justamente opostos mas fica claro que ainda há muito a se fazer para
ao que se pretende30. que seja realmente superada a visão tradicional e
Já os planos de reuniões expõem o inves- dicotomizada de educação e cuidado.
timento na formação continuada, mas não foi
possível identificar como se dão essas atividades,
e percebe-se que temas de saúde são trabalhados CONSIDERAÇÕES FINAIS
de forma pontual, possivelmente com pouca
repercussão no trabalho. Sabe-se que a mudança A construção dos saberes e práticas que
das práticas depende de uma mudança de integrem cuidar e educar na atenção infantil é
concepções, o que não ocorre de forma automá- um grande desafio, a ser superado com o apoio
tica. A construção de uma nova compreensão das várias disciplinas que se incumbem de estudar,
sobre o papel do educador na creche só pode refletir, construir, propor e avaliar os conheci-
ocorrer mediante o compromisso individual e mentos e as ações voltadas à promoção do desen-
grupal em repensar suas práticas e o que as volvimento infantil. Este é o caminho para não
mobiliza. Quanto a isto, a coordenadora pedagó- cair no reducionismo que culmina na atenção par-
gica demonstra um movimento no sentido dessa cial à criança: agregar contribuições das diferen-
reconstrução, mas também reconhece dificuldades tes áreas do conhecimento, para a construção de
concretas que enfrenta, como os problemas de um atendimento integrado e global a ela.

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Abstract: To promote children’s health is to guarantee quality in the care given, in order to
provide their integral development. The day-care center is a place where children live great
part of their days, justifying the attempt to understand how this care is offered to them. The
general objective of the present study was to characterize the aspects related to the implementation
of health care in a day-care center, and the specific objective was to identify the caregivers’
perceptions and the institutional proposal concerning the child health care. Interviews were
carried out with four teachers and the pedagogical coordinator of a public municipal day-care
center in the city of São Paulo, and institutional documents were analyzed. The caregivers’ discourse
revealed that the integration of education and care seems to be a characteristic of the work in the
day-care center, but many factors made this integration difficult, such as the personnel’s deficient
formation in relation to care, particularly that in the health area, and the overload of activities. In
view of these difficulties, questions concerning the possibility to effectively accomplish this
integration arose. Education still appears as the main focus of the teachers’ work, and care seems
to be something inevitable since the child is very dependent. Therefore, care actions remain
restricted to the children’s body and are emphasized only when they are considered as activities to
be taught, aiming at the child’s independence. The institutional proposal identified in documents
presents gaps concerning the effective inclusion of care as an independent category that is inherent
in the caregivers’ professional function. In conclusion, the study points to the need to continue
improving the construction of appropriate proposals to this level of childhood assistance, with the
support of other knowledge areas that perform childcare.

Key words: Child health. Day-care centers. Child education. Primary health care. Pediatric nursing.

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Enviado em 08/08/2006
Modificado em 21/09/2006
Aprovado em 27/09/2006

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