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A Exaptação
Um conceito da biologia evolucionista que pode ser útil para entender a
mentalidade "Maker" tão integral à impressão 3D atual é o de exaptação1, um
fenômeno que ocorre quando um determinado traço biológico que
desempenha determinada função é cooptado para uma função diferente,
tendendo a evoluir naquela direção. Assim como as penas primitivas, usadas
para regulação térmica, acabaram sendo cooptadas para facilitar planagem e
voo, se cooptaram os grudentos laquês de cabelo para facilitar a aderência da
peça impressa na mesa. Assim como a proteína alfa-cristalina, usada no
metabolismo do sistema regulatório dos primeiros seres, acabou cooptada para
preencher o tecido transparente da córnea ocular 2, o espaguete de nylon usado
em roçadeiras para cortar grama foi derretido nas impressoras 3D para fabricar
peças e utensílios. De fato, até na arqueologia e história por vezes se cita
"exaptação" para ilustrar inovações tecnológicas da humanidade a partir de
objetos que desempenhavam outras funções, e mesmo para tempos modernos
há artigos e publicações que resgatam este termo 3. Isso ocorre porque a
exaptação é um exemplo ilustre de uso criativo e livre de algo já existente, ou
pelo menos até que mecanismos de controle que impedem reuso e inovação
como Digital Rights Management, copyright e patentes metam o pé na frente
— algo que os cientistas que começaram a usar o videogame Playstation 3 da
Sony como supercomputador para seus clusters de processamento descobriram
da pior maneira, quando a empresa bloqueou este uso por uma atualização.
Dito isto tudo, o mercado Maker no qual a impressão 3D se insere está longe de
ser harmonioso e sem falhas. Quando se tem uma única instituição ou um
pequeno número de instituições controlando um espaço tecnológico, se tem
também a imposição de uma visão única — uniformidade. Além disso, todo o
conhecimento — geralmente restrito e reservado aos "favorecidos" - é
internamente consistente e completo. Mas no mercado maker em que a
experimentação, variedade e desvio da norma são encorajados, as mesmas
forças de mercado que tornaram o padrão da e3d inescapável fazem com que
carretéis de filamento de impressoras 3D de diferentes fabricantes tenham
diâmetros diferentes, furos diferentes, características diferentes e forçam
fabricantes de impressoras a adotarem encaixes para esses carretéis o mais
genérico possíveis, ao invés de otimizados para qualidade e eficiência espacial.
Até mesmo quando as medidas parecem "padronizadas" ocorrem desvios da
interpretação do padrão (ou mesmo de qualidade pura e simples) que
dificultam o uso harmonioso de fontes diferentes — como no caso da
impressora 3d open-source Graber i3, largamente vendida no Brasil por diversos
fabricantes mas em muitas variedades distintas, não especificadas, no corte do
MDF ou acrílico. No caso dos materiais de filamentos, a grande maioria dos
produtores brasileiros não coloca a composição por medo de concorrência, sem
se dar conta que há muitas aplicações para as quais esta informação é essencial
— apesar de esse não ser um exemplo representativo do mercado "Maker"
porque ele pressupõe abertura e transparência. Além disso, por sua própria
natureza controladora, as empresas mais industriais costumam ter contratos
prolongados e relação estreita com o cliente, facilitando expedientes como
reciclagem de carretéis (um dos raros pontos positivos da Stratasys 2). Existe uma
iniciativa entre os próprios fabricantes e comerciantes ligados à impressão 3D
(em sua maior parte, empresas pequenas e médias) para resolver este problema,
envolvendo padronizações de medidas, regras para informação ao cliente,
expedientes de reciclagem e proteção do consumidor, mas ainda tímida e sem
site próprio, consistindo no momento de fórum e grupo de whatsapp. Torçamos
para que uma iniciativa como essa cresça o suficiente para trazer soluções ao
ecossistema!
Outros casos são típicos do ecossistema. Se você já se perguntou por que óleos
vegetais, daqueles vendidos em mercadinhos, não são usados em maquinário já
que costumam ser mais baratos e parecem também cumprir a função de
"lubrificar" algo, geralmente a substância culpada por isso é a glicerina, ou
glicerol. É um líquido sem cor, sem odor e de gosto doce solúvel em água e
higroscópico. Aqui se situa o principal problema (embora não o único); uma das
funções de lubrificantes finos em peças de máquinas é evitar que água e
oxigênio ataquem o material. Existem outros problemas como a possível
formação de impurezas em altas temperaturas (a glicerina se transforma em
acroleína), mas é suficiente dizer que usar óleos comestíveis nas peças delicadas
de um equipamento de controle fino não é uma boa idéia, e mesmo assim se
alastrou na comunidade Maker a idéia de usar óleo de canola no interior do
tubo do hotend ou no filamento PLA com a finalidade de lubrificar a passagem
do filamento, visto que o PLA tem uma tendência maior que outros materiais a
aderir às paredes. O óleo de canola tem certa vantagem legítima aqui que é um
"ponto de fumaça" alto, mas é facilmente substituível por óleos lubrificantes
finos para máquinas de mesma característica, como "óleo Singer" ou silicone
lubrificante de esteira.
Para piorar, a barra roscada só é presa por baixo e pela rosca ao quadro
da impressora. O extremo superior da barra gira em falso, solto na parte
de cima.
As barras lisas, cuja retidão é maior, são consideravelmente mais grossas
que as barras roscadas - 8mm contra 5mm de diâmetro.
1. https://pt.wikipedia.org/wiki/Cauda_longa
Note 2. http://www.stratasys.com/recycle
3. https://hackaday.com/category/hackaday-columns/fail-of-the-week-
hackaday-columns/
O que aconteceria caso Greg não tivesse usado uma ferramenta acessível como
o OpenSCAD? Historicamente, é muito difícil tratar "e se", mas podemos ter
uma evidência notável, ainda em 2014 , com um extrusor de excelência técnica
que foi muito aclamado em fóruns e é usado em impressoras open-source
brasileiras, o Alex Extruder.
Por outro lado, o Lucas Extruder foi muito mais do que apenas um derivativo.
Além das obrigatórias melhorias pontuais no projeto, Lucas Corato, um
arquiteto brasileiro, criou um projeto que misturava várias boas idéias de
diversos extrusores do mercado, incluindo os "bits" (pedacinhos)
intercambiáveis e a desmontagem rápida dos componentes para manutenção.
O extrusor pode ser usado com ou sem sensor de nivelamento, com filamentos
de 3mm ou 1,75mm, com praticamente qualquer hotend do mercado, e
resolveu muitos problemas, enumerados em sua entrada. Não à toa, sua
popularidade, expressa nos "curtir" (158) e "adicionar à coleção" (208), foi
enorme.
Note Referências:
Isso nos leva ao próximo ponto: já que estamos tratando de um serviço feito a
partir de geometrias arbitrárias de modelos de computador, qual é a melhor
maneira de cobrar por este serviço, de modo a que haja um balanço ótimo
entre consumo e produção?
Figure 12. Calculadora Cammada, um ótimo ponto de partida para saber como
cobrar por sua impressão.
A calculadora do Cammada tem ainda a (óbvia?) vantagem de ser perfeitamente
integrada ao serviço que fazem, com detalhes como os descontos progressivos
para volumes maiores. No entanto, isso não faz dele o único meio de cobrar,
nem o universalmente aceito. Antes de explicar por quê, é necessária uma breve
digressão: precisamos falar sobre economia!
Vale dizer, como uma observação final, que isso de maneira nenhuma significa
que o cálculo do trabalho (os custos) não deva ser feito. Pelo contrário, nenhum
negócio sobrevive de "intuições", e os custos dizem o valor mínimo de renda
necessário para sobrevivência, assim como saber quanto se lucra é essencial
para sustentação do negócio, tanto no pagamento de contas quanto nos
investimentos futuros. Mas a consideração do valor subjetivo indica que é
sensato manipular o botãozinho giratório do lucro esperado — para baixo ou
para cima — de acordo com a expectativa do cliente.
Fechando parênteses
Voltando aos problemas da cobrança da calculadora do Cammada, a primeira
dificuldade consiste no fato de o serviço se basear em cobrança
por volume (cm3). O principal ingrediente das impressões 3D é o material da
impressão — no caso das impressoras FFF, o plástico, e ele é quase
universalmente vendido em carretéis por quilo, ou seja, por peso (ou massa).
Não é um obstáculo intransponível porque quando se tem a densidade exata
do material, a transposição de um para o outro é direta: tendo o volume em
cm3, basta multiplicar pela densidade para se obter o peso gasto. Para facilitar
mais ainda, os números de peso e volume são geralmente bem próximos, de
modo que um dá a idéia do outro: água tem 1 g/cm 3, ABS tem 1,04 g/cm3, e PLA
geralmente está entre 1,21 a 1,26 g/cm3.
Mas cada etapa adicional, ainda que trivial, contribui negativamente para um
fator que é constantemente desprezado pelos produtores: a estimativa
independente de custo pelo consumidor. Quem vai gozar dos benefícios e
funcionalidade da peça impressa é ele, e portanto seria ele quem ditaria, a
priori, seu valor; atrapalhar esta previsão constitui um obstáculo, inclusive
porque ele precisa colocar na balança o custo antes mesmo de escolher a
solução ótima entre várias tecnologias e produtores. Numa situação ideal, o
cálculo desse custo — o valor para o consumidor - seria ou previamente
conhecido ou mais simples e direto possível, a complexidade intrínseca e
variável sendo tratada pelo produtor sem repassar decisões técnicas ao cliente.
Quaisquer complexidades refletidas no preço podem até trazer maior economia
ao consumidor, mas dificultam que o cliente trate os diferentes preços de forma
consistente e consiga traçar um plano de longo prazo, com custos facilmente
calculáveis. Um administrador de empresas pode preferir um serviço mais caro,
mas com custo das peças intuitivo e de cálculo simples, por simples questão de
encaixe fácil no seu plano de orçamento.
No serviço cammada, o dilema entre volume e peso não se torna problema pois
a densidade é um dos campos de entrada e a conversão é feita
automaticamente pela interface. Nem todos os modos de cobrar terão, porém,
tais facilidades. Ainda considerando as variáveis a entrar na cobrança, o
cammada não trata fatores como o plástico extra das estruturas de arcabouço
(suporte, bainha, etc.), nem a energia elétrica gasta nas impressões, nem o
tempo e trabalho de acabamento, inclusive por serem custos a princípio
parcialmente imprevisíveis ou, como a energia, dependentes de fatores externos
como localização.
Tempo é dinheiro
Pegando carona na crítica da subjetividade da cobrança dos serviços, existe
outro equívoco feito com bastante frequência no ecossistema de impressão sob
demanda, que é a classificação do tempo de serviço como custo do produtor e
não do cliente. Em outras palavras, quanto maior o tempo que o serviço leva,
mais é cobrado ao consumidor. Percebe o problema? O consumidor não
deseja que o serviço demore — atribui valor negativo a isso - e ainda paga
um preço maior. O costume parece vir da mais antiga ocupação de produção
em CNCs subtrativas, em que o cliente pertencia a chão de fábrica com muito
mais proximidade e participação do processo de fabricação e portanto muito
mais envolvimento nas demoras associadas. O mercado mais de massa,
concorrido e comoditizado dos serviços de impressão 3D no entanto pouco
tolera essa literal inversão de valores, e produtores com impressoras mais
rápidas ou prazos que não passem a impressão subjetiva de penalidade acabam
conquistando mais os clientes.
De qualquer jeito, reter um cliente é essencial, e o "não" sempre pode ser dito
de uma maneira a resolver seu problema. Se a forma tem erros, é inadequada
para impressão, ou é de qualquer outro modo impalatável para o serviço, ter
um expediente que resolva o problema — ainda que seja por terceiros — pode
agradar o cliente, potencializar o serviço e ainda aumentar o lucro, se o serviço
adicional — como retoque na modelagem 3D, ou uso de outra tecnologia de
impressão 3D mais consistente com a finalidade da peça - for oferta do próprio
profissional.
Para muitos casos, uma malha com erros simples enviada pelo cliente
pode ser consertada por softwares de conserto de malha automático ou
serviços de nuvem gratuitos (azure 3d print service, makeprintable, etc.)
que realizam essa tarefa rapidamente e permitem que o serviço seja
executado. Tenha sempre em mente que isso é acostumar mal o cliente e
o tiro pode sair pela culatra, quando ele enviar um modelo com erros
que não são consertáveis de forma automática e se recusar a contratar o
conserto. Outro problema, pertinente aos serviços de nuvem, é que há
problemas legais em disponibilizar modelos sob copyright para terceiros
sem permissão expressa e sem contrato de confidencialidade com esses
terceiros.
Tanto por sua ligação com o Movimento Maker, quanto por seu caráter feito
praticamente sob medida para projetos tecnológicos de médio investimento, o
crowdfunding parece ideal para a impressão 3D[[FEITO crowdfunding]] e
também é fonte de muitos projetos open-source, visto que a possibilidade de
ter algo reusável e modificável no final, e ainda independente da trajetória
específica da empresa, torna-se um importante ponto de publicidade e
atratividade para angariar contribuidores. Muitos projetos de impressoras 3D
inovadoras em sua época, como a impressora SLA Form1, a SLA/DLP B9
Creator e a FFF brasileira open-source Metamáquina surgiram de crowdfunding.
Hoje já se tornou cômica a forma com que praticamente todo dia há algum
projeto novo de impressora 3D nos sítios web de crowdfunding, assim como a
contrastante e cada vez mais popular máxima: "nunca compre impressora 3D de
financiamento coletivo!".
Figure 13. O financiamento (completado com sucesso) da brasileira
Metamáquina no website de financiamento coletivo Catarse já em 2012.
Mas como qualquer fenômeno de inovação econômica e social, o
crowdsourcing em geral e o crowdfunding em particular não estão isentos de
percalços, tanto para quem está do lado dos contribuidores quanto para quem
oferece seus projetos em uma plataforma dessas.
Claro que conhecer o lado dos clientes também é indispensável para o produtor
interessado em utilizar do financiamento coletivo, no mínimo por uma questão
de viabilidade do projeto e publicidade. Os dois lados estão colaborando em
conjunto para o projeto chegar à sua resolução, o que ainda evidencia que
harmonia de interesses e comunicação são essenciais.
Por fim, há muito mais o que dizer sobre financiamento coletivo do que caberia
em um livro, é uma nova dinâmica econômica que ainda tem muito a oferecer, e
muito o que amadurecer na sociedade moderna. Esta pequena introdução tem
a intenção mais de apresentar um conceito do que realmente oferecer
caminhos, já que tais caminhos, na verdade, ainda estão sendo traçados.