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O Universo Maker

A Exaptação
Um conceito da biologia evolucionista que pode ser útil para entender a
mentalidade "Maker" tão integral à impressão 3D atual é o de exaptação1, um
fenômeno que ocorre quando um determinado traço biológico que
desempenha determinada função é cooptado para uma função diferente,
tendendo a evoluir naquela direção. Assim como as penas primitivas, usadas
para regulação térmica, acabaram sendo cooptadas para facilitar planagem e
voo, se cooptaram os grudentos laquês de cabelo para facilitar a aderência da
peça impressa na mesa. Assim como a proteína alfa-cristalina, usada no
metabolismo do sistema regulatório dos primeiros seres, acabou cooptada para
preencher o tecido transparente da córnea ocular 2, o espaguete de nylon usado
em roçadeiras para cortar grama foi derretido nas impressoras 3D para fabricar
peças e utensílios. De fato, até na arqueologia e história por vezes se cita
"exaptação" para ilustrar inovações tecnológicas da humanidade a partir de
objetos que desempenhavam outras funções, e mesmo para tempos modernos
há artigos e publicações que resgatam este termo 3. Isso ocorre porque a
exaptação é um exemplo ilustre de uso criativo e livre de algo já existente, ou
pelo menos até que mecanismos de controle que impedem reuso e inovação
como Digital Rights Management, copyright e patentes metam o pé na frente 
— algo que os cientistas que começaram a usar o videogame Playstation 3 da
Sony como supercomputador para seus clusters de processamento descobriram
da pior maneira, quando a empresa bloqueou este uso por uma atualização.

Muitos desses mecanismos de aderência à mesa são "exaptados" de soluções


de mercado de massa que têm as propriedades necessárias para funcionar bem,
e por serem produzidos em série em processos industriais, acabam sendo uma
opção bem mais barata; as molas usadas em extrusores e mesas aquecidas, por
exemplo, são praticamente idênticas às que vêm nos pregadores comuns de
plástico — mas tais pregadores são tão mais baratos que vale mais a pena
comprar um pacote deles e jogar a parte plástica fora do que ter que
encomendar as molas específicas, que ainda são difíceis de achar.
Figure 1. À esquerda e à direita, duas molas de compressão para mesa
aquecida. Entre elas, uma mola de pregador comum de cozinha, com
praticamente as mesmas medidas e propriedades mecânicas e elásticas (o
pregador de onde foi retirada aparece acima). O conjunto de quatro molas de
compressão, encontrável no exterior, custa 3 euros (medidas: diâmetro interno
4.5, externo 7.55, comprimento 15mm, 6 voltas) mais frete. O conjunto de 24
pregadores de plástico, cada um com uma mola, é encontrado em qualquer
supermercado nacional por preço equivalente a 5 euros.
Note Referências:

1. Gould, S. J. (1991). Exaptation: A crucial tool for evolutionary


psychology. Journal of Social Issues, 47, 43-65.

2. Jester JV (2008). "Corneal crystallins and the development of


cellular transparency". Seminars in Cell & Developmental
Biology. 19 (2): 82—93.

3. Innovation Through Exaptation


- http://timkastelle.org/blog/2010/05/innovation-through-
exaptation/

O Complicado Mercado Maker: o Bom, o Mau e o


Feio
Se há algo que pode ser dito sem equívocos sobre a época atual, é que a
indústria obtusa e conservadora não entende o mercado Maker. Uma sugestão
gritante disso é a dificuldade de achar peças de máquinas no varejo, disponíveis
apenas no atacado, dificultando a vida dos entusiastas de impressão 3D (nada
de long tail no ramo industrial, aparentemente1). Outra evidência independente
é a mentalidade "sucesso do iPhone": virtualmente todas as empresas do ramo
de fabricação agem como se achassem que o que falta é um "jeito genial" de
tornar as impressoras 3D tão fáceis quanto um eletrodoméstico, como
aconteceu com o iPhone e em parte com o computador. Existem dois
problemas com essa visão — uma é ela contextualizar a relação entre
fabricante, vendedor e cliente como uma relação necessariamente vertical e
hierárquica, que tem as "decisões" feitas pelo fabricante e a "escolha" feita pelo
cliente. Quando você tem 100 designs de extrusores alternativos para sua
impressora 3D popular compartilhados no site thingiverse, a maioria deles
superior ao original, você perceberia que essa suposta verticalidade, ou
hierarquia, não existe. A segunda é não entender a função de uma "fábrica
pessoal" e a relação psicossocial dela com o consumidor deste tipo de
dispositivo. O "consumidor" de uma ferramenta como um martelo não é só um
consumidor, é um maker. Ele quer usá-la da maneira que precisar e construir
coisas com ela e isso pode envolver até "exaptações" da ferramenta. Quanto
mais versátil o martelo for, melhor, mesmo que possa haver acidentes com essa
versatilidade. Os riscos de martelar um dedo, cair em cima do pé ou ainda ser
usado como uma arma são aceitáveis ou até, pasmem, desejáveis (sob ameaça,
um martelo pode ser um jeito efetivo de se defender). Se você faz um martelo à
prova de acidentes, bem leve, de plástico, atóxico, acolchoado e com trava de
segurança, será apenas um brinquedo e apenas crianças irão consumir. E não só
isso: um instrumento maker transforma o consumidor em produtor, ou na nossa
analogia, a criança em adulto. Portanto, mesmo as crianças que compram seu
martelo de brinquedo crescerão e precisarão de martelos "de verdade". Esse
efeito é tanto maior quanto maior for o ecossistema de suporte, e as empresas
que conseguem ver isso, como as de insumos e peças para impressoras 3D,
estão crescendo explosivamente. Tudo incentiva a abertura — se você vende
peças pra impressoras 3D, é interessante elas serem compatíveis com o máximo
de modelos do mercado, e se você vende impressoras 3D, é interessante elas
terem peças de substituição baratas e facilmente encontráveis no mercado. A
fabricante de hotends e3d deixa todos os seus designs open-source, e não é
coincidência que tenham se tornado o padrão efetivo de mercado. Isso não é só
uma semelhança com o "mercado aberto de PCs" versus o antigo "mercado
fechado da Apple", é uma gigantesca extrapolação da antiga abertura dos PCs 
— afinal, ninguém fabricava seus próprios PCs em casa.

Dito isto tudo, o mercado Maker no qual a impressão 3D se insere está longe de
ser harmonioso e sem falhas. Quando se tem uma única instituição ou um
pequeno número de instituições controlando um espaço tecnológico, se tem
também a imposição de uma visão única — uniformidade. Além disso, todo o
conhecimento — geralmente restrito e reservado aos "favorecidos" - é
internamente consistente e completo. Mas no mercado maker em que a
experimentação, variedade e desvio da norma são encorajados, as mesmas
forças de mercado que tornaram o padrão da e3d inescapável fazem com que
carretéis de filamento de impressoras 3D de diferentes fabricantes tenham
diâmetros diferentes, furos diferentes, características diferentes e forçam
fabricantes de impressoras a adotarem encaixes para esses carretéis o mais
genérico possíveis, ao invés de otimizados para qualidade e eficiência espacial.
Até mesmo quando as medidas parecem "padronizadas" ocorrem desvios da
interpretação do padrão (ou mesmo de qualidade pura e simples) que
dificultam o uso harmonioso de fontes diferentes — como no caso da
impressora 3d open-source Graber i3, largamente vendida no Brasil por diversos
fabricantes mas em muitas variedades distintas, não especificadas, no corte do
MDF ou acrílico. No caso dos materiais de filamentos, a grande maioria dos
produtores brasileiros não coloca a composição por medo de concorrência, sem
se dar conta que há muitas aplicações para as quais esta informação é essencial 
— apesar de esse não ser um exemplo representativo do mercado "Maker"
porque ele pressupõe abertura e transparência. Além disso, por sua própria
natureza controladora, as empresas mais industriais costumam ter contratos
prolongados e relação estreita com o cliente, facilitando expedientes como
reciclagem de carretéis (um dos raros pontos positivos da Stratasys 2). Existe uma
iniciativa entre os próprios fabricantes e comerciantes ligados à impressão 3D
(em sua maior parte, empresas pequenas e médias) para resolver este problema,
envolvendo padronizações de medidas, regras para informação ao cliente,
expedientes de reciclagem e proteção do consumidor, mas ainda tímida e sem
site próprio, consistindo no momento de fórum e grupo de whatsapp. Torçamos
para que uma iniciativa como essa cresça o suficiente para trazer soluções ao
ecossistema!

A Teoria, a Prática, o Ruído e o Sinal


Um outro aspecto negativo do movimento Maker é em relação à não-
conformidade do conhecimento: o mesmo espírito de rebeldia, a mesma
informalidade, o mesmo experimentalismo e a mesma abertura a pessoas de
todos os tipos de formações diferentes traz também um "caos" de teorias com
muito menor uso de conhecimento formal e organizado, mais erros, equívocos,
desentendimentos e opiniões disfarçadas de afirmações de fatos. Essa é uma
característica que talvez seja irredutível, inerente ao próprio processo. Isso não
quer dizer que não possa ser mitigada, esta obra sendo exatamente uma
tentativa de criar um roteiro científico com sentido para os iniciantes e até
veteranos em impressão 3D.

O pragmatismo sem embasamento e a teoria capenga, faltante ou equivocada


resulta em tentativas e experimentos perdulários; se você não entende que
numa FFF o que faz o filamento ser extrudável é estar em estado de transição
vítrea e funcionar como êmbolo de si mesmo em uma seringa imaginária,
limitando os materiais que funcionam com a tecnologia, você pode acabar
perdendo seu tempo testando usar estanho de solda na impressora 3D, um
material que passa imediatamente do estado sólido para o líquido.

Outros casos são típicos do ecossistema. Se você já se perguntou por que óleos
vegetais, daqueles vendidos em mercadinhos, não são usados em maquinário já
que costumam ser mais baratos e parecem também cumprir a função de
"lubrificar" algo, geralmente a substância culpada por isso é a glicerina, ou
glicerol. É um líquido sem cor, sem odor e de gosto doce solúvel em água e
higroscópico. Aqui se situa o principal problema (embora não o único); uma das
funções de lubrificantes finos em peças de máquinas é evitar que água e
oxigênio ataquem o material. Existem outros problemas como a possível
formação de impurezas em altas temperaturas (a glicerina se transforma em
acroleína), mas é suficiente dizer que usar óleos comestíveis nas peças delicadas
de um equipamento de controle fino não é uma boa idéia, e mesmo assim se
alastrou na comunidade Maker a idéia de usar óleo de canola no interior do
tubo do hotend ou no filamento PLA com a finalidade de lubrificar a passagem
do filamento, visto que o PLA tem uma tendência maior que outros materiais a
aderir às paredes. O óleo de canola tem certa vantagem legítima aqui que é um
"ponto de fumaça" alto, mas é facilmente substituível por óleos lubrificantes
finos para máquinas de mesma característica, como "óleo Singer" ou silicone
lubrificante de esteira.

Outro caso sintomático de falta de informação é a recorrente busca,


especialmente em grupos de discussão e fóruns de impressão 3D, de
reutilização do plástico das garrafas de refrigerante, o PET (polietileno
tereftalato), para fabricação de filamento de impressão 3D. O raciocínio é
saudável: tais garrafas — e outros utensílios feitos do mesmo material — 
representam um enorme desperdício da civilização moderna e um problema
ambiental, pois simplesmente são usadas, descartadas e terminam em lixões, só
nos últimos anos começando a serem recolhidas para reciclagem. As
impressoras 3D de baixo custo estão aí fazendo uso útil e eficiente de vários
termoplásticos, por que não reusar o plástico das garrafas nessas máquinas? O
diabo, já diria o provérbio, mora nos detalhes. O plástico de tais utensílios, para
começar, é repleto de dopantes e impurezas que precisam ser filtrados e
lavados no processo. Plantas imensas de processamento, com sua
própria pegada de carbono e impacto ambiental, são necessárias para tal
reciclagem, em que depois da lavagem e prensagem, ainda é necessário uma
etapa de trituração em flocos, extrusão em grãos e finalmente extrusão dos
grãos para uma forma utilizável, como um utensílio ou candidato a filamento de
impressão 3D. Mas aí mora outro problema, pertinente às propriedades do
material: apesar de ser um termoplástico com vários ciclos possíveis de
derretimento e solidificação, o PET tende à cristalização, isto é, formação de
padrões atômicos regulares que deixam a substância rígida e quebradiça. No
processo industrial este fenômeno indesejado é evitado com o resfriamento
rápido do plástico, o que evita que as moléculas se organizem em cristais, mas
este resfriamento rápido seria caro e difícil de implementar em uma impressora
3D. Em resumo, a reciclagem de garrafas PET para impressão 3D parece não ser
viável, ou no mínimo um desafio para um profissional experiente do ramo de
plásticos e não para discussões desinformadas do próprio processo de
reciclagem em fóruns. Para informação, existe uma variedade do PET, o PETG ou
PET glicol, utilizada como filamento para impressão 3D que não cristaliza, mas
seu processo de fabricação, mais caro que o do PET, já o cria como PETG e não
a partir de PET comum.

Por último, um dos casos mais curiosos de desinformação no meio Maker é a


desinformação em relação ao próprio meio. O exemplo mais notável se expressa
no design da impressora 3D Prusa i3 do projeto reprap. Olhando-se a
impressora ativa de perto e vendo a movimentação do carro no sentido vertical,
se percebem características dignas de estranheza:

 A movimentação do carro se assenta em dois pares independentes de


suportes, presos em paralelo. Um de barras roscadas, que se movimenta,
e um de barras lisas, por onde o carro escorrega. Por que a redundância?
Não seria mais palatável simplesmente apoiar em um par de barras
roscadas?

 A barra roscada não é totalmente reta. De fato, o processo de fabricação


desses componentes, ou até mesmo o transporte e distribuição, não
raramente gera uma ligeira curvatura, visível a olho nu sob inspeção
cuidadosa.

 Para piorar, a barra roscada só é presa por baixo e pela rosca ao quadro
da impressora. O extremo superior da barra gira em falso, solto na parte
de cima.
 As barras lisas, cuja retidão é maior, são consideravelmente mais grossas
que as barras roscadas - 8mm contra 5mm de diâmetro.

Esse quebra-cabeça leva muitos a concluir, sem pesquisar, que tais


características são simplesmente erros de projeto, erros que precisam ser
consertados, claro. As "soluções" para o problema são variadas, mas devido à
trivialidade de modelar tal peça e da facilidade geométrica de encaixar algo no
topo do quadro, os modelos mais frequentes implementam um orifício para
manter a rotação da barra roscada sempre no mesmo lugar, às vezes com
encaixe para rolamento para sugerir maior reflexão.

O problema desta "solução", claro, é que trata um problema que não existe. As


impressoras 3D são projetadas desde o início pra tirar vantagens dos
componentes baratos e inclusive tratar seus pontos negativos. Barras roscadas,
sejam elas de 5mm ou 8mm, são, como já foi dito, susceptíveis a curvaturas e
projetadas mais para forças de tração, não de compressão. Por outro lado,
barras lisas são por natureza extremamente retilíneas e resistentes a curvaturas.
Essa é a razão da aparente redundância, que na verdade é uma separação de
tarefas: cumpre às barras roscadas movimentar o carro verticalmente, enquanto
que as barras lisas servem para guiar o carro numa trajetória perfeitamente
retilínea. Para assegurar que a curvatura das barras roscadas não interfira muito,
elas têm diâmetro menor, e não têm ponto de fixação superior pois isso daria
maior força de contraposição à curvatura.

Que é exatamente o que a "solução" desinformada faz, cria um ponto de apoio


extra para a barra roscada que a faz ficar em tensão constante com as barras
roscadas. Isso aumenta o desgaste das peças, aumenta o chamado "Z wobbling"
(variações do Z) e, claro, leva a impressões piores. O contrário do efeito
advogado pelos projetistas da "solução".
Figure 2. A reinvenção da roda quadrada - algumas das (inúmeras) modificações
desinformadas para a Prusa i3 no Thingiverse pra solucionar o problema
(inexistente) da barra roscada solta. Nota: algumas variações da prusa ainda
igualam os diâmetros da barra, usando barra roscada de 8mm.
Embora raramente, o teste desinformado pode suprir resultados e resultar em
algo genuinamente inovador. É possível fazer uma analogia com o processo
evolutivo: mutações são erros de cópias de genes, e quase sempre são
prejudiciais ao organismo visto que seu DNA já está adaptado ao ambiente por
muitas gerações. Mas algumas raras vezes esse erro de cópia resulta em um
gene que funciona melhor que o anterior, e com essa vantagem de
funcionamento ele contribui para a sobrevivência e reprodução do indivíduo, se
alastrando pela população. Na reprodução, em parte, essa analogia quebra:
estamos tratando de experiências domésticas, ou em ambientes "de garagem"
ou pequena empresa. Aquela inovação legítima na maioria dos casos não tem o
incentivo para ser documentada cientificamente, nem submetida a escrutínio
formal, e raras vezes chega a se traduzir em produto. Em especial as falhas pois
são tidas como motivos de vergonha e não são muito comentadas — uma
notável exceção sendo a coluna "Fail of the Week" do sítio web Hackaday3.
Algumas vezes, com sorte, será descrita ou implementada de modo a que
outros possam repeti-la e a idéia se espalhe. A chance é baixa, mas a
"reinvenção da roda" acontecendo em paralelo massivamente às vezes
compensa estatisticamente as baixas chances e oferece algo de novo.
Notas:

1. https://pt.wikipedia.org/wiki/Cauda_longa
Note 2. http://www.stratasys.com/recycle

3. https://hackaday.com/category/hackaday-columns/fail-of-the-week-
hackaday-columns/

Por outro lado…


Há outros contextos do processo maker mais propícios às inovações e
descobertas. Um deles é a frictionless innovation, já mencionada na introdução.
Nesse caso temos um produto (software, modelo tridimensional, hardware, etc.)
já existente ao qual o maker faz uma pequena melhoria. O produto não tem
restrições de uso ou modificação e tipicamente tem novas versões com o
tempo; torna-se do interesse daquele maker ter a melhoria incorporada nas
novas versões, no mínimo para não ter o trabalho de reaplicá-la. Ele se torna
compelido a incluir sua modificação no ciclo de vida daquele produto, e junto
com outros colaboram com pequenas melhorias que, em número, o tornam
muito melhor.

Um exemplo ajuda a clarear o conceito. Vamos explicar mais pra frente as


peças, mas um dos primeiros extrusores de impressoras 3D reprap a aparecer,
com as partes que fazem o mecanismo de aprisionamento do filamento,
sustentação do motor e do hotend sendo impressas em plástico, foi o "Wade’s
Geared Nema17 Extruder", pelo usuário Wade. Ele o criou para ser usado nas
impressoras 3D Darwin (a primeira do projeto reprap, criada por Adrian Bowyer)
ou Mendel (a primeira criada por Josef Prusa). Ele usava um motor NEMA17
como os dos eixos, diferente do extrusor da Darwin em que foi baseado que
usava um NEMA14.

Um pouco como era de se esperar, o design é relativamente simples, cantos


retos, poucas curvas. Estamos ainda no início do projeto reprap.
Figure 3. Wade’s Geared Nema 17
Extruder: http://www.thingiverse.com/thing:1794. Note a data: 2010. Já de início,
a licença usada era a open-source GPL (mesma do kernel Linux). Sendo tão
primordial, teve 22 variantes no thingiverse ("22 remixes").
É um design funcional e o fato de ter redução no tracionamento (ou seja,
engrenagens adicionais ligadas à rotação do motor até os dentes que
empurram o filamento) era essencial para a época, em que se usavam motores
relativamente fracos (por volta de 1 a 3 kgf.cm de torque de retenção, quando
hoje em dia é usado pelo menos 4 kgf.cm) e reduzir a velocidade com
engrenagens aumenta o torque aplicado.

Um usuário ativo nos fóruns do projeto reprap e no site thingiverse na época,


GregFrost, achou que o design poderia ser melhorado, e botou as mãos na
massa. Usando o software open-source OpenSCAD, redesenhou todo o extrusor
com 9 melhorias numeradas, a nona sendo "adicionadas curvas sensuais" - algo
que reflete tanto o acesso a ferramentas melhores, quanto a caprichos maiores
de projeto. Nomeou o extrusor dele de "Accessible Wade’s Extruder", pra não
deixar de dar crédito ao Wade, mas o extrusor, que teve enorme adoção,
acabou sendo conhecido como "Greg’s Wade Extruder" (‘extrusor do Wade do
Greg’).
Figure 4. O Greg’s Wade Extruder, até hoje muito usado, na forma de variações,
em Grabers vendidas em kit no mercado brasileiro. Ele resolveu uma série de
problemas e encaixes para a época, sendo um pouco mais compacto e mais
propício à manutenção e ainda tem "curvas sensuais" (palavras do autor). Note
que os furos da engrenagem são o logotipo do projeto reprap!
Apesar de o extrusor do Greg aparecer com menos derivações que o Wade (19
contra 22) no site thingiverse, ele teve muito mais sucesso. Muitas delas foras
do site, ou ainda no próprio thingiverse mas não contabilizada, e todas mais
usadas nos modelos comerciais. Uma razão desse sucesso foi a ferramenta
escolhida por greg: o OpenSCAD, open-source e multiplataforma, podia ser
baixado de graça ao invés de custar milhares de dólares como os modeladores
3D da época. Fácil de usar e simplificado ao extremo, permitia fazer não só
peças de máquina de medidas exatas com facilidade como ganhou até o
privilégio de ser a base para os hoje famosos designs "customizáveis" no
thingiverse.

Esta pequena diferença funcionou praticamente como uma medida de


acessibilidade, visto que permitiu a usuários de diversos sistemas operacionais,
e sem envolvimento prévio com a indústria de modelagem ou investimento de
muito dinheiro, tivesse acesso a fazer modificações em modelos 3D. A facilidade
de modificações pesa porque o formato 3D cru utilizado, o STL, pode sim ser
modificado diretamente, mexendo em arestas, vértices e superfícies; mas
quanto mais complexo e elaborado o design, quantas mais etapas para
construí-lo, mais difícil se torna essa modificação direta, tornando necessário
que o interessado em modificar tenha acesso aos passos "fonte" do modelo, às
operações que o criaram, essas geralmente gravadas em um formato próprio do
modelador, como "SLDPRT" do SolidWorks ou "DWG" do AutoCAD. O
OpenSCAD usa um formato-fonte próprio, .scad, que é um simples e legível
arquivo-texto com comandos, como um código-fonte de programação. A
"compilação" desse arquivo pelo programa é que gera a forma 3D; se você quer
modificar algo na forma, é muito mais fácil mexer nesse código. Isso desatou
um nó enorme no processo, pois muitos interessados em modificações e
aprimoramentos nos designs existentes tinham acesso ao fonte por causa de
licença open-source mas não a modificá-lo visto que o formato de arquivo era
proprietário e necessitava de uma ferramenta restrita e geralmente cara.

Uma dessas modificações veio em 2012, de Jonas Kuehling. Utilizando os


mesmos fontes .scad ele melhorou o design e fez o dele incorporando
modificações pontuais de outros, e também se tornando enormemente popular
e dando origem a nada menos de 88 derivações contabilizadas! E se tornando
o extrusor do Wade do Greg do Jonas.
Figure 5. O extrusor do Wade do Greg do Jonas, com contribuições do
Stoffel, http://www.thingiverse.com/thing:18379. Quando o design é open-
source, o autor nunca permanece no anonimato!
Lembra-se que falamos da trajetória do grupo ReprapBR? Aqui os caminhos se
cruzam. O mesmo Alain Mouette que enviou o primeiro e-mail para o grupo
aparece agregando mais um vagão ao agilíssimo trem da frictionless innovation:

Figure 6. O extrusor do Wade do Greg do Jonas do Alain com contribuições do


Stoffel, http://www.thingiverse.com/thing:40642. Chega, né? Extrusor AJGW está
de bom tamanho! Nessa figura as "origens" do modelo aparecem no quadrinho
à direita.

Quando vem a fricção


Patentes, especialmente as consideradas "bem escritas", são um estorvo
incomensurável, um golpe de prejuízo incalculável contra o progresso da
tecnologia, pois bloqueiam um design / projeto / invenção e às vezes todo um
campo da tecnologia de progredir por sua duração que é, grosso modo, de
vinte anos. Foi o caso da impressão 3D FFF com a Stratasys, e outros casos
históricos em que a tecnologia "emperrou" por décadas por causa delas são
conhecidos, como o barco a vapor.1 Este progresso incremental que ocorreu
com os extrusores também ocorre com as patentes, mas com atrasos de anos
para a chegada no mercado e quantias imensas de dinheiro jogadas fora com
os registros na "guerra de pequenos incrementos", contribuindo com os altos
preços das tecnologias e do custo de pesquisa e desenvolvimento. 2
Uma vantagem, por assim dizer, das patentes é que elas obrigam o inventor a
detalhar com pormenores e ilustrações a sua idéia, de modo que quem constrói
algo semelhante possa ser processado — e quem quiser construir algo
semelhante, uma vez expirada a patente (que não pode ser renovada),
conseguiria. Um exemplo notável disso é a iniciativa do advogado de patentes
novaiorquinho Martin Galese, que resgata patentes expiradas para transformar
em modelo digital e compartilhar no site thingiverse3.

Mas patentes não são a única fricção que atrapalham a agilidade da frictionless


innovation. Nem mesmo licenças de uso livres são o fator principal para a
modificação e reuso. Como foi ressaltado no caso do extrusor do Greg, um
grande salto de "modificabilidade" que aconteceu foi a mudança do design
para a ferramenta OpenSCAD, ela mesma livre / open-source, e com um
formato tão simples e compreensível que são possíveis modificações sem usar a
ferramenta e hoje em dia existem até interfaces web para ela.

O que aconteceria caso Greg não tivesse usado uma ferramenta acessível como
o OpenSCAD? Historicamente, é muito difícil tratar "e se", mas podemos ter
uma evidência notável, ainda em 2014 , com um extrusor de excelência técnica
que foi muito aclamado em fóruns e é usado em impressoras open-source
brasileiras, o Alex Extruder.

Figure 7. Alex Extruder, http://www.thingiverse.com/thing:220493


Sob todos os pontos de vista, a excelência técnica do extrusor é inegável. Tem
mais plástico nos pontos de stress mecânico do extrusor. Tem encaixes finos
permitindo a movimentação desimpedida da dobradiça e o encaixe dos
rolamentos e parafusos. E sendo um design feito por um brasileiro, vem com
variações com encaixes para diversos hotend do mercado nacional.

No entanto, tendo sido feito por um engenheiro mecânico com a poderosa


ferramenta a que está habituado, o Solidworks, ferramenta de modelagem
sólida, a licença livre de pouco adiantou. O projeto tem apenas duas derivações,
ambas sendo a reconstrução e extensão em ferramentas diferentes.

Figure 8. Lucas Extruder - http://www.thingiverse.com/thing:378330 - e KA


extruder - http://www.thingiverse.com/thing:252556 - as duas únicas derivações
do Alex Extruder, ambas consistindo em reconstrução e extensão do Alex
Extruder em ferramentas distintas.
O KA Extruder foi uma tentativa de transposição do Alex Extruder para o
OpenSCAD. Mas, como se pode notar pelos comentários na página do design,
ele tinha várias "pontas soltas", era feito para um padrão de filamento que
começava a apresentar sua obsolescência (3mm de espessura) e não tinha
encaixes para as peças mais populares do mercado. Por isso, mesmo com sua
licença e ferramentas livres, e por ser apenas a reimplementação de um design
já existente com menos variedades, não teve derivações.

Por outro lado, o Lucas Extruder foi muito mais do que apenas um derivativo.
Além das obrigatórias melhorias pontuais no projeto, Lucas Corato, um
arquiteto brasileiro, criou um projeto que misturava várias boas idéias de
diversos extrusores do mercado, incluindo os "bits" (pedacinhos)
intercambiáveis e a desmontagem rápida dos componentes para manutenção.
O extrusor pode ser usado com ou sem sensor de nivelamento, com filamentos
de 3mm ou 1,75mm, com praticamente qualquer hotend do mercado, e
resolveu muitos problemas, enumerados em sua entrada. Não à toa, sua
popularidade, expressa nos "curtir" (158) e "adicionar à coleção" (208), foi
enorme.

No entanto, novamente, o profissional acostumado a mexer em modelagem 3D


usou a ferramenta a que está acostumado. No caso essa foi a
ferramenta Sketchup, um modelador de malha (como o Blender) que, apesar de
ser disponível em Windows e Mac OS X e ter versões gratuitas (com limitações
de elementos), ainda assim é software proprietário e, portanto, restritivo.
Novamente, é revelador que um design assim tivesse apenas 3 derivações, 1
delas sendo a versão seguinte do próprio autor e duas outras sendo leve
modificações de malha a partir do STL final, e não do arquivo-fonte de Sketchup
disponibilizado na página.

Figure 9. As derivações do Lucas Extruder, versão 1 (a versão 2 não teve


derivações).
O fluxo e evolução dos designs do thingiverse e outros sítios web de
compartilhamento serve como uma fábula com moral para os interessados no
compartilhamento de projetos e participação do mercado Maker: acessibilidade
é o óleo das engrenagens da inovação. E até mesmo a escolha de ferramentas
em que é feito pode ser um entrave inesperado contra o sucesso do seu
empreendimento. Isto é algo a se observar pois este equívoco é feito até pelo
mais bem-intencionados; o famoso chaveiro Marvin, peça usada para testar
impressoras 3D, foi também feito em SolidWorks.

Note Referências:

1. 2003 Lawrence R. Klein Lecture, The Case Against Intellectual


Monopoly — M Boldrin, DK Levine — International Economic
Review, 2004 — Wiley Online Library.

2. Leiva, Fernando, "Innovations as a Network of Ideas: Assessing


Patent Values through Citations", Working Paper (2007).
3. http://www.popsci.com/diy/article/2013-08/get-3-d-printer-
designs-expired-patents

Usando sua impressora 3D pra ganhar dinheiro


Vimos na história da reprap e da impressão 3D no Brasil que a impressão de
baixo custo vem acontecendo desde 2009 e, no Brasil, os hobbyistas
começaram por volta de 2012/2013. Quem começou a aprender impressão 3D e
a cobrar por peças já teve uma vantagem na largada, e se soube aproveitar a
oportunidade de ser um early adopter (pioneiro) e acumular este tempo de
lucro, já transformou seu negócio em aquilo que chamamos de "birô de
impressão", um serviço de impressão 3D que tipicamente trabalha com várias
tecnologias e materiais diferentes. Em 2013, o difícil era achar os primeiros
clientes pois a mentalidade de procurar a impressão 3D "de baixo custo" para
projetos ainda era incipiente. Hoje, já é muito mais fácil, mas por outro lado a
impressão 3D de baixo custo, especialmente a de FFF, já se popularizou tanto
que é muito difícil oferecer um diferencial. O mercado está saturado e a
saturação continua crescendo. Num mercado desses acaba somente
"sobrevivendo" quem consegue trabalhar com uma margem de lucro baixa ao
mesmo tempo em que oferece vantagens, consistência, rapidez e qualidade
acima da média para seus clientes.

Dizer isto é necessário para contextualizar o leitor sobre as dificuldades que


pode enfrentar, não desencorajá-lo. Afinal, uma impressora 3D é uma pequena
fábrica pessoal, algo que produz objetos reais úteis, funcionais ou esteticamente
desejáveis; transformar esta fábrica em uma fonte de sustento é uma inferência
lógica óbvia.

Como anunciar e onde


O primeiro dilema ao candidato à impressão sob demanda é como encontrar e
atrair os clientes. O primeiro pensamento é, claro, montar uma loja para vender
suas impressões. Como um serviço ainda não estabelecido no mercado de
massa, normalmente é dispendioso demais comprar ou alugar um escritório em
local físico de comércio para a administração das vendas, além de
desnecessariamente limitar a clientela. A escolha, então, penderia para o lado de
uma loja virtual, o que exigiria um esforço de hospedagem, escolha de um
software adequado para gerenciar a loja, publicidade adequada para ela,
cadastro dos serviços, fotografia do portfolio e redação por advogado de um
contrato de serviço prevendo todas as condições, preços, prazos e reveses da
transação. Existem serviços que se dispõem a gerenciar a maioria desses
detalhes para o comerciante, geralmente através de um pagamento mensal ou
de uma parte do lucro — exemplos brasileiros são loja integrada e loja virtual
do pagseguro, entre outras. Mas existe algo que vai além — serviços web
específicos para impressão 3D, e que cumprem o papel de aproximar o
produtor local do consumidor das impressões.

Nesses serviços, cada proprietário de impressora 3D cadastrado é um "hub",


uma loja ou birô de impressão. A interface web facilita ao máximo que o
produtor cadastrado exponha seu portfolio, detalhe as tecnologias e materiais
de que dispõe, e aceite pedidos. Ao mesmo tempo, ela facilita também ao
consumidor que ache serviços dentro da faixa de preço que procura e
principalmente, produtores locais, numa busca por proximidade — já que
estamos falando de objetos físicos e frete pode ser considerável.

Um sistema de placar/reputação completa o funcionamento desses sistemas.


Produtores que ganham altas notas dos consumidores vão aparecendo
primeiros nas buscas e em todo momento a reputação do produtor estará
visível.

O portal de impressão 3D mais popular no mundo, e com funcionamento no


Brasil, o 3DHubs é o melhor exemplo disso. Fica com 15% da venda, fazendo
seu serviço ser apreciado pela mediação rápida e competente, pela facilidade
em se realizarem tais negócios e até pelos ajudantes de serviço de frete. Uma
vantagem enorme desse tipo de serviço é que os termos de contrato estão pré-
estabelecidos, afastando dores legais do caminho.

Para assegurar um sistema com bastante concorrência, o 3D Hubs pede ao


produtor que entre com dados na interface para que haja o cálculo automático
do preço de qualquer peça, de acordo com o volume em mm 3 dela. Assim,
quando o consumidor procura produtores em sua área e já tem o modelo da
peça, pode simplesmente ver os diferentes preços já explicitados na busca do
sistema.
Figure 10. Exemplo de busca no serviço 3DHubs, após o upload de modelos
tridimensionais em formato STL pela interface web. As estrelinhas indicam a
reputação de cada loja encontrada perto de Campinas, SP, e à direita o cálculo
automático do preço cobrado.
Quem entende da técnica já notará algo "fora da ordem" aí: o preço ser
calculado automaticamente não parece certo. Uma peça pode ter muitas
geometrias possíveis, das mais fáceis às mais difíceis. Veremos na parte sobre
fatiamento desta obra que existem muita maneiras diferentes de imprimir uma
mesma peça, com quantidades maiores e menores de material. Você pode
precisar de suportes, muitos suportes. O software (de desktop) utilizado para
isto se chama fatiador e dá estimativas do plástico gasto, tempo e custo da
impressão, algumas vezes bem distantes da estimativa do serviço web. Algumas
formas serão impossíveis em certas tecnologias de impressão 3D, e outras
exigirão bastante acabamento ou retoques. Isso não entra automaticamente no
preço, em nome da facilitação das compras. Algumas vezes o que acaba
acontecendo é que o cliente faz o pedido e o hub não aceita por não
compensar, ou aceita e faz um trabalho ruim, tendo sua nota diminuída.
O 3DHubs não é o único. Em franco crescimento e popularização existe o
serviço brasileiro Cammada, que tem uma interface mais amistosa. A busca
equivalente no Cammada permite até cálculo automático de frete:

Figure 11. Busca no Cammada de serviços de impressão 3D perto de Campinas-


SP após o envio de modelos 3D em formato STL.
O cammada permite ao produtor uma certa flexibilidade no cálculo automático
como descontos conforme o volume aumenta. Ainda assim, não há nada que
avalie estruturas adicionais, dificuldade do modelo e demais atributos,
dependendo de negociação posterior.

Isso nos leva ao próximo ponto: já que estamos tratando de um serviço feito a
partir de geometrias arbitrárias de modelos de computador, qual é a melhor
maneira de cobrar por este serviço, de modo a que haja um balanço ótimo
entre consumo e produção?

Como cobrar por impressões


A citação do serviço brasileiro Cammada é providencial: além de fornecer o
cômodo serviço de intermediador de fabricação digital, seus fundadores
procuram também gerar informação e mindshare para a tecnologia — um
cenário aliás ideal para a produção de conteúdo open-source -, e uma de suas
contribuições já bastante difundidas ao público é a calculadora Cammada, uma
aplicação web elegante que sugere e calcula o modo e preço de cobranças de
acordo com uma série de variáveis.

Figure 12. Calculadora Cammada, um ótimo ponto de partida para saber como
cobrar por sua impressão.
A calculadora do Cammada tem ainda a (óbvia?) vantagem de ser perfeitamente
integrada ao serviço que fazem, com detalhes como os descontos progressivos
para volumes maiores. No entanto, isso não faz dele o único meio de cobrar,
nem o universalmente aceito. Antes de explicar por quê, é necessária uma breve
digressão: precisamos falar sobre economia!

Economia: Valor-Trabalho versus Valor Subjetivo


Podemos chamar a esse antagonismo de A Guerra dos Carlos, devido aos seus
principais expoentes serem variações deste nome (Karl Marx e Carl Menger).
Tratam de como atribuir valor econômico a algo resultante da atividade
econômica. Valor é definido como a medida de um benefício provido por um
bem ou serviço a um agente econômico (e infelizmente o uso cotidiano em
português não ajuda nesta delimitação conceitual, pois comumente usam a
palavra como sinônimo de "preço" ou ainda "custo").

A mais antiga teoria de valor, a teoria do Valor-Trabalho, que vem de Adam


Smith, David Ricardo e Karl Marx, postula que o valor de uma mercadoria é
determinado pela quantidade total de trabalho socialmente necessário requerido
para sua produção. Por socialmente necessário, entenda-se todo o trabalho
anterior para produzir matérias-primas, máquinas e outras mercadorias
associadas. Na transposição para a situação que analisamos, o valor do
produtor de impressão 3D deriva somente da quantidade de filamento
utilizado, dos preços das impressoras, da energia elétrica e outros custos
envolvidos, mais o lucro que é equivalente ao trabalho de transformação
daqueles custos em um novo produto.

A outra perspectiva, o Valor Subjetivo, tendo surgido principalmente no século


XIX com William Stanley Jevons, Léon Walras e Carl Menger mas tendo sido
mencionada também ainda na Idade Média e Renascença europeia, diz que o
valor de um bem ou serviço é determinado não por alguma propriedade
inerente, nem pela quantidade de trabalho necessária para produzi-lo, e sim
pela importância que um agente individual lhe atribui para a realização de seus
fins desejados. Uma situação hipotética comumente usada para ilustrar o
conceito é o indivíduo que cava um enorme buraco em seu quintal, aluga
escavadeiras, paga para removerem todo o entulho e terra que tirou, e tenta
alugar o buraco ou vender a propriedade em que o escavou: não terá sucesso
mesmo que cobre preço bem abaixo dos custos que teve porque, apesar de
todo o trabalho genuíno exercido, ninguém enxerga valor nesse buraco.

Transpondo para a nossa situação, de acordo com esta teoria, o consumidor


estaria disposto a pagar mais a um dos serviços, entre dois serviços de
impressão que se utilizam dos mesmos filamentos, mesmas impressoras 3D e
exercem a mesma quantidade de trabalho mas diferem em detalhes como a
qualidade percebida ou a consistência de preços e prazos.

Em economia, é contencioso dizer que alguma dessas teorias está "provada" ou


ainda que "refuta" a outra, além de estarem associadas a correntes ideológicas
que trazem consigo bagagens fora do escopo desta obra. Desta forma, é
suficiente dizer que, para a análise que fazemos aqui, adotamos
especificamente a perspectiva do Valor Subjetivo do Trabalho para as
conclusões. Seguimos o Carl e não o Karl. Esta informação facilita inclusiva para
quem discordar do posicionamento usado nesta obra, por tornar as premissas
explícitas.

Vale dizer, como uma observação final, que isso de maneira nenhuma significa
que o cálculo do trabalho (os custos) não deva ser feito. Pelo contrário, nenhum
negócio sobrevive de "intuições", e os custos dizem o valor mínimo de renda
necessário para sobrevivência, assim como saber quanto se lucra é essencial
para sustentação do negócio, tanto no pagamento de contas quanto nos
investimentos futuros. Mas a consideração do valor subjetivo indica que é
sensato manipular o botãozinho giratório do lucro esperado — para baixo ou
para cima — de acordo com a expectativa do cliente.
Fechando parênteses
Voltando aos problemas da cobrança da calculadora do Cammada, a primeira
dificuldade consiste no fato de o serviço se basear em cobrança
por volume (cm3). O principal ingrediente das impressões 3D é o material da
impressão — no caso das impressoras FFF, o plástico, e ele é quase
universalmente vendido em carretéis por quilo, ou seja, por peso (ou massa).
Não é um obstáculo intransponível porque quando se tem a densidade exata
do material, a transposição de um para o outro é direta: tendo o volume em
cm3, basta multiplicar pela densidade para se obter o peso gasto. Para facilitar
mais ainda, os números de peso e volume são geralmente bem próximos, de
modo que um dá a idéia do outro: água tem 1 g/cm 3, ABS tem 1,04 g/cm3, e PLA
geralmente está entre 1,21 a 1,26 g/cm3.

Mas cada etapa adicional, ainda que trivial, contribui negativamente para um
fator que é constantemente desprezado pelos produtores: a estimativa
independente de custo pelo consumidor. Quem vai gozar dos benefícios e
funcionalidade da peça impressa é ele, e portanto seria ele quem ditaria, a
priori, seu valor; atrapalhar esta previsão constitui um obstáculo, inclusive
porque ele precisa colocar na balança o custo antes mesmo de escolher a
solução ótima entre várias tecnologias e produtores. Numa situação ideal, o
cálculo desse custo — o valor para o consumidor - seria ou previamente
conhecido ou mais simples e direto possível, a complexidade intrínseca e
variável sendo tratada pelo produtor sem repassar decisões técnicas ao cliente.
Quaisquer complexidades refletidas no preço podem até trazer maior economia
ao consumidor, mas dificultam que o cliente trate os diferentes preços de forma
consistente e consiga traçar um plano de longo prazo, com custos facilmente
calculáveis. Um administrador de empresas pode preferir um serviço mais caro,
mas com custo das peças intuitivo e de cálculo simples, por simples questão de
encaixe fácil no seu plano de orçamento.

No serviço cammada, o dilema entre volume e peso não se torna problema pois
a densidade é um dos campos de entrada e a conversão é feita
automaticamente pela interface. Nem todos os modos de cobrar terão, porém,
tais facilidades. Ainda considerando as variáveis a entrar na cobrança, o
cammada não trata fatores como o plástico extra das estruturas de arcabouço
(suporte, bainha, etc.), nem a energia elétrica gasta nas impressões, nem o
tempo e trabalho de acabamento, inclusive por serem custos a princípio
parcialmente imprevisíveis ou, como a energia, dependentes de fatores externos
como localização.

Este problema de custos é realmente difícil de tratar, e leva muitos profissionais


a simplesmente serem subjetivos em seus serviços, submetendo o cliente uma
etapa de orçamento em que o preço final e o tempo a levar é gerado de forma
a refletir a estimativa de dificuldade e custos que o profissional acha que vai ter
(uma perspectiva de valor-trabalho). Reiterando o que já dizemos, isto impede
que o cliente consiga comparar o serviço com outros e coloca incógnitas em
sua agenda. Uma maneira de amenizar isso é amortizar estas incógnitas, ou
seja, ter uma estimativa (mesmo que grosseira) dos custos totais das peças mais
refinadas e trabalhosas e das mais simples e calculáveis, de suas frequências no
serviço cotidiano, do lucro esperado e então traçar um preço médio de acordo
com um índice único e verificável, como o grama de filamento utilizado ou o
volume útil do modelo tridimensional. Um profissional pode portanto dizer ao
cliente que cobra 10 vezes o preço do filamento utilizado para impressão com
acabamento, e instrui, se preciso, o cliente a usar o mesmo fatiador pra calcular
com exatidão o preço. Não é o expediente mais simples do mundo, mas
funciona. Num mercado de grande concorrência, pedidos muito granulados e
pouca fidelidade de cliente como o cammada, no entanto, o produtor perderá
encomendas de itens mais simples e grosseiros pelo preço amortizado para
cima.

Tempo é dinheiro
Pegando carona na crítica da subjetividade da cobrança dos serviços, existe
outro equívoco feito com bastante frequência no ecossistema de impressão sob
demanda, que é a classificação do tempo de serviço como custo do produtor e
não do cliente. Em outras palavras, quanto maior o tempo que o serviço leva,
mais é cobrado ao consumidor. Percebe o problema? O consumidor não
deseja que o serviço demore — atribui valor negativo a isso - e ainda paga
um preço maior. O costume parece vir da mais antiga ocupação de produção
em CNCs subtrativas, em que o cliente pertencia a chão de fábrica com muito
mais proximidade e participação do processo de fabricação e portanto muito
mais envolvimento nas demoras associadas. O mercado mais de massa,
concorrido e comoditizado dos serviços de impressão 3D no entanto pouco
tolera essa literal inversão de valores, e produtores com impressoras mais
rápidas ou prazos que não passem a impressão subjetiva de penalidade acabam
conquistando mais os clientes.

Agregando valor ao camarote


Outro aspecto do serviço de impressão sob demanda é que ele está
inextrincavelmente atrelado a todo um workflow de produção. Para imprimir um
modelo, é preciso antes que ele seja criado digitalmente, seja por modelagem,
digitalização 3D ou qualquer outro processo. E é raro que o modelo cru como
saiu da impressora seja utilizado, acabamento ou ciclos reiterantes de
impressões de protótipos antes da versão final são frequentes. Existe um campo
aberto de opções que o profissional pode utilizar para agregar ao seu serviço,
se diferenciar no mercado e obter reconhecimento público e confiança,
potencializando seu lucro. O exemplo mais simples é agregar o serviço de
acabamento, mas combinar a impressão com modelagem ou retoques da peça
também é um serviço interessante — ainda mais contando que as diferentes
tecnologias de impressão 3D exigem e oferecem especifidades geométricas que
devem guiar o processo de modelagem, e esse conhecimento de interface
mostra melhor o seu valor, com as duas partes estando em harmonia.

Para o cliente, inclusive, agregar etapas necessárias à fabricação é ótimo — 


economiza pesquisa de mercado, economiza iterar entre diversos fornecedores
de serviço, agiliza e uniformiza o trabalho.

O maior revés da diferenciação e expansão e escopo do serviço é o conflito de


escopo e interesses em participar como um hub de serviços como o Cammada
e 3DHubs. Além de não terem precificadores automáticos para tais serviços
como têm para a impressão, o fato de serem intermediários obrigatórios em
cada parte do processo pode atrasar e prejudicar a interação e a viabilidade
financeira da transação.

Aprenda a dizer não


A tecnologia da impressão 3D é formidável — e o que se pode fazer com ela às
vezes parece ilimitado, ainda mais comparando com outras tecnologias de
fabricação, e o entusiasmo e a paixão pelo trabalho podem levar o profissional,
especialmente o iniciante, a achar que poderá produzir qualquer forma,
qualquer geometria com a mesma qualidade e facilidade, mas nada poderia
estar mais longe da verdade — que é a das severas limitações de formas de
qualquer tecnologia atual de fabricação digital. Birôs de impressão populares
que usam interface de importação de modelos tridimensionais por esse motivo
colocam verificadores automáticos de geometria que já podem de imediato
recusar um modelo por malha com erros, paredes finas e outros problemas, e
ainda dão um prazo de análise manual dos modelos importados sem erros para
o orçamento, tudo isso porque conhecer os limites da tecnologia é
importantíssimo — e, aliás, tais problemas devem necessariamente ser previstos
pelo contrato da transação, porque acontecerão! Fazemos uma análise dos
possíveis problemas e armadilhas nas seções de malhas, com grande parte do
material vindo de artigos dos próprios birôs educando os clientes sobre o que
funciona e o que não funciona na impressão 3D.

De qualquer jeito, reter um cliente é essencial, e o "não" sempre pode ser dito
de uma maneira a resolver seu problema. Se a forma tem erros, é inadequada
para impressão, ou é de qualquer outro modo impalatável para o serviço, ter
um expediente que resolva o problema — ainda que seja por terceiros — pode
agradar o cliente, potencializar o serviço e ainda aumentar o lucro, se o serviço
adicional — como retoque na modelagem 3D, ou uso de outra tecnologia de
impressão 3D mais consistente com a finalidade da peça - for oferta do próprio
profissional.

Resta dizer ainda que, no mercado comoditizado em que estamos, algumas


dicas bastante específicas se tornam úteis:

 Clientes com modelos tridimensionais prontos para imprimir muitas


vezes o terão em um formato proprietário diferente do que os fatiadores
aceitam, como SLDPRT (SolidWorks) ou SKP (Sketchup). O ideal é recusá-
los sempre quando a tarefa for de impressão, mesmo tendo o software
para manipular o arquivo. A razão é que a conversão para o formato de
impressão, que é uma malha — STL, AMF, 3MF — pode inserir erros que
tornam a impressão inviável, e isso se origina de uma modelagem de
baixa qualidade. Tais erros basais de modelagem devem ser corrigidos na
fonte, e o melhor jeito de assegurar isso é exigir o modelo já
"transformado".

 Para muitos casos, uma malha com erros simples enviada pelo cliente
pode ser consertada por softwares de conserto de malha automático ou
serviços de nuvem gratuitos (azure 3d print service, makeprintable, etc.)
que realizam essa tarefa rapidamente e permitem que o serviço seja
executado. Tenha sempre em mente que isso é acostumar mal o cliente e
o tiro pode sair pela culatra, quando ele enviar um modelo com erros
que não são consertáveis de forma automática e se recusar a contratar o
conserto. Outro problema, pertinente aos serviços de nuvem, é que há
problemas legais em disponibilizar modelos sob copyright para terceiros
sem permissão expressa e sem contrato de confidencialidade com esses
terceiros.

 Quando o produtor tiver o serviço agregado de retoque de uma


modelagem já existente, é praticamente obrigatório o uso da mesma
ferramenta em que ela foi feita. Isso porque, especialmente nas peças
mais complexas, os metadados do modelo como o histórico de
modificações é essencial para que um retoque não prejudique ou destoe
de outras partes do modelo. Em especial, ferramentas de modelagem
sólida — como Solidworks, Inventor, AutoCAD, FreeCAD — são mais
adequadas para retoques e reparos grandes e basais, enquanto
ferramentas que trabalham diretamente com malhas, como Sketchup,
Blender, Maya, ZBrush são eficazes apenas para modificações pequenas
ou bem localizadas, com grande chance de introduzir erros na malha.

 Se a forma é muito complexa — apesar de ser em um material só - e


você tem uma impressora FFF com apenas um extrusor, considere
adquirir uma outra impressora com dois extrusores para essas ocasiões.
A razão é que você poderá usar nela filamentos dissolvíveis que
permitem imprimir suportes removíveis por imersão no acabamento. Tais
filamentos, tanto por seu preço quanto por sua especificidade, tornam o
serviço consideravelmente mais custoso, mas muitos clientes privilegiam
a qualidade e complexidade da forma e pagarão o necessário. É um
diferencial valioso.

 Ferramentas: procure não se fiar nunca em apenas uma ferramenta.


Existem diversas ferramentas "ajudantes" e analíticas que aprimoram
bastante o workflow de fabricação e não têm equivalentes, ou têm
equivalentes inferiores mesmo nos softwares mais complexos e caros.
Muitas dessas ferramentas são open-source (meshlab, blender,
CloudCompare, FreeCAD, etc.) e outras ainda são proprietárias, mas
gratuitas (meshmixer, netfabb trial, 3D Builder, etc.), representando
apenas o custo do tempo de aprendizado. Aprender um pouco de cada
pode parecer desperdício de tempo mas compensa a longo prazo… E se
você deseja trabalhar com a impressão 3D, o longo prazo está implícito.

 Seja criativo e paciente. Aprenda habilidades extras no seu tempo para


complementar o serviço de impressão 3D, desde arte de acabamento,
pintura, reforço de partes, revestimento, modelagem, embelezamento,
ou qualquer outra coisa que pode imaginar. Pode ser um passatempo
cativante e uma hora se tornar o seu diferencial. As pessoas ainda estão
se acostumando à tecnologia em suas vidas, e as extrapolações delas, e a
busca por contratá-las, ainda são incipientes. Esteja também preparado
para os avanços da tecnologia: ela tem progredido a passos rápidos, e as
exigências dos clientes e massificação do mercado progridem do mesmo
jeito. Para continuar relevante, você tem que progredir no mínimo na
mesma velocidade — como a corrida da Rainha Vermelha no livro Alice
no País dos Espelhos de Lewis Carrol, em que para permanecer no mesmo
lugar era necessário correr o máximo que pudesse, e para ir a outros
lugares só correndo duas vezes mais rápido.

Financiamento coletivo (crowdfunding)


Crowdfunding, ou financiamento coletivo, é a prática de conseguir fundos
suficientes para iniciar um projeto angariando contribuições monetárias de um
grande número de pessoas pela internet. Geralmente envolve categorias de
"prêmios" que são dados às pessoas de acordo com suas contribuições, e que
envolvem as primeiras levas de produtos provenientes do início do projeto.
Crowdfunding é uma categoria particular de crowdsourcing (colaboração
coletiva), que é o processo de obtenção de serviços, idéias ou conteúdo
mediante a solicitação de contribuições de um grande grupo de pessoas. O
crowdsourcing surgiu com o Movimento Maker, com a idéia de viabilizar
projetos sem cair na armadilha de dependência de indústrias fechadas ou
grandes instituições financeiras. Alguns sites de crowdfunding de projeto
conhecidos são os estrangeiros kickstarter e indiegogo e os
brasileiros catarse e kickante, e de crowdfunding recorrente temos o patreon e
o apoia.se. O jeito pelo qual funcionam é exigir aos idealizadores de um projeto,
cadastrados em seu site, um vídeo mostrando o que pretendem e que produto
irão entregar, e os "prêmios" que serão dado aos investidores da idéia de
acordo com a quantia que investiram em uma data marcada no futuro, um dos
prêmios sendo o produto a ser obtido. O "produto" pode ser praticamente
qualquer coisa, itens científicos e tecnológicos são frequentes mas filmes
inteiros foram feitos, jogos de computador foram programados, campanhas
humanitárias arrecadaram dinheiro, causas políticas ganharam tração.

Tanto por sua ligação com o Movimento Maker, quanto por seu caráter feito
praticamente sob medida para projetos tecnológicos de médio investimento, o
crowdfunding parece ideal para a impressão 3D[[FEITO crowdfunding]] e
também é fonte de muitos projetos open-source, visto que a possibilidade de
ter algo reusável e modificável no final, e ainda independente da trajetória
específica da empresa, torna-se um importante ponto de publicidade e
atratividade para angariar contribuidores. Muitos projetos de impressoras 3D
inovadoras em sua época, como a impressora SLA Form1, a SLA/DLP B9
Creator e a FFF brasileira open-source Metamáquina surgiram de crowdfunding.
Hoje já se tornou cômica a forma com que praticamente todo dia há algum
projeto novo de impressora 3D nos sítios web de crowdfunding, assim como a
contrastante e cada vez mais popular máxima: "nunca compre impressora 3D de
financiamento coletivo!".
Figure 13. O financiamento (completado com sucesso) da brasileira
Metamáquina no website de financiamento coletivo Catarse já em 2012.
Mas como qualquer fenômeno de inovação econômica e social, o
crowdsourcing em geral e o crowdfunding em particular não estão isentos de
percalços, tanto para quem está do lado dos contribuidores quanto para quem
oferece seus projetos em uma plataforma dessas.

Para o lado dos clientes,

 …, ou, melhor dizendo, financiadores do projeto. Esse é o primeiro


problema e, apesar de abstrato, até filosófico, tem consequências
práticas bem pungentes. Os usuários pagantes de um projeto de
financiamento coletivo dificilmente se enxergam
como investidores ou financiadores e os próprios portais envolvidos não
ajudam nisso. Tudo fica parecendo uma simples compra de produto
existente. Não é mencionado o *risco* inerente a esses negócios exceto
bem no final, de forma obscura e em letrinhas miúdas. Se por um certo
lado a linguagem publicitária é tida como necessária para envolver e
convencer o usuário prospectivo, por outro lado seduz sem informar o
necessário. Isso se reflete nos próprios termos dos usuários, pois
raramente quem investe em tais projetos diz que financiou algo - a
palavra usada é "comprar", como se fosse só mais um brinquedo de
aliexpress que demorasse alguns meses para chegar.

 Muitos projetos — a maioria, aliás — atrasam a data de entrega dos


prêmios. Em 2012 um levantamento do portal kickstarter pela
CNNMoney verificou que 84% dos projetos atrasaram 1. Atraso não é a
mesma coisa que falha, certamente, com os projetos que realmente
falham sendo menos de 5%, mas se é algo com que se conta para
produção, o despreparo para isso pode acarretar prejuízos.

 Como se fosse uma nova Corrida ao Ouro, muitos projetos se aproveitam


da ingenuidade ou pouco conhecimento científico dos usuários e
prometem façanhas irrealizáveis e tecnologias inexistentes, um
novo ouro de tolos. Alguns exemplos são o "respirador artificial
compacto" Triton2 e o "extrator de água" Waterseer3. O logro do
Waterseer é ainda mais complexo pois o investidor não ganha um
prêmio, o resultado do projeto sendo entregue a "lugares na África" não
especificados, isto é, ainda espolia ardilosamente sentimentos
humanitários de quem dá o dinheiro! Tais projetos invariavelmente
mostram renderizações computadorizadas da situação que dizem almejar
ao invés de um protótipo funcional.

 No caso brasileiro, há a dificuldade adicional de frete e impostos. Na


hora do financiamento o frete é apenas estimado, e pode ser diferente
quando do envio para o Brasil. Algumas vezes o produtor não conhece
bem as regras alfandegárias para o país e envia o produto por exemplo
sem CPF, se arriscando a tê-lo barrado pela receita. Além disso, os
impostos a incidir podem ser bem salgados, possivelmente maiores que
de itens importados normalmente pois podem ser considerados itens de
finalidade industrial.

Claro que conhecer o lado dos clientes também é indispensável para o produtor
interessado em utilizar do financiamento coletivo, no mínimo por uma questão
de viabilidade do projeto e publicidade. Os dois lados estão colaborando em
conjunto para o projeto chegar à sua resolução, o que ainda evidencia que
harmonia de interesses e comunicação são essenciais.

Para o lado dos produtores,

 …a primeira observação a notar, e de novo abordando o aspecto


psicológico da questão, é que não existe prêmio por merecimento.
Devido à sua associação quase mística com o movimento Maker, à sua
aura de inovação e de dinheiro relativamente fácil para mentes brilhantes
realizarem seu potencial, é muito fácil cair na armadilha da
autoconfiança excessiva. E a primeira razão dessa armadilha é que o
campo das idéias, dos projetos, da excelência intelectual
é muito diferente do campo da logística, do comércio, da indústria, da
burocracia estatal e impostos, da publicidade e viabilidade de colocar
alguma coisa no mercado e ela ser competitiva. Nesse sentido se pode
dizer que há pouca diferença do financiamento coletivo e de
uma startup comum: é preciso ter um plano de negócios sólido,
fornecedores confiáveis e que cumpram seus prazos, é preciso adicionar
na conta os custos de muitos intermediários e peças e procedimentos
adicionais (eletrônicos e novos compostos podem ter que passar por um
bocado de certificações industriais e testes de regulações, por exemplo),
e não é surpresa que empreendedores de mercado mais falhem que
sucedam. Alguns projetos podem ainda ter sucesso, mas a falta de
planejamento para depois dele pode levar uma campanhia à
falência. Mesmo uma idéia genuinamente brilhante e inovadora pode
falhar, e falha — muito facilmente. Exemplos não faltam, um deles
sendo a impressora 3D estilo delta Tiko4, e um exemplo nacional sendo a
controladora de impressão 3D de escopo industrial "3DRoot"5. Em
comum entre esses dois projetos, aliás, é confiar demais na parte do
hardware e esquecer que o software (ou no caso o firmware da
controladora) é complexo e precisa de muito uso em campo pra ser
devidamente depurado e afinado, ainda mais quando não são usados
como base softwares maduros e testados como os do projeto reprap.

 Reforçando uma obviedade, o investidor ou cliente busca gratificação.


Isso não pode ser perdido de vista e se temos também os projetos de
financiamento coletivo que buscam o máximo possível ter seus prêmios
parecendo produtos finalizados de prateleira, temos o outro lado,
especialmente para projetos de cunho beneficente, comunitário ou
ecológico, de ser feita uma promessa ao investidor com prêmios pífios,
intangíveis ou desmotivadores de alguma forma. Por exemplo, um
hipotético financiamento coletivo para entregar um item que ajuda na
recuperação de câncer é uma causa humanitária muito bonita, mas quem
recebe tal ajuda? Poder-se-ia criar uma campanha sem especificar os
auxiliados e com prêmios consistindo de camisas "eu ajudei um doente
de câncer", ou pode-se dar a sensação de empoderamento ao
financiador permitindo que ele especifique o hospital a ganhar os itens
que ele financia. O segundo caso terá muito mais sucesso pela
gratificação que proporciona, e sendo um campo em aberto, muitas
soluções criativas podem ser inventadas para se ter sucesso na
campanha. No caso específico de campanhas de cunho político,
ideologias pesam bastante e o maior projeto de financiamento coletivo
de cunho não-lucrativo foi do advogado Lawrence Lessig para reformar
as regras de financiamento de campanhas políticas.6
 Uma vantagem do financiamento coletivo é que um dos modos de o
realizar — o mais frequente — é "tudo ou nada": o financiado estipula
uma quantia mínima a ser atingida para que o processo possa ter
sucesso, um prazo é criado (digamos, dois meses) e durante este prazo, a
campanha está aberta aos investidores. Passado o prazo, caso a quantia
mínima não seja alcançada, todo o dinheiro é devolvido. Ninguém sai
perdendo. Um produtor resoluto pode tentar obter o financiamento
outras vezes, e isso realmente acontece — certas campanhas só pegam
"tração" na segunda ou terceira vez que são tentadas, e daí migram para
o sucesso, como o bico de tungstênio de impressora 3D da dddmaterial 7.

 É educativo ao interessado no financiamento estudar os casos de falha


de entrega, mais que os casos de sucesso. Fiascos milionários com
quebra de contrato e intrigas pessoais como a impressora de
resina Peachy Printer8 podem acontecer com qualquer um, e mostram
bem a tensão e pressão pública que acometem um projeto desses. É
interessante ainda ver que mesmo com a fragorosa falha deste projeto, o
fato de a terem criado em regime open-source, com repositório no
github9, permitiu que o projeto fosse continuado na forma da YXE3D 1⁰, o
que nos leva ao próximo ponto.
Figure 14. A YXE3D, continuação da famosa - e infame - "Peachy Printer"
se utilizando do material de projeto open-source que já havia sido
disponibilizado. Foto de bigtreeworld em https://imgur.com/a/ViaAu.

 Se parte do objetivo do projeto é disseminar uma tecnologia, não só


vendê-la, vale muito a pena considerar anunciá-la como open-source (e
existem diversas licenças para escolher que permitem diferentes tipos de
controle), pois assim, mesmo com o projeto falhando, os usuários
pagantes terão uma "consolação" (que pode, no limite, evitar ou
amenizar um processo pesado, por exemplo) e uma chance de
continuidade por terceiros. Uma comunidade de usuários
progressivamente mais informada tem se importado bastante com este
detalhe em uma campanha, e ele serve como publicidade e inspirador de
confiança para investidores. A mentalidade open-source tem sido tão
influentes que existem portais de financiamento coletivo somente para
projetos desse tipo como o BountySource e FreedomSponsors11, e não
surpreendentemente, os portais convencionais também têm toda uma
seção dedicada a isso. Um portal web onde você pode escolher licenças
para seu produto de acordo com sua necessidade é
o Creative Commons, http://www.creativecommons.org. Note, entretanto,
que o conceito de "open-source" não permite nenhum tipo de proibição
de uso comercial, e licenças que fazem isso como CC-BY-NC não têm
apelo.

Por fim, há muito mais o que dizer sobre financiamento coletivo do que caberia
em um livro, é uma nova dinâmica econômica que ainda tem muito a oferecer, e
muito o que amadurecer na sociedade moderna. Esta pequena introdução tem
a intenção mais de apresentar um conceito do que realmente oferecer
caminhos, já que tais caminhos, na verdade, ainda estão sendo traçados.

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