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Motrivivência v. 26, n. 42, p.

281-292, junho/2014

http://dx.doi.org/10.5007/2175-8042.2014v26n42p281

O PAPEL DESINSTITUCIONALIZADOR DA
EDUCAÇÃO FÍSICA NA SAÚDE MENTAL

Fernando Teixeira dos Santos1


Mariana Pelizer Albuquerque2

RESUMO

O cuidado em Saúde Mental tem uma demanda de trabalho que preza pela integralidade
do indivíduo. Acredita-se que a Educação Física possa dar um papel substancial neste
processo. Este artigo se caracteriza como uma revisão bibliográfica com o objetivo de
promover uma reflexão acerca do papel desinstitucionalizador da Educação Física na
Saúde Mental, inferindo que várias possibilidades vêm surgindo, dando uma contribuição
política e social, visto que além da integralidade do indivíduo, os próprios espaços
para a sua prática vão além do espaço institucional. Porém, este processo depende
de atividades voltadas à superação de serviços puramente hospitalares e tradicionais.

Palavras-chave: Desinstitucionalização; Reforma Psiquiátrica; Educação Física.

1 Mestrando em Tecnologias, Educação e Comunicação. UFU, Uberlândia/Minas Gerais, Brasil.


E-mail: fernandotexsan@gmail.com
2 Mestre em Psicologia. Docente da Faculdade Católica de Uberlândia, Uberlândia/Minas Gerais, Brasil.
E-mail: maripeal@gmail.com
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INTRODUÇÃO manifestação cultural e social no indivíduo,


sendo uma atividade que pode somar ao tra-
Este artigo se caracteriza por uma tamento e à manutenção da Saúde Mental.
revisão bibliográfica sobre a importância Dentre as diversas áreas profissionais
da Educação Física na Saúde Mental. A que lidam com o ser humano, este trabalho
relevância de trabalhar tal temática se jus- é uma proposta de um recorte para a Edu-
tifica já que os cuidados à Saúde Mental, cação Física, que diante de seus estudos,
historicamente, passam a ter perspectivas mobiliza códigos e funções na busca por
que buscam lidar com o sujeito de forma possibilidades de organizar o cuidado em
integral e singular. A partir disso, entende- Saúde Mental, por meio da reinserção social,
mos que a Educação Física pode dar uma desinstitucionalização e humanização.
contribuição substancial a estes cuidados, Para este trabalho, realizamos uma
sugerindo, portanto, um tratamento voltado revisão bibliográfica de leituras que apro-
às práticas corporais, a fim de superar trata- ximam a Educação Física à Saúde Mental,
mentos tradicionais. a fim de discutir ações, elementos e carac-
Para tanto, iremos abordar o con- terísticas da Educação Física que releve a
texto da Saúde Mental no Brasil nos dias singularidade e cidadania do indivíduo,
atuais e analisar o que já tem sido estudado superando assim uma visão puramente
pela Educação Física, a fim de promover institucional, opressora ou tradicional.
discussões acerca das possibilidades e pers- Para tanto, buscamos discutir a Saú-
pectivas da interface entre estas duas áreas. de Mental no Brasil por meio de concepções
Todavia, devemos entender que por que superam a visão puramente hospitalar,
meio do movimento da Luta Antimanico- podendo aproximar às possibilidades da
mial e a oposição ao modelo assistencial Educação Física em suas propostas e regu-
hospitalocêntrico, promoveu-se a Reforma lamentação segundo conselho profissional.
Psiquiátrica que preza por singularidade, crí- Neste sentido, buscamos identificar como
tica ao tecnicismo e a superação do hospital é o contexto atual da Saúde Mental no
psiquiátrico (LOBOSQUE; SOUZA, 2006). Brasil, para em seguida abordar leituras
Acreditamos que esta crítica ao que discorrem acerca do papel e atuação da
tecnicismo abre a possibilidade de vários Educação Física neste cenário, com o intuito
elementos que servem como (co)adjuvante de promover uma discussão que legitima e
aos cuidados em Saúde Mental, entre elas aproxima a Educação Física aos cuidados
a Educação Física. da Saúde Mental.
Neste sentido, este trabalho tem A pesquisa se estruturou com a bus-
como objetivo iniciar uma reflexão acerca ca de artigos da base scielo com palavras-
do papel desinstitucionalizador da Educa- -chave: Atividade Física; Educação Física;
ção Física na Saúde Mental. Considerando Saúde Mental; Desinstitucionalização, e
que os cuidados à Saúde Mental têm uma também artigos, dissertações e obras que
demanda de tratamentos que despertam tratam das áreas de Educação Física e Saúde
as potencialidades e a integralidade do Mental de forma multi ou interdisciplinar.
indivíduo; a Educação Física, por meio de Os textos encontrados são discutidos ao
práticas corporais e corporeidade, promove a longo do trabalho, sendo confrontados com
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outras obras que são referências na interse- a implementação de um novo modelo as-
ção entre Educação Física e Saúde Mental. sistencial em Saúde Mental (LOBOSQUE;
Entendemos que estas discussões SOUZA, 2006).
se tornam relevantes no sentido de que são A lei nº 10.216/2001 ainda sugere
escassas as produções que alinhavam estes a participação de várias equipes profissio-
dois cenários, além da relevância social em nais e das famílias, podendo ser também
propor possibilidades ao tratamento de Saú- um grande objeto de estudo da Educação
de Mental com grande aplicabilidade, con- Física, bem como outras áreas do conheci-
tribuindo nos cenários da Saúde e Educação. mento, de forma interdisciplinar ou multi-
disciplinar, como por exemplo, as áreas da
enfermagem, terapia ocupacional, serviço
O contexto atual da saúde mental no Brasil social, entre outras.
Mesmo em instituições que se utili-
Segundo Gonçalves (2009), cal- zam de tratamentos tradicionais e de interna-
cula-se que atualmente há mais de 30 ção, há várias possibilidades de intervenção
milhões de pessoas que sofrem de algum por parte de um profissional da Educação
transtorno mental no Brasil, o que ocasiona Física, pois mesmo neste tipo de tratamento,
algum tipo de sobrecarga na família ou na ficam evidentes práticas inerentes ao corpo
sociedade que faz parte do convívio social humano em movimento, nas relações com
da pessoa com transtorno. seu mundo interno e externo (MELLO, 1989).
Está em vigor, atualmente, a Lei A própria internação pressupõe
nº 10.216/2001, que tem como objetivo necessidade de práticas corporais, devido
proteger pessoas portadoras de transtornos ao indivíduo estar em convívio com outras
mentais e redirecionar o modelo assistencial pessoas que apresentam características
em Saúde Mental (BRASIL, 2001). Esta me- ou transtornos semelhantes. O desafio
dida proíbe a construção de novos hospitais da Educação Física, portanto, é de prezar
psiquiátricos e insere os cuidados à Saúde pelos valores corporais dos movimentos
Mental no Sistema Único de Saúde – SUS individuais, contribuindo assim para o
(ANTUNES; QUEIROZ, 2007). desenvolvimento motor e para evidenciar
Porém, hospitais psiquiátricos ou a singularidade de cada indivíduo e suas
outras instituições de internação que já possibilidades com o corpo.
funcionavam antes da lei entrar em vigor, Nesse sentido, mundialmente, a
não são fechados imediatamente, mas co- área da Educação Física tem se preocupado
meça a haver a criação e manutenção de com o atendimento a essa clientela, bem
Centros de Atenção Psicossocial – CAPS e como na preparação de recursos humanos
Programas Saúde da Família – PSF, por meio para atuarem nessa área do conhecimento
do SUS, com atividades voltadas a oficinas, (WACHS, 2008).
e a consequente diminuição dos leitos de Abre-se, portanto, a possibilidade de
internação (ANTUNES; QUEIROZ, 2007). várias outras formas de tratamento para pes-
Essa diminuição também é fruto de ações soas com transtornos mentais, que quando
afirmativas e lutas antimanicomiais e de institucionalizadas são submetidas a formas
movimentos anti-psiquiátricos que propõe distintas de tratamento.
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Existem instituições de Saúde Men- puramente clínico e até mesmo com maus
tal que são contra a internação, enquanto tratos, considerando que historicamente o
outras são a favor. Foucault (2007) aborda saber psiquiátrico adquiriu certo monopólio
o contexto histórico do tratamento à Saú- à loucura, no qual promoveu um aparente
de Mental, como sendo oriundo de uma descaso e tratamento desumano (GRADELLA
cultura médica tradicional, que percebe o JUNIOR, 2002).
corpo do paciente como mero objeto de Com isso, é possível (re)pensar os
intervenção clínica, afirmando assim, que cuidados à Saúde Mental no hospital psi-
a internação é um modelo de tratamento quiátrico considerando que dentre as várias
excludente e opressor. possibilidades, a Educação Física pode ter
Por outro lado, a Reforma Psiquiátri- um papel fundamental.
ca vem com o objetivo de superar métodos Desta forma, fica evidente que há
possibilidades de intervenção profissional
tradicionais e prezar por tratamentos mais
da Educação Física dentro do hospital,
globais, que buscam a cidadania.
atendendo aos leitos da enfermaria de
Os autores Prazeres e Miranda
psiquiatria, sendo uma área que ainda
(2005) apontam que a Lei nº 10.216 dis-
pode ser muito estudada e discutida, a fim
corre sobre a necessidade de que a atenção
de que seus projetos terapêuticos também
ao portador psíquico deve ocorrer priorita-
contemplem as práticas corporais.
riamente em serviços não hospitalares. No
entanto, sabemos que os hospitais psiquiá-
tricos não tiveram um fechamento imediato, Educação Física e Saúde Mental
havendo então a prática de dois modelos
em cuidados à Saúde Mental: o modelo A prática regular de atividades físicas
proposto pela Reforma Psiquiátrica e o traz efeitos antropométricos, neuromontes e
modelo proposto pelo hospital psiquiátrico. metabólicos na vida humana. Esses fatores
Há, portanto, certo impasse em relação ao contribuem num consequente efeito na Saú-
hospital psiquiátrico e os novos serviços de Mental no processo de desenvolvimento
de saúde implementados, que segundo humano (MATSUDO et al., 2000). Enten-
a Reforma, deveria ser substitutos e não demos que o ser humano está em constante
complementares ao contexto hospitalar. processo de maturação e tem necessidade
Porém, é importante ressaltar que am- de relevar a manutenção de sua saúde. Pen-
bos os serviços estão inseridos no SUS. Sendo sando em um aspecto amplo e integral do
assim, “a existência do serviço substitutivo indivíduo, saúde envolve buscar condições
não garante a superação do hospital psiquiá- subjetivas de autoestima e autoimagem além
trico” (PRAZERES; MIRANDA, 2005, p.201). das questões pertinentes à manutenção dos
No entanto, a Reforma Psiquiátrica aspectos fisiológicos da vida. Portanto, a
afetou os hospitais de forma a gerar novas Saúde Mental está inserida nas questões de
modalidades assistenciais, modificando sua bem-estar e manutenção da vida.
estrutura de funcionamento (GOULART; A partir disso, também é importante
DURAES, 2010). Estas novas perspectivas ressaltar que todos são susceptíveis às (in)
vêm com visões e propostas mais huma- constâncias da Saúde Mental e, conse-
nizadas, em detrimento de um tratamento quentemente, a ansiedade, o sofrimento, a
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alegria, euforia, indiferença, dentre outros de um mero desvio de caráter ou conduta,


aspectos fazem parte da vida (SANTOS et para a ótica do transtorno mental, do qual
al., 2011). entendemos que também pode estar rela-
Todas estas condições psíquicas cionado às questões de cultura, valores,
e emocionais podem permear práticas visão de mundo e diversidade humana, em
corporais, demandando a necessidade da geral. Envolve, portanto, além de questões
inserção das atividades físicas como meio orgânicas e consequências físicas e psíqui-
de superação de sofrimentos psíquicos. cas, aspectos sociais, políticos, econômicos,
Arida et al. (2007), afirmam que legais e culturais (PRATTA; SANTOS, 2009).
existem inúmeras evidências que indicam Acerca da dependência química,
benefícios da atividade física na saúde geral Ledingham e Conatser (2011) afirmam que
do indivíduo. Outros trabalhos também para o professor de Educação Física, lidar
vêm sendo produzidos com pacientes com com questões do efeito do abuso de drogas
transtornos psiquiátricos, sugerindo um efei- com os indivíduos, é um desafio. No entan-
to positivo do exercício no tratamento e na to, deve-se trabalhar de forma conscientiza-
qualidade de vida e bem-estar desse público. dora e buscar elementos de discussão para
Arida et al. (2007) ainda enfatizam: tal conscientização por meio de pesquisas,
artigos relacionados e afins.
a necessidade do desenvolvimento de
Estes autores abordaram também a
trabalhos multiprofissionais entre psi-
quiatras, neurologistas e educadores discussão de Saúde Mental dentro do con-
físicos para o delineamento de abor- texto escolar, no componente curricular
dagens mais eficazes com o intuito de Educação Física Escolar. Estas discussões,
melhorar a qualidade de vida desses
portanto, podem (e devem) ser trabalhadas
pacientes (ARIDA et al., 2007, p. 95).
desde o cenário escolar até na atenção à
Além disso, a atenção à saúde vem saúde, sendo, além de objeto da Educação
passando por importantes transformações, Física, um trabalho de conscientização, de
sendo que, segundo Oliveira et al. (2006), o cidadania, presente nos setores da saúde
modelo historicamente centrado na referência e educação.
hospitalar passa a ser rompido por um novo Mesmo com tantos indicadores dos
modelo de atenção descentralizada. Este novo benefícios da Educação Física aplicados à
modelo é justamente a Reforma Psiquiátrica. Saúde Mental, entendemos que ainda há
Relevante também é tratar do fe- dificuldades de reconhecimento do profis-
nômeno da dependência química, que sional de Educação Física nesta área.
segundo Pratta e Santos (2009), é um grave e Reforçando as vantagens da Educa-
complexo problema de saúde pública. Com ção Física nesse campo, Ladvocat e Teves
isso, fica evidente a necessidade de trazer (2011) citam o fato de haver pesquisas que
reflexões acerca da dependência química evidenciam a atividade física como recurso
e questões pertinentes à saúde, especifica- terapêutico para a reabilitação psicossocial
mente, à Saúde Mental. do indivíduo em tratamento psiquiátrico.
Pratta e Santos (2009), evidenciam Estas abordagens estão cada vez mais
que, no decorrer da história da humanida- estudadas e pesquisadas tanto no cenário
de, o uso de substâncias psicoativas passa nacional quanto no cenário internacional.
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Entre estas pesquisas, é evidenciado para as diversas dimensões do humano


que as atividades físicas são cada vez mais (LADVOCAT; TEVES, 2011, p. 45-46).
encontradas em espaços, programas e pro-
jetos terapêuticos para pacientes da Saúde Mielke et al. (2009) abordam a
Mental. Por outro lado, outra pesquisa necessidade de se trabalhar a Saúde Men-
citada por estes autores, afirma que apesar tal entendendo o papel da Educação e a
da Educação Física conquistar cada vez demanda de fomento de estudos e pesqui-
mais seu espaço dentro da Saúde Mental e sas, visto que os serviços atuais de Saúde
estar pautada por regulamentações e porta- Mental podem estar sujeitos ao risco de
rias do Ministério da Saúde, geralmente o manicomialização, e que muitos profissio-
profissional de Educação Física ainda não nais trabalham ou trabalharam em hospitais
faz parte do corpo técnico das instituições psiquiátrico, ou tiveram uma formação vol-
de Saúde Mental. tada para cuidados puramente hospitalares.
Estes autores ainda citam um olhar Na interface entre Saúde e Educa-
dos demais profissionais da saúde ao pro- ção, fica evidente, portanto, a importância
fissional da Educação Física como uma política e social da Educação Física que,
área puramente voltada à educação em que mais uma vez, demonstra ter um papel
tem por objetivo “pedagogizar” o ambiente desinstitucionalizador ao sujeito, superan-
da Saúde Mental de forma a sistematizar do o tratamento psiquiátrico tradicional,
atividades como sendo um modelo de podendo dar uma visão e atenção de forma
integral ao sujeito.
escola. No entanto, devemos lembrar que
Mas para considerarmos a atividade
a educação não se limita apenas ao espaço
física neste contexto, é necessário cons-
escolar, mas
cientizarmos das mudanças nos modelos
atua na construção das relações entre os de cuidados à Saúde Mental, com a inten-
sujeitos, na cultura, na política, na eco- cionalidade de buscar desinstitucionalizar
nomia, ou seja, na forma de ser e de agir o indivíduo e substituir os manicômios por
de um determinado grupo. A educação novos dispositivos, como os Centros de
está presente na sociedade, permitindo
o processo de hominização, sem o qual
Atenção Psicossociais – CAPS. Estes são
o homem não se transforma em ser so- serviços que além dos cuidados à saúde,
cial, impossibilitando a vida em comum prezam por cidadania e (re)inserção social,
(LADVOCAT; TEVES, 2011, p. 45). e não têm como objetivo meramente ins-
titucionalizar o indivíduo, na perspectiva
Estes autores ainda colocam que: de tratá-lo visando sarar um transtorno
(LOBOSQUE; SOUZA, 2006).
Tanto na saúde quanto na educação Os CAPS têm a função de prestar as-
há pontos dinâmicos em que elas se
encontram, ou seja, há uma interseção
sistência direta nos cuidados à Saúde Mental
nas fronteiras dos conhecimentos que considerados graves e tem uma proposta
devem se aproximar, pois ambas tratam de autonomia aos usuários deste serviço
de pessoas. Uma visão míope desta liga- que está vinculado ao SUS (BRASIL, 2004).
ção entre estas áreas remete a um olhar
Neste sentido, o CAPS é referência
fragmentado para o sujeito, que escoa
no conceito de saúde como ausência de às crianças e adultos que sofrem de trans-
doença, pois se deixa de ter um olhar tornos mentais, tais como: neurose, psicose,
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incluindo transtornos relacionados a subs- destinando esta especialidade aos cuidados


tâncias psicoativas (álcool e outras drogas) de pessoas com transtornos mentais e de-
(WHACHS, 2008). pendentes químicos (CONFEF, 2012).
A equipe técnica mínima proposta Torna-se evidente, portanto, a
para os CAPS, conta com a presença de mé- relevância da inserção do profissional de
dicos, enfermeiros, psicólogos, assistentes Educação Física nos serviços de Saúde
sociais, terapeutas ocupacionais, pedagogos Mental, bem como a necessidade de se
ou outros profissionais com nível superior, promover discussões acerca desta possibi-
além de profissionais de ensino médio, en- lidade de trabalho, já que é uma proposta
tre eles, técnico de enfermagem, artesãos, que se tornou reconhecida pelo conselho
técnico administrativo, técnico educacional, profissional da área, além de haver diversas
entre outros (BRASIL, 2002). evidências e estudos que foram sugeridos
Apesar da ausência do termo pro- ao longo deste artigo, que reconhecem que
fissional da Educação Física, entre a equipe a Educação Física tem um papel substancial
técnica mínima, há uma ampla discussão aos cuidados da Saúde Mental.
da inserção deste profissional e suas prá-
ticas nos CAPS. Estas discussões ocorrem
no âmbito das Conferências Nacionais de DISCUSSÕES
Saúde Mental. Por exemplo, no relatório da
III Conferência Nacional de Saúde Mental, É salutar o papel da Educação Física
ocorrida em Dezembro de 2001, já começa a aos cuidados da Saúde Mental, conforme
incluir atividades de lazer, esportes, cultura, evidências têm demonstrado. A possibili-
práticas corporais em geral (WACHS, 2008). dade de trabalhar na perspectiva das mani-
Porém, infelizmente a Educação festações corporais no projeto terapêutico,
Física, no cenário da equipe técnica para a objeto da Educação Física, pode levar o
proposta do CAPS, ainda está na condição indivíduo a se expressar enquanto sujeito,
de “outros”, sugerindo assim que pode ser além de oportunizar a lida com o outro,
uma representação profissional dispensável por meio de atividades cooperativas e até
à Saúde Mental. No entanto, as evidências mesmo competitivas, além de ultrapassar
têm demonstrado o papel substancial da os muros de uma instituição e da própria
Educação Física na Saúde Mental, principal- concepção de instituição no sujeito, oriunda
mente por promover práticas que prezam de um modelo psiquiátrico tradicional.
pela autonomia, interação social e que tem Neste sentido, Crozara et al. (2010)
possibilidades e propostas que vão além das afirmam que projetos fora da unidade de
quatro paredes de uma instituição, tendo, saúde, ou seja, na comunidade, representam
por consequência, o seu papel desinstitu- um ganho na melhora da qualidade de vida
cionalizador ao sujeito. os sujeitos, favorecendo a recuperação e
Além do mais, com discussões ini- tratamento. Mielke et al. (2009) também en-
ciadas, a partir do ano de 2012, o Conselho fatizam a participação da família e sociedade
Federal de Educação Física – CONFEF, concomitante ao processo de tratamento do
define Saúde Mental como uma área de Es- indivíduo, a fim de colocar o sujeito, de fato,
pecialidade Profissional em Educação Física, na sociedade e todos seus aspectos.
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Diante disso, projetos de atividades principalmente por esta ser uma área em
físicas podem promover a ruptura também que faz interface com a saúde e educação.
dos próprios muros da instituição de Saúde No entanto, considerando a preocupação
Mental, já que muitas atividades podem ser de Roble et al. (2012) acerca de uma visão
desenvolvidas em parques, clubes, praças e reduzida à perspectiva biomédica, sugere-se
em vários espaços urbanos. Isto oportuniza ao que a simples inserção da Educação Física
indivíduo conviver em espaços em que, outras na Saúde Mental não caracterizará um as-
vezes, segregou e marginalizou a pessoa com pecto desinstitucionalizador, mas depende
transtorno mental. Porém, contando com de como são suas perspectivas e concep-
questões de inclusão, integração e cidadania, ções de trabalho, havendo a necessidade
agora o indivíduo pode estar nestes espaços, de relevar a integralidade do sujeito durante
mas em outra perspectiva. Com isso, tem-se o tratamento e a superação de métodos
a possibilidade de levar o sujeito a participar manicomiais. Portanto, determinados tipos
da sociedade e contribuir em sua economia, de trabalhos de atividade física podem não
educação e vários outros aspectos. ser eficazes, tornando uma tarefa excluden-
te ao invés de socializador e promotor de
Torna-se evidente, portanto, discus-
cidadania e (re)inserção social.
sões acerca das possibilidades da Educação
Então, a interdisciplinaridade, é
Física em Saúde Mental, de forma a ir além
fundamental para que, por meio da contri-
da perspectiva biomédica, já que, segundo
buição de cada área profissional, haja uma
Roble et al. (2012), a maioria das pesquisas
atenção integral ao sujeito. Um exemplo é
da Educação Física, historicamente, estão
que para um indivíduo se submeter a um
voltadas puramente à saúde, e pouco tem-se
programa de exercícios físicos, é necessário
discutido acerca das concepções, ações e
também estar bem alimentado e mecânico
possibilidades da Educação Física conside-
e fisiologicamente apto para a prática de
rando a integralidade do sujeito. atividades físicas, para que não haja algum
Carvalho (2001) observa que a te- efeito indesejado ou agravo a possíveis pro-
mática Educação Física e saúde, muita das blemas de saúde, ao invés de contribuir para
vezes, “restringe-se aos benefícios da ativida- a qualidade de vida do indivíduo.
de física independentemente do que pensa Outro exemplo, baseado no traba-
a pratica o indivíduo ou o grupo que tenta lho de Peluso (2003), é evidenciado que
acompanhar o programa” (CARVALHO, apesar dos benefícios da atividade física na
2001, p. 12). Saúde Mental, atletas de alto rendimento
Por outro lado, também entendemos que estão intimamente ligados ao esporte
que além dos efeitos fisiológicos, a própria e exercício físico podem se deparar com
busca pela cidadania em consequência da alterações de humor com características
desinstitucionalização do indivíduo, pode depressivas. Sugerimos que isto ocorre
promover impactos sociais, culturais e po- quando o desempenho físico passa a ser
líticos no indivíduo com transtorno mental. a única meta na realização da atividade
Demanda-se, portanto, a necessi- física, fenômeno no qual descaracteriza a
dade de se estudar e trabalhar a Educação integralidade do indivíduo.
Física de forma a superar o tecnicismo e Finalmente, quando se trabalha o
prezar por cuidados integrais ao indivíduo, exercício físico numa perspectiva integral,
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envolvendo corpo, alma, fatores sociais considera um papel desinstitucionalizador


e culturais, além dos efeitos positivos em ao indivíduo, bem como na busca de cida-
relação à manutenção da saúde biológica, dania e (re)inserção social. Esta demanda
o próprio mundo do trabalho, sociedade ocorre no sentido em que muitas produções
e educação se aproxima da realidade do científicas nesta temática estão ligadas a
sujeito com transtorno mental (OLIVEIRA; questões puramente biológicas, e pouco se
ROLIM, 2003). tem discutido acerca de trabalhos voltados
No entanto, Oliveira e Rolim (2003) à educação e sociedade.
citam dificuldades em propor atividades Por meio da Lei nº. 10.216, os
físicas no contexto da Saúde Mental, devido serviços de atendimento em Saúde Mental
à disposição do paciente, que muita das passam a ser realizados, prioritariamente,
vezes possui um agravo psicomotor ou se- em serviços não hospitalares. Com isso, os
dentarismo, devido à medicalização ou aos espaços de tratamento passam a estar cada
próprios sintomas negativos do transtorno vez mais próximo à sociedade, mas que
mental, bem como a disponibilidade da nem sempre os profissionais têm perspecti-
equipe profissional e o número reduzido vas que, de fato, aproximem os pacientes à
de funcionários, além da falta de espaço sociedade e seus espaços.
físico adequado. Torna-se necessário, portanto, a
Para tanto, questões relacionadas participação de equipes profissionais que
a motivar o paciente a se submeter ao distanciam o indivíduo da margem da socie-
exercício físico, considerando que medica- dade e que promovam atividades que releve
mentos podem ter efeitos indesejados que a integralidade do sujeito. Neste sentido, a
influem na motricidade e na disposição do Educação Física tem uma contribuição subs-
indivíduo, devem ser consideradas pela tancial, pois o espaço físico para a atividade
equipe profissional, pois nem todos têm física também está fora da instituição, além
a percepção da necessidade de se aderir de ter um papel socializador, que é algo
a uma vida ativa para a manutenção da que também está fora da visão e tratamento
saúde e principalmente, tendo o exercício institucional no paciente.
físico como (co)adjuvante ao tratamento de Porém, a Educação Física ainda
transtornos mentais. busca sua identidade dentro do cenário
Deve-se haver, portanto, uma equipe da Saúde Mental, principalmente por estar
preparada para tal desafio, para assim relevar em interface entre saúde e educação e,
o trabalho da Educação Física na Saúde Men- consequentemente, podendo estar num
tal numa perspectiva desinstitucionalizadora. paradoxo entre uma atenção puramente
voltada ao desempenho física e motor, ou
uma pedagogização da saúde, limitando-se
CONSIDERAÇÕES FINAIS a ações que poderiam ser sugeridas como
dispensáveis ao processo terapêutico.
A partir da reforma psiquiátrica, a Finalmente, apesar de a Educação
Educação Física em Saúde Mental é uma Física em Saúde Mental estar pautada por
área que tem uma grande demanda de es- políticas e regulamentações tanto do Minis-
tudos e de campo de trabalho, quando se tério da Saúde quanto do próprio conselho
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da classe profissional, para que ela tenha um CROZARA, L. F. et al. Efeito da Atividade
papel integral, que muito além do desempe- Física na Saúde e Qualidade de Vida
nho físico, preza por um desenvolvimento de Pessoas com Transtornos Mentais.
integral, cidadão e desinstitucionalizador, Lecturas, Educacion Física y Deportes
depende da proposta das atividades e da (online), ano 15, nº 149, 2010.
participação de toda a equipe. Isto indica FOUCAULT, M. História da Loucura:
que não é a simples submissão a exercícios na idade clássica. Tradução de José
físicos que promoverá a (re)inserção social, Teixeira Coelho Neto. São Paulo:
cidadania, singularidade e a superação de Perspectiva, 2007.
serviços puramente hospitalares, mas o que GONÇALVES, R. J. et al. Quem “liga”
influi é a perspectiva de como este serviço é para o psiquismo na escola médica? A
tratado e a necessidade de se aproximar ao experiência da Liga de Saúde Mental
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THE ROLE OF DEINSTITUTIONALIZATION MADE BY PHYSICAL EDUCATION IN


MENTAL HEALTH

ABSTRACT

The attention to Mental Health has a demand to work from a perspective that values the
integrity of the individual. We believe that Physical Education can have a substantial role
in this process. Therefore, this article is characterized as a literature review in order to
promote reflection on the role desinstitucionalizador by Physical Education in Mental
Health, implying that several possibilities are emerging, giving a political and social
contribution, seen that besides the completeness of the individual, spaces for your
practice go beyond the institutional space. However, this process depends on activities
aimed at overcoming purely hospital services and traditional.

Key-words: Deinstitutionalization; Psychiatric Reform; Physical Education.

Recebido em: julho/2013


Aprovado em: maio/2014

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