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05

“Um homem se debruça sobre um antigo tomo


A meia luz ele se esconde da noite
Em línguas esquecidas ouve o Corvo e a Coruja
Atenciosamente, recebe de Ol’lo seus mistérios.”
--Um Estudo sobre os Harmonus, livro i, prefácio.

Os pés firmes de Anker caminhavam sobre as formas indecifráveis das sombras das
árvores, sua mão mantinha-se no ombro com faixas improvisadas tentando de alguma
forma amenizar a dor. Ainda pensava se teria sido a coisa certa a se fazer: ter matado
aqueles homens e ajudado a garota, ao menos ela sabia enfaixar um ferimento. Já teve que
bater em um ou outro bandido, às vezes o suficiente para matar alguns deles, isso nunca foi
motivo de orgulho, mas dessa vez foi para salvar a vida de alguém. “Espero não me
arrepender”.
— Garota! — Anker disse, se não fosse pelo rosto delicado ele teria confundido o
sexo da moça. Cabelo curto e corpo franzino, ela lembrava os rapazes da vila. Lembrava a
imagem que fez do filho.
— O que foi? — ela disse virando o rosto surpresa.
— Você não me disse o seu nome.
— É, você tem razão — ela voltou a olhar para frente.
O silêncio se deu deixando um buraco no ar. Uma brisa balançou as folhas, um
pássaro assobiou longe e Anker continuou:
— E quem é você? — o arrependimento já começava a surgir.
— Dreany Teceversos de… De qualquer lugar.
— Não conheço o sobrenome, você é da…
— Sou linguista na Torre dos Cem — ela pensou por um momento e concluiu. — Ou
pelo menos era.
Eles já chegavam na estrada que cruza Perenir. Anker pensou em esconder a
espada embainhada que tomou do caçador de recompensas, mas nada escapava ao olhar
dos vizinhos então ele continuou carregando a arma.
— Por que você saiu da Torre? E por quê aqueles homens estavam te prendendo?
— Você é um homem cheio de perguntas, Anker de Perenir. Imagino que este lugar
seja Perenir — ela disse observando no horizonte onde jazia uma construção imponente
mesmo tão distante. Era o Castelo Escamado do rei Hecber Garralonga.
— E você parece uma garota de poucas respostas — observou o andar confiante de
Dreany envolta na capa verde-musgo que cobria o manto castanho.
— Saí da Torre porque queria explorar o mundo — ela disse. — Aqueles caçadores
de recompensa iriam me vender no sul. Conheço muitas línguas e serviria de tradutora para
os homens do País de Areia.
Anker tinha dificuldade em acreditar em qualquer palavra dita pela garota, suas
palavras carregavam uma certeza como se ela pudesse manipular a verdade a seu favor.
— Obrigado — ela disse.
— Não agradeça ainda, até onde sei você não é confiável — Anker empurrou a
porta da casa e entrou.
— Se não sou confiável por quê me trouxe aqui? — Dreany olhou a parte interna do
casebre esperando encontrar algo que chamasse-lhe a atenção, porém não havia nada
além de sujeira e uns poucos móveis de madeira puída.
— Foi você quem me seguiu.
— Há uma meia verdade nisso — ela disse procurando a cadeira menos
empoeirada para sentar-se.
— Pensei que os Sábios não acreditassem em meias verdades — Anker tomou uma
caneca e mergulhou-a dentro de um grande odre retirando água de qualidade duvidosa e
despejando o líquido goela abaixo.
— Ainda bem que saí de lá então.
Anker encarou a garota. A espada do bandido estava próxima e pelo menos no aço
ele poderia confiar.

***
“Quem é você, Anker?” Dreany pensava e criava mil histórias sobre aquele lenhador,
ou seria assassino. Pela forma como lutou com certeza não era um profissional, talvez
fosse outro caçador de recompensas. A casa parecia deixada aos ratos e aranhas, seria
suspeito em outro lugar, mas naquela vila tudo lembrava abandono. O rei Hecber havia
esquecido do seu povo quando a velhice o alcançou e a guerra anos atrás contra os
selvagens do leste só intensificaram isso.
Seguir para o Castelo Escamado parecia agora uma ideia mais viável do que andar
até o Porto dos Cavalos, próxima da corte estaria mais segura do que entre piratas vindos
de fora do continente. “Precisarei da ajuda dele para chegar ao castelo”, Dreany observava
o homem sentado no chão ao lado da espada de Talho. “Agora como vou fazer isso?”
A porta já aberta recebeu um chute fazendo-a se chocar contra a parede e
rangendo, o golpe veio de um homem grande cujo os músculos se confundiam a gordura,
ele entrou sem cerimônia no casebre, seguido por um magrelo alto de pele amarelada e um
outro sujeito estrábico e banguela.
— Seus amigos? — Dreany perguntou já sabendo a resposta.
Anker levantou-se com dificuldade desembainhando a espada e disse:
— Ainda não.
O homem corpulento segurava um pequeno machado de combate enquanto seus
comparsas estavam armados com espadas curtas.
— Muito bem, Anker — disse o gorducho. — Sparg nos disse que você com nossa
prata, poderia nos entregar de bom grado? Não estou para confusão hoje.
— Desculpem parceiros, mas gastei tudo — disse Anker pressionando os dedos
contra o cabo da espada.
O sujeito esguio deu um passo à frente e virou os olhos para Dreany e disse com
uma voz desafinada.
— Vai ter que nos pagar de alguma forma.
“Hoje com certeza não é o meu dia”, Dreany pensou analisando os indivíduos. “Se
tivesse me livrado de Talho antes não precisaria fazer isso agora”. A garota levantou-se da
cadeira abruptamente e antes que pudesse abrir a boca, Anker partiu em investida.

***
A espada de Anker encontrou o machado do bandido corpulento, o ataque foi tão
fraco que o sujeito mal fez algum esforço para defender. O homem alto de pele amarelada
deu um salto caindo diante de Dreany com a ponta da espada apontada para a garota que
segurou a cadeira ao seu lado e golpeou o bandido, a madeira frágil do móvel
despedaçou-se no flanco do inimigo. O terceiro bandido foi lançou ataques de espada em
Anker que esquivou-se andando para trás até ficar encurralado na parede do casebre.
— Fico imaginando em que momento você percebeu que não teria chance — disse
seguido de uma risada. — Se ao menos sua companhia pudesse brigar também — olhou
na direção da garota que estava encurralada pelo comparsa.
Anker aproveitou o desvio de atenção do homem com o machado para desferir um
ataque da esquerda para a direita partido ao meio a orelha do oponente e abrindo um corte
feio no rosto. O sujeito corpulento urrou de dor e o bandido estrábico atacou Anker, que
defendeu com a espada e revidou balançando a lâmina contra o gordo que já havia
retomado a postura e defendeu o golpe com o cabo do machado.
“Maldição”, a mente de Anker parecia ferver.”Por que fui desembainhar a maldita
espada? Não era para isso acontecer, não era para eu morrer hoje”, imagens vieram a sua
cabeça acompanhadas dos golpes de machado e espada de seus inimigos. Defendia e
esquivava, um golpe e outro acertava-o abrindo a pele, fazendo sangue escorrer. Todas as
vezes que tentou ajudar acabou perdendo o que tinha de mais precioso, para Anker não
parecia uma troca justa.
Lembrou dos pais.
Os amigos.
A esposa.
O filho.
“Uma piada sem graça feita pelos deuses”.

***
Dreany detestava esses momentos. Não havia outra saída, teria que colocar tudo
em risco mais uma vez, tocar notas altas denunciando sua posição a quem quisesse ouvir.
Seus lábios se moveram rápidos formando palavras sem nexo para os que estavam ali, o
homem de pele amarelada incomodado com os sons produzidos pela Teceversos, ergueu a
espada para um golpe mortal, mas seus braços não concluíram o movimento.
Com os músculos paralisados o homem começou a desesperar-se, suor escorria
pelo rosto e ele pôde sentir o sangue circular forte e rapidamente pelas veias agora
dilatadas. Anker e os outros dois pararam o combate ao ver a cena, assustadora que
acontecia diante deles. Dreany continuava a falar naquela língua profana e a medida que
continuava mais seu inimigo demonstrava dor até enfim cair de joelhos, soltou a espada
com das mãos trêmulas e esfregou os dedos por todo o corpo que parecia arder em
chamas. O sangue do homem então começou a sair pelos olhos, ouvidos, nariz e boca
manchando suas vestes e pingando no chão do casebre. Deu um gritou de agonia que foi
ouvido pelos presentes e logo foi interrompido quando o sujeito caiu morto com uma
expressão de pavor no rosto.
— Bruxa — o estrábico falou apontando a espada para Dreany que era a única que
não estava aterrorizada com o acontecido.
O corpulento segurou firme o machado e por impulso virou-se para atacar a garota.
— Bruxa maldi… — as palavras morreram em seus lábios quando Anker aproveitou
a abertura para acertar um golpe debaixo do braço do bandido.
Sem saber o que fazer o terceiro partiu em um ataque desesperado a Dreany que
com facilidade rolou evitando a lâmina de seu adversário, a garota começou mais uma outra
série de frases na língua desconhecida e apontou para o homem. Logo o sujeito estrábico
sentiu as forças desaparecendo como uma língua de fogo ao vento, seus membros pesados
impediam-no de fazer qualquer movimento e até mesmo respirar tornou-se uma tarefa
árdua.
Enquanto o bandido corpulento agonizava no chão, Anker tomou seu machado e
partiu para atacar o último inimigo de pé. Com um golpe certeiro no pescoço do estrábico
que nem teve tempo de saber o que estava acontecendo. Os olhos de Anker encontraram o
rosto de Dreany, ele respirou fundo recuperando o fôlego e disse:
— O que você fez? — enche os pulmões e apertou firme os cabos da espada e do
machado.
— Tem outros? — Dreany perguntou.
— Não sei… Talvez. Quando Sparg souber que tem uma bruxa em Perenir ele vai
mandar te caçar e a mim também.
— Não sou uma bruxa — ela disse irritada.
— O que fez parece bruxaria.
— Nós precisamos sair do vilarejo então.
— Nós o que… — sentiu uma pontada na ferida do ombro. — Não te convidei aqui
garota, você que veio e trouxe sua bruxaria.
— Até onde sei quem estava devendo prata a esses homens era você.
Anker ficou sem resposta.
Ele embainhou a espada e trocou a camisa manchada de sangue, procurou algo de
valor para levar, mas não havia nada ali que valesse pelo menos uma moeda de cobre.
Encheu um cantil com a água suja evitando olhar para os corpos no chão. Dreany ficou de
pé na soleira da porta observando quem estava na estrada, mas não viu nada além de
algumas crianças brincando perto de um poço velho e no horizonte o Castelo Escamado
decorando a paisagem junto dos grandes montes detrás dele mais a leste. Anker passou
pela garota e sem olhar para ela disse:
— Quando sair feche a porta.
— Onde está indo? — ela disse ao ver sair pela porta carregando nada além de uma
trouxa amarrada às costas e a espada espada que tomou de Talho.
— Vou para Naritar.

***
O sol se punha no leste detrás das montanhas das Províncias Livres, o céu
começara a escurecer e a estrada já não aparentava ser tão segura. O vento que golpeava
as árvores produzia sons sinistros como se estivesse evocando um chamado a noite e com
ela seus demônios. Sempre que o crepúsculo surgia, Anker já estava voltando para a
segurança de casa ou tomando os primeiros goles de vinho na taberna, porém desta vez
ele adentrava na porta da escuridão. Observava entre as árvores, imaginava assassinos e
feras espreitando-o com seus olhos sedentos por sangue. Pensava em diversas formas de
morrer ali e ainda assim acreditava que estaria mais seguro sozinho.
— Onde pretende ir? — perguntou a Dreany.
— Vou a Naritar também — ela caminhava despreocupadamente. — Antes que diga
que estou te seguindo, Anker, saiba que já estava indo para lá bem antes de ser capturada
pelos caçadores de recompensas. Estava quase no Longanoite quando eles me
encontraram, nesse caso só estou aproveitando a companhia.
Anker continuou a caminhada em silêncio. A noite caia e o breu consumia a floresta,
a dupla desviou da estrada para procurar um lugar para pernoitar. “Antes me parecia uma
ideia por impulso, agora vejo que foi a coisa mais idiota que já fiz”, pensou percebendo que
dormir na floresta sem uma tenda era uma tolice que nem os tolos cometeriam e já estava
longe de Perenir para voltar a essa hora. “De qualquer forma Sparg arrancaria a minha pele
então…”
— Veja — Dreany disse apontando para a parte mais profunda da mata.
— O que… — Anker viu um brilho fraco amarelado mais a frente.
Quando percebeu que tratava-se de uma janela abriu a boca para falar algo a
garota, mas ela já corria na direção do brilho. Anker tinha dificuldade de esboça gratidão
aos deuses, mas naquele momento balbuciou um “obrigado” olhando para o céu estrelado
que se estendia sobre a copa das árvores.
Os dois chegaram de frente a uma pequena casa de madeira. A luz de uma vela
fugia pela janela e pelas frestas da porta, diante da porta, Anker viu um símbolo entalhado
cobrindo grande parte da porta e um arrepio escalou sua espinha. Aquele poderia ser o lar
de uma bruxa ou alguém que não gostaria de ser incomodado.
— É um glifo do enganador — disse Dreany tocando as linhas do desenho na porta.
— O que é isso?
— Uma forma um pouco diferente de fazer magia, mas isso está mal feito. Se o
propósito era afastar alguma coisa, não vai funcionar…
Enquanto Dreany falava a porta abriu-se e detrás dela um velho vestindo trapos e
portando uma grande faca surgiu. O dono da residência esboçava no rosto ossudo e
enrugado uma expressão de dúvida e ira.
— Quem são vocês? — disse o velho com uma voz rasgada e cansada.
— Meu nome é Anker e esta é minha filha, Dreany — a garota olhou olhou surpresa
para ele. — Somos de Perenir, uma vila a algumas horas daqui.
— Sim, eu conheço o lugar — a mão do velho que segurava a faca tremia. — O que
querem aqui?
— Fomos atacados por ladrões e levaram todos os nossos pertences — disse
Dreany se esforçando para falar como uma menina indefesa. — Estamos procurando um
lugar para passar a noite e seguir viagem assim que amanhecer.
A tensão do velho pareceu diminuir quando a tremedeira na mão cessou.
— Me dê as armas — ele estendeu a mão que segurava a porta para Anker.
Anker entregou a espada e o machado para o velho que mal conseguiu aguentar o
peso das armas.
— Vamos — o velho abriu espaço e os dois adentraram na velha cabana.
Antes de fechar a porta o velho olhou para a floresta, seus olhos cansados viam algo
além da escuridão que cobria a mata envolta de sua morada. Lançou uma praga para o que
estava lá fora e entrou fechando com o pouco de força que restava-lhe a porta da cabana.
— Podem me chamar de Deref — o velho disse lançando as armas de Anker junto
de alguns fardos de grãos no canto da cabana.
— Obrigado por nos receber senhor Deref — disse Dreany.
— Para onde estão indo?
— Para a Cidade do Rei em Naritar — Anker respondeu.

***
Os olhos de Reirak cruzavam com os dos camponeses de Entremar, homens e
mulheres de simplicidade incontestável e o Nascido do Fogo admirava isso. Diversas vezes
pegava-se imaginando como seria a vida caso não tivesse crescido como um soldado, se
ele nunca tivesse posto as mãos em uma espada. “Seria tudo simples como para essas
pessoas”, pensou observando um garoto correr com um cabo quebrado de vassoura
fingindo brandir uma espada, Reirak tinha essa idade quando recebeu a cicatriz estampada
em seu rosto. Quando o garoto percebeu que o sargento o observava soltou a arma
improvisada e correu envergonhado.
— Do que está rindo? — perguntou o Alto Sábio Barish.
— Das crianças — respondeu Reirak. — Elas são engraçadas.
— Fala como se nunca tivesse sido uma.
— Acho que não fui, ao menos não completamente.
— Entendo — o velho disse com certa culpa pelos sentimentos do jovem sargento.
Reirak voltou a visão para as costas de Kafral que seguia mais a frente guiando o
grupo, o general vestia sua armadura completa, a capa verde cobria-lhe o corpo e nos
ombros pousava a pele de lobo com a cabeça do animal caída sobre o braço direito. Além
do sargento, do general e o Alto Sábio, outros seis soldados de baixa patente os seguiam,
todos eles usando cota de malha e couro, aquele que cavalgava ao lado de Kafral
carregava um estandarte onde balançava a bandeira do rei Prouduk, a coroa rodeada pelas
seis estrelas.
— Alto Sábio — disse Reirak ainda com os olhos no general.
— Sim?
— O senhor conseguiu realizar seus sonhos?
— Fui deixado muito pequeno na Torre e estudando lá sempre quis me tornar
alguém importante. Então os deuses me deram a graça de te encontrar, Reirak.
— Não sei se sou quem você espera, senhor — o jovem encarou Barish.
— Acredite meu rapaz, quando olhamos nosso reflexo no rio vemos nossos rostos
deformados pelo movimento da água e pelas pedras no fundo, mas isso não quer dizer que
sejamos daquele jeito. Quando olho para você vejo alguém que pode mudar o rumo da
história.
— O que quer dizer?
— Que geralmente temos a ideia errada de quem somos.
— O senhor está certo.
Reirak ficou em silêncio o resto do dia.
Recolheram água e comida dos fazendeiros de Entremar antes de continuar a
viagem. Quando anoiteceu no vilarejo, Kafral e Barish discutiam os planos na recepção de
uma pequena estalagem enquanto os outros soldados descansavam aliviados por se livrar
do peso das armas. Reirak estava do lado de fora sentado próximo ao estábulo, olhava as
ruas desertas iluminadas por lamparinas colocadas na frente das casas e a luz da lua cheia
que despontava no céu de poucas nuvens. Contava as estrelas enquanto cantarolava uma
canção sobre Ôerir, o Construtor de Salões. Ele viu algo voando no horizonte próximo às
nuvens, um pássaro grande demais para ser visto a essa distância e de uma anatomia
diferente de qualquer um que já tenha visto. A criatura batia as longas asas com firmeza
conquistando o céu noturno, mesmo tão longe a silhueta assustou Reirak, um medo que ele
já conhecia. O medo de algo que é maior ele, que poderia esmagá-lo facilmente se
quisesse, era o mesmo medo que sentia de Kafral Nascido do Fogo.

***
Os golpes de Anker partiam precisamente as toras de madeira que logo eram
jogadas de lado formando um pequeno monte de lenha que seria destinada ao fogo. O suor
escorria pelos braços fortes e a barba desgrenhada até chegar nos dedos encaliçados
agarrados ao cabo do machado. Outra machadada e outra tora partida ao meio trouxeram
juntas a lembrança do caçador de recompensas que ele havia matado no dia anterior e a
sucessão de acontecimentos que o levaram até aquele momento, virou a cabeça para
Dreany que estava sentada sobre as raízes de uma árvore a alguns passos dele. A garota
arrancava um grande pedaço de maçã com os dentes e enquanto mastigava sua mente
parecia vagar por algum lugar distante dali.
— Você é sempre assim?
Anker olhou para ela surpreso com a pergunta.
— Assim como? — ele pegou outra tora e a posicionou.
— Ajudando todo mundo, mesmo sem conhecer — ela falava com a boca cheia
deixando escapar o sumo da maçã que lhe escorria pelo pequeno queixo.
Ele ergueu o machado e num golpe descendente partiu a madeira violentamente.
— Estou fazendo isso porque Deref nos deu água comida e um lugar para passar a
noite.
— Ainda acho que deveríamos ter partido quando o sol nasceu.
— E por que você não foi?
Dreany arremessa longe o talo da maçã e levanta espreguiçando-se.
— Quem cuidaria de você, Anker de Perenir? — ela disse sorrindo.
Ele lança um olhar sério sobre a garota, depois aproxima-se dela e ao notar que
Deref os observa da frente da cabana.
— Aquela coisa talhada na porta, o que é?
— Um glifo do enganador — Dreany disse mudando a expressão descontraída que
mostrava até um minuto atrás. — Só que não funciona, a linha vertical está torta. Isso
deveria servir para criar uma ilusão em volta da casa, mas já que estamos aqui você deve
ter percebido que não adiantou.
— Então Deref é um mago? — Anker perguntou baixando o tom da voz.
— Creio que não, os Traçalinhas foram banidos da Torre e duvido que alguém de
fora consiga aprender sozinho os glifos — o velho dono da cabana começou a caminhar na
direção deles. — Ele deve ter visto em algum lugar e resolveu imitar a fim de se isolar, a
não ser que…
Dreany se calou quando o velho se juntou a eles.
— Um ótimo trabalho tenho que admitir — Deref falou abrindo um sorriso. —
Quando corto dificilmente consigo partir uma tora no primeiro golpe. Esses braços fracos já
não me são eficazes como antes.
— A quanto tempo vive aqui, Deref? — a pergunta de Dreany soou como uma
acusação.
— Acho que já se passaram mais de vinte Segas desde que abandonei Córina.
— Por que saiu de lá?
— Impostos altos e como contei a vocês a noite, não pude me casar com minha
amada — o velho baixou a cabeça para esconder a tristeza.
Anker até então nunca tinha visto Dreany tão séria, a garota estava de cenho
franzido com a ponta das madeixas curtas caindo-lhe sobre os olhos. Ela analisava Deref
como um predador escolhendo a presa, mesmo com toda estranheza o velho não parecia
ser perigoso. Comparado aos homens que enfrentou no dia anterior, Deref seria como uma
galho seco.
— Tivemos muita sorte de encontrar sua cabana aqui.
— Graças aos deuses — Deref olhou nos olhos de Dreany.
— Sim — a Teceversos respondeu o olhar como se eles tivessem tendo uma
conversa mental. — Graças aos deuses.
Anker ficou confuso com a situação, seus dedos apertaram o cabo do machado e
ele preparou-se para qualquer que fosse o problema.
— Anker faz aquilo — Dreany disse.
Ele não estava preparado para aquilo.
— Fazer o que?
O rosto enrugado de Deref tornou-se uma máscara horrenda, os olhos se
arregalaram, a boca escancarou-se revelando a dentição apodrecida. Os dedos entortaram
e as unhas enegreceram enquanto cresciam de forma anormal. Anker não sabia se corria
ou atacava a forma demoníaca em que Deref estava se tornando, ele olhou para a garota e
ela falava novamente numa língua desconhecida, mas dessa vez era possível compreender
o som das sílabas pronunciadas.
— O que pelas entranhas de Ur está acontecendo? — Anker perguntou
desesperado.
Quando Dreany terminou de recitar o harmonus o ar tornou-se mais denso e os raios
solares que banhavam a floresta foram empalidecidos por uma névoa gélida, ainda com os
olhos fi xos na criatura ela disse:
— Isso sim é uma bruxa de verdade.

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