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30/04/2021 industria cultural

A indústria cultural brasileira ontem e hoje

Imagem: Elyeser Szturm

Por Caio Vasconcellos*

Em outubro de 2012, uma reportagem do jornal Folha de São Paulo afirmava que a
coordenação da campanha de Fernando Haddad teria convencido a presidenta Dilma
Rousse – à época, detentora de uma aprovação de 55% na capital paulista – a adiar a data
do comício no qual apareceria ao lado do então candidato à prefeitura de São Paulo. O
motivo era insólito: o evento político-eleitoral concorreria com a exibição do capítulo final
de Avenida Brasil, telenovela exibida pela Rede Globo. Na cidade de Salvador, cogitou-se
instalar telões para transmitir a reprise do último episódio da novela a fim de que outro
comício com a presidenta não corresse o risco de ser esvaziado; em todo o país, o Operador
Nacional do Sistema Elétrico temia pela possibilidade de um apagão decorrente da
exuberante audiência do folhetim eletrônico.

Bastante festejada pela crítica televisiva e por setores da academia, Avenida Brasil foi a
tentativa mais bem elaborada da recente teledramaturgia nacional em retratar o que seria o
cotidiano e as formas de sociabilidade típicas de um universo urbano formado
majoritariamente por personagens de origem popular. Se, até então, esses estratos da
população eram ou marginalizados ou retratados por um viés quase exclusivamente cômico
nos folhetins eletrônicos, personagens pertencentes às camadas populares assumiram
maior centralidade e protagonismo em Avenida Brasil.

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Coqueluche das agências de publicidade da época, o conjunto constituído pela chamada


“classe C” assumia naqueles anos a posição dianteira em poder de consumo entre os
diversos estratos de renda. Além de conquistar o maior faturamento publicitário da história
da televisão na América Latina, a massiva audiência e a grande repercussão do folhetim
eletrônico parecia coroar a consolidação de um projeto de país sob os auspícios do lulismo.

Aos olhos de uns, as expectativas desse passado recente parecem, hoje, quase uma utopia. A
promessa de um mercado de consumo amplo o suficiente para abarcar todos os estratos da
população é contrastada com anos seguidos de rebaixamento do poder de compra sobretudo
das camadas populares. A estética colorida e exuberante pela qual usualmente a classe C era
representada foi, após o golpe, substituída pelo retorno de um verde-oliva cintilante.

Além da vigorosa regressão no plano dos costumes, a eleição de Bolsonaro legitimou


eleitoralmente um acelerado projeto de liberalização e desregulamentação da economia, de
forte concentração de renda e de ataques virulentos a direitos e conquistas sociais. Pródigas
em reduzir processos sociais complexos em termos sintéticos, as agências de pesquisa
brasileiras documentam o aparecimento de um novo estrato social formado pelas variações,
agora negativas, nos níveis de renda – os “desalentados”.

A proposta dos artigos programados para serem publicados em A Terra É Redonda consiste
em apresentar análises sobre tendências recentes na exploração industrial de cultura no
país, especialmente sobre o mercado televisivo nacional e sobre a mercadoria cultural de
maior circulação no Brasil – as telenovelas. Além da orientação política de suas empresas e
conglomerados, o setor se distingue não apenas por sua pujança ou por seu alto grau de
concentração econômica, mas também por colocar em circulação visões de mundo e estilos
de vida, conjuntos de normas e de valores, objetos de desejo, afetos e dinâmicas libidinais.

Ainda que a manipulação do noticiário também seja alvo de critica, é pela mobilização
desses fragmentos ideológicos objetivos que a indústria cultural verdadeiramente cativa o
seu público, ao mesmo tempo em que se vale de sua expertise para naturalizar a injustiça
das relações econômicas e a violência da dominação social.

Ademais, junto a essas temáticas propriamente nacionais, a Indústria Cultural brasileira


também serve de correia de transmissão de tendências globais. Já em forte concorrência
com empresas tradicionais de mídia pela atenção do público e por investimentos
publicitários, colossos como o Google, o Facebook, Youtube, etc. colocaram em circulação
novas formas de produção e de consumo de mercadorias culturais e promovem mecanismos
peculiares de sedução.

Diante de um público que não se restringe mais a um papel meramente passivo frente à
concepção, à elaboração e à distribuição de mercadorias culturais, convém perscrutar o
papel desempenhado pelos sujeitos nessas produções, e o significado de formas
hegemônicas de sociabilidade online que se estruturam nesses domínios.
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*Caio Vasconcellos é pesquisador de pós-doutorado junto ao departamento de sociologia da Unicamp

UA-148478982-1

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30/04/2021 A classe C na Globo - A TERRA É REDONDA

A classe C na Globo

Imagem: Elyeser Szturm

A telenovela Avenida Brasil , geralmente associada ao lulismo, assenta-se, em seu momento


crucial, nas bases ideológicas de uma espécie de reação conservadora ou restauradora

Por Caio Vasconcellos*

Avenida Brasil é considerada um marco na teledramaturgia nacional. Exibida pela Rede


Globo em 2012, o folhetim eletrônico bateu recordes de audiência e de faturamento
publicitário, invertendo uma tendência importante de queda no interesse do público por
esse tipo de mercadoria cultural manifestada, ao menos, desde meados da década de 1990.

Notabilizando-se por explorar em sua trama temas candentes do contexto socioeconômico


brasileiro daquele período, a telenovela dava impressão de render homenagem ao “lulismo”
que, à época, se constituía como uma força político-ideológica quase sem adversários
competitivos.

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30/04/2021 A classe C na Globo - A TERRA É REDONDA

Embora Avenida Brasil tenha se aventurado a apresentar representações do cotidiano e de


formas de sociabilidade de personagens que comporiam a chamada “classe C”, o propósito
deste breve ensaio é uma discussão sobre as bases ideológicas de uma espécie de reação
conservadora – ou melhor, restauradora – que estrutura a trama principal do folhetim
eletrônico.

Anunciada já na primeira semana de exibição de Avenida Brasil, a vingança de Rita/Nina


(Débora Falabella) sobre sua arquirrival Carminha (Adriana Esteves) foi o momento de ápice
da telenovela. Após ser abandonada em um lixão por sua madrasta e por seu amante Max
(Marcelo Novaes), a menina Rita promete se vingar dessas personagens por conta da morte
de seu pai Genésio (Tony Ramos) e pelo roubo do dinheiro da venda da casa onde residiam.

Adotada por uma endinheirada família argentina, Rita transforma-se em Nina – educada
em um ambiente de alta classe, torna-se uma prestigiada chef de cuisine e proprietária de
um requintado restaurante em Buenos Aires. Com a morte de seu pai adotivo, a protagonista
da novela resolve voltar ao Brasil mais de uma década após sua partida, e encontra em uma
vaga aberta de cozinheira na casa de Tufão (Murilo Benício), atual esposo de Carminha, a
oportunidade de, finalmente, executar a vingança planejada durante toda sua vida.

Exibida apenas entre os capítulos 103 e 132 da telenovela, a vingança de Nina parece, à
primeira vista, se estruturar como uma simples inversão de seus respectivos papéis. De
posse de fotos que comprovariam a relação extraconjugal que Carminha mantinha com
Max, a protagonista da trama obriga a sua patroa a assumir as tarefas destinadas às
empregadas domésticas da mansão, e o faz com crueldade equivalente à de sua arquirrival.

Nesse primeiro momento, a mocinha da trama ordena que Carminha prepare e lhe sirva um
jantar, limpe o chão sob xingamentos e outras humilhações, desinfete o vaso sanitário da
suíte principal e, de maneira quase pedagógica, comanda uma incursão ao seu quarto de
empregada – ressaltando a falta de ventilação e de iluminação do diminuto cômodo, a falta
de água quente no chuveiro, o cheiro ruim da habitação, entre outras precariedades. Nos
diálogos entre as personagens, houve espaço, inclusive, para que Nina arrancasse de
Carminha a promessa de um aumento substantivo dos salários de suas colegas, de respeitar
limites às suas jornadas de trabalho e de, enfim, remunerar suas horas-extra.

Porém, além de uma crítica social de baixa intensidade e da sugestão de que as aviltantes
condições de trabalho às quais é submetida parcela expressiva da população brasileira
pudessem corresponder a uma punição merecida por alguma vilania do passado, a vingança
de Nina mobiliza ainda outros temas e construções ideológicas importantes.

Se, em certa tradição crítica brasileira, há uma expectativa utópica recorrente de que setores
populares possam, enfim, civilizar os maus hábitos e vícios das elites nacionais, a
personagem Nina desempenha um papel completamente distinto. Ao se fantasiar de
cozinheira de uma mansão no periférico bairro do Divino, a herdeira de uma rica família
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argentina assume também a missão de restaurar a ordem de posições sociais e de valores


que, supostamente, estariam em ruínas.

Desde o início da vingança, a posse bastante desigual de convenções culturais de distinção


de classe é instrumento utilizado para punir e disciplinar a patroa. Embora partilhassem a
mesma origem popular, a personagem Carminha é retratada como inculta, fútil e cafona,
como alguém preocupada apenas com as aparências, enquanto Nina parece ser portadora de
uma elegância inata, seja por seus modos e gestos contidos, por certa cultura livresca e pela
pronúncia correta de expressões e termos estrangeiros – frutos do mérito de sua adoção por
uma família abastada ainda em sua infância.

Aos olhos e pelas falas de Nina, os anos de riqueza de Carminha não se traduziram em
nenhum melhoramento de seus gostos, seu guarda-roupa seria composto por peças de
confecção do bairro periférico do Divino, a personagem desconhecia regras básicas de
etiqueta, mantendo-se a mesma “cafonuda” que, antes de se casar com o ex-jogador de
futebol Tufão, trajava-se com “pochetinha e conjuntinhos jeans”.

Na cena em que é obrigada a servir o jantar para Nina, Carminha é repreendida para se
aprumar e corrigir sua postura, suas mãos deveriam estar à frente do corpo – repousadas –
e que, ao menos, ela precisaria fingir ser uma serviçal de classe capaz de servir a refeição da
maneira correta, isto é, à francesa.

Em diálogo travado entre as personagens, Nina se dirige à sua patroa nos seguintes termos e
em nível crescente de agressividade: – Nina: Exatamente, eu estou sentada na cabeceira
porque hoje quem vai me servir é você, vaca! A partir de agora, eu sou a madame e você é
minha empregadinha. Vai, anda, me serve que eu estou com fome, não estão vendo? Me
serve, eu estou mandando, me serve! Anda, me serve! Eu estou mandando, não está vendo?
Está esperando o que, hein? Me serve, vadia, me serve!

Ao mesmo tempo em que anunciava buscar restituir a posse de privilégios de classe à sua
portadora supostamente legítima, esse trecho permite perceber também outro elemento
bastante atuante na vingança de Nina. Aspecto presente nas diferentes fases de Avenida
Brasil e proferido por tantas outras de suas personagens, o componente de misoginia nos
diálogos entre Nina e Carminha é estarrecedor.

Em uma das primeiras cenas entre as duas, a protagonista ordena que sua rival esquente o
seu jantar e, munida com uma colher de pau nas mãos, a golpeia nas nádegas, com a
seguinte fala: – Nina: Esquenta essa comida direito, cavalgadura. Não sabe nem mexer uma
panela, vadia. Mas esse seu traseiro bem que você sabe mexer pro teu macho, não é não?

Levando-se em conta apenas as cenas entre as personagens durante a vingança, Nina


ofende sua arquirrival com termos como “vadia” – por mais doze oportunidades –, “vaca”
– por cinco vezes –, “vagabunda”– em quatro ocasiões –, “prostituta” – três vezes – e
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“cadela” – por uma vez –, sem contar outros xingamentos como de burra, besta, imbecil,
inútil, imprestável, etc. Mesmo ameaçada pela possível revelação ao seu marido de sua
relação extraconjungal, a personagem de Carminha ainda assim foi capaz de retrucar as
ofensas de Nina em algumas poucas oportunidades, também a chamando de “vadia” – por
três vezes –, de “vagabunda” – em duas ocasiões – e de “piranha” – por uma vez.

Ademais, além dessa manifestação de misoginia nos diálogos entre as personagens, a


vingança de Nina também mobilizou outros expedientes bastante violentos e conservadores
em questão de gênero. Nos capítulos da primeira semana da revanche, a ausência dos
demais empregados e dos membros da família de Carminha na casa no Divino, que haviam
viajado para o município de Cabo Frio, possibilitava que o plano fosse executado sem
qualquer disfarce.

Contudo, com o retorno à mansão dessas outras personagens, a protagonista da trama se


via obrigada a voltar também ao seu antigo papel de cozinheira, e redirecionar suas
estratégias de punição. Essa segunda fase da vingança é assim anunciada por Nina: – “Eu
podia entregar essa bomba pro Tufão agora, junto com as fotos da sua traição. Mas em vez
disso, eu vou acrescentar mais uma exigência no nosso pacto. Você vai tratar bem a Ágata
[filha mais nova de Carminha], você vai aprender a ser uma boa mãe. Aliás, você vai
aprender a ser uma boa dona de casa e uma mulher de família. E não uma perua louca que
sai fazendo compras, corneando o marido, fingindo que está trabalhando em ONG. (…). Ah, e
também vai cozinhar para o seu filho, você vai fazer o jantar hoje. Você não diz que ama
tanto o Jorginho?”

Todavia, esse novo e derradeiro momento da vingança de Nina não se restringiu em tentar
readequar a personagem de Carminha ao figurino de uma dona-de-casa tradicional. Na
verdade, o plano explorava estereótipos ainda mais sórdidos – fazer crer que a vilã da trama
se tornara louca e histérica. Após obrigar Carminha a preparar um jantar à sua família, Nina
mistura lixo à refeição elaborada por sua antiga madrasta e servida aos demais moradores
da mansão, levantando as primeiras suspeitas a respeito da sanidade mental de sua patroa.

O diagnóstico de sua loucura viria a ser atestado pelos homens da casa – primeiro o seu
sogro Leleco (Marcos Caruso) e, alguns capítulos mais tarde, a suspeita foi transformada em
certeza por seu marido Tufão. Como se também subscrevesse esse antigo e persistente
preconceito contra as mulheres, a própria Carminha manifestava dia após dia tiques
nervosos e outros movimentos incontrolados até que, em uma cena um tanto forçada, salta
pela janela de seu quarto – localizado no segundo andar de sua mansão. Acudida por seus
familiares, Carminha é recolhida, de modo bastante violento, por uma equipe médica, e os
efeitos da vingança desencadeiam uma internação compulsória em um hospício. A loucura
de Carminha encontra sua certificação científica.

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Assim, mobilizando toda essa sorte de estereótipos e preconceitos, a vingança de Nina se


baseia em um conjunto de expedientes que parecem querer restaurar os lugares e as
posições de quem inverteu a ordem das coisas. Malgrado os motivos individuais que
motivaram a revanche da protagonista, o significado da punição de Carminha se amplifica
em termos sociais – quem ascendeu economicamente, mas não domina os códigos e
formalismos das classes dominantes, deve voltar às suas origens; aquelas que subvertem o
modelo da família patriarcal burguesa, ou retornam ao seu papel tradicional ou assumem a
sua loucura.

É interessante observar certo paralelo entre a essa estrutura da vingança de Nina e uma
disposição ideológica descrita por Adorno em Personalidade autoritária. Em um mundo no
qual a força indomada da economia se revela em qualquer experiência cotidiana, os
indivíduos se vêem obrigados a se adaptar à distribuição de poder que, de fato, organiza as
sociedades.

Ainda que a ilegitimidade e a injustiça de tal situação sejam visíveis a todos, o


ressentimento ante os privilégios tende a ser reprimido no plano da consciência,
desencadeando uma espécie de compromisso emocional e ambivalente entre a aceitação
forçada às regras de jogo e a resistência frente a elas. Então, o ódio pode ser deslocado dos
mecanismos de opressão e de dominação propriamente ditos para aqueles que, como se
usurpassem essas posições de comando, se identificam com elas, mas, ao mesmo tempo,
violam certos códigos e convenções das relações de poder existentes – e a vida segue o
drama.

*Caio Vasconcellos é pesquisador de pós-doutorado junto ao departamento de sociologia da


Unicamp.

UA-148478982-1

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30/04/2021 Por que ainda indústria cultural? - A TERRA É REDONDA

Por que ainda indústria cultural?

Imagem: Ciro Saurius

Por CAIO VASCONCELLOS*

Processos de convergência cultural não se limitam a uma simples transformação tecnológica

Em Cultura da convergência (Aleph), Henry Jenkins anuncia o início de uma nova era na
produção e no consumo de comunicação e de entretenimento. Embora profundamente
imbricados à popularização de computadores pessoais, aos televisores e telefones celulares
com acesso à internet e ao surgimento de novas plataformas digitais, processos de
convergência cultural não se limitariam a uma simples transformação tecnológica.

Na confluência entre o relativo barateamento dos preços dos dispositivos técnicos


envolvidos na produção, circulação e consumo de conteúdos audiovisuais e a concentração
da propriedade dos grandes meios de comunicação de massa – segundo o autor, tendência
já verificada nos Estados Unidos no início dos anos 1980 –, o fenômeno se desdobraria em
um conjunto complexo de transformações, atingindo os grandes conglomerados
empresariais, coletivos de mídia alternativos e até mesmo o público, em seus hábitos e
atividades de consumo.

Se, no início dos anos 1990, Nicholas Negroponte previa em seu A vida digital o colapso das
formas e estruturas das mídias tradicionais e a total hegemonia das novas tecnologias
interativas de comunicação, a era da convergência é marcada pelo embate e pela
coexistência de múltiplas plataformas, processos e atores, abrindo espaço para que cada um
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crie suas próprias imagens e mitologias a partir de fragmentos de informações do


inesgotável fluxo midiático.

Além do conceito de convergência, Jenkins destaca ainda duas outras categorias para
analisar uma realidade nova, mutante e, conforme sua avaliação, digna de ser venerada. Um
dos precursores das pesquisas sobre cultura dos fãs, Jenkins coloca o papel do público ou do
consumidor de entretenimento em primeiro plano. Ao contrário das leituras sobre a
passividade da audiência ante produtos da mídia tradicional, essa nova era seria também o
tempo da participação ativa dos sujeitos e das interações entre eles sob regras que ninguém
dominaria inteiramente.

Embora em concorrência com alguns dos maiores conglomerados da história do


capitalismo, os indivíduos fariam parte de uma espécie de inteligência coletiva (Lévy, 1999),
possível fonte alternativa de poder – na mídia, na cultura e na sociedade. Essa produção
coletiva de significados no mundo cibernético alteraria práticas e mecanismos de
comunicação não apenas na imprensa ou na publicidade, mas também na política, no
direito, na educação, nas religiões, nos exércitos, etc.

A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência
altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A
convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os
consumidores processam a notícia e o entretenimento. Lembrem-se disto: a convergência
refere-se a um processo, não a um ponto final. Não haverá uma caixa preta que controlará o
fluxo midiático para dentro de nossas casas. Graças à proliferação de canais e à
portabilidade das novas tecnologias de informática e telecomunicações, estamos entrando
numa era em que haverá mídias em todos os lugares. A convergência não é algo que vai
acontecer um dia, quando tivermos banda larga suficiente ou quando descobrirmos a
configuração correta dos aparelhos. Prontos ou não, já estamos vivendo numa cultura da
convergência. (Jenkins, 2013: 43)

Muito influente nos estudos contemporâneos de cultura, comunicação e entretenimento, as


análises de Jenkins revivem temáticas recorrentes em interpretações sobre processos de
massificação cultural. Apesar de abordarem fenômenos diversos e de suas profundas
diferenças teórico-conceituais, autores como Mike Featherstone, Stuart Hall, Jesús Martín-
Barbero, Néstor García Canclini entre tantos outros, constroem suas perspectivas de crítica
a partir de um ponto de vista comum, qual seja, o sujeito que resiste ao encantamento das
mercadorias culturais. Mesmo sem ignorar o caráter mercantil dos produtos e atividades de
entretenimento, esse prisma de análise pressupõe uma cisão entre as determinações social-
objetivas da produção de artefatos socioculturais e a esfera subjetiva de sua recepção.

Talvez a formulação teórica mais instigante, Hall enfatiza a relativa autonomia entre
codificação e decodificação nos processos de comunicação. Contra uma visão tradicional que

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pressuporia certa linearidade nas relações entre emissores, mensagens e a recepção, Hall
busca compreender a articulação entre produção, circulação, consumo e reprodução, por
exemplo, dos discursos televisivos.

Diferentemente dos destinos de outros tipos de produtos em sociedades capitalistas, uma


mensagem discursiva quando posta em circulação exige que esse veículo de signos seja
construído dentro das regras da linguagem, ou seja, que ele faça algum sentido. Embora
iniciem e sejam fundamentais no circuito de uma mensagem televisiva, as rotinas de
produção, as habilidades técnicas, conhecimentos institucionais, ideologias profissionais,
definições e preconceitos sobre a audiência –i.e., toda a sua estrutura produtiva – não
formam um sistema fechado (Hall: 2003, 392).

O circuito produção-distribuição-produção não se reproduz mecanicamente, e interpretar a


passagem das formas de um momento ao outro seria crucial. Embora relacionadas, a
produção e a recepção de uma mensagem televisiva não são idênticas. O discurso que se
constrói de acordo com as regras e intenções das rotinas de produção é recebido pelos
diversos grupos que compõem o público de acordo com a estrutura de diferentes práticas
sociais. É verdade que, em uma situação de identidade profunda e completa entre sujeitos
dos mais diversos grupos sociais, poderia haver uma sintonia perfeita entre a emissão de
conteúdos e sua recepção. Porém, em uma sociedade complexa e diferenciada, distorções e
mal-entendidos tendem a ocorrer com muito mais frequência – e seriam essenciais para
analisar, entre outras coisas, o significado político ou ideológico de qualquer mensagem.

Apesar das contribuições que essas perspectivas ainda possam agregar à interpretação dos
fenômenos socioculturais contemporâneos, McGuigan em Cultural populism (1992)chama
atenção para vieses importantes nos chamados estudos culturais da Escola de Birmingham,
especialmente a partir dos anos 1980. Inspirado em princípios da semiótica de Umberto Eco,
o argumento segundo o qual a codificação de textos e artefatos culturais não dita sua
decodificação levou a uma espécie de populismo cultural, que se descola das intenções
críticas e radicais que animaram, por exemplo, as abordagens de Raymond Williams – e, em
certa medida, do próprio Hall – sobre cultura popular.

Enquanto o projeto original se propunha valorizar a cultura das classes trabalhadoras e as


lutas por transformações políticas radicais, o texto icônico de Hall desencadeou um novo
olhar que, ao sublinhar certo comportamento ativo do público, perdeu a capacidade de
interpretar criticamente as produções socioculturais hegemônicas. Em consonância com a
ideologia pós-moderna e multiculturalista que, no final dos anos 1980, ainda poderia ser
capaz de confundir os mais incautos com ares supostamente progressistas, o populismo
cultural se ancoraria na noção de soberania do consumidor, figura lendária originalmente
criada por economistas neoclássicos do século XIX, e que o neoliberalismo adoça com um
cintilante cinza objetivo.

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Atualmente, os setores mais dinâmicos da exploração industrial de entretenimento colocam


em circulação mercadorias culturais que parecem estar situados além do escopo desse
modelo crítico. Se, diante do nascimento dos grandes monopólios culturais, Adorno e
Horkheimer sublinharam um primeiro movimento de expansão da reificação com a
organização do tempo livre pelo capital, que levou a heteronomia das relações industriais
para a esfera da vida privada e cotidiana; hoje em dia, pode-se dizer que essa não-liberdade
se espalha por meio da participação ativa do público nos processos de valorização do capital.

Além de fatores externos como a onipresença de dispositivos tecnológicos e altíssima


concentração de capital em um mercado dominado por um número absolutamente pequeno
de colossos transnacionais, o encantamento fetichista próprio da mercadoria cultural me
parece o elemento fundamental para a interpretação dos condicionantes internos do
ardoroso envolvimento individual-subjetivo dedicado a essas atividades e produtos de
entretenimento. Longe das tramas de uma simples manipulação, o poder da indústria
cultural sobre os consumidores permanece mediado pela forma de um desejo sempre
postergado. A certeza de que “um cachorro em um filme pode latir, mas não pode morder”
(Hall: 2003, 392)informa um modelo de crítica que soa inofensivo diante de um tipo de
sedução que faz os indivíduos se contentarem com a leitura do cardápio, logrando os
consumidores justamente com aquilo que lhes promete (Adorno & Horkheimer: 1985, 114).

O doce comportamento do público não é passivo, mas sim castrado. Como principal logro da
Indústria cultural consiste em afastar os sujeitos da coisa mesma, o que se mantém
implícito ganha primazia sobre o conteúdo levado ao ar ou projetado nas telas de cinema. Os
seus setores mais atentos permitem que quase tudo seja dito e feito em suas produções,
desde que as entrelinhas sejam plenas de sentido. Os estímulos para os sujeitos amarem as
engrenagens de suas cadeias não cessam por um instante. Embora seus produtos muitas
vezes não tenham preço, nada é gratuito. O que importa é que os papéis permaneçam os
mesmos e sempre deixem o público pronto para correr para os cinemas para desfrutar do
último lançamento das antigas parcerias costumeiras. Para reproduzir perfeitamente a
mecânica que comanda o mundo, a pressa é a melhor amiga e conselheira. Além da violência
aberta, a sugerida cumpre sua função esgotando qualquer possibilidade de ponderação. Sem
a correria que impede que as pessoas se desviem dos caminhos habituais, uma sociedade
organizada para que a afluência não seja produzida para eliminar a fome, mas para mantê-
la, não duraria um segundo a mais.

O prazer com a violência infligida ao personagem transforma-se em violência contra o


espectador, a diversão em esforço. Ao olho cansado do espectador nada deve escapar
daquilo que os especialistas excogitaram como estímulo; ninguém tem o direito de se
mostrar estúpido diante da esperteza do espetáculo; é preciso acompanhar tudo e reagir
com aquela presteza que o espetáculo exibe e propaga. Deste modo, pode-se questionar se a
indústria cultural ainda preenche a função de distrair, de que ela se gaba tão
estentoreamente.(Adorno & Horkheimer, 1985, p. 113)

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Obviamente, seus mecanismos e recursos não permaneceram intocados ao longo das


décadas, mas tampouco a Indústria cultural deve ser tratada como uma usina de novas
ideias e grandes novidades – há, na verdade, uma complexa dialética entre aspectos
dinâmicos e elementos estáticos que perpassa tanto suas produções em particular como a
sua organização enquanto sistema. Nesse sentido, é interessante notar que, em “Sobre o
caráter fetichista da música e a regressão da audição”, Adorno já se voltava a interpretar o
caráter ilusório da atividade levada a cabo pelos sujeitos em seus processos de consumo de
mercadorias culturais.

Esta pseudoatividade não é um desenvolvimento posterior das técnicas de reprodução


mecânica de obras de arte ou da produção industrial de cultura, nem mesmo a conquista de
um espaço de participação – ou de alguma influência – do público sobre os produtos e os
rumos dos grandes monopólios da cultura. Se é verdade que, assim que entram em cena
como mercadoria, os produtos do trabalho humano se transmutam em coisas
sensorialmente supersensíveis, há um comportamento individual correspondente que se
adequa ao ciclo das trocas comerciais. Igualmente falsas, a sedução objetiva e a regressão
subjetiva são os pressupostos necessários em uma sociedade que naturaliza a dominação e a
opressão social.

Assim, ao se concentrar na produção da música como mercadoria, o frankfurtiano sublinha


a regressão da escuta e a sua fixação em escala infantil. A causa desta regressão não é o
aumento do número de pessoas que, à época, podiam ouvir música sem conhecer suas
tradições, convenções estéticas e regras de composição – o elitismo que tanto acusam
Adorno não figura em sua crítica. O primitivismo surge daqueles que foram privados de
qualquer liberdade efetiva de escolha e são forçados a adaptar seus desejos e anseios ao que
existe e está presente por todos os lados.

Coagidos pela onipresença do que faz sucesso comercial, o ouvinte se vê obrigado assumir o
papel de mero consumidor, deixando morrer dentro de si a possibilidade de sonhar com
algo melhor e verdadeiro. Lutando para se identificar com os clichês e jargões que presidem
a produção da arte e cultura como mercadoria, os indivíduos não veem outra saída senão
ridicularizar seus próprios desejos e odiar o que os diferencia dos demais. Tal identificação
nunca é perfeita, e o gozo desse falso objeto de desejo deve ser desviado do conteúdo
concreto e se tornar atento às minúcias que afastam das promessas.

Enquanto pareça impossível estabelecer relações com outras coisas que não mediadas por
um título de propriedade, os indivíduos são incapazes de romper o círculo de sedução que os
mantém cativos. Se o mecanismo objetivo que produz fetiches não for desbaratado, as
tentativas desesperadas de sair dessa condição de desamparo aprofundam o abismo que
afasta a humanidade da verdadeira liberdade. O entusiasmo que as pessoas se sentem
compelidas a representar toma conta da situação – certo ativismo irrefletido tornou-se um
fim em si mesmo. O modelo desse amor pela mercadoria é uma prática obsessiva, tal como a

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30/04/2021 Por que ainda indústria cultural? - A TERRA É REDONDA

desempenhada por fãs que escrevem cartas – elogiosas ou agressivas, mas sempre
compulsivamente – aos programadores de rádio para simular o controle sobre a parada de
sucessos.

Sempre atentos ao comportamento manifesto do público, os especialistas da Indústria


Cultural têm seu trabalho facilitado, e têm apenas que lançar slogans que espalhem por
todos os lados: Just do it ou Broadcast Yourself– e, a partir daí, as coisas parecem caminhar
sozinhas como se fossem mesas que dançavam por si próprias, tal como em uma pré-
história ainda não superada.

“O rádio tem em alta conta esse tipo de ás do passatempo artesanal. É ele quem, com
infinita minúcia, constrói aparelhos cujos principais componentes as lojas fornecem
prontos, a fim de vasculhar os ares à caça dos mais recônditos segredos, que na verdade
inexistem. Como leitor de livros de viagem e de aventuras indígenas, descobriu terras nunca
dantes navegadas, que conquistou abrindo trilhas através da mata virgem; como amador,
transforma-se em descobridor das invenções que a indústria quer que descubra. Não traz
para casa nada que não lhe poderia ser entregue em domicílio. Os aventureiros da
pseudoatividade já estão catalogados aos montes em pilhas reluzentes. Os radioamadores,
por exemplo, recebem cartões de certificação pela descoberta de estações em ondas-curtas
e promovem campeonatos nos quais vence quem prova possuir a maior quantidade desses
cartões. Tudo isso é preordenado desde cima com o maior zelo. Dentre os ouvintes
fetichistas, o jovem amador talvez seja o exemplar mais bem acabado. É-lhe indiferente o
que escuta, e até mesmo como escuta; basta-lhe escutar e inserir-se com seu aparelho
privado no mecanismo público, sem que por isso exerça a mínima influência sobre ele. Com
o mesmo propósito, incontáveis ouvintes de rádio manobram o seletor de frequência e o
volume de seu aparelho, sem manufaturarem um eles mesmos” (Adorno: 2020, 90–91).

*Caio Vasconcellos é pesquisador de pós-doutorado no departamento de sociologia da


Unicamp.

Referências bibliográficas

Adorno, Theodor. (2020), “Sobre o Carácter Fetichista Na Música e a Regressão Da


Audição.” In Indústria Cultural. São Paulo: Editora da Unesp.

Adorno, Theodor&Horkheimer, Max. (1985),Dialética Do Esclarecimento. Fragmentos


Filosóficos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor.

Hall, Stuart. (2003). “Codificação/Decodificação.” In Liv Sovik (org.) Da Diáspora. Belo


Horizonte: Editora UFMG.

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Jenkins, Henry. (2013),Cultura Da Convergência. São Paulo: Aleph.

Lévy, Pierre. (1999),Cibercultura. São Paulo: Editora 34.

McGuigan, Jim. (1992),Cultural Populism. London and New York: Routledge.

Negroponte, Nicholas. (1995), A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras.

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