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Em outubro de 2012, uma reportagem do jornal Folha de São Paulo afirmava que a
coordenação da campanha de Fernando Haddad teria convencido a presidenta Dilma
Rousse – à época, detentora de uma aprovação de 55% na capital paulista – a adiar a data
do comício no qual apareceria ao lado do então candidato à prefeitura de São Paulo. O
motivo era insólito: o evento político-eleitoral concorreria com a exibição do capítulo final
de Avenida Brasil, telenovela exibida pela Rede Globo. Na cidade de Salvador, cogitou-se
instalar telões para transmitir a reprise do último episódio da novela a fim de que outro
comício com a presidenta não corresse o risco de ser esvaziado; em todo o país, o Operador
Nacional do Sistema Elétrico temia pela possibilidade de um apagão decorrente da
exuberante audiência do folhetim eletrônico.
Bastante festejada pela crítica televisiva e por setores da academia, Avenida Brasil foi a
tentativa mais bem elaborada da recente teledramaturgia nacional em retratar o que seria o
cotidiano e as formas de sociabilidade típicas de um universo urbano formado
majoritariamente por personagens de origem popular. Se, até então, esses estratos da
população eram ou marginalizados ou retratados por um viés quase exclusivamente cômico
nos folhetins eletrônicos, personagens pertencentes às camadas populares assumiram
maior centralidade e protagonismo em Avenida Brasil.
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30/04/2021 industria cultural
Aos olhos de uns, as expectativas desse passado recente parecem, hoje, quase uma utopia. A
promessa de um mercado de consumo amplo o suficiente para abarcar todos os estratos da
população é contrastada com anos seguidos de rebaixamento do poder de compra sobretudo
das camadas populares. A estética colorida e exuberante pela qual usualmente a classe C era
representada foi, após o golpe, substituída pelo retorno de um verde-oliva cintilante.
A proposta dos artigos programados para serem publicados em A Terra É Redonda consiste
em apresentar análises sobre tendências recentes na exploração industrial de cultura no
país, especialmente sobre o mercado televisivo nacional e sobre a mercadoria cultural de
maior circulação no Brasil – as telenovelas. Além da orientação política de suas empresas e
conglomerados, o setor se distingue não apenas por sua pujança ou por seu alto grau de
concentração econômica, mas também por colocar em circulação visões de mundo e estilos
de vida, conjuntos de normas e de valores, objetos de desejo, afetos e dinâmicas libidinais.
Ainda que a manipulação do noticiário também seja alvo de critica, é pela mobilização
desses fragmentos ideológicos objetivos que a indústria cultural verdadeiramente cativa o
seu público, ao mesmo tempo em que se vale de sua expertise para naturalizar a injustiça
das relações econômicas e a violência da dominação social.
Diante de um público que não se restringe mais a um papel meramente passivo frente à
concepção, à elaboração e à distribuição de mercadorias culturais, convém perscrutar o
papel desempenhado pelos sujeitos nessas produções, e o significado de formas
hegemônicas de sociabilidade online que se estruturam nesses domínios.
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30/04/2021 A classe C na Globo - A TERRA É REDONDA
A classe C na Globo
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30/04/2021 A classe C na Globo - A TERRA É REDONDA
Adotada por uma endinheirada família argentina, Rita transforma-se em Nina – educada
em um ambiente de alta classe, torna-se uma prestigiada chef de cuisine e proprietária de
um requintado restaurante em Buenos Aires. Com a morte de seu pai adotivo, a protagonista
da novela resolve voltar ao Brasil mais de uma década após sua partida, e encontra em uma
vaga aberta de cozinheira na casa de Tufão (Murilo Benício), atual esposo de Carminha, a
oportunidade de, finalmente, executar a vingança planejada durante toda sua vida.
Exibida apenas entre os capítulos 103 e 132 da telenovela, a vingança de Nina parece, à
primeira vista, se estruturar como uma simples inversão de seus respectivos papéis. De
posse de fotos que comprovariam a relação extraconjugal que Carminha mantinha com
Max, a protagonista da trama obriga a sua patroa a assumir as tarefas destinadas às
empregadas domésticas da mansão, e o faz com crueldade equivalente à de sua arquirrival.
Nesse primeiro momento, a mocinha da trama ordena que Carminha prepare e lhe sirva um
jantar, limpe o chão sob xingamentos e outras humilhações, desinfete o vaso sanitário da
suíte principal e, de maneira quase pedagógica, comanda uma incursão ao seu quarto de
empregada – ressaltando a falta de ventilação e de iluminação do diminuto cômodo, a falta
de água quente no chuveiro, o cheiro ruim da habitação, entre outras precariedades. Nos
diálogos entre as personagens, houve espaço, inclusive, para que Nina arrancasse de
Carminha a promessa de um aumento substantivo dos salários de suas colegas, de respeitar
limites às suas jornadas de trabalho e de, enfim, remunerar suas horas-extra.
Porém, além de uma crítica social de baixa intensidade e da sugestão de que as aviltantes
condições de trabalho às quais é submetida parcela expressiva da população brasileira
pudessem corresponder a uma punição merecida por alguma vilania do passado, a vingança
de Nina mobiliza ainda outros temas e construções ideológicas importantes.
Se, em certa tradição crítica brasileira, há uma expectativa utópica recorrente de que setores
populares possam, enfim, civilizar os maus hábitos e vícios das elites nacionais, a
personagem Nina desempenha um papel completamente distinto. Ao se fantasiar de
cozinheira de uma mansão no periférico bairro do Divino, a herdeira de uma rica família
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30/04/2021 A classe C na Globo - A TERRA É REDONDA
Aos olhos e pelas falas de Nina, os anos de riqueza de Carminha não se traduziram em
nenhum melhoramento de seus gostos, seu guarda-roupa seria composto por peças de
confecção do bairro periférico do Divino, a personagem desconhecia regras básicas de
etiqueta, mantendo-se a mesma “cafonuda” que, antes de se casar com o ex-jogador de
futebol Tufão, trajava-se com “pochetinha e conjuntinhos jeans”.
Na cena em que é obrigada a servir o jantar para Nina, Carminha é repreendida para se
aprumar e corrigir sua postura, suas mãos deveriam estar à frente do corpo – repousadas –
e que, ao menos, ela precisaria fingir ser uma serviçal de classe capaz de servir a refeição da
maneira correta, isto é, à francesa.
Em diálogo travado entre as personagens, Nina se dirige à sua patroa nos seguintes termos e
em nível crescente de agressividade: – Nina: Exatamente, eu estou sentada na cabeceira
porque hoje quem vai me servir é você, vaca! A partir de agora, eu sou a madame e você é
minha empregadinha. Vai, anda, me serve que eu estou com fome, não estão vendo? Me
serve, eu estou mandando, me serve! Anda, me serve! Eu estou mandando, não está vendo?
Está esperando o que, hein? Me serve, vadia, me serve!
Ao mesmo tempo em que anunciava buscar restituir a posse de privilégios de classe à sua
portadora supostamente legítima, esse trecho permite perceber também outro elemento
bastante atuante na vingança de Nina. Aspecto presente nas diferentes fases de Avenida
Brasil e proferido por tantas outras de suas personagens, o componente de misoginia nos
diálogos entre Nina e Carminha é estarrecedor.
Em uma das primeiras cenas entre as duas, a protagonista ordena que sua rival esquente o
seu jantar e, munida com uma colher de pau nas mãos, a golpeia nas nádegas, com a
seguinte fala: – Nina: Esquenta essa comida direito, cavalgadura. Não sabe nem mexer uma
panela, vadia. Mas esse seu traseiro bem que você sabe mexer pro teu macho, não é não?
“cadela” – por uma vez –, sem contar outros xingamentos como de burra, besta, imbecil,
inútil, imprestável, etc. Mesmo ameaçada pela possível revelação ao seu marido de sua
relação extraconjungal, a personagem de Carminha ainda assim foi capaz de retrucar as
ofensas de Nina em algumas poucas oportunidades, também a chamando de “vadia” – por
três vezes –, de “vagabunda” – em duas ocasiões – e de “piranha” – por uma vez.
Todavia, esse novo e derradeiro momento da vingança de Nina não se restringiu em tentar
readequar a personagem de Carminha ao figurino de uma dona-de-casa tradicional. Na
verdade, o plano explorava estereótipos ainda mais sórdidos – fazer crer que a vilã da trama
se tornara louca e histérica. Após obrigar Carminha a preparar um jantar à sua família, Nina
mistura lixo à refeição elaborada por sua antiga madrasta e servida aos demais moradores
da mansão, levantando as primeiras suspeitas a respeito da sanidade mental de sua patroa.
O diagnóstico de sua loucura viria a ser atestado pelos homens da casa – primeiro o seu
sogro Leleco (Marcos Caruso) e, alguns capítulos mais tarde, a suspeita foi transformada em
certeza por seu marido Tufão. Como se também subscrevesse esse antigo e persistente
preconceito contra as mulheres, a própria Carminha manifestava dia após dia tiques
nervosos e outros movimentos incontrolados até que, em uma cena um tanto forçada, salta
pela janela de seu quarto – localizado no segundo andar de sua mansão. Acudida por seus
familiares, Carminha é recolhida, de modo bastante violento, por uma equipe médica, e os
efeitos da vingança desencadeiam uma internação compulsória em um hospício. A loucura
de Carminha encontra sua certificação científica.
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30/04/2021 A classe C na Globo - A TERRA É REDONDA
É interessante observar certo paralelo entre a essa estrutura da vingança de Nina e uma
disposição ideológica descrita por Adorno em Personalidade autoritária. Em um mundo no
qual a força indomada da economia se revela em qualquer experiência cotidiana, os
indivíduos se vêem obrigados a se adaptar à distribuição de poder que, de fato, organiza as
sociedades.
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30/04/2021 Por que ainda indústria cultural? - A TERRA É REDONDA
Em Cultura da convergência (Aleph), Henry Jenkins anuncia o início de uma nova era na
produção e no consumo de comunicação e de entretenimento. Embora profundamente
imbricados à popularização de computadores pessoais, aos televisores e telefones celulares
com acesso à internet e ao surgimento de novas plataformas digitais, processos de
convergência cultural não se limitariam a uma simples transformação tecnológica.
Se, no início dos anos 1990, Nicholas Negroponte previa em seu A vida digital o colapso das
formas e estruturas das mídias tradicionais e a total hegemonia das novas tecnologias
interativas de comunicação, a era da convergência é marcada pelo embate e pela
coexistência de múltiplas plataformas, processos e atores, abrindo espaço para que cada um
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30/04/2021 Por que ainda indústria cultural? - A TERRA É REDONDA
Além do conceito de convergência, Jenkins destaca ainda duas outras categorias para
analisar uma realidade nova, mutante e, conforme sua avaliação, digna de ser venerada. Um
dos precursores das pesquisas sobre cultura dos fãs, Jenkins coloca o papel do público ou do
consumidor de entretenimento em primeiro plano. Ao contrário das leituras sobre a
passividade da audiência ante produtos da mídia tradicional, essa nova era seria também o
tempo da participação ativa dos sujeitos e das interações entre eles sob regras que ninguém
dominaria inteiramente.
A convergência das mídias é mais do que apenas uma mudança tecnológica. A convergência
altera a relação entre tecnologias existentes, indústrias, mercados, gêneros e públicos. A
convergência altera a lógica pela qual a indústria midiática opera e pela qual os
consumidores processam a notícia e o entretenimento. Lembrem-se disto: a convergência
refere-se a um processo, não a um ponto final. Não haverá uma caixa preta que controlará o
fluxo midiático para dentro de nossas casas. Graças à proliferação de canais e à
portabilidade das novas tecnologias de informática e telecomunicações, estamos entrando
numa era em que haverá mídias em todos os lugares. A convergência não é algo que vai
acontecer um dia, quando tivermos banda larga suficiente ou quando descobrirmos a
configuração correta dos aparelhos. Prontos ou não, já estamos vivendo numa cultura da
convergência. (Jenkins, 2013: 43)
Talvez a formulação teórica mais instigante, Hall enfatiza a relativa autonomia entre
codificação e decodificação nos processos de comunicação. Contra uma visão tradicional que
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30/04/2021 Por que ainda indústria cultural? - A TERRA É REDONDA
pressuporia certa linearidade nas relações entre emissores, mensagens e a recepção, Hall
busca compreender a articulação entre produção, circulação, consumo e reprodução, por
exemplo, dos discursos televisivos.
Apesar das contribuições que essas perspectivas ainda possam agregar à interpretação dos
fenômenos socioculturais contemporâneos, McGuigan em Cultural populism (1992)chama
atenção para vieses importantes nos chamados estudos culturais da Escola de Birmingham,
especialmente a partir dos anos 1980. Inspirado em princípios da semiótica de Umberto Eco,
o argumento segundo o qual a codificação de textos e artefatos culturais não dita sua
decodificação levou a uma espécie de populismo cultural, que se descola das intenções
críticas e radicais que animaram, por exemplo, as abordagens de Raymond Williams – e, em
certa medida, do próprio Hall – sobre cultura popular.
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30/04/2021 Por que ainda indústria cultural? - A TERRA É REDONDA
O doce comportamento do público não é passivo, mas sim castrado. Como principal logro da
Indústria cultural consiste em afastar os sujeitos da coisa mesma, o que se mantém
implícito ganha primazia sobre o conteúdo levado ao ar ou projetado nas telas de cinema. Os
seus setores mais atentos permitem que quase tudo seja dito e feito em suas produções,
desde que as entrelinhas sejam plenas de sentido. Os estímulos para os sujeitos amarem as
engrenagens de suas cadeias não cessam por um instante. Embora seus produtos muitas
vezes não tenham preço, nada é gratuito. O que importa é que os papéis permaneçam os
mesmos e sempre deixem o público pronto para correr para os cinemas para desfrutar do
último lançamento das antigas parcerias costumeiras. Para reproduzir perfeitamente a
mecânica que comanda o mundo, a pressa é a melhor amiga e conselheira. Além da violência
aberta, a sugerida cumpre sua função esgotando qualquer possibilidade de ponderação. Sem
a correria que impede que as pessoas se desviem dos caminhos habituais, uma sociedade
organizada para que a afluência não seja produzida para eliminar a fome, mas para mantê-
la, não duraria um segundo a mais.
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30/04/2021 Por que ainda indústria cultural? - A TERRA É REDONDA
Coagidos pela onipresença do que faz sucesso comercial, o ouvinte se vê obrigado assumir o
papel de mero consumidor, deixando morrer dentro de si a possibilidade de sonhar com
algo melhor e verdadeiro. Lutando para se identificar com os clichês e jargões que presidem
a produção da arte e cultura como mercadoria, os indivíduos não veem outra saída senão
ridicularizar seus próprios desejos e odiar o que os diferencia dos demais. Tal identificação
nunca é perfeita, e o gozo desse falso objeto de desejo deve ser desviado do conteúdo
concreto e se tornar atento às minúcias que afastam das promessas.
Enquanto pareça impossível estabelecer relações com outras coisas que não mediadas por
um título de propriedade, os indivíduos são incapazes de romper o círculo de sedução que os
mantém cativos. Se o mecanismo objetivo que produz fetiches não for desbaratado, as
tentativas desesperadas de sair dessa condição de desamparo aprofundam o abismo que
afasta a humanidade da verdadeira liberdade. O entusiasmo que as pessoas se sentem
compelidas a representar toma conta da situação – certo ativismo irrefletido tornou-se um
fim em si mesmo. O modelo desse amor pela mercadoria é uma prática obsessiva, tal como a
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30/04/2021 Por que ainda indústria cultural? - A TERRA É REDONDA
desempenhada por fãs que escrevem cartas – elogiosas ou agressivas, mas sempre
compulsivamente – aos programadores de rádio para simular o controle sobre a parada de
sucessos.
“O rádio tem em alta conta esse tipo de ás do passatempo artesanal. É ele quem, com
infinita minúcia, constrói aparelhos cujos principais componentes as lojas fornecem
prontos, a fim de vasculhar os ares à caça dos mais recônditos segredos, que na verdade
inexistem. Como leitor de livros de viagem e de aventuras indígenas, descobriu terras nunca
dantes navegadas, que conquistou abrindo trilhas através da mata virgem; como amador,
transforma-se em descobridor das invenções que a indústria quer que descubra. Não traz
para casa nada que não lhe poderia ser entregue em domicílio. Os aventureiros da
pseudoatividade já estão catalogados aos montes em pilhas reluzentes. Os radioamadores,
por exemplo, recebem cartões de certificação pela descoberta de estações em ondas-curtas
e promovem campeonatos nos quais vence quem prova possuir a maior quantidade desses
cartões. Tudo isso é preordenado desde cima com o maior zelo. Dentre os ouvintes
fetichistas, o jovem amador talvez seja o exemplar mais bem acabado. É-lhe indiferente o
que escuta, e até mesmo como escuta; basta-lhe escutar e inserir-se com seu aparelho
privado no mecanismo público, sem que por isso exerça a mínima influência sobre ele. Com
o mesmo propósito, incontáveis ouvintes de rádio manobram o seletor de frequência e o
volume de seu aparelho, sem manufaturarem um eles mesmos” (Adorno: 2020, 90–91).
Referências bibliográficas
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30/04/2021 Por que ainda indústria cultural? - A TERRA É REDONDA
Negroponte, Nicholas. (1995), A vida digital. São Paulo: Companhia das Letras.
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