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INTRODUÇÃO
O romance gráfico Pílulas azuis (2015)1, publicado pela primeira
vez em 2001 e vencedor do prêmio de melhor edição especial estrangeira do
2
Troféu HQ Mix em 2016, trata da autobiografia de Frederik Peeters, nascido
em Genebra, na Suíça, em 14 de agosto de 1974. Peeters concluiu sua
graduação em artes na École Supérieure d’Arts Appliqués3 em 1995 e tornou-
se um famoso quadrinista premiado por diversos projetos em todo o Mundo. Na
narrativa de Pílulas azuis, o quadrinista descreve seu relacionamento com Cati,
uma mãe solo soropositiva, desde os primeiros encontros do casal quando
iniciaram o contato através de amigos em comum.
A história se passa em Genebra, no final da década de 90 e início
dos anos 2000 e narra o desenvolvimento da relação ainda antes de um
envolvimento amoroso e as dúvidas e dificuldades do casal com a revelação de
que Cati e seu filho (uma criança de quatro anos, de outro relacionamento) são
soropositivos.
Apesar da ausência de conhecimento de ambas as partes, Frederik
em momento algum hesita em dar continuidade à relação; o casal então
embarca em um novo mundo em busca de respostas e conhecimento acerca
de uma síndrome que até hoje carrega o estigma de sentença de morte.
A síndrome da imunodeficiência adquirida, popularmente conhecida
como AIDS, teve seus primeiros indícios na década de 80. Estima-se que em
2017 em torno de 37 mil pessoas conviviam com a doença 4. O vírus HIV ataca
o sistema imunológico e deixa o organismo vulnerável às definidas pela
medicina como “doenças oportunistas”. Inicialmente, a incidência do vírus HIV
foi indicada sobretudo em indivíduos negros e homossexuais, pessoas que já
eram marginalizadas por preconceitos de cor e sexualidade, sendo
popularmente associadas ao vírus e, por conseguinte, à promiscuidade.
Os primeiros sintomas da AIDS eram até então desconhecidos pela
medicina, o que resultou na morte de muitas vítimas que haviam contraído o
1
Originalmente Pilules bleues.
2
Prêmio brasileiro destinado aos quadrinhos.
3
Escola Superior de Artes Aplicadas.
4
Informação retirada do site:
< https://www.uol.com.br/vivabem/noticias/redacao/2018/12/04/aids-sintomas-iniciais-da-infeccao-
por-hiv-podem-ser-confundidos-com-gripe.htm >
vírus, devido à rapidez do desenvolvimento da doença e à debilitação do corpo
sem os tratamentos adequados. Esses fatores, unidos aos estigmas sociais,
tornaram a população soropositiva bastante excluída e vítima de preconceitos,
na maioria das vezes causado por falta de conhecimento ou por ideias
errôneas difundidas no início da descoberta do vírus em humanos, algo que é
até hoje replicado por grande parte da população.
A importância da narração de Pílulas azuis diante de uma
sociedade ainda tão presa a estigmas relacionados ao HIV torna-se inegável;
no ano de lançamento da primeira versão da história, 2001, os estudos acerca
da AIDS ainda eram extremamente primitivos se considerarmos que o vírus só
havia comprovadamente sido descoberto cerca de 20 anos antes, em um
período que a evolução médica e tecnológica ainda caminhava a passos curtos
e os tabus sociais eram ainda mais latentes.
Mais do que apenas sobreviver com o HIV, Frederick mostra como
conviver com o vírus como um fator da rotina de seu relacionamento e não
como um empecilho. O casal unido desvenda os mistérios e cuidados
necessários para uma vida saudável e segura, consolidando assim a relação
de amor e construindo uma família.
O objetivo geral deste trabalho é analisar a história de Pílulas azuis
na instância da desmistificação dos preconceitos com indivíduos soropositivos.
Como objetivos específicos, pretendemos a) examinar no livro a utilização do
signo “doença”, que é colocado de maneira distante do significado usual; b)
pesquisar os diálogos entre signos verbais e não-verbais presentes na história;
e c) analisar a relação de uma casal soro-discordante de acordo com a
perspectiva do narrador.
Este estudo foi dividido em três partes, da seguinte forma: a
primeiro se fundamenta teoricamente em Susan Sontag (1978-1989), em suas
obras que discutem de que forma o signo doença é representado num contexto
de senso comum e como as interpretações acerca de enfermidades podem ser
diferentes de acordo com a cultura, ainda que, do ponto de vista médico, a
aquisição dessas patologias sejam inerentes aos indivíduos. Posteriormente,
na segunda seção, usaremos de referencial teórico científico para
esclarecimentos a respeito da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida através
de elementos gráficos e verbais presentes em Pílulas Azuis. Para isto, nos
utilizaremos da obra de Umberto Eco ( 2007) para formular diálogos a fim de
analisar a estrutura comunicativa, e de Décio Pignatari (2004), que busca
estabelecer relações significativas em diferentes linguagens e códigos dentro
da obra literária. Para a última seção, temos a análise da obra Pílulas azuis a
partir do que foi discutido nas seções anteriores, de forma que em cada um dos
subtópicos nos utilizaremos de distintos signos para exemplificar as ideias
expostas. Para esta seção, dentre outros referenciais, traremos o estudo de
Tzvetan Todorov (1970), que examina as estruturas das dimensões narrativas
contidas na literatura reformulando conceitos do formalismo russo no âmbito do
pós-estruturalismo.
Nessa seção, a atividade de análise será bastante onerosa, visto
requerer um intenso trabalho de observação de elementos gráficos e verbais
contidos ao longo da história existente nos quadrinhos e no epílogo, adicionado
nas versões a partir de 2015, apresentando a história da família Peeters treze
anos depois da primeira publicação do livro. A seleção bibliográfica deste
estudo, como um todo, busca proporcionar aos leitores interpretações diversas
e que se diferenciam do senso comum, como deve ser o objetivo dos trabalhos
acadêmicos.
2. REPRESENTAÇÃO LITERÁRIA
Ao final dos anos 80 e início dos anos 90, juntamente com a grande
evolução de medicamentos e tratamentos para o vírus HIV e suas doenças
oportunistas, mais um estigma foi associado à doença: além dos indivíduos
homossexuais, a parcela de pacientes usuários de drogas injetáveis que
postavam positivo para AIDS era assustadora. Nesse tocante o governo
estabelece metas e campanhas de conscientização populacional com temas
como “cuide de si e também dos outros”, além de declarar o dia 1 de dezembro
como o dia mundial da AIDS, neste período estima-se que mais de 10 milhões
de indivíduos já haviam se contaminado pela doença.
Em 1995, pela primeira vez fala-se em cura da AIDS, após o início
do tratamento com o primeiro “coquetel” de medicamentos. Após sua utilização,
a mortalidade diminuiu imediatamente e a imunidade melhorou, proporcionando
a recuperação das infecções conhecidas como oportunistas. Após a grande
euforia, os exames indicaram uma evolução, mas não a eliminação total do
vírus no organismo dos pacientes. Apesar da cura não acontecer, a evolução
medicamentosa diminuiu a transmissão viral entre mães e bebês, assim como
o índice de mortes de indivíduos já infectados.
O advento do séc. XXI estabeleceu mudanças significativas em
diversas áreas no mundo inteiro, com a pesquisa e tratamento da AIDS não foi
diferente, a partir desse período, as condições de possíveis contaminações
pelo vírus e as medidas de precaução foram e ainda são amplamente
divulgadas por estratégias dos governos de todos os países; para indivíduos já
infectados ou que foram expostos ao vírus, existe um tratamento eficaz que, se
seguido corretamente, torna a carga viral indetectável, proporcionando uma
vida plena aos pacientes. Em Pílulas azuis, Cati e seu filho seguem o
tratamento de maneira correta, com acompanhamento médico regular que
propicia saúde e qualidade de vida a ambos. Com ajuda médica, Cati e
Frederik inclusive têm uma criança não portadora do vírus.
Sontag (1989) afirma que: “Na formulação mais recente de Karl
Menninger, a doença é em parte aquilo que o mundo fez a uma vítima mas, na
maior parte, é aquilo que a vítima fez ao seu mundo e a si mesma.” Este
excerto traz o pensamento ainda hoje difundido sobre os portadores de AIDS,
apesar do intenso trabalho dos profissionais de saúde e os governos, o
preconceito com indivíduos soropositivos é ainda muito latente da sociedade.
Esse fato prejudica a comunidade como um todo, e alguns indivíduos que se
expõem ao vírus são resistentes a realizar os exames e tratamentos na maioria
das vezes porque não querem carregar consigo um estigma social, pois para
grande parte da população, diversas IST’S mas sobretudo a AIDS, são o
sinônimo de uma sentença de morte cruel e solitária.
As manifestações artísticas, como o cinema e a literatura, entram
como artifícios para contar a história de maneira que consigam quebrar os
padrões já tão reproduzidos socialmente, além de personagens históricos,
como Cazuza e Freddie Mercury, que se tornaram símbolos da luta contra a
AIDS, existem diversas produções que têm o intuito de causar comoção aos
espectadores mostrando as vivências do portadores do vírus, uma delas,
Filadélfia (1993), concedeu a Tom Hanks um Oscar de melhor ator pela
interpretação de um indivíduo homossexual portador de HIV que contrata um
advogado homofóbico para defender seu caso perante a justiça.
Apesar da importante referência de situações cotidianas nos meios
artísticos, muitas obras têm seu conteúdo exibido de forma branda para que
sejam bem aceitos pela produção e pelos consumidores, é possível perceber
situações como essa no filme A cura (1995), que narra a história de amizade
de Dexter e Eric, duas crianças onde uma foi contaminada pelo vírus HIV
durante uma transfusão de sangue. Concordamos com o crítico Stephen
Holden, quando diz:
Quando "The Cure" centra-se nos ritos da infância, ele evoca com
uma claridade intensa a mistura especial de inocência, a curiosidade,
terror e bravatas que leva as crianças para cometer atos
desesperados. Embora o filme lança-se diligentemente em um nível
mais elevado do que o típico filme de doença-da-semana na
televisão, ocasionalmente tem lapsos no sentimentalismo. E a sua
imagem dos estragos da AIDS é muito amolecida, sendo reduzida a
sintomas de fraqueza, febre ocasional e alguns ataques de tosse
leve. [...] O que ele [o diretor Peter Horton] e o roteirista, Robert Kuhn,
criaram é um filme de amigos pré-adolescentes, cujo comovente
apelo emocional não depende do fato de que um dos personagens
principais tem uma doença fatal. (HOLDEN, 1995).
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