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Copyright © Walter Alves Neves, Miguel José Rangel Junior e Rul Sérgio S. Murata (organzadores) Rovio: Projet Gratico e Edtoragao ‘Mathus Nerosky Produgio Eulitora: a 10 Editorial: a capa cedda por Catavento Gutural) fad / Walter Aves Neves, Miguel José Rangel Junior, (organizadores). So Paulo: Palas Athena, 2015, hhumano 2. Evolugdo humana 3, Homem - Origen Primatas ves. I. Rangel Junior, Miguel José. Mura Rui Sco, : cop-599.938, wn palasathena.og.br ‘editoraq@palasathona.orp.br savas. proaps ‘EDIGAO ——ASSIM CAMINHOU A—— HUMANIDADE Warren Atves Neves - Micuel. José Rance. Junior - Rui Sércio S. Murriera [onaanzapones) Sao Paulo 2015 2) Palas Athena NEOLITICO: DOMESTICACAO E ORIGEM DA COMPLEXIDADE SOCIAL RUI SERGIO S. MURRIETA HELBERT MEDEIROS PRADO BRUNO TRIPODE BATARQUINI RENAN TRIPODE BATARQUINI Laboratrio de Estudos Evolutivos Humanos ~ Departament de G Instituto de Biociéncias ~ Universidade de Sao a aaa ie ecre ‘mana, a literatura cientifica € riquissima, assim como a quantidade de datagées ¢ de modelos que tentam explicar onde, quando e como se de- ram os prineipais momentos que pontuaram a historia da humanidade a0 longo de suas muitas trajet6rias. Assim, nao se poderia esperar outro cendrio {que nfo o de um amplo e dinamico debate que se alimenta a cada nova des: coberta arqueol6gica. Nesse aspecto, 0 assunto sobre o qual iremos nos de- brucar neste capitulo nao é diferente. Aqui, discutiremos o momento em que 0 Homo sapiens, jé moderno morfologicamente e dotado de uma capacidade simbélica impat, passou a manipular plantas ¢ animais de modo a torni-los fontes cada vez mais eficientes de alimentos de artefatos para 0 sett Us0: As primeiras domesticasées, 0 surgimento da agricultura ¢ a emergéncla de sociedades complexas dardo o tom principal dessa nossa narrativa, que seri tanto histérica quanto arqueologica, sobre este que também poderiamos chi- ‘mar de “mais um passo sem volta” na historia da humanidade. Entre 12 mil e 9.600 anos antes da era crista (a.C.}, 0 sudeste asiatico fol palco de uma mudanga comportamental paradigmatica nunca antes tester nhada na historia da humanidade, Alguns grupos que viviam da caga ¢ da coleta iniciaram 0 manejo do ciclo reprodutivo de plantas ¢ de animais de modo a favorecer caracteristicas que as tornavam mais produtivas aos inte> resses humanos. Essa transigio culminaria na criagio de vilas agricolas, cujo principal meio de sustento nao seria mais a caca e a coleta, mas a produgio de cereais, leguminosas, frutas e animais de criagio. Esse processo define aquilo que viria a ser chamado pelo arquedlogo australiano Gordon Childe de Revolugio Neolitica, Essa, porém, ndo consistiu em uma transigio repenti> na de um modo de vida forrageador para outro baseado na agricultura plenay Foram entretanto, transformagdes de centenas ¢ até de milhares de anos. Lento, porém revoluciondrio, {4 que nesse proceso estavam sendo langados C como mostrado nos capitulos anteriores, em se tratando da evolugio hu 284 | captuvo vu os fundamentos do que viria a caracterizar 0 modo de vida da grande maioria da populacio mundial. Neste capitulo, buscaremos apresentar algumas das feigdes principais do Neolitico, como o processo de domesticagio de plantas e animais e 0 surgi- mento de vilas e cidades. Somado a isto, pretendemos apresentar os desdo- bramentos sociopoliticos, culturais e ecolégicos do que chamamos aqui de ‘emergéncia da complexidade. Antes, porém, de partirmos para os principais eventos e achados arqueologicos que compdem esse nosso esforco de sinte- se, apresentaremos, rapidamente, os aspectos centrais dos dois conceitos que permeario a nartativa aqui proposta: domesticacao e complexificagao social. 1. ASPECTOS ELEMENTARES DA DOMESTICAGAO Se tomarmos como referéncia o debate arqueologico e antropolégico recen- te, domesticagao pode ser definida como um processo pelo qual populagdes de organismos so alteradas geneticamente, através da manipulacao humana Em regra, tal processo resulta em organismos altamente dependentes da aco hhumana para a sua sobrevivéncia e reproducio. A excecio sao os organismos em estado feral, os quais, ainda que alterados, tm a habilidade de retomar e adaptar-se ao ambiente natural na auséncia do manejo humano, Outro aspec: to central da domesticacao, e que talvez defina 0 conceito em sua esséncia, é a natureza irreversivel das mudancas genéticas e fenotipicas provocadas nas populagdes domesticadas. Mesmo os organismos ferais acima mencionados, ainda que retornem a natureza, ndo mais voltarao ao seu estado biol6gico oti ginal ou selvagem (pré-domesticacao). Tal imeversibilidade decorre do fato de que a domesticacio trata-se, em titi ‘ma anélise, de um processo evolutivo, o qual, por sua vez, caracteriza-se pelas contingéncias biolégicas ¢ ambientais (seletivas) que definem as transforma Bes de uma populacio num dado momento da sua historia evolutiva, Nao por acaso, a importancia da selecao artificial para Charles Darwin foi tanta que a ela dedicou um de seus principais livros, “The variation of animals and plants un- der domestication’, publicado em 1868. Podemos, entio, sintetizar este esforgo de definicao em alguns aspectos centrais da domesticagao: a unidade de mani pulago sdo as individuos; a unidade modificada sao as populagBes; 0 meca mo € selegdo artificial, que pode ser casual ou intencional; o processo biolbgico bjacente é a evolucio; em geral, a domesticaco resulta na dependéncia dos 4 [NEOLITICO: DOMESTICAGAO € ORIGEM DA COMPLEXIDADE SOCIAL organismos a0 manejo ¢ meio ambiente humanos; e, finalmente, conforme ji ‘mencionado, trata-se de um processo irreversivel do ponto de vista biologico, ‘Ainda que presente nas plantas assim como nos animais, a domesticagile destes filtimos nos mostra certas particularidades que sao de interesse. Por ‘exemplo, no caso dos animais, parecem mais nitidas as caracteristicas qué fazem com que algumas espécies sejam mais propensas a domesticagio em detrimento de outras mais (ou completamente) resistentes a esse proceso ‘Tolerar a presenca humana, possuir um sistema hierarquico e ser capaz di adaptar-se a uma dieta frequentemente mais pobre sio alguns dos atributo que tendem a favorecer a domesticagao dos animais. Algumas caracteristica também so mais almejadas pelos humanos como, por exemplo, a prolific dade. Desse modo, animais com ciclos reprodutivos curtos ¢ nilo sazonal tendem a ser preferidos para a domesticacio. f importante lembrar que também hé o processo de amansamento d mais sem que haja domesticacdo. Alguns tigres, por exemplo, podem tornar -se relativamente déceis e aprender a responder a comandos com certa fal lidade. Porém, esses mesmos animais ainda devem ser considerados selva gens, uma vez que tais mudangas comportamentais se dio apenas no nivel di adestramento, sendo sempre reversiveis. Tampouco se observam nesses caso mudangas genéticas irreversiveis, as quais poderiam implicar num process de domesticagao propriamente dito. Um exemplo de animal que ¢ amansade porém, nao é domesticado, sao 0s elefantes. Apesar de suportarem a preseng ‘jumana, os elefantes apresentam um tempo de gestacao muito longo (aprox! ‘madamente dois anos) e sua manutengio, devido ao seu tamanho e consti excessivo de alimento, € muito custosa, além de somente serem titels aos hi manos a partir de 15 anos de idade, aproximadamente. Essas caracteristicas zno entanto, ndo impediram que elefantes fossem utilizados como forgi d trabalho e armas de guerra muito poderosas na Asia, Africa e Europa. ‘Convém também destacar o fato de que nem toda domesticagio esté ligad & Revolugao Neolitica ou a eventos que se seguiram a ela, Esse ¢ 0 caso, pe exemplo, do mais antigo vertebrado domesticado pelo homem: o cio. Origin rio de populagdes de lobos cinzentos (Canis lupus) da Eurasia e, possivelmer te, de dois processos independentes de domesticacao, os cles parecem ser tit produto tipico do modo de vida cagador:coletor. © fato de os cies jé aparecerer no registro arqueologico h4 pelo menos 15 mil anos‘antes da era cristl dé 286 caPfruLo vi dimensao da antiguidade dessa proximidade entre homem ¢ lobos selvagens, a qual culminaria na domesticacZo dos tiltimos. Assim, é posstvel que o inicio da incorporagio desses animais ao ambiente doméstico humano tenha se dado muitos milénios antes da emergéncia de sociedades agricolas no mundo. Esse proceso também parece estar relacionado 2 atragao dos lobos por restos de alimentos acumulados em pequenas aldeias de cacadores, associa- da a adogdo de seus filhotes e sua ficil incorporagio ao ambiente humano, dada sua inteligéncia e alta aptidio & socializagio. Uma vez incorporados 20 contexto doméstico, os lobos selvagens, posteriormente os ces, passaram a auniliar cada vez mais os humanos em suas atividades de caca, bem como a atuar como sentinelas no contexto ainda dos acampamentos e pequenas vilas de povos forrageadores por toda a Eurdsia Entre lobos e gatos, trigo e milho, a manipulac&o e a domesticagio de plantas e animais tiveram desdobramentos muito mais amplos do que a sim- ples diversificacio na dieta humana, Essa forma de interacio com 0 mundo possibilitou o actimulo de recursos € 0 surgimento de instituig6es sociais iné- ditas na histéria da humanidade até entio. Nesse processo, estavam sendo langadas as bases do que virfamos chamar de Revoluco (ou revolucées) do Neolitico. Uma das caracteristicas principais desse momento na historia da humanidade foi a emergéncia de complexidade social nas formas mais con- trastantes e singulares, em quase todos os continentes. Entretanto, em meio a tantas diferencas e particularidades presentes nas intimeras historias cultu- rais, elementos comuns também podem ser observados. 2, CARACTERISTICAS CENTRAIS DA COMPLEXIDADE SOCIAL Nas ciéncias sociais do século XX, forjaram-se algumas tipologias para abrigar e classificar a grande variedade de formas socioculturais e politicas presentes tanto no registro etnografico quanto no arqueolégico. O esforco de Elman R, Service se destaca nesse processo ao propor, em 1962, quatro grandes estgios que caracterizariam as sociedades humanas: bandos, tribos, chefias ¢ estados. No modelo de Service, bandos e tribos tendem a ser socie- dades mais igualitérias, cujas poucas fontes de desigualdade s2o idade, sexo, iniciagao ritual ¢ destaque individual. Nos bandos, as relagdes sao mediada principalmente pelo parentesco, enquanto que nas tribos ja se observam ins- tituigdes baseadas na linhagem, convencionalmente chamada de clas. — [NEOLITICO: DOMESTICACAD E ORIGEM DA COMPLEXIOADE SOCIAL J4.as chefias ¢ estados caracterizam-se, segundo Service, por serem socie dades inerentemente desiguais, com uma clara hierarquizacao de autoridade e acesso diferencial aos recursos, Nessas estruturas, as elites emergem mul tas vezes centralizadas em torno de um governante que toma decisdes com poder coercitivo sobre os comuns. No caso dos estados, a pirdimide hierdrqui ca estende-se por divisoes sociais entre classes econdmicas, fungdes burocris ticas, familias da elite e governo. Convém mencionar que o modelo de Service foi extensamente criticado nas tiltimas décadas. Isto se deu muito em funglo da stia premissa segundo a qual as sociedades humanas evoluem de forma linear e unidirecional apenas, sempre seguindo a sequéncia bando-tribo-che fias-estados, e galgando continuamente maior complexidade social ao longo de suas historias. Mesmo com suas limitacdes, entretanto, sua tipologia pode ser iti] no ambito de andlises comparativas, desde que se evite a reificagio ¢ a simplificacao dos fendmenos observados. Mesmo assim, arquedlogos, antropélogos e historiadores ainda buscam por modelos que possam ajudar no entendimento da emergéncia de comple: xidade social na historia da humanidade. Por exemplo, mais recentemente, 0 arqueélogo norte-americano Gary M. Feinman, do Field Museum of Natural History, tem definido sociedades complexas como aquelas que apresent subgrupos (ou elites) ndo efémeros com a capacidade de concentrar as ton das de decisdo de todo o grupo. Tais elites, portanto, agem num nivel acima das unidades domésticas e de afiliacdes familiares, as quais representam 6 niicleos independentes de lideranca nas sociedades consideradas no com plexas por esse critério, Segundo essa definigdo, numa sociedade complexa ¢ necessério que haja uma estrutura hierarquica estavel que sirva de nexo pelo qual o coletivo se organiza e se estrutura. Sociedades cacadoras-coletoras (que também chamaremos ao longo do tex to de forrageadoras), principalmente as desprovidas de clas, podem ser con sideradas nao complexas por apresentarem poucas divisdes de papéis socials dentro do grupo. Esses grupos tém uma distribuigao de tarefas “generalista ¢, por isso, também sao chamadas de igualitérias. O surgimento de socieda: des complexas implica uma mudanca radical no modus operandi social em relaglo is sociedades forrageadoras. No extremo dessas transformagoes, ob servamos o mundo moderno, hoje habitado por cerca de 7 bilhdes de pessoas que se eneontram submetidas, em quase sua totalidade, a estados nacional 288 | carina com milhares de compartimentalizagdes ¢ especializacées que compoem a sua estrutura, A extensdo da diferenciacao funcional entre as unidades sociais define, de for- ‘ma mais refinada, a complexidade social. Essa diferenciacao pode ser vertical ou horizontal. Complexidade vertical define-se pela presenca de diferentes graus hie- rarquicos de governanga (e concentragao de poder) no interior de uma sociedade. Ja a complexificacao horizontal (ou estrutura heterdrquica) € a diversificagio de ‘uma populacao em varios papéis dentro de um mesmo gra hierarquico. Nos registros arqueolégicos do Paleolitico, periodo entre 2,6 milhdes e 20 mil anos a.C., e do Mesolitico, perfodo entre 20 mil e 9.600 anos a.C., apro- ximadamente, jé se observa, entre cacadores-coletores, uma segmentacio s0- ial expressa pela divisdo desigual ao acesso a bens de prestigio. Segundo o arquedlogo norte-americano Kent V. Flannery, da Universidade de Michigan (Estados Unidos), a criagao de clas pode ter sido um importante fomentador tanto das desigualdades entre grupos quanto da complexificagiio simbélica observada na cultura material de diversas ocupacdes humanas a partir de 50.000 a.C. Os diversos ritos de pertencimento exigidos pelos clas podem ter estimulado a criagdo de divisdes internas pouco observadas em bandos néme- des, Nesses, a reciprocidade parece ser o elemento mais central que organiza as atividades cotidianas do grupo. Ja no Neolitico, a partir de 9.600 a.C,, observa-se o desenvolvimento do co- mércio de longa distancia, e € possivel que alguns individuos tenham vivido exclusivamente dessas rotas. O cultivo intensivo demanda uma série de tare- fas cada vez mais especializadas envolvendo a producio de ferramentas, além de técnicas mais elaboradas de plantio, aragem e irrigacdo, Essa expansio do niimero de tarefas e de especialistas certamente culminou numa maior produ do de excedentes agricolas, especialmente apés o desenvolvimento de técnicas como 0 arado de tracdo animal e a irrigacio controlada. Posteriormente, entre popuilagdes do Neolitico Tardio, a partir de 7.000 a.C., a necessidade de dis- tribuicdo dos excedentes cada vez mais ctescentes pode ter sido a fagulha que faltava para a emergéncia de autoridades centralizadoras e, finalmente, dos es- tados que vieram a se desenvolver nos quatro cantos do planeta. A seguir, iniciaremos 0 caminho pelos grandes t6picos que estruturarao nossa narrativa, que sera tanto arqueolégica quanto historia, Falaremos so- bre 0 que chamamos de “revolugdes neoliticas”, sobre os processos de do- NEOLITICO: DOMESTICAGAD E ORIGEM DA COMPLEXIDADE sociAL | 20 rmesticagio de plantas e de animais e seus principais centros mundiais, bem como da complexidade social que emerge ao longo desse process. 3. NEOLITICO: AS REVOLUGOES DE MILENIOS Embora ainda com algumas lacunas, o registro arqueol6gico nos mostra com relativa precisio quando e onde ocorreu o que aqui chamamos de Revolugio Neolitica (Figura 7.1). O sudoeste asidtico foi o paleo mais precoce do processo de domesticagio de plantas e animais, que se deu de forma independente e a0 menos sete regides do planeta. Em algumas delas, das quais trataremos mais adiante, a transigio ocorreu bastante cedo, entre 9.600 € 5,000 a.C. Em outros lugares, algumas espécies de plantas seriam domesticadas sem que necessaria "mente fossem a base alimentar da populacio, servindo apenas de complemento dietético (como no caso das pimentas) ou como parte de um pacote tecnolbgico yoltado ao armazenamento e processamento de alimentos (como no caso do al godao e da cabac). 0 fato € que em toro de 2 mil aC, vlase aldeias neoliticas pululavam pelo mundo, ¢ todos os continentes habitados jé possulam pop Bes cuja fonte principal de nutrigio provinha da agricultura e/ou criagao de animais. A humanidade vinha paulatinamente mudando sua forma de viver ¢ com isso, sua tecnologia, cosmologia e formas de organizaciio sociopolitica “e- poeCtestemt Fett ‘: 2 + te ks toe os Fale “vangizé 0 Amardlo Bi ? 2. Africa ‘Amazonia. Sulsaatiana f07.4« Map dos pico ocals em que ocr 0 supimento da apt, caractezando a Revue ‘woitcn, Wvatrage Miguel Jose Range! Junior

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