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º 59 – J���� 2020
C��������� 4
De Maomé ao século XXI
O ����� �� M���� 6
Nascimento do Islão
A ������� �� A�� 14
Corão, o livro sagrado
A ��� ��� ��������� 22
Brilhante Al-Andalus
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Ciência, cultura e artes
E� �� �� ������ 38
Um combate de quase 1400 anos
U� ����� ��� �������� 54
Pan-arabismo e Médio Oriente
A ��������� ��� ���������� 62
Uma férrea ditadura religiosa
M��������� �� ������ XXI 70
Moderados e fundamentalistas
E� ���� ������� 80
O olhar dos artistas árabes
A ������ �� I���� 88
Romper o véu
A K���� 98
O lugar mais santo para os muçulmanos
Oportunidades de género
Em duas décadas, o Bangladesh teve duas
mulheres na liderança do governo. Sheikh Hasina
(na foto) é primeira-ministra desde 2009. Portugal
teve uma única mulher à frente do executivo:
Maria de Lurdes Pintasilgo, que chefiou
o governo durante quatro meses, em 1979.
Diretor Carlos Madeira Publicação mensal registada na Entidade Reguladora não autorizada, é totalmente proibida, de acordo
Colaboraram nesta edição para a Comunicação Social com o n.º 118 348. com os termos da legislação em vigor.
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Cronologia
De Maomé
ao século XXI
Desde o seu nascimento, no século VII, até aos nossos dias, a civilização islâmica
e a religião que a sustenta (segunda em número de fiéis atrás do cristianismo)
têm vivido uma expansão constante, assim como numerosas guerras,
o auge e o declínio de impérios e sucessivas etapas de esplendor e prostração.
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EM PÉ DE GUERRA
Tomada de Constantinopla
27 de abril de 711 Khan derrota
Tariq atravessa os abássidas
o estreito de e arrasa Bagdad.
Gibraltar (agora
nomeado devido 28 de maio de 1453
a ele) e inicia Constantinopla
a conquista da passa para mãos
península Ibérica. turcas com o
nome de Istambul.
Julho de 1099
A Primeira Abril de 1609
Cruzada recupera Filipe III de Espa-
Jerusalém para nha (II de Portu-
a cristandade. gal) expulsa os
últimos mouros.
1187
Saladino derrota 1920
os cruzados Após a Primeira
em Hatim. Guerra Mundial, o
Tratado de Sèvres
1258 desmantela o
ALBUM
Cairo, 2010
impulsionada pelo líder egípcio Nas- Teerão, 1979 data, com 193 mortos. Mame Madior Boye
ser, que une o seu país e a Síria (e, Primeira-ministra do Senegal.
mais tarde, também o Iémen). 2009
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Nascimento do Islão
O tempo de Maomé
Tinham decorrido seis séculos da era cristã quando apareceu
no mundo uma religião diferente, uma nova maneira de ser
e de pensar que, em quatro gerações, criou um formidável império.
A nova fé geraria a civilização mais brilhante do seu tempo.
Tudo começou com um humilde cameleiro nascido em Meca.
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Centro da fé. Para os muçulmanos
de todo o mundo, é a Kaaba, o templo
cúbico no meio da Grande Mesquita
de Meca (Arábia Saudita), que os
peregrinos contornam enquanto rezam.
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S
egundo os paleoclimatólogos, a penín- Começa uma era. Em setembro
sula Arábica era então diferente da de 622, Maomé marchou com os
seus fiéis para Yatrib (atual Medina),
atual. A desertificação não se havia como mostra esta gravura colorida.
extremado tanto como hoje em dia e o
número de oásis era substancialmente maior. Con-
tudo, apesar de haver zonas mais desenvolvidas
(Saná dos iemenitas, Palmira dos nabateus, Meca...),
onde se fixaram comunidades estáveis e nasceram
verdadeiras cidades, a vida da maioria dos árabes
era ainda de tipo nómada, semelhante à dos atuais
beduínos.
As diferentes tribos que ocupavam os oásis con-
sideravam-se donas de territórios muito extensos,
ainda que desprovidos de real valor, devido ao facto
de estarem desabitados ou de serem inabitáveis.
Era como viver num arquipélago em que a navega-
ção entre ilhas se fazia de camelo. Cada uma das tri-
Quando Maomé
nasceu, os árabes
professavam
um animismo
bos estruturava-se em torno da autoridade de um
xeque, assistido por um conselho de anciãos, e parte
considerável do seu tempo era passada a lutar
contra as tribos vizinhas, adotando um sistema de
inimizades e de alianças variável a cada momento
de acordo com os interesses de cada uma.
Último profeta
M aomé (c. 570–632) representa
para o Islão o sucessor defini-
tivo de uma ilustre linhagem genealó-
gica que inclui Abraão e Jesus Cristo.
Apesar do debate acerca da sua bio-
grafia, a existência histórica deste líder
político, militar e religioso está provada.
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Um milagre pré-islâmico
S etenta anos antes de Maomé ali nas-
cer, Meca já era uma cidade flores-
cente e, como tal, invejada pelos vizinhos.
ficado a dever ao facto de os abissínios
cristãos terem levado consigo um elefante
branco, animal que os habitantes da cidade
O sul da Arábia estava dominado pelos nunca tinham visto e os deixou fascinados.
abissínios (etíopes), que, por sua vez, Quando o elefante abissínio chegou à
eram vassalos dos cristãos bizantinos. Em zona sagrada da cidade, ter-se-á negado a
certa ocasião, um dos governadores abissí- mover-se mais: deitou-se e, a seguir, apa-
nios, Abramo, apresentou-se às portas de receram bandos de pássaros que, voando
Meca com a intenção de destruir a cidade desde a costa, bombardearam os abissínios
e roubar a sagrada Pedra Negra. Mila- com pedras venenosas, as quais lhes terão
grosamente, todo o exército invasor foi causado furúnculos parecidos com os da
dizimado pela peste e Abramo retirou-se peste. A este milagre alude a sura 105 do
humilhado. A causa do falhanço ter-se-ia Corão.
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aos poucos membros do grupo que o rodeava: por excelência, a cidade do profeta. Em Medina,
os familiares, os amigos e um reduzido número de Em Medina, tudo foi diferente. As revelações tornaram-se mais
seguidores. Os coraixitas começaram a vê-lo como longas, concretas e consistentes. Muito rapida-
um problema que poderia acarretar consequências as revelações mente começaram a ser compiladas as suas pala-
políticas. A situação dos seus familiares e amigos vras, mas só apareceram em conjunto depois da
em Meca começou a ser insustentável e, por isso, tornaram-se morte de Maomé, sob o nome genérico de Corão,
decidiu aceitar a oferta das tribos de Yatrib, que que significa “recitação”.
seria mais tarde conhecida como Medina, a cidade mais consistentes Ainda que a dimensão religiosa do Islão seja o seu
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AGE
Cidade de Maomé. A Mesquita
do Profeta (Al-Masjid An-Nabawi),
em Medina, é o segundo templo
mais sagrado do Islão, depois
da Grande Mesquita de Meca.
núcleo e a sua essência, não são menos importantes que este sinta, viva e progrida segundo as orien- combateu e subjugou os coraixitas, derrotando-os
as consequências sociais e políticas a que dá origem. tações de Deus. na batalha de Badr (624, ano 2 da Hégira). Passa-
Qualquer análise reconhecerá a sua vontade agre- Sob essa bandeira, e com apenas cinco obriga- riam ainda mais seis anos até à sua entrada vito-
gadora, unitária, que é o resultado das necessidades ções a cumprir pelos crentes (oração, esmola, jejum, riosa em Meca, em 630 (8 da Hégira).
políticas de uma sociedade nómada, basicamente peregrinação e profissão de fé), Maomé conseguiu
desarticulada e repartida num aglomerado de uma unidade árabe que sempre havia parecido A DIFÍCIL QUESTÃO SUCESSÓRIA
pequenos núcleos independentes. O que se propõe impossível. Como é evidente, teve de esforçar-se Por ocasião da sua morte, apenas dois anos mais
no Corão é a unificação do povo árabe de modo a para alcançar esse desiderato. Partindo de Medina, tarde, a Arábia era quase totalmente território islâ-
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Ascensão. Segundo a tradição islâmica,
O líder ideal Maomé terá subido ao céu com o arcanjo Gabriel
a partir de Jerusalém, no local onde foi construído
o templo conhecido como Cúpula do Rochedo.
À morte de
Maomé, ninguém
sabia como fazer
a sucessão
mico, podendo concluir-se que Maomé triunfou
em toda a linha. Contudo, surgiram novas e sérias
dificuldades, porque ninguém tinha previsto o que
aconteceria depois da morte do profeta: não se
sabia como proceder. Imperavam a desconfiança
e as reticências entre as tribos que tinham estado
com Maomé, mas agora se sentiam livres para dei-
xar o Islão se o sucessor não fosse do seu agrado.
Parecia que o trabalho de unificação e o sangue
derramado nesse esforço iriam malograr-se. Abacar governou somente por dois anos, em funcionamento uma espécie de conselho (a
O primeiro sucessor (califa) foi Abacar, velho durante os quais engrandeceu o Islão com novas Shura) que teria a responsabilidade de eleger os
amigo e companheiro de Maomé e pai da sua última conquistas. Quando morreu, e por designação sua, futuros califas. Quando cumpria dez anos do seu
esposa. Era um homem sem vaidade, um fiel servi- sucedeu-lhe Omar, também antigo companheiro de califado, foi assassinado, enquanto rezava na mes-
dor das ideias do amigo. A eleição foi contestada Maomé e pai de Hafsa, outra das esposas do pro- quita, por um escravo persa.
por Ali, primo de Maomé e marido da sua filha feta. Este segundo califa continuou a expansão do
Fátima, que se sentia mais merecedor do título, Islão, derrotando os bizantinos em Jarmuque e os OS DOIS ÚLTIMOS CALIFAS ORTODOXOS
dado que era seu familiar e tinha partilhado a vida persas em Nahavand. Depois, a Shura, recém-inaugurada, escolheu
com o profeta desde a infância. Por fim, Ali aceitou Abacar implantou um mecanismo legal que Otomão como sucessor. Este era um coraixita rico,
Abacar, ainda que a contragosto. Aquele diferendo, garantia aos não-muçulmanos a liberdade de pra- distantemente aparentado com Maomé em terceira
resultante de visões diferentes da legitimidade ticar a sua religião em solo islâmico, desde que geração, ainda que fosse casado com duas das suas
sucessória, seria, mais tarde, um golpe decisivo. pagassem as taxas estabelecidas. Também colocou filhas: primeiro com Ruqqaya e, depois de enviuvar
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AGE
desta, com a sua irmã Cultum. Além disso, a Otomão vitais. Não foi assim: também ele foi assassinado califa, o último dos chamados “ortodoxos”, foi
era reconhecido o grande mérito de ter sido o res- enquanto rezava. Tinha criado muitos inimigos, assassinado, em 661, ocorreram duas alterações
ponsável pela compilação das revelações, a versão entre os quais o sempre insatisfeito Ali, nomeado da maior relevância: o Islão deixou de ser gover-
oficial do Corão, a única que existiu e aquela que califa no dia seguinte à morte de Otomão. nado por indivíduos escolhidos para passar a sê-lo
continua a ser usada pela comunidade islâmica. por uma dinastia (a omíada) e o sangue derramado
Contudo, por essa altura, o ambiente em Medina XIITAS CONTRA SUNITAS por Ali deu origem à criação de uma fação de apoian-
tinha-se alterado. A riqueza que afluía sem cessar, Ali não foi acusado do assassinato, mas também tes da legitimidade sucessória do califa assas-
resultado das conquistas e dos impostos provinciais, não o condenou. Julga-se, contudo, que terá pro- sinado (os xiitas), tendo causado o maior cisma
estava a mudar os costumes da elite muçulmana. tegido os seus autores. A figura de Ali é tão apaixo- que o mundo islâmico já conheceu. Hoje, o xiismo,
A corrupção instalava-se no império e Otomão jul- nante como controversa e necessitaria de muitas feroz opositor do sunismo, possui cerca de 240
gou que controlaria melhor a situação se colocasse páginas para ser suficientemente analisada. Fique- milhões de fiéis, e o sangue continua a correr.
os seus familiares e amigos de confiança em cargos mo-nos pelo facto de que, quando este quarto A.P.
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Corão, o livro sagrado
A palavra de Alá
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Quando Maomé desceu da sua meditação numa gruta do monte Hira,
próximo de Meca, no ano 610, sentia-se um pouco desconcertado.
O arcanjo Gabriel tinha-lhe transmitido a boa nova: era o último profeta
e deveria tornar-se o canal através do qual comunicaria a palavra divina
aos homens. É esta a origem do texto sagrado do Islão.
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N
as revelações tidas em sonho ou transe
durante o retiro na gruta do monte
Hira, foi anunciado a Maomé que ele
era o sucessor do anterior profeta, Isa
(Jesus), o filho de Maria. Teve de ser o seu primo
Waraqa ibn Nawfal (certamente, um cristão) a
confirmar a veracidade do que escutava. Desde
aquele dia até ao ano 631, o texto sagrado, com-
posto por 6243 versículos divididos em 114 suras,
foi revelado a Maomé (alguns autores defendem
que foi ditado diretamente ao seu coração) e
transformou-se no Corão, o livro mais importante
para mais de 1500 milhões de pessoas em todo o
mundo atual. Maomé ganhava assim um suporte
teórico para o seu novo império.
De facto, o Corão pode ser visto como uma con-
tinuação dos textos religiosos da tradição judaica
e cristã: o Talmude e a Bíblia. Os factos relatados
no Antigo Testamento mantêm-se, profetas incluí-
dos, encarados como tendo servido para Deus
(Alá) recordar o caminho da verdade aos diferentes
povos que desrespeitavam os seus ensinamentos.
Há apenas uma religião e uma fé, e essa não pode
mudar.
O PROFETA ANTERIOR
Jesus (Isa), o filho de Maria (Maryam), é tido no
Islão como o último profeta antes de Maomé, sendo
responsável por iluminar o povo judeu e o segundo
em importância; porém, para o Corão, a sua natureza
não é divina, como creem os cristãos: era apenas um
homem, um homem santo, tal como Maomé, mas
nada mais do que um homem. Maomé é o “último
dos profetas”: depois dele, não haverá outro.
O teólogo sírio cristão João Damasceno (675–749)
descreveu um grande número de seitas derivadas
da tradição judaica ou cristã. Entre elas, incluiu
o Islão, chegando a identificar Maomé com o
Anticristo. O Ocidente precisava de desprestigiar
a base cultural do novo império árabe que poderia
tornar-se um sério obstáculo ao controlo das rotas
económicas e à relação comercial com o Oriente.
Segundo alguns,
o texto foi ditado
diretamente
ao coração
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Por seu lado, os seguidores do “verdadeiro pro- de junho de 325) que se tentava determinar a fun- doxia e estabelecer a verdade. Entre esses vazios
feta” tinham de construir a sua própria mitologia damentação teológica da natureza de Jesus e o teológicos, infiltrou-se o Islão, que encontrou,
e definir as suas características identitárias, clara- conceito, ele próprio complexo e difícil de enten- depois, o seu próprio caminho. Segundo a tradição
mente distintas das dos demais impérios. der para muitos, da Santíssima Trindade (conside- islâmica, terá sido o próprio Jesus a anunciar a vinda
Recordemos que a discussão acerca da natureza rada pelo Islão como uma tese politeísta). de Maomé: “Fui o enviado de Deus [...] como núncio
humana ou divina de Cristo era um tema recorrente de um enviado que virá depois de mim chamado
no século VII, chegando a ser a principal controvér- O IDIOMA DO POVO Ahmad” (63:6). Ahmad utiliza-se várias vezes no
sia do Segundo Concílio de Sevilha, presidido pelo Desde Ário (250–336), tinham sido muitas as Corão em referência a Maomé.
bispo Isidoro de Sevilha a partir de 13 de novembro correntes a reinterpretar constantemente as Escri- Uma das virtudes do Corão era a facilidade de
de 619. Desde o Concílio de Niceia (iniciado em 19 turas, pelo que havia a necessidade de fixar a orto- transmissão das palavras de Alá, tanto no aspeto
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Gruta original. Peregrinos no monte
Hira, onde, segundo a tradição islâmica,
Maomé terá recebido as revelações
que conduziram à criação do Islão.
formal e poético como na sua simplificação, recu- No Corão, são omitidos os sacramentos. O bom e aos atos do profeta, adaptando as leis ao desen-
sando a adoção de adornos estilísticos. Era prático, muçulmano deve crer nos dogmas da fé e, social- volvimento social que pressupõe a unificação do
fácil de entender pelo povo e muito direto. Além mente, obedecer à sharia (lei islâmica), que está conjunto dos diferentes países árabes. Tenhamos
disso, não estabelecia uma estrutura eclesial hierár- dividida entre o Hádice (o conjunto dos atos e das em atenção que a pequena estrutura dos povos do
quica (a fé é uma questão pessoal), continha leis de palavras do profeta) e o fiqh, o direito que rege a deserto, na primeira metade do século VII, não era
caráter social e suprimia radicalmente relações justiça social. a mesma de países milenares que necessitavam de
institucionais de controlo como as da Igreja e do Alá ditou a Maomé as normas de conduta, as leis leis complexas para ordenar a sua estrutura social.
estado que se afirmavam na Europa desde o tempo da umma (a comunidade). Mais tarde, ir-se-iam O Islão estabelece cinco categorias de ação
do imperador romano Constantino (272–337), que acrescentando os hádices ou apêndices já não dita- humana: as permitidas, as recomendadas, as obri-
declarou o cristianismo como religião oficial. dos por Deus, mas que correspondiam às palavras gatórias, as detestáveis e as proibidas. Também dis-
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tingue a obrigação de realizar o culto a Alá (ibadat)
da obrigação de cumprir as leis sociais (um’ama-
lat). O Corão não valoriza o pecado original,
o que faz o batismo cristão perder validade. Apro-
funda, ao invés, o conceito de ressurreição, ado-
tado também pelos cristãos de cultos anteriores,
e o da oposição entre o céu e o inferno.
Os anjos mantêm-se quase os mesmos: Gabriel
(Yabra’il) é o enviado de Alá; Satã (Saytan) é o anjo
caído; o anjo Israfil tocará a trombeta no Dia do
Juízo Final; Azrael é a personificação da morte, tal
como na religião judaica. Entre os profetas, além
de Maomé e Jesus, destacam-se Noé (Noah),
Abraão (Ibrahim), David (Daud). No Dia do Juízo
Final (yaum ad-diin), cada pessoa levará a Deus a
sua vida escrita num livro, procurando que o resul-
tado da avaliação divina seja favorável, de modo a
não cair nas lamas eternas do inferno.
O Corão declara
como profetas
Noé, Abraão,
David e Jesus
Maomé e os seus seguidores conseguem assim
unificar as Escrituras e o idioma, até então com
múltiplas variações. Recordemos que o árabe se
escreve sem vogais, ou com vogais médias, e que,
se não estiver perfeitamente escrito, pode ser mal
interpretado, problema que os seguidores de
Maomé procuraram evitar de modo a favorecer a
unificação do povo árabe. Assim, o Corão dará corpo
a um modelo linguístico e normativo, tal como o
fizeram o Império Romano, Alcuíno de Iorque com
Carlos Magno, Bismarck com o alemão, etc.
Lembremos ainda que, na Bíblia que os gregos tra-
duziram, se registaram erros como, por exemplo,
a tradução de “moça”, do aramaico, como “vir-
gem”, uma alteração com grandes repercussões
na nossa cultura (tal como a tradução de “irmãos”
de Cristo como “apóstolos” ou “companheiros”).
O poder interpreta sempre os textos religiosos
no sentido de os adaptar a novas circunstâncias ou
de, deliberadamente, os manipular, como fizeram
S. Agostinho e S. Tomás na Europa. Assim, a prosa
poética (o sag) do Corão foi utilizada pelos detra-
tores do profeta para acusá-lo de deturpar as pala-
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Véu ou cortina?
N ão foi apenas a religião muçulmana a relegar a
mulher para um papel secundário: lembremos
como a mulher bíblica simboliza as más decisões ou
como se exalta a virgindade como um valor em si
mesmo. Os homens judeus devem repetir a seguinte
oração: “Bendito sejas Tu, Senhor, Rei do Universo,
por não me teres feito mulher”. No Génesis, afirma-se:
“Parirás os teus filhos com dor; desejarás somente a teu
marido e ele dominar-te-á.” Em relação à controvérsia
do véu, aquilo a que o Corão realmente obriga é a uma
vida decente, virtuosa e modesta no vestir. O livro
comenta: “Quando lhes pedirem algo a elas [às mulheres
de Maomé], façam-no atrás de um véu.” Esta recomen-
dação versa sobretudo acerca do distanciamento a ado-
tar face àquelas mulheres intocáveis, ainda que, naquela
passagem, “véu” possa ser interpretado como “cortina”.
Aceita-se a poligamia por parte do homem, mas regis-
temos várias coisas: a mulher não foi criada a partir
da costela de um homem, os dois foram criados da
mesma forma, e não lhe é atribuída a responsabilidade
de um qualquer pecado original. Claro que à mulher
não é atribuída uma boa posição, tal como em quase
nenhum texto daquela época. Apontemos ainda o facto
de, no Corão, se usar constantemente uma linguagem
inclusiva: “os crentes e as crentes”, etc. Sem dúvida, um
pequeno avanço, mas um avanço, em todo o caso.
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vras de Deus e de não ser mais do que um poeta Voz e palavra. Membros da comunidade
que usava recursos literários de qualidade mas, de muçulmana de Stornoway (Escócia) escutam
a prédica na inauguração de uma mesquita.
qualquer das formas, humanos. Como é evidente,
essas acusações não passavam de “palavras de
hereges” que não acreditavam em Alá e na união
com o seu profeta. As novas Escrituras foram vistas
por outros como sendo apenas uma renovação ou
limpeza dos textos judeus ou cristãos.
Para ter
valor litúrgico,
tem de ser lido
em árabe
Falsos profetas quiseram reformular a doutrina
muçulmana para seu próprio benefício. Foram anos
de guerras e enfrentamentos fratricidas que deram
forma àquele que seria o futuro império, numa
aceção política, religiosa e social. Assim, até 640,
Musaylima, a quem foi atribuído o cognome de
“o Mentiroso” (al-kaddab), na Ásia Central, ou a
cristã Sachah foram ganhando adeptos até serem
definitivamente derrotados.
FIXAR O TEXTO
Contudo, o problema continuava a colocar-se:
não havia um livro realmente único com as palavras
que Alá tinha revelado diretamente ao seu eleito.
Nada ficara escrito acerca da sucessão do profeta,
e foram muitos os que tentaram tirar proveito A compilação foi realizada por Zayd ibn Tabit, familiar transcritas em pedras, pergaminho, omoplatas de
do vazio sucessório. Abacar, grande amigo de de Maomé, junto de vários sábios e escribas. camelo, etc.
Maomé e pai da sua esposa mais jovem, Aixa, foi Segundo o teólogo dominicano francês Jacques
nomeado o primeiro califa (sucessor) do Islão, e Jomier (1914–2008), transcreveram diretamente O LIVRO DEFINITIVO
estava consciente da necessidade de criar um sis- as palavras dos seguidores de Maomé, habituados O trabalho de compilação não deve ter sido fácil:
tema legal controlado pelo estado central. à tradição oral e aos quais não era estranho o só podemos imaginar o trabalho de minúcia que
Abacar empenhou-se na tarefa de reunir todos exercício de memorizar centenas de versos. Outra os escribas tiveram de realizar para ordenarem os
os textos que muitos tinham registado na memória. versão defende que muitas passagens tinham sido versos que cada companheiro do profeta tinha
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Sem guerra santa
A prática do Islão tem cinco pilares
que devem ser cumpridos por
todos os muçulmanos: a profissão de
fé, rezar cinco vezes por dia, jejuar no
Ramadão, a esmola e a peregrinação a
Meca. Apesar do que muitos possam
pensar, são apenas esses cinco: não
há qualquer menção à guerra santa.
No Corão, afirma-se: “Infundiremos o
terror nos corações dos que não creem
[...], a sua morada será o fogo” (3:151);
não obstante, também se atribui ao pro-
feta a seguinte recomendação: “Comba-
tei por Alá contra quem vos combater,
mas não os excedais. Deus não ama
aqueles que se excedem” (2:190). Os
que combatiam estavam mais perto
de Alá: “Àquele que, combatendo por
Deus, seja morto ou saia vitorioso,
daremos uma magnífica recompensa”
(4:74). Lendo a Bíblia ou a Torah,
podemos encontrar também passagens
violentas ou que incitam a uma violên-
cia justificada. O pacifismo defendido
por Jesus não foi seguido quando o
cristianismo se tornou uma questão de
estado. A partir do Concílio de Arles
(314), as armas e a religião uniram-se
para recuperar o conceito de “guerra
justa”, cuja aplicação é tão livre como
a “guerra santa” islâmica. S. Agostinho
(século IV) também escreveu sobre o
assunto: “Deus não rejeita os soldados:
pode-se ajudar Deus de uniforme.”
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Brilhante Al-Andalus
22 SUPER
Esplendor. No século X, o omíada
Abdemarrão III declarou a independência
do Al-Aldalus face à autoridade do califa
de Bagdad e engrandeceu a capital,
Córdova, convertendo-a numa cidade
SOLÉ DEL AMO
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S
ALBUM
e o teu Senhor tivesse desejado, todos
os habitantes da Terra, absolutamente
todos, teriam acreditado. Tu obrigarás
os homens a serem crentes?”: assim reza
o versículo número 99 da décima sura do Corão.
O Islão medieval foi, de facto, militarmente expan-
sivo, mas, no que concerne a impor a sua fé, foi
também muito moderado. Soube aproveitar a con-
juntura crítica que atravessavam os povos conquis-
tados e a boa receção de que foi alvo por parte dos
novos súbditos e das elites locais, cujos modos de
vida e costumes religiosos eram respeitados por
puro pragmatismo.
Por conseguinte, impor o Islão teria tido um custo
muito mais elevado do que assimilar culturas e iden-
tidades alheias (desde que se tratasse das religiões
“do livro”, isto é, o judaísmo e o cristianismo) às
quais, aliás, era imposta uma maior carga fiscal do
que à população muçulmana, com os proveitosos
benefícios económicos que tal representava.
FASE DE CONQUISTA
O ano 661 marca o início de uma idade de ouro
para o Islão com a entrada em cena do clã omíada,
que haveria de estabelecer as bases do primeiro
grande império muçulmano. Desde o início da
expansão, os quatro califas ortodoxos (632–661)
Em um século,
o Islão abrangeu
60 milhões
de pessoas
semearam um imperialismo germinal, pela primeira
vez, fora da península arábica. Nesse período, no
qual predominavam ainda as estruturas políticas de
tipo tribal, a expansão militar, em boa parte devido
à sua insólita velocidade, não foi acompanhada por
uma expansão cultural e religiosa propriamente dita.
Não havia ainda estruturas de estado nem a pene-
tração da civilização dos vencedores na dos ven-
cidos, dado que o objetivo da conquista era, num
primeiro momento, meramente económico (pilha-
gem e recursos). Os califas ortodoxos nunca goza-
ram de pleno consenso na comunidade islâmica.
FIRME OPOSIÇÃO
Os partidários de Ali, primo e genro de Maomé
e, segundo os seus seguidores, máximo represen-
tante da linha de sucessão legítima, não renuncia-
ram a conquistar o califado. No ano 656, o terceiro
califa ortodoxo, Otomão, morreu assassinado, cir-
cunstância aproveitada pelos apoiantes de Ali para
tomarem finalmente o poder.
Suspeito, contudo, de ter instigado o assassinato
do seu antecessor, Ali teve de fazer frente a uma
firme oposição do clã omíada, que, liderado pelo
Batalha de Siffin. Travada em julho de 657, cindiu o Islão em sunitas, xiitas e carijitas.
ex-governador da Síria, Moáuia, se ergueu contra o
24 SUPER
JOSÉ ANTONIO PEÑAS
Território islâmico. Neste mapa, podemos ver como
se expandiram as fronteiras do Islão desde a morte de
Maomé, graças às conquistas dos exércitos comandados
pelos primeiros califas e, depois, pelo clã omíada.
SUPER 25
Cenário bélico. O Grande Zab
é um afluente do Tigre que corre entre
a Turquia e o Iraque. Nas suas margens,
travou-se, em 750, a batalha na qual
os abássidas derrotaram os omíadas.
como as rebeliões que proliferavam em várias apoiado nos elementos xiitas para chegarem ao foi vítima de uma descentralização progressiva que
províncias do império, representaram o ocaso da poder, abraçaram rapidamente a ortodoxia sunita outorgou grandes quotas de poder aos emires
dinastia omíada. e consolidaram o caráter hereditário do califado, (governadores locais) e delegou parte significativa
O descontentamento foi aproveitado por outro fundando, de facto, uma nova dinastia. do poder executivo na figura do vizir. Estas altera-
clã, o dos abássidas, também originário de Meca, O abássida foi, no entanto, um califado mais ções, a médio prazo, contribuíram decisivamente
mas que descendia de um tio do próprio Maomé, cosmopolita. A capital foi transferida para Bagdad, para a queda do regime.
Abas. Os partidários de Ali e outros descontentes que se tornou a maior cidade do mundo; a distinção
com a predominância da influência síria no regime entre muçulmanos árabes e não árabes pratica- APOGEU DE BAGDAD
omíada, em detrimento dos árabes e de outros mente desapareceu, o que despertou a ira dos O califado abássida foi, essencialmente, um
muçulmanos mais recentes, deram-lhes o seu primeiros, os mais fervorosos apoiantes do clã no período de consolidação política, cultural, militar e
apoio. Com a inestimável ajuda do general persa combate ao regime omíada, e a influência política administrativa. Suavizando o ímpeto expansionista
Abu Muslim, o líder do clã, Açafa, derrotou o califa e cultural do mundo persa deixou uma marca pro- dos omíadas, os novos califas procuraram, sobre-
omíada Maruane II na batalha do Grande Zab, em funda na personalidade e na estrutura do regime. tudo, garantir a governabilidade e a estabilidade
750, tendo derrubado o regime e tornando-se o O novo estado, que continuou a expandir mode- do seu gigantesco império, apostando no cosmo-
primeiro califa da nova dinastia. radamente os seus domínios para leste e oeste, politismo e no desenvolvimento das rotas comer-
ciais, da cultura urbana, das artes e das ciências.
CALIFADO COSMOPOLITA Bagdad era o centro do mundo civilizado. Neste
Os abássidas empreenderam uma purga selva- Diversos clãs clima de bonança e equilíbrio institucional, foi
gem que incluiu não só o assassinato de quase todos possível o despertar da idade de ouro do Islão,
os membros do clã omíada como a profanação disputaram impulsionada por califas como Harune Arraxide
dos seus túmulos. Contudo, rapidamente os ini- ou o seu filho Almamune, que, no último quartel
migos dos omíadas sofreram uma grande deceção a sucessão do século VIII e no primeiro do IX, conduziram a
ao verificar que os califas abássidas apostavam, civilização abássida ao seu auge, com a fundação,
sobretudo, na continuidade: embora se tenham de Maomé em Bagdad, da Casa da Sabedoria.
26 SUPER
Outras dinastias
A debilidade progressiva do
poder central durante o califado
abássida estimulou a proliferação de
dinastias que ocupariam espaços políti-
co-geográficos que se tornavam órfãos
graças à desintegração do império. De
entre estes, destacam-se os almorá-
vidas, monges soldados oriundos do
Sahara que, desde o início do século XI,
ficariam com o controlo do Magrebe e
do Al-Andalus, e os almóadas, dinastia
berbere que recebeu o testemunho dos
primeiros em meados do século XII. Na
atual Etiópia, prosperou igualmente,
desde o início do século XIII, o sulta-
nato ajuran, que desenvolveu extraor-
dinárias estruturas hidráulicas que lhe
garantiram o controlo absoluto sobre
o território. Na Anatólia, instalaram-se
os turcos seljúcidas: convertidos ao
Islão no século X, forjaram, a partir de
meados do século XI, um império que,
formalmente, respeitava a autoridade
do califa abássida, mas, na prática, con-
centrava todos os poderes nas mãos do
sultão. Mais tarde, o vazio de poder foi
ocupado pelos safávidas (no início do
século XVI, no atual Irão) e, sobretudo,
pelos turcos otomanos que acabariam
por se tornar o grande estandarte do
Islão a partir do final do século XIII,
com o nascimento de um império islâ-
mico herdeiro do califado abássida.
AGE
Esta reunia, sob o mesmo teto, os mais brilhantes sério do que a inexistente capacidade de reação século X, o período de esplendor tinha começado a
intelectuais da época (muçulmanos e não muçulma- abássida, até que Abdemarrão III dobrou, definiti- decair. Em menos de quatro décadas, houve cinco
nos), num trabalho de compilação de todo o saber vamente, os últimos dissidentes. califas, dos quais quatro foram assassinados. Além
filosófico e científico existente (o que permitiu disso, a descentralização causava outros problemas:
ao Ocidente, por exemplo, recuperar o conheci- A HORA DO AL-ANDALUS os emires usurpavam, cada vez mais, o poder do
mento de Aristóteles, Euclides ou Ptolomeu). Desse modo, pacificou o Al-Andalus e criou o califa e furtavam-se ao controlo central, gover-
A primeira fenda neste sumptuoso apogeu surgiu clima necessário para, em 929, desafiar ainda mais nando como caudilhos com exércitos próprios.
no Ocidente. Os abássidas tinham-se esmerado na o poder de Bagdad: autoproclamou-se califa e inau- O califa tinha cada vez mais dificuldade para defi-
purga de todos os sobreviventes do clã omíada, gurou, assim, a idade dourada do Al-Andalus. Pela nir e cobrar impostos, e os cofres do estado come-
mas não conseguiram evitar que um deles, Abd primeira vez, o mundo islâmico enfrentava uma çaram a ressentir-se. Em pouco tempo, os califas
al-Rahman (muito em breve, Abdemarrão I), insólita situação: a autoridade do califa de Bagdad abássidas tornaram-se líderes religiosos sem poder
iludisse os seus perseguidores e fugisse para a era tão abertamente contestada que deixara de ser político efetivo, simples marionetas nas mãos de
península Ibérica. Assim, em 755, à cabeça de um visto como o único líder político e espiritual do Islão. ambiciosos vizires: o império desintegrava-se. For-
contingente de sírios, iemenitas e berberes, o último O califado de Córdova abriu uma brecha no sólido malmente, resistiu até 1258, ano em que os mongóis
omíada derrotou o emir abássida, ficando com o regime abássida, mas não foi a única. No início do saquearam e tomaram Bagdad. Contudo, até essa
controlo de Córdova e fundando ali um novo emi- data, o império viveu uma autêntica agonia que se
rato que, evidentemente, não reconhecia a auto- materializou fortemente graças ao descrédito pela
ridade dos seus arquirrivais de Bagdad. A purga abássida perda do Ocidente. Paradoxalmente, o império
Abdemarrão I e os seus sucessores construíram estava a ser vítima do seu próprio êxito: era dema-
as sólidas bases de um estado independente que esteve na origem siado grande para ser governado com eficácia.
iria resistir à ofensiva dos reinos cristãos e de Carlos
Magno. Não obstante, o descontentamento dos do califado DESAFIO FATÍMIDA
moçárabes e das mais proeminentes famílias de Houve outro grande desafio para além do Al-An-
muladis era um desafio permanente, muito mais do Al-Andalus dalus. No Egito, uma crise de legitimidade deu força
SUPER 27
Tráfico de ideias
O crescimento urbano e o auge das
rotas comerciais terrestres são dois
fenómenos que caminham a par e passo
durante o califado abássida, um império
decididamente mais vocacionado para o
comércio do que para a guerra. O camelo
converteu-se, assim, num dos melhores
veículos de penetração da civilização
islâmica, unindo regiões, gentes e cultu-
ras desde a China até Lisboa, seguindo
o sistema das rotas de caravanas, pelo
qual a circulação era rápida e segura, sem
inconvenientes fronteiriços. Peregrinos,
mercadores e intelectuais viajavam através
desta espessa rede de artérias, fosse de
barco, cruzando o Índico, o mar Vermelho
ou o golfo Pérsico, fosse por terra, percor-
rendo, entre outras, a vertente ocidental
da Rota da Seda ou das rotas transaharia-
nas. Todos estes vetores de comunicação
forjaram um mundo cada vez mais multi-
cultural no qual a estabilidade aduaneira
permitia trocas vantajosas entre regiões
muito distantes, o que, a longo prazo,
potenciou a aparição de um sistema
“bancário” internacional que facilitava a
circulação de dinheiro numa escala nunca Meio seguro. Caravanas Atravessando
antes vista. o Deserto, do pintor orientalista francês
Theódore Frère (1814–1888).
AGE
Pouco a pouco,
o império
islâmico foi-se
desmoronando
aos fatímidas, xiitas profundamente hostis ao
regime abássida e que se autoproclamavam des-
cendentes diretos de Ali e de Fátima, a filha do pro-
feta. Em 909 (vinte anos antes de Abdemarrão III
fazer o mesmo em Córdova), Ubayd Allah, 11.º imã
fatímida, proclamou-se califa no Cairo.
Contrariamente aos omíadas, os fatímidas não
pretendiam criar um estado independente do poder
abássida, mas derrotar os califas de Bagdad e unifi-
car todo o Islão, sujeito à sua autoridade, enquanto
legítimos herdeiros de Maomé. Durante algum
tempo, omíadas e fatímidas disputaram o controlo
do Magrebe, mas a firme resistência de Abdemar-
rão III acabou por persuadir o califado fatímida a
aceitar a divisão de esferas de influência: o Egito
ficava para os fatímidas e o Magrebe e a península
Ibérica para os omíadas.
Abdemarrão e os seus sucessores imediatos
conduziram o Al-Andalus ao auge do seu esplendor.
Contudo, a menoridade de Hixam II, califa desde 965,
28 SUPER
ASC
Inconciliáveis. O único sobrevivente
da purga contra os omíadas, Abdemarrão, foi aproveitada pelo seu tutor, Almançor, para minar
conseguiu fugir dos abássidas e chegar
à península Ibérica, onde fundou, a sua autoridade. Foi o primeiro sintoma de um
em 755, o emirado de Córdova. declínio que se consubstanciaria nas décadas
seguintes, quando o califado se desmoronou e
viveu um período de grande instabilidade política,
caracterizada pelo surgimento, depois do derrube
de Hixam III, último califa omíada, das taifas e dos
reinos islâmicos independentes.
DEBILIDADE CRÓNICA
A crise do califado de Bagdad coincidia, deste
modo, com a desintegração dos califados rebeldes.
Os fatímidas começaram a mostrar sinais de uma
debilidade crónica a partir da viragem de século.
Al-Hakim, um califa incapaz, não conseguiu impedir
que o estado fatímida caísse nas mãos de vizires
ambiciosos e de generais fora do controlo.
O desembarque no Al-Andalus, a partir do final do
século XI, de almorávidas e almóadas (muçulmanos
extremamente rigoristas que chegavam para se
aproveitarem do caos e darem resposta a pedi-
dos de auxílio por parte de taifas ameaçadas pela
ofensiva cristã), a crise económica do califado de
Bagdad e a lenta agonia fatímida (até à dissolução
definitiva de um regime já desmantelado na prática
e controlado por generais ávidos de poder) repre-
sentam o final de uma era: a idade dourada dos
califados islâmicos chegava ao seu fim.
R.P.
SUPER 29
Ciência, cultura e artes
Renascimento
islâmico
30 SUPER
É difícil, para não dizer impossível,
referir um aspeto em que o mundo
islâmico não superasse o cristianismo
da Idade Média: verificava-se
na medicina, mas também
na matemática, na astronomia,
na química, nas letras,
nas humanidades, na literatura
e nas suas florescentes artes plásticas.
SUPER 31
P
or volta de 1138, num momento de pausa Astronomia. Em 1575, Taqi ad-Din
nas guerras das Cruzadas, o governador fundou o Observatório de Istambul.
Esta pintura mostra os astrónomos
cristão do monte Líbano pediu ao emir com alguns dos seus instrumentos.
muçulmano vizinho que lhe enviasse um
médico para tratar de uns casos urgentes. Conhe-
cia a fama da medicina praticada pelos seus inimi-
gos islâmicos, e cederam-lhe um médico de uma
região cristã oriental, para facilitar a relação.
O médico voltou, ao fim de poucos dias, horro-
rizado com as barbaridades praticadas pelos seus
colegas ocidentais que acompanhavam os militares.
Relatou o caso de um cavaleiro com um grande
abcesso de pus na perna, que ele pretendia tratar
com um emplastro até o tumor abrir. Contudo, um
“mata-sãos” franco (era assim que apelidavam
todos os cruzados) adiantou-se e disse ao enfermo:
“O que preferes, viver com uma perna ou morrer
com as duas?” O guerreiro, logicamente, optou
pela primeira opção. A desnecessária amputação
foi, além disso, executada de forma brutal, a golpes
de machado. Como narrou o médico oriental, “a
medula saiu da perna e o ferido morreu durante
a operação”.
Este caso, que, para a medicina islâmica, seria
facilmente solucionável, teve um desfecho trágico.
Não é, por conseguinte, estranho que o contador
do episódio, o emir e cronista sírio Usamah ibn Mun-
diqh, tivesse em baixa conta os invasores. Quando
lhe propuseram que o seu filho fosse educado nas
cortes europeias, respondeu que preferia “levá-lo
para a prisão do que para o país dos francos”.
As Cruzadas
mostraram à
Europa o avanço
dos árabes
MUNDOS ANTAGÓNICOS
As Cruzadas, com o obrigatório encontro entre
as duas civilizações, puseram a descoberto, para
todos os europeus que se mobilizaram para domi-
nar os “infiéis”, algo que, há já três séculos, sabiam
os habitantes da península Ibérica: os muçulma-
nos estavam muito mais avançados em todas
as áreas do conhecimento.
A conclusão a que chegou grande parte dos estu-
diosos aponta que o mundo muçulmano terá vivido
a sua idade de ouro entre os séculos VIII e XIII, com
uma liderança intelectual fruto do conhecimento
e do melhoramento do legado clássico de civi-
lizações como a grega, a egípcia e a persa. É o
que demonstra uma longa lista de descobertas e
invenções, que vão desde o uso do petróleo até
à inauguração dos primeiros hospitais dos quais
existe memória histórica, ou a revolução praticada
na agricultura e no aproveitamento da água. Alguns
historiadores, ousadamente, chegam mesmo a
declarar que, à luz destes impressionantes avanços
32 SUPER
científicos, tecnológicos e culturais, o Renasci-
mento, com a sua revolução humanística, não
começou em Itália, mas no Islão.
EDUCAÇÃO ESMERADA
A base do sucesso em todos estes campos do
saber resulta da prioridade que foi concedida à edu-
cação e ao conhecimento, em consonância com
o que é preconizado no Corão. O Islão medieval
absorveu o legado clássico grego, especialmente as
obras de Aristóteles, traduzidas para o árabe pelas
eficazes escolas criadas em cenáculos como a Casa
da Sabedoria de Bagdad, instituída no século VIII.
Um dos maiores contributos islâmicos foi o
conceito de “ensino superior”. Ainda que Bolonha
(Itália), fundada em 1088, seja considerada a pri-
meira universidade do mundo, esse título é dis-
putado pela madraça de Al Quaraouiyine, em Fez
(Marrocos), criada em 859 por duas mulheres.
A madraça (nome que hoje está associado às
escolas corânicas) foi criada para ministrar um
ensino especializado, semelhante ao nosso con-
ceito de universidade.
A divisão que hoje fazemos entre letras e ciências
era totalmente estranha à mentalidade cultural
do Islão medieval: os saberes organizavam-se de
acordo com outras categorias. Por um lado, havia
aquilo a que chamavam “ciência dos antigos”, as
disciplinas baseadas nas conclusões racionais (e que
viriam a ser as nossas ciências atuais); à cabeça,
estava a filosofia, “rainha das ciências”, como
Tinham-se
adiantado
a descobrir os
autores clássicos
também o havia sido para os gregos, cujo modelo
educativo era similar. A partir dela, ensinavam-se
a matemática e as diversas ciências naturais, espe-
cialmente a medicina, a alquimia (antecessora da
química), a astronomia e a astrologia (uma espé-
cie de astronomia aplicada).
O outro grande ramo da árvore do saber islâmico
era o das “ciências do Corão”, derivadas do estudo
do seu livro sagrado e cujo fundamento residia na
inspiração divina, pelo que não eram questionadas
racionalmente e eram aceites, por conseguinte,
devido à autoridade e à tradição que delas emana-
vam. Corresponderiam às nossas “ciências religio-
sas”. Este campo incluía o estudo e a recitação do
Corão e das tradições nele assentes, mas também
todas as disciplinas das letras: filologia, gramática,
literatura (que, mais do que na prosa e na poesia,
se concentrava na história) e, igualmente, a juris-
prudência (direito), dado que o ordenamento jurí-
dico era de fundamentação religiosa (não existia
ALBUM
legislação civil).
SUPER 33
APAIXONADOS PELA CIÊNCIA
É impressionante a grande produção científica
demonstrada pelos árabes durante o período de
quatro a seis séculos compreendido pela sua idade
de ouro, tanto pela sua qualidade como pela diver-
sidade dos seus interesses. Vivia-se uma autêntica
paixão pela ciência que potenciava descobertas e
avanços em quase todas as disciplinas. Prova disso
é que, inclusivamente, surgiram as primeiras histó-
rias da ciência, compilando os grandes progressos
do passado.
A mais notável de todas foi escrita precisamente
na península Ibérica, por Saíde, o Andalus, de Almería
(Espanha), um respeitado intelectual que foi, tam-
bém, um importante político e homem de con-
fiança do rei de Toledo, Al-Mamún, que o nomeu
cádi da cidade. Aí encontrou tempo para aprofun-
dar a sua paixão pelo saber e para escrever o Livro
das Categorias das Nações. Esta obra não só foi um
grande compêndio sobre a evolução da ciência,
como foi inovadora em si mesma, porque, em vez
de adotar uma abordagem biográfica, foi redigida
seguindo uma organização temática, centrada na
expansão da ciência desde a Antiguidade até à sua
contemporaneidade.
A primeira
universidade
foi fundada
no século IX
MÉDICOS E FILÓSOFOS
Como vimos no episódio que inicia este artigo,
a medicina árabe estava a anos-luz da europeia.
Enquanto os praticantes desta, no século XI, pouco
mais eram do que curandeiros, em Damasco já
se havia criado, em 707, o primeiro hospital. Os
melhores especialistas islâmicos tinham um elo
comum: a sua condição de médicos-filósofos,
conhecedores de um amplo leque de disciplinas,
traço característico dos humanistas.
Se o precursor foi o médico persa do século IX
Al-Razi, que destrinçou doenças como a varíola
e o sarampo e escreveu tratados enciclopédicos,
muitos dos grandes nomes da medicina árabe
que chegaram até nós são de origem ibérica.
O primeiro é Abulcasis (Córdova, 936–1009). É con-
siderado o pioneiro da cirurgia moderna, mérito
ao qual há que somar uma versatilidade superior
à dos atuais cirurgiões especializados: realizou
operações oftalmológicas, de ouvidos, de gar-
ganta e até implantes dentários. Documentou a
sua grande atividade prática com uma abundante
descrição das suas técnicas e dos instrumentos Ensino superior. A madraça de
cirúrgicos utilizados. Essa experiência e partilha Al Quaraouiyine (Fez, atual Marrocos),
do saber ficou plasmada na sua enciclopédia em fundada em 859, pode ser considerada
a primeira universidade do mundo.
trinta volumes Livro da Prática Médica. Este texto
34 SUPER
Método científico
O s intelectuais muçulmanos
não só se dedicaram ao estudo
de todas as ciências como foram tam-
bém os responsáveis pela criação de
uma mentalidade científica. Alhazen
(965–1040) desempenhou um desta-
cado e pioneiro papel nesse aspecto.
Nascido em Bassorá e tendo-se estabe-
lecido no Cairo, foi um grande ótico.
Descreveu com precisão a anatomia do
olho (descartando as teorias em que
haviam acreditado Platão, Ptolomeu e
até Galeno) e explicou a forma como
são produzidas as imagens na retina
através do cristalino. Contudo, o seu
contributo mais decisivo não diz ape-
nas respeito à ótica, mas sim a todas as
ciências. Falamos do seu método de
trabalho baseado na experimentação.
O seu sistema consistia em combinar
a física com a matemática para obter
padrões de certeza comprováveis. Nos
seus textos, enfatizou sempre a neces-
sidade de submeter qualquer inovação
a um aturado “exame crítico” para
evitar os preconceitos e a falta de rigor,
sendo esta a única forma de aspirar à
descoberta da verdade. Esta perspetiva,
que é a semente do método científico,
foi difundida na Europa, dois séculos
depois, por Roger Bacon (1214–1292).
SUPER 35
Precursor. O grande médico, alquimista
A alquimia e filósofo persa Al-Razi escreveu diversos
tratados e foi o primeiro a distinguir a varíola
A agricultura
mereceu uma
atenção especial
e exaustiva
seus cinco sentidos. Neste enquadramento, con-
vergem as suas facetas de filósofo e de estudioso
do corpo humano, já que postula a interação entre
o coração, os nervos e o cérebro e atribuiu a este
último o papel determinante, que hoje sabemos ter,
nas sensações. Isso, à data, era ainda objeto de
discussão entre os que apoiavam as teses aristoté-
licas (recusando a teoria de Averróis) e os que se
amparavam nas de Galeno (que se havia apercebido
da importância da ligação entre o cérebro e as
emoções). Averróis procurou superar este dilema.
Os avanços da medicina islâmica alcançaram
uma incomensurável quantidade de aspetos, que
vão desde as operações a cataratas até à anestesia,
da qual os sábios muçulmanos foram pioneiros.
REVOLUÇÃO AGRÍCOLA
Se na medicina se valoriza a forte dimensão prática
dos cientistas islâmicos, a disciplina na qual mais
brilhou a inovação medieval muçulmana foi a agri-
cultura. Esta área, fundamental na economia das
36 SUPER
AGE
Precioso líquido. O mundo islâmico destacou-se pelo magistral domínio da água, que permitiu
introduzir culturas em lugares antes impensáveis. Aqui, o Pátio do Canal da Água, em Granada.
sociedades islâmicas, foi pela primeira vez objeto PARA ALÉM DE PTOLOMEU
de uma consideração científica e daí derivou um A Geografia de Ptolomeu foi traduzida em Bag-
crescimento excecional da sua produtividade, dad e, com o passar dos anos, melhorada com des-
fenómeno que levou os historiadores a falar de crições mais pormenorizadas de diversas regiões,
uma verdadeira “revolução agrícola”. particularmente de África e do Oriente. Então, um
Este enfoque científico começou pelo esforço grande número de cartógrafos permitiu a ela-
de recolha da maior quantidade possível de infor- boração de uma representação mais completa
mação sobre as plantas e os solos. Desse trabalho, do mundo conhecido. De entre eles, sobressaiu
resultou a composição de manuais agrícolas sobre Al-Idrisi (1100–1165), natural de Ceuta, que, no seu
todos os aspetos relacionados, desde as técnicas Livro de Rogério (o rei da Sicília a quem serviu),
de sementeira até às necessidades de cada tipo de desenhou mapas muito precisos que continua-
planta e aos seus ritmos de crescimento. Assim, riam a servir de referência durante os três séculos
puderam introduzir-se novas culturas em lugares posteriores.
que, até então, não as tinham ou não eram, tão Para além dos mapas e de outros elementos
pouco, vistos como sendo produtivos. cartográficos, os muçulmanos utilizaram nas suas
Particular destaque merece o sofisticado apro- expedições o astrolábio, instrumento que, apesar
veitamento da água que os agricultores islâmicos de lhes ter chegado através dos gregos, era desco-
demonstraram. Introduziram ou melhoraram nhecido na Europa medieval até ao momento em
máquinas até então desconhecidas ou escassa- que os árabes o reintroduziram no Velho Conti-
mente aproveitadas, como a nora, a prensa hidráu- nente. Isto demonstra o avanço da sua astronomia,
lica e os moinhos movidos a vento ou a água. que teve, uma vez mais, o Al-Andalus como epi-
Graças a estes e a outros engenhos, conseguiram centro. Entre as suas produções principais, des-
aumentar, em grande medida, o número de solos tacam-se as Tábuas Toledanas, que prediziam
cultiváveis. Em conjunto, todas estas inovações o movimento do Sol, da Lua e dos planetas em
deram o mote para a transição de uma economia relação às estrelas, que, naquela época, se consi-
de subsistência para outra de comércio e expor- deravam fixas.
tação. Os protagonistas destas atividades comer- Sem a influência islâmica, é difícil imaginar os
ciais, os mercadores árabes, beneficiaram também avanços científicos e tecnológicos que a Europa
dos conhecimentos alcançados em duas grandes alcançaria alguns séculos depois.
ALBUM
SUPER 37
Um combate de quase 1400 anos
Em pé de guerra
38 SUPER
Durante séculos, o Islão alimentou a sua expansão
com um poder bélico baseado numa férrea disciplina,
uma aguda religiosidade e uma mentalidade agressiva.
As primeiras vitórias maometanas
serviriam de inspiração a berberes, almóadas,
seljúcidas, mamelucos, otomanos...
SUPER 39
É
uma das grandes questões da história
universal: como é que uma indisciplinada
horda de guerreiros, sem outra tradição
bélica que não a das razias tribais, con-
seguiu erguer um império que, no auge do seu
esplendor, superou em extensão o romano? A res-
posta exige a reinterpretação da figura de Maomé
como primeiro grande líder militar da história
muçulmana. O profeta foi um excecional condutor
de homens e, não menos relevante, mostrou-se
capaz de unir os interesses das tribos árabes em
prol de um objetivo comum. Para alcançá-lo, cons-
truiu um exército que teve a sua eficácia assente
em três pilares: disciplina, fé e agressividade. Esse
exército sobreviveu-lhe e prosseguiu a sua missão
durante séculos.
Assim, depois da morte de Maomé, e em apenas
13 anos (entre 633 e 646), o novo estado islâmico
havia já subjugado, sob a liderança do califa Omar,
as duas superpotências políticas e militares da
época, ambas imersas em profundas crises que
explicam a sua impotência ante a invasão. A Pér-
sia sassânida deixou de existir depois da batalha
de Cadésia em 637, enquanto o império bizantino
iniciou a sua retirada do campo de batalha com a
renúncia na Síria, em Jarmuque, em 636. A con-
quista foi levada a cabo por um exército muito
sólido que soube integrar os povos derrotados
nas suas fileiras.
Tariq conquistou
quase toda a
península Ibérica
em três anos
SOLDADOS DE ALÁ
A característica essencial dos seus contingentes
foi a mobilidade em torno de dois elementos:
cavalaria ligeira e infantaria montada em camelos,
capaz de movimentar-se em qualquer terreno e de
avançar pelo deserto sem dificuldades. A isto,
somava-se um profundo conhecimento do inimigo;
muitos árabes tinham servido antes como funcio-
nários fronteiriços dos bizantinos e sassânidas.
No entanto, foi durante o reinado de Almotácime
(796–842), já no período abássida, que se alcançou
a consolidação definitiva do poderio militar islâmico.
A maioria da infantaria combinava a espada curva,
a maça e o machado tabarzin, ainda que tenham
sido os abna, infantaria armada com espadas pro-
cedente de Bagdad e com fama de irredutíveis, e os
naffattin, providos de granadas de nafta, as unida-
des mais mortíferas. A grande revolução ocorreu,
porém, no auge dos gulam, arqueiros recrutados
como escravos na Ásia Central e que, convertidos
ao Islão, serviam como cavaleiros de elite.
A expansão do Islão no norte de África exigiu
ALBUM
40 SUPER
Guadalete. Em julho de 711, o berbere
Tariq venceu o último rei visigodo,
Rodrigo, que morreu na batalha (como se
vê nesta gravura colorida do século XIX).
SUPER 41
ao governador iemenita Muça ibne Noçáir, que
conseguiu concretizar a pacificação e a islamiza-
ção do Magrebe, confiando o controlo de Tânger a
um líder autóctone, Tariq. Na noite de 27 de abril
de 711, Tariq cruzou com 700 homens o estreito
que agora tem o seu nome (Gibraltar) e desem-
barcou na Europa. Pouco depois, os árabes derro-
taram o exército do rei visigótico Rodrigo e pene-
traram pelas antigas vias romanas até ao centro
da península, derrubando todas as defesas.
O emir
de Córdova
proclamou um
novo califado
e, posteriormente, dos dogmáticos fatímidas,
radicais seguidores da seita islâmica xiita que aca-
bariam, anos mais tarde, por controlar o Egito.
Quando o califado abássida prosperava na parte
oriental do império islâmico, Abdemarrão II come-
çou a organizar o governo do Al-Andalus. O seu rei-
nado privilegiou a criação de uma sociedade mais
refinada do que a dos seus predecessores, não
deixando, ainda assim, de recorrer às armas para
fazer frente à ofensiva dos normandos (vikings)
no seu território, em 844.
PRINCÍPIO DO FIM
Em 912, Abdemarrão III chegou ao poder como
emir; morreria como califa. Oito anos após conse-
guir a liderança do emirado, conseguiu livrar-se da
pressão exercida a norte dos seus domínios por
leoneses, castelhanos, navarros, aragoneses e
catalães, derrubando algumas das suas principais
praças defensivas.
Depois daquelas vitórias, em 929, atribuiu-se os
títulos de califa e de príncipe dos crentes, o que
implicou a restauração da antiga dinastia omíada
em Córdova e a sua independência do califado de
Bagdad. A decisão coincidiu no tempo com a rebe-
lião dos fatímidas no norte de África, criando, em
Tunes, outro califado independente do abássida.
Àquela era brilhante, sucederia o princípio do
42 SUPER
De emir a califa. Abdemarrão III (889–961)
instaurou o califado de Córdova, independente
do de Bagdad, e conduziu-o ao seu auge.
Entre outros feitos do seu reinado, consta
a fundação da cidade de Medina Al-Zahara.
SUPER 43
declínio com a morte de Aláqueme II, o califa
seguinte. O seu sucessor, Hixam II, com apenas
onze anos, reinou sob a regência de Al-Mushafi e do
general seu amigo Abu Amir Muhammad, mais
conhecido como Almançor. A sua frenética ativi-
dade militar, que tinha começado em 981, tradu-
ziu-se na participação em, pelo menos, 57 expedi-
ções contra os cristãos. Numa delas, devastou San-
tiago de Compostela, cidade que recebia peregri-
nos de toda a Europa. Quando Almançor morreu,
os seus sucessores foram incapazes de evitar a
desintegração do califado de Córdova numa cons-
telação de reinos, as taifas.
Foi então que entraram em cena os almorávidas,
provenientes do Sahara e do Sudão. Sob o comando
de Iúçufe ibne Taxufine, este austeros e fanáticos
guerreiros desembarcaram em Algeciras e lan-
çaram-se à conquista. Contudo, a sua força ini-
cial afrouxou quando tomaram contacto com os
prazeres da vida refinada do Al-Andalus. A sua
queda registou-se em 1135, depois da tomada de
Saragoça pelo aragonês Afonso I, o Batalhador. Os
seus sucessores seriam os almóadas, também eles
procedentes de Marrocos e igualmente ferozes.
SELJÚCIDAS E AIÚBIDAS
Entretanto, o declínio do califado de Bagdad foi
seguido pelo surgimento de múltiplas dinastias
que, longe de representarem um poder unitário
face à irrupção dos cruzados no Oriente, se devas-
taram frequentemente em conflitos intestinos.
Entre estes estados nascentes, pelo seu papel
Múltiplas
dinastias árabes
digladiavam-se
entre si
central nas Cruzadas e pela sua magnitude, desta-
cam-se os turcos seljúcidas na Síria e na Anatólia e
os aiúbidas no Egito.
O império seljúcida tinha demonstrado o seu
extraordinário poderio militar ao derrotar estre-
pitosamente os bizantinos na batalha de Manzi-
querta (1071), prólogo da Primeira Cruzada. O seu
exército era formado, fundamentalmente, por tur-
comanos da Ásia Central que tinham o seu melhor
argumento ofensivo no arco composto (curvo,
curto e de grande potência, graças à ação mecâ-
nica resultante da combinação do eixo, da madeira
e do tendão). Os gulam continuavam a ser as
estrelas dos corpos de elite; cada vez mais armados,
estes temíveis cavaleiros chegaram a alcançar tal
eficácia no disparo a partir da sela que podiam lançar
cinco flechas em três segundos.
No entanto, foi no Egito que os exércitos islâmi-
cos se aproximaram do seu zénite, graças à entrada
em cena de Saladino, líder aiúbida que aproveitou
44 SUPER
Jihad ambígua
S egundo a tradição corânica, há dois
tipos de jihad: a grande e a pequena. A
primeira incita à luta interna no contexto
de crescimento espiritual; só a segunda san-
ciona o exercício como veículo de imersão
no Islão. Dado que a escrita do Corão é pos-
terior à morte de Maomé, espelha contra-
dições resultantes da compilação de textos
aparecidos em momentos históricos dife-
rentes. Assim, há suras que se opõem aber-
tamente à guerra, outras que consentem a
guerra defensiva e outras que advogam um
modelo agressivo de expansão. Em qual-
quer caso, Maomé introduziu, pela primeira
vez na Arábia, um modelo de guerra ideo-
lógica: a comunidade religiosa substituiu a
tribo como epicentro das relações sociais,
o que exigiu dotar a nova filosofia guerreira
de um respaldo teórico. À medida que o
Islão foi adquirindo uma posição predomi-
nante em relação às entidades ao seu redor,
essa filosofia tornou-se mais agressiva por
razões políticas. Assim, as contradições do
Corão refletem apenas as diferentes fases e
tradições que forjaram uma ideia coerente
da guerra por parte do Islão.
OBJETIVO: JERUSALÉM
As Cruzadas, para a cristandade uma “gloriosa
reconquista dos Lugares Santos”, foram entendi-
das de maneira diametralmente oposta pelos ára-
bes. Subitamente, viram-se invadidos por hordas
de europeus que os atacavam em todas as frentes,
desde o estreito do Bósforo à Palestina e ao Egito.
Milhares de ferozes cristãos tinham chegado às
cidades muçulmanas a partir de 1096, para assom-
bro dos príncipes e plebeus locais, que, num pri-
meiro momento, ignoravam por completo a razão
que levava aos seus territórios aqueles estrangei-
ros loiros e altos, aos quais chamavam frany (fran-
cos), já que o reino de França era a sua principal
referência na remota Europa ocidental.
Dever. Nesta aguarela (1915) do alemão O que aconteceu desde então daria azo a um
Bruno Richter (1872–1946), um xerife antagonismo entre cristãos e muçulmanos no qual
ALBUM
SUPER 45
Dizimados pela sede. Lusinhão
Batalhas cruciais e os seus entraram no deserto sem água.
Os homens de Saladino massacraram-nos,
como se vê nesta pintura do século XIX.
HATTIN (1187)
Como resposta às incursões de Reinaldo de
Châtillon em território muçulmano, Sala-
dino invadiu o reino de Jerusalém e pôs sob
cerco a praça de Tiberíades. Um exército
de cruzados, sob o comando de Guido de
Lusinhão, foi em seu auxílio, mas entrou no
deserto sem água, numa manobra suicida.
A caminho das fontes dos Cornos de Hat-
tin, Lusinhão foi perdendo cada vez mais
homens. Saladino mandou queimar erva
seca para asfixiar os flancos do inimigo e
dominou o exército cristão.
CONSTANTINOPLA (1453)
A capital bizantina fora cercada por vários
exércitos islâmicos, que nunca tinham
conseguido ultrapassar as suas muralhas.
Em 1453, o sultão otomano Maomé II
apagou o império bizantino do mapa numa
operação anfíbia de proporções imensas.
O bloqueio naval, a fenomenal capacidade
da artilharia e a ação decidida de doze mil
janízaros conseguiram abrir uma brecha nas
muralhas da cidade. O acontecimento foi
tão traumatizante que se considera o final
da Idade Média europeia.
que chegaram até aos nossos dias. Este efeito de muito tempo sob governo muçulmano. As mais los à reação: a comunidade islâmica esperava que
surpresa explica a incapacidade dos muçulmanos importantes foram Trípoli, que os árabes perderam o sultão abássida de Bagdad a liderasse. Em vão
da Palestina para organizarem, em tempo útil, um em 1109 depois de um interminável cerco de dois mil acalentaram essa esperança, dado que o califado
exército para resistir à investida. Por conseguinte, dias, e Tiro. A conquista desta última ocorreu em estava, também ele, em decadência. Também não
os cruzados sitiaram Jerusalém e tomaram-na em 1224, marcando o auge do poder dos cruzados. durou muito a liderança prometedora de Zengi,
apenas um mês, em julho de 1099. Após a perda de Jerusalém, não faltaram ape- governador de Mossul e Alepo, que unificou
Segundo Ibn Alatir, cronista árabe contemporâ- grande parte do território sírio e alcançou uma
neo dos factos, “a população da Cidade Santa foi significativa vitória militar com a reconquista de
chacinada e os francos estiveram uma semana Saladino fez Edessa na véspera de Natal de 1144, alterando a
a matar muçulmanos; na mesquita de Al-Aqsa, relação de forças entre muçulmanos e cristãos; foi
mataram mais de 70 mil pessoas”. o Islão renascer assassinado dois anos mais tarde.
A esta conquista, que encerrou a Primeira Cru- Foi preciso esperar por 1169, ano em que Saladino
zada, seguiu-se a criação do reino cristão de Jerusa- das cinzas face foi proclamado vizir do Egito, para o Islão renascer
lém, que dominaria a Palestina durante 200 anos. das cinzas e tornar a ser capaz de fazer frente à
Ainda assim, algumas cidades resistiram durante aos cristãos cristandade. De origem curda e nascido em Tikrit
46 SUPER
ALBUM
(atual Iraque), a sua chegada ao posto foi muito Em poucos anos, Saladino conquistou a Líbia e IRROMPEM OS MONGÓIS
atribulada. O seu tio, o general Shirkuh, havia sido o Iémen, derrotou os núbios e, quando Noradine Treze anos depois da morte de Saladino, regista-
enviado pelo sultão da Síria, Noradine (filho de morreu em Damasco, viajou até à Síria para ser pro- ram-se importantes acontecimentos na Ásia cen-
Zengi), para combater a invasão do Egito pelos clamado sultão. Através de sucessivas campanhas tral que abalaram as fundações do islão. Em 1206,
francos, e pedira a Saladino que o acompanhasse. militares, solidificou o seu poder em toda a Síria e o chefe mongol Gengis Khan unificou as tribos
O califado fatímida ainda existia, mas era gover- na Mesopotâmia e, em 1187, invadiu o reino de Jeru- das estepes e criou um grande império. O seu neto,
nado por um jovem de vinte anos, Aladide, doente salém, infligindo uma espetacular derrota aos cris- Möngke Khan, organizou dois exércitos comanda-
e muito dependente dos seus conselheiros. Por tãos na batalha dos Cornos de Hattin (4 de julho), dos pelos seus irmãos: Kublai, que invadiu a China,
sugestão destes, depois da morte de Shirkuh em com a qual se iniciou a Terceira Cruzada e a lenda de e Hulagu, que liderou as tropas que aniquilaram,
circunstâncias pouco claras, atribuíram o cargo de Saladino como general invencível. Pouco depois, definitivamente, o califado abássida.
vizir a Saladino, confiados de que a sua juventude o após um breve cerco de doze dias, recuperou para o Kublai Khan, que já professava a fé islâmica,
tornaria mais influenciável. Não podiam estar mais Islão a Cidade Santa. Esta voltaria a mudar de mãos proclamou-se imperador da dinastia chinesa Yuan,
longe da realidade: enquanto o califa agonizava, várias vezes nos anos seguintes, mas já sem a sua criando um grande império muçulmano mongol
o vizir deu por extinto o califado e assumiu as rédeas participação: morreu de morte natural em que se estendia desde o mar da China até à Polónia,
do poder no país do Nilo. Damasco, em 1193. à Hungria e à Boémia, atravessando toda a Ásia.
SUPER 47
Temível. Saladino recuperou Jerusalém
para o Islão e derrotou os cruzados
em Hattin. Nesta ilustração, mata o rei
Reinaldo de Châtillon, vingando-se do ataque
à caravana em que viajava a sua irmã.
48 SUPER
Ao mesmo tempo, o seu irmão Hulagu comandou
os exércitos até aos territórios seljúcidas do sul-
tanato turco de Rum, derrotando-o na batalha de
Köse Dağ (1243). Aniquilados os seljúcidas, Hulagu
dirigiu as tropas para Bagdad, onde derrotou a
dinastia abássida. Além de provocar a quase com-
pleta destruição da capital do califado (1258) e
grande devastação na parte oriental do império,
a vitória dos mongóis fez o Islão recuar sobre si
próprio.
Os reinos cristãos
vingaram-se de
Almançor em
Navas de Tolosa
de Alarcos, onde os cristãos sofreram uma pesada
derrota. Dezassete anos depois, em 1212, os exér-
citos de Castela, Navarra, Aragão e Portugal obti-
veram a desforra travando o exército almóada na
batalha de Navas de Tolosa.
Perante a crise de que padecia o Al-Andalus,
os almóadas começaram a estabelecer relações
comerciais com os genoveses, o que permitiu o
desenvolvimento do território durante algumas
décadas. Não obstante, a pesada derrota de Navas
de Tolosa e os conflitos internos contra outros
líderes andaluses provocaram o declínio e a queda
da dinastia.
Rapidamente, os grupos rebeldes que derruba-
ram o reinado almóada começaram a negociar com
o monarca Fernando III de Leão e Castela os termos
de vassalagem que lhes permitiriam continuar nas
suas cidades. De entre esses acordos, destaca-se
o Pacto de Jaén, em 1246, que redundou no nas-
cimento do emirado granadino ou reino nasrida.
ARTURO ASENSIO
SUPER 49
Entre dois mundos. Fortaleza
da Europa, no estreito do Bósforo
(Turquia), erguida por Maomé II.
com o despertar dos povos turcos. Constantinopla e por rapazes raptados, ainda crianças, por piratas não pretender realizar qualquer ofensiva contra
perdeu a Itália bizantina e o interior da Anatólia, muçulmanos em países do Mediterrâneo. a capital bizantina.
territórios estratégicos considerados o celeiro da De facto, estava apenas a ganhar tempo. No
capital cristã do Oriente. À perda de territórios, GANHAR TEMPO inverno de 1451, ordenou a construção de um cas-
somaram-se as terríveis consequências da peste Ainda que não tivesse logrado a conquista de telo na zona mais estreita do Bósforo, a Fortaleza
negra e o levantamento dos otomanos, povo Constantinopla, o sultão dobrou uma vastidão de da Europa, cujas muralhas ainda se mantêm de pé
guerreiro de raiz turca que aproveitou as con- territórios que fazem hoje parte da Grécia, da Hun- junto a Istambul. Alertado por aquela iniciativa,
vulsões internas de Bizâncio para penetrar na gria e de outras nações balcânicas. Sucedeu-lhe Constantino enviou embaixadores para negocia-
Europa, onde conseguiu, nos séculos seguintes, o seu filho, Maomé II. O imperador de Bizâncio, rem um acordo de paz com Maomé. Como resposta,
controlar boa parte do curso do Danúbio. Constantino XI, tinha conhecimento da violenta o sultão ordenou a decapitação dos enviados
Em junho de 1422, o sultão otomano Murade II personalidade do novo chefe turco, razão pela qual bizantinos, o que significava uma verdadeira
sitiou Constantinopla, pese embora não possuísse a ficou surpreendido ante as suas promessas de declaração de guerra.
maquinaria de cerco mais adequada para derrubar Numa chuvosa manhã de abril de 1453, os angus-
as suas robustas muralhas, pelo que os seus habi- tiados habitantes de Constantinopla compreen-
tantes puderam respirar de alívio. Murade reorga- Os otomanos deram que o seu fim estava próximo: durante
nizou os regimentos de janízaros, convertendo-os a noite, o exército turco tinha-se posicionado frente
na unidade de elite do exército otomano. Este corpo tomaram à cidade. Ao longe, entre uma nuvem de pó, um com-
militar tinha sido criado em 1330 com o objetivo pacto grupo de setenta bois puxava lentamente
de servir como uma espécie de guarda pretoriana Constantinopla o gigantesco canhão desenhado pelo engenheiro
do sultão Orcano I. A unidade de janízaros era húngaro Órban. Depois de várias semanas de cerco,
composta por filhos de famílias cristãs dos Balcãs em 1453 bombardeamento de artilharia e ferozes combates,
50 SUPER
Flagelo da cristandade
F ilho do sultão otomano Selim I,
Solimão, o Magnífico (1494–1566),
deixou uma marca profunda na história
conquistando Belgrado e Budapeste e
chegando mesmo a cercar Viena. Além
destas incursões europeias e da meteórica
do seu povo como o maior conquistador expansão para Oriente, deixou a sua marca
do império. Aperfeiçoou a estrutura e a também no Mediterrâneo com a tomada de
operacionalidade dos janízaros, reorgani- enclaves estrategicamente tão importantes
zando-os em 101 batalhões e valendo-se como Rhodes ou Trípoli. Morreu em plena
deles como núcleo duro dos seus temíveis campanha da Hungria, em setembro de
exércitos e também como instrumento 1566, mas os seus feitos excecionais no
de controlo político e de proteção face âmbito político e militar foram um dos
aos seus adversários. Solimão transpôs as fatores decisivos para que a cristandade se
fronteiras de todos os seus vizinhos com decidisse, de uma vez por todas, a unir-se
uma implacável política de conquistas para, na batalha de Lepanto (1571), travar
que o levaram até ao coração da Hungria, o expansionismo otomano.
ALBUM
em 28 de maio de 1453 deu-se o ataque final, que quecia, simultaneamente, com a perda do seu do império otomano e ao espírito conquistador de
durou mais de vinte horas. último enclave na península Ibérica. um jovem príncipe timúrida chamado Babur, des-
Vendo tudo perdido, Constantino desembara- Além disso, o descobrimento da América e as vias cendente do temível e lendário Timur, conhecido
çou-se das insígnias imperiais e lançou-se contra marítimas abertas pelos navegadores portugueses no Ocidente como Tamerlão. Este muçulmano
os invasores; encontraram o seu cadáver na Porta tiveram nefastas consequências noutros pontos do Turquestão tinha restaurado o antigo império
de São Romano. A sua cabeça, conservada em sal, estratégicos do Islão. A possibilidade de aceder mongol e fundado, no final do século XIV, a dinastia
foi exibida por todo o império como testemunho aos produtos do Oriente através do mar e a aber- timúrida, que devastou, com os seus exércitos, os
do triunfo de Maomé II. Constantinopla passou a tura de um incipiente e pujante mercado no Novo territórios das atuais Rússia, Índia e Turquia.
denominar-se Istambul e tornou-se a nova capital Mundo abalaram a vida comercial e a economia de
do império otomano. Alexandria, Samarcanda e Bucara. MONGÓIS E MAMELUCOS
Apesar de tudo isto, o Islão continuou o seu Babur, o seu filho e novo líder dos timúridas (mais
FINAL DA RECONQUISTA IBÉRICA avanço noutros territórios, graças aos progressos tarde chamados mongóis), conquistou Samarcanda
A milhares de quilómetros, o reino nasrida de em 1497, com apenas 14 anos (perdê-la-ia e vol-
Granada conhecia o seu ocaso face aos ataques taria a conquistá-la depois com a ajuda do xá da
crescentes dos cristãos. Depois de dez anos de A queda de Pérsia), e tomou Cabul (atual Afeganistão), impor-
intensas batalhas e de contínuos conflitos internos tante praça no contexto comercial das rotas de
entre os clãs dirigentes nasridas, as tropas de Isabel Granada (1492) caravanas que uniam a Índia, a Pérsia, o Iraque, a
de Castela e de Fernando de Aragão conseguiram Turquia e a China. Em outubro de 1525, marchou
sitiar Granada. Por fim, a cidade capitulou em 2 de significou o fim sobre a Índia com 120 mil homens e entrou triun-
janeiro de 1492. O Islão tinha ganho uma importante falmente em Deli, onde se proclamou imperador
praça em Constantinopla, mas o império enfra- do Al-Andalus do Industão.
SUPER 51
Muito antes, durante o seu governo no Egito,
Saladino (e os seus sucessores) compraram nume-
rosos escravos mamelucos na Rússia e no mar
Cáspio, muitos dos quais receberam uma esmerada
educação islâmica e serviram nas casas das famílias
egípcias mais bem estabelecidas. Aqueles escravos
tão bem adestrados prosperaram e conseguiram
penetrar nos círculos influentes do reino, até que,
em 1250, se sublevaram e tomaram o poder no
Cairo, fundando a dinastia mameluca.
No início do século XVI, mais de 250 anos depois
da tomada do poder pelos mamelucos, o sultão
otomano Selim I derrotou os seus exércitos e con-
denou à forca o último monarca do clã. Os turcos
iriam governar o Egito durante 300 anos, através
de vice-reis aos quais era concedida uma ampla
margem de manobra, desde que, naturalmente,
fizessem chegar somas crescentes aos cofres do
califa em Istambul. Sob o reinado do filho de Selim,
Solimão, o Magnífico, o império otomano alcançaria
a sua máxima extensão, englobando territórios que
iam desde a Argélia até ao mar Cáspio e da Hungria
ao golfo Pérsico.
O império
otomano foi
desmantelado Expulsão. O rei Filipe III de Espanha
(II de Portugal) decretou que os mouriscos
fossem expulsos da península em 1609.
em 1920 Neste quadro, a sua partida de Valência.
tórios andaluzes que os Reis Católicos tinham con- DECLÍNIO OTOMANO sões otomanas no Tratado de Santo Estevão (1878).
quistado. Os reforços que receberam de turcos e A partir de então, enquanto a Europa iniciava a Ainda que esse tratado represente o início do fim do
berberes alimentaram a rebelião. sua revolução tecnológica e científica, o mundo poder otomano, ele conseguiu resistir até à Primeira
Filipe II ordenou uma violenta campanha para islâmico entrava num profundo declínio. Os sultões Guerra Mundial. Contudo, a decisão do sultanato
pôr termo à revolta. Uma vez alcançada a vitória otomanos tentaram aplicar reformas que não de se aliar com a Alemanha foi a estocada final na
na Guerra de Alpujarra (1570), o rei ordenou que surtiram efeito, pois não souberam estimular um Sublime Porta (termo através do qual se designava
os mouriscos fossem dispersos e começou a ser crescimento económico alavancado nos avanços o governo otomano e que fazia alusão à porta que
discutida a possibilidade da sua expulsão definitiva técnicos. Não foram também capazes de refrear e dava acesso à sede do poder oficial).
dos territórios da coroa espanhola. A revolta alimen- travar os movimentos nacionais independentistas Aproveitando o declínio dos otomanos, França
tou a desconfiança em relação aos muçulmanos que iam surgindo nos seus territórios. e o Reino Unido impuseram, então, o seu domínio
e levou à criação de uma Santa Liga (Veneza, Vati- A situação agravou-se com a expansão colo- sobre muitos territórios habitados por muçulma-
cano e Espanha) para derrotar a armada otomana. nialista europeia, que se encaminhou para o vale nos. Assim, terminado o sangrento conflito militar,
A batalha de Lepanto (7 de outubro de 1571) foi um do Nilo e para outros locais até então controla- as potências vencedoras assinaram o Tratado de
duro revés para o sultanato de Istambul, que perdeu dos pelos turcos. A derrota na guerra russo-turca Sèvres (1920), cujas cláusulas revoltaram o mundo
o controlo sobre as águas do Mediterrâneo. (1877/78) acelerou a sua decadência com a perda árabe oriental, desenhando a régua e esquadro as
Quase quarenta anos depois, Filipe III (II de Por- definitiva da Sérvia, da Tessália (integrada na Gré- fronteiras de novos estados.
tugal) mandou expulsar os mouriscos da penín- cia), dos territórios da Bósnia-Herzegovina (ocupa-
sula, em abril de 1609. Os restantes reinos euro- dos pela Áustria) e de Creta (que se juntou à Gré- CONSEQUÊNCIAS DA DERROCADA
peus e parte significativa da Igreja e da população cia), e o posterior descontentamento da Albânia, Foi criado um Curdistão autónomo, um estado
aplaudiram a medida. da Macedónia e da Trácia ocidental com as conces- da Arménia e outro do Iraque, cujos verdadeiros
52 SUPER
Turquia secular
M ustafa Kemal Atatürk foi a figura
mais importante na configura-
ção da nova nação turca nascida depois
da Primeira Guerra Mundial. Assim,
depois de liderar a bem-sucedida
rebelião nacionalista e a posterior e
sangrenta guerra contra a Grécia, tor-
nou-se o primeiro presidente da recém-
-criada república. Nessa qualidade, em
outubro de 1923, ordenou que Ancara
substituísse Istambul como sede do
governo e aboliu o califado, o que abriu
as portas à secularização da Turquia.
Esta medida compreendeu, entre
outras coisas, a supressão dos tribunais
religiosos, a proibição da poligamia, a
obrigatoriedade do matrimónio civil, a
introdução do alfabeto latino em detri-
mento do árabe e do persa e, algum
tempo depois, a concessão do direito de
voto às mulheres (1932). Estas foram,
em linhas gerais, as principais políticas
do seu mandato. Mais negros foram,
além do massacre grego, o sistema de
partido único (Partido Republicano do
Povo), que prevaleceu praticamente até
1945, e o culto da personalidade, que
raiava a idolatria.
SUPER 53
Pan-arabismo e Médio Oriente
Um sonho
por realizar
A união dos árabes tem sido uma aspiração política que, praticamente
desde as origens do Islão, tentou integrar numa grande nação
todos os povos que partilham a mesma cultura e idênticas tradições.
Esta ideia foi atualizada, no século XX, com o surgimento do estado de Israel,
foco de uma disputa que chegou até aos nossos dias.
54 SUPER
GETTY
Setenta anos de luta. O anúncio
da mudança da embaixada dos Estados
Unidos de Telavive para Jerusalém,
em 2018, provocou uma onda de protestos
que causaram várias dezenas de mortos.
SUPER 55
A
solidariedade e o orgulho do povo árabe Esperança efémera. Sob o patrocínio
não desapareceram durante os quatro do presidente norte-americano Bill Clinton,
Yitzhak Rabin e Yasser Arafat assinaram,
séculos de dominação turca. Contudo, na Casa Branca, um acordo que previa
as bases de um pan-arabismo identifi- a criação de dois estados. Pouco depois,
cado com um movimento nacionalista coerente Rabin foi assassinado por um extremista
judaico e o acordo foi por água abaixo.
e integrador só se estabeleceram no século XIX,
fase histórica em que as potências ocidentais
começaram a intensificar a sua presença colonial
no mundo. Inspirado no liberalismo europeu, o
pan-arabismo ficou confinado, inicialmente, aos
círculos intelectuais árabes, especialmente os
das cidades de Beirute e Damasco, onde tomou a
forma de um renascimento cultural e político cujo
principal objetivo era acabar com o domínio turco.
Fiel a esta corrente, em 1904, foi criada a Liga da
Pátria Árabe, com um programa de atuação revo-
lucionário. O I Congresso Nacional Árabe, orga-
nizado em Paris em 1913, propugnou a indepen-
dência em relação ao império otomano, intenção
que foi apoiada pelos britânicos no dealbar da
Primeira Guerra Mundial. Noutros locais, como na
Argélia e na Tunísia, a luta dirigiu-se contra a pre-
sença colonial europeia.
Após a Primeira Guerra Mundial, o desmantelado
império otomano foi repartido pelas potências que
saíram vencedoras da contenda. Os britânicos pas-
saram a controlar o Iraque, a Palestina, a Jordânia,
o Egito, o Sudão e o Iémen, enquanto França ficou
com o domínio sobre Marrocos, a Tunísia, a Argélia,
o Líbano e a Síria. A Líbia ficou em mãos italianas e a
península arábica tornou-se um feudo das compa-
nhias petrolíferas norte-americanas. Em resposta
ao férreo domínio colonial, em 1919, o I Congresso
Geral Sírio deu voz a aspirações nacionalistas dis-
torcidas pela ingerência das potências coloniais.
O conflito
israelo-árabe
continua
sem fim à vista
UMA PÁTRIA ÚNICA
Até ao início da Segunda Guerra Mundial, o
pan-arabismo pretendia alcançar a independência
política e criar um estado plurinacional (algo seme-
lhante à conformação da atual União Europeia)
estruturado como as democracias europeias. Com
esse desiderato, surgiu toda uma série de partidos,
entre os quais se destacaram, particularmente, o
Wadf, no Egito, o Baath, no Iraque e na Síria, o Des-
tour, na Tunísia, e o Istiqlal, em Marrocos. Para se
furtarem a comparações com o regime nazi, os
Aliados viram-se obrigados a conceder a indepen-
dência a diversos países que, de imediato, aderiram
à Liga Árabe, organização fundada no Cairo, em 22
de março de 1945, por iniciativa pessoal de Mostafa
El-Nahas e Nuri al-Said, primeiros-ministros do Egito
GETTY
e do Iraque, respetivamente.
56 SUPER
SUPER 57
Os seus primeiros membros foram a Arábia Sau-
dita, a Síria, o Egito, o Iraque, o Líbano, a Transjor-
dânia e o Iémen, aos quais, posteriormente, se jun-
taram os restantes estados árabes, consoante iam
conquistando a sua independência. Não obstante,
a Liga nasceu já fragilizada pelos desencontros da
política externa de cada um dos estados-membros
e pela resistência de cada um em ceder parte da
sua soberania. Essa falta de unidade impediu que
fossem alcançados os objetivos iniciais de colabo-
ração e integração.
Assim, perante a falta de resultados palpáveis, o
pan-arabismo centrou-se na recusa de qualquer tipo
de ingerência estrangeira no plano militar, econó-
mico ou cultural. O combate ao recém-criado estado
de Israel e o apoio ao povo palestiniano também
funcionaram como elementos agregadores.
INIMIGO COMUM
Em 1947, as Nações Unidas aprovaram a divisão
da Palestina num estado judaico e noutro árabe.
O plano da ONU não foi bem recebido pelos países
da região, e as reações iniciais abriram caminho
A declaração do
estado de Israel
reforçou as teses
pan-arabistas
à hostilidade que se seguiu à declaração de inde-
pendência de Israel, em maio de 1948. Esta data
marcou o início de uma sucessão de guerras que,
desde então, têm oposto árabes e israelitas e que
converteram a zona num foco permanente de ten-
são internacional.
A Organização de Libertação da Palestina (OLP)
nasceu sob a proteção da Liga Árabe com o objetivo
de agregar os movimentos políticos e militares que
lutavam contra a presença israelita. Tutelada ini-
cialmente pelo Egito, a figura carismática de Yasser
Arafat (1929–2004) conseguiu unificar, sob o seu
comando, as diferentes correntes que existiam no
seio da organização.
LUTAS INTESTINAS
Em 1974, a Assembleia-Geral da ONU declarou a
OLP como legítima representante do povo pales-
tiniano. Esse reconhecimento atraiu os olhares de
todos aqueles que queriam tomar o controlo da
organização para aumentarem o seu prestígio
pessoal face à opinião pública dos países árabes.
Contudo, a firmeza e a forte personalidade de Ara-
fat, que se fez amigo de uns e de outros, enquanto
mantinha a sua independência (a custo, muitas
vezes, dos interesses da causa palestiniana), Guerra dos Seis Dias. Houve mais
acabaram por convertê-lo num símbolo desse pan- de 70 mil baixas entre os árabes. Israel
-arabismo que tantos no mundo árabe queriam conseguiu uma esmagadora vitória
devido à falta de coordenação do inimigo.
representar e liderar.
58 SUPER
Seis dias que
mudaram o mundo
N o início de junho de 1967, a tensão
entre Israel e os seus vizinhos árabes
tinha escalado vários níveis de intensidade.
A concentração de tropas egípcias na fron-
teira da península do Sinai e os esforços
diplomáticos e militares empreendidos
por Gamal Abdel Nasser faziam temer um
ataque iminente. Os israelitas lançaram,
então, um ataque preventivo sob a enér-
gica e resoluta direção de militares como
Yitzhak Rabin e Moshe Dayan. Os aviões
com a estrela de David nas suas fuselagens
destruíram a maioria do equipamento ter-
restre dos inimigos, enquanto no Sinai os
carros de combate israelitas empurravam
as divisões egípcias até ao canal de Suez,
numa brilhante guerra relâmpago que
surpreendeu os líderes de todo o mundo.
A contundente reação israelita infligiu ao
Egito, à Síria, à Jordânia e ao Iraque uma
derrota esmagadora, que se saldou em mais
de 70 mil baixas nas tropas árabes. Esses
seis dias de duros combates (de 5 a 10 de
junho de 1967) evidenciaram a resiliência
do estado de Israel e a falta de coordenação
e de direção unificada dos países árabes.
MOVIMENTO LAICO
Muito antes disso, no final da década de 1940, o
partido Baath alentou a unificação árabe inspirada
no socialismo, proposta que, no contexto da Guerra
Fria, foi bem acolhida pelos dirigentes da União
Soviética, dispostos a conceder o seu apoio político
em troca do aumento da sua influência na região.
Respaldada por Moscovo, começou uma época
marcada por uma radicalização das posições e pelo
escalar da tensão, que haveria de redundar em
novos conflitos bélicos.
Perante este panorama, das fileiras dos princi-
pais partidos nacionalistas árabes surgiu toda uma
galeria de personagens que acalentaram a ambição
de liderança de um pan-arabismo renovado: sem
recusar o Islão, aproximou-se de um laicismo que
influenciaria, decisivamente, as estruturas do
estado. De entre todos eles, destacou-se a figura
de Gamal Abdel Nasser, oficial do exército egípcio
EFE
SUPER 59
que tomara as rédeas do poder no seu país depois Culto da personalidade
de liderar, à frente do Movimento dos Oficiais Um dos arcos das Mãos da Vitória,
em Bagdad, com a impressão
Livres, o golpe militar de 22 de julho de 1952 que digital de Saddam Hussein.
derrubou o regime corrupto do rei Faruque.
Com a proclamação da república, e depois de
se livrar dos seus adversários políticos, Nasser
tornou-se dono e senhor do Egito. Nos anos pos-
teriores, consolidou o seu poder, mas o caráter
personalista do regime e as suas aspirações de se
tornar a figura aglutinadora do pan-arabismo,
suplantando todos os potenciais contendores,
acabaram por prejudicá-lo.
Saddam foi o
último a disputar
a liderança
do mundo árabe
não tardaram a desfazer os laços que uniam o seu oportunidade aproveitada pelos soviéticos para pan-arabismo. Ainda assim, não tardaria a que o tes-
país ao Egito. aumentar a presença e influência no mundo árabe. temunho fosse empunhado por uma nova geração
No plano estritamente político, Nasser dirigiu a de líderes, dispostos a ocupar o lugar deixado vago
APOIO DA URSS sua atenção para Israel, numa tentativa de recu- pelo presidente egípcio.
O fracasso político da RAU somou-se à derrota perar parte do crédito e da autoridade que tinha Assim, em 1 de setembro de 1969, o jovem coronel
militar egípcia frente às tropas enviadas por França perdido. Decidido defensor da causa palestiniana, Muammar al-Khaddafi encabeçou um golpe militar
e pelo Reino Unido, na crise do canal de Suez, um apresentou-se como o guardião que garantiria a contra o rei Idris I da Líbia. Depois do triunfo da
episódio desencadeado pela declaração de Nasser sua sobrevivência face ao agressor israelita. Con- intentona, apressou-se a declarar a instauração da
da intenção de nacionalizar aquela via de comuni- tudo, desvalorizou o conselho de todos aqueles república. Esta assumiu como linha-mestra da sua
cação estratégica. A sua imagem não saiu beliscada que o advertiram acerca da capacidade de resposta atuação um programa socialista de governo. Dois
do conflito, ainda que, em certa medida, o seu pres- de Israel, que, em junho de 1967, durante a Guerra anos mais tarde, Khaddafi foi o impulsionador
tígio possa ter diminuído ligeiramente. Perante a dos Seis Dias, infligiu ao mundo árabe uma das da Federação das Repúblicas Árabes (FRA), projeto
falta de apoio das potências ocidentais, Nasser suas maiores humilhações. cujo intuito era, mais uma vez, a criação de um grande
procurou a proteção da URSS para levar a cabo uma estado pan-árabe formado pela união da Líbia, do
das suas obras mais emblemáticas: a construção da UM NOVO PROTAGONISTA Egito e da Síria.
barragem de Assuão. Num grave erro estratégico, A derrota de 1967 e a morte de Nasser em 1970 A proposta foi aprovada em referendos pela
o Ocidente recusou financiar o colossal projeto, uma representaram dois duros reveses para a causa do população de cada país, mas o processo ficou por aí.
60 SUPER
As mãos
de Saddam
N o dia 8 de agosto de 1989, foi
inaugurado em Bagdad o monu-
mento conhecido como Mãos da Vitória.
Consiste em dois espetaculares arcos do
triunfo colocados em ambos os extremos
da avenida que conduz ao parque Zawra,
na capital iraquiana, composto cada um
deles por um par de mãos gigantescas que
se elevam do solo empunhando espadas
que se entrecruzam a quarenta metros de
altura sobre o pavimento da grande arté-
ria. O monumento foi mandado erguer
por Saddam Hussein para comemorar
o triunfo das tropas iraquianas sobre os
seus inimigos iranianos na guerra que,
durante oito anos, os dois países travaram
na década de 1980, uma vitória que, na
realidade, nunca chegou a consumar-se.
Este pormenor não impediu o ditador de
edificar um monumento cujo real propó-
sito era eternizar o seu nome na mente do
povo. Para esculpir as gigantescas mãos
que seguram os sabres, o artista tomou
como modelo as do líder iraquiano, que
inclusivamente permitiu que se fizesse um
molde da impressão digital do seu polegar
que, depois e em grande escala, foi apli-
cada sobre o dedo do monumento. Após
concluído, foi celebrado com uma parada
militar presidida por Saddam, que des-
filou sob os arcos montado num vistoso
cavalo branco, gesto com o qual pretendeu
emular a entrada vitoriosa de Saladino em
Jerusalém no tempo das Cruzadas.
O MEGALÓMANO
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Uma férrea ditadura religiosa
A revolução
dos ayatollahs
Há 40 anos, o mundo foi surpreendido pela
primeira revolução islâmica, que acabou com
a tirania dos Pahlevi mas transformou a antiga Pérsia
num estado teocrático imposto a ferro e fogo.
SUPER 63
N
o dia 16 de janeiro de 1979, Mohammad Contrário ao Islão. O estilo de Reza
Reza Pahlavi, xá do Irão, no trono há Pahlavi e da sua família (aqui, em Saint
Moritz, em 1975) era ofensivo para
40 anos, abandonou o país com a sua os setores mais tradicionais do Irão.
família para tirar “umas férias”. Não
era a primeira vez que fugia, mas, nesta ocasião,
as potências ocidentais não só nada fizeram para
mantê-lo no poder como se negaram a acolhê-lo.
Assim, Pahlavi viu-se obrigado a vaguear como um
pária pelo mundo em busca de um lugar no qual
pudesse tratar-se do cancro que o consumia.
Apenas um ano antes, em visita a Teerão, o pre-
sidente dos Estados Unidos tinha-lhe dedicado um
vigoroso elogio: “Devido à grande liderança do xá,
o Irão é uma ilha de estabilidade numa das áreas
mais conflituosas do mundo.” O que mudara em
tão pouco tempo? O Irão deixara de ser um grande
e estável aliado e parceiro do Ocidente na região,
tornando-se um verdadeiro barril de pólvora com
o qual ninguém sabia como lidar e acabou por dar
origem a um fenómeno completamente novo: a
revolução islâmica.
A “ilha de estabilidade” elogiada por Jimmy Carter
afinal não o era. Pelo contrário, tratava-se de
uma ditadura férrea, megalómana e sangrenta.
O Irão era, então, um dos principais produtores
mundiais de petróleo, mas nunca pôs as verbas
resultantes ao serviço do bem-estar da população,
Reza Pahlavi
era um títere
dos interesses
britânicos
que sofria escandalosas desigualdades. O dinheiro
proveniente do petróleo fez do Irão um dos prin-
cipais compradores de armas aos Estados Unidos
e, simultaneamente, uma superpotência militar
capaz de fazer frente aos seus vizinhos, especial-
mente o Iraque.
OCIDENTALIZAÇÃO ACELERADA
Por outro lado, o país tinha-se ocidentalizado,
em poucas décadas, a um ritmo acelerado, tanto
durante o reinado do pai do xá, que, para dar um
exemplo, proibiu o véu islâmico e obrigou os homens
a cortar a barba, como a partir da chamada Revo-
lução Branca (1963), uma modernização imposta à
força que, ainda que tenha introduzido mudanças
como a emancipação da mulher e a contenção do
autoritarismo dos clérigos xiitas, provocou grande
mal-estar em amplos setores de uma sociedade
muito tradicionalista e profundamente religiosa.
O que a ocidentalização não implicou foi, com
efeito, a democracia. Reza Pahlavi governava como
um monarca absoluto, apoiado no exército e nos
ubíquos serviços de segurança, que procediam
recorrentemente a detenções, assassinatos e tor-
turas. No início de 1978, a deceção pela falta de
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Origem humilde
É um lugar-comum dizer que a
revolução iraniana acabou com
2500 anos de monarquia, o que parece
conferir ao último xá alguma legitimi-
dade, como se pertencesse a uma dessas
casas reais cujas origens se perdem nas
brumas da memória. Porém, apesar do
estilo grandiloquente de Mohammad
Reza Pahlavi (carruagens à Versalhes,
uniformes com trezentas medalhas,
comparações com Ciro, o Grande,
declarações místicas sobre a comu-
nhão com o “seu” povo...), a realidade
é muito diferente e mais prosaica. A
dinastia foi criada pelo seu pai, Reza
Pahlavi, um humilde sargento da Bri-
gada Cossaca da Pérsia com talento
militar e muito caráter que foi ascen-
dendo dentro do exército e, em 1921,
depois de um golpe de estado patroci-
nado pelos britânicos, se tornou o novo
homem forte do país. Em 1925, Pahlavi
pôs termo à incompetente dinastia
Cajar, no trono desde o século XVIII,
autoproclamou-se “rei dos reis” e deu
início à ocidentalização e à moderniza-
ção da Pérsia. O seu reinado durou até
1941, quando, no contexto da Segunda
Guerra Mundial, o Reino Unido e a
União Soviética o obrigaram a abdicar
do trono a favor do filho, devido às suas
simpatias germanófilas.
REGIME VACILANTE
O homem que soube canalizar todo esse des-
contentamento foi um idoso e austero clérigo pra-
ticamente desconhecido no Ocidente, que levava
já 14 anos de exílio no Iraque (segundo se dizia, ali-
mentando-se somente de iogurte, alhos e cebola):
o ayatollah Ruhollah Khomeini. Fora expulso em
1964 devido à sua irredutível oposição à moderni-
zação do país e nunca deixou de atacar o regime
a partir do país vizinho.
A faísca que serviu de ignição à insurreição foi um
artigo de jornal publicado em janeiro de 1978 no
qual foi caluniado e ofendido gravemente (acusado
de estar a soldo dos britânicos e sugerindo que era
homossexual). Isto provocou uma súbita espiral
de violência: houve um primeiro protesto que aca-
bou com várias mortes e foi seguido por outros
dos quais resultaram novas vítimas.
Deste modo, iniciou-se um círculo vicioso de dis-
SUPER 65
túrbios, greves e mortes que continuou durante
meses até culminar nos gravíssimos incidentes do
final do verão de 1978: o fogo-posto no Cinema
Rex (477 mortos, autoria desconhecida) e a Sexta-
-Feira Negra (8 de setembro), na qual a repressão
policial produziu um número de vítimas que ainda
hoje é discutido (entre 88 e várias centenas).
Por esta altura, o regime vacilava e o xá oscilava,
contraditoriamente, entre a repressão (brutal,
mas não tanto como pretendiam os falcões do seu
governo) e gestos como a detenção arbitrária de
alguns dos seus mais leais partidários. Também
contraditórios eram os conselhos (ou instruções)
que chegavam do grande aliado norte-americano.
O ENIGMA KHOMEINI
Em outubro, o ayatollah Khomeini foi expulso
do Iraque (Saddam Hussein propôs ao xá matá-lo,
mas ele recusou, para não criar um mártir para os
revoltosos) e instalou-se numa localidade perto de
Paris, tornando-se para o mundo inteiro a figura
mais visível da insurreição. Ninguém sabia, nessa
altura, o que pretendia realmente aquele homem;
segundo alguns, implantar uma verdadeira demo-
cracia no Irão; para os mais pessimistas e clarivi-
dentes, impor um retrocesso de mil anos e fazer
o país regressar à Idade Média.
No final de 1978, a pressão chegou a tal ponto que,
Khomeini
esmagou
toda a oposição
democrática
numa mensagem televisiva exibida em novembro,
o xá fez um ato de contrição, assegurando que
abraçava a revolução iraniana e prometendo emen-
dar os erros do passado. Pouco tempo depois,
nomeou um novo primeiro-ministro, Shapur Bakh-
tiar, um moderado proveniente da oposição.
No entanto, já era demasiado tarde para
empreender reformas e, em janeiro, abandonado
pelos seus antigos aliados ocidentais, que consi-
deravam a sua queda como sendo inevitável e não
viam Khomeini com especial preocupação porque
pensavam que ele nunca se inclinaria para a esfera
soviética, Reza Pahlavi partiu para o exílio.
66 SUPER
Democrata. Taleghani, o único ayatollah
de convicções progressistas que poderia
fazer frente a Khomeini, morreu de enfarte Oportunidade
em 1979. Os filhos alegaram que foi
assassinado, mas não foi possível prová-lo. perdida em 1953
E m 1951, o Parlamento iraniano ele-
geu Mohammed Mossadegh pri-
meiro-ministro. Era membro da Frente
Nacional do Irão, um líder de profundas
convicções democráticas que desejava
criar uma sociedade moderna, progres-
sista e laica no seu país. O seu governo
adotou medidas sociais (assistência
sanitária, subsídio de desemprego) e
tentou limitar o poder do xá ao de um
monarca constitucional. Procurou tam-
bém recuperar o petróleo iraniano, cuja
exploração era detida exclusivamente
pela Anglo-Iranian Oil Company (atual
BP) graças às concessões outorgadas
por governos ditatoriais impostos pelos
britânicos. Mossadegh tentou negociar
uma divisão mais equilibrada dos lucros
com a AIOC, algo que esta recusou, e
acabou por nacionalizar o petróleo. O
Reino Unido planeou, então, um golpe
de estado, para o qual pediu auxílio aos
Estados Unidos, que o levou a cabo atra-
vés da CIA, em 1953. No início, pareceu
que o golpe fracassara, devido ao grande
apoio popular de que gozava o governo.
O xá fugiu para Itália e só voltou quando
tudo já estava sob controlo dos golpis-
tas. Mossadegh passou o restou da vida
privado de liberdade e o Irão do xá tor-
nou-se uma feroz ditadura.
SUPER 67
CONQUISTA DO PODER
Ao longo de 1979, Khomeini foi tecendo a rede de
corpos e instituições em que se sustentaria o seu
poder absoluto. Ainda antes do seu regresso,
em janeiro, tinha criado, em Paris, o Conselho da
Revolução Islâmica, verdadeiro centro de decisão
que se sobrepunha ao primeiro-ministro de serviço
(Bazargan, neste caso). Em fevereiro, foram instau-
rados os Tribunais Revolucionários Islâmicos, que
emitiram sentenças de morte, executadas sem
contemplações, desde o primeiro dia em atividade.
No final de março, o país passou a chamar-se
República Islâmica do Irão, depois de consultada
a população em referendo e de obtida uma apro-
vação de 98 por cento do eleitorado. Em abril, foi
criada a Guarda Revolucionária, encarregada de
punir (também sumariamente) qualquer compor-
tamento público ou privado que desobedecesse
às ordens dos mullahs.
Nesse inverno, começou a ser preparada uma
nova Constituição, processo no qual surgiram
diversas tensões devido à orientação cada vez mais
autoritária e teocrática imposta por Khomeini.
Foram encerrados vários jornais críticos, incluindo
o de maior circulação no país, Ayendegan, e Kho-
meini atacou com extrema violência os setores
liberais e de esquerda que o tinham apoiado e,
agora, pediam uma assembleia constituinte. A lei
foi escrita, pelo contrário, por uma assembleia de
peritos na qual os clérigos xiitas estavam em larga
maioria (55 em 73 membros).
Num último golpe de sorte para Khomeini, o único
ayatollah democrata que, pela sua popularidade,
poderia fazer-lhe frente, Mahmud Teleghani, mor-
reu, em setembro, de enfarte. A Constituição,
aprovada em referendo no início de dezembro,
consagrou, desta forma, a autoridade do líder
Na guerra entre
o Irão e o Iraque,
os EUA apoiaram
Saddam Hussein
supremo (Khomeini) e do Conselho dos Guardiões no máximo, um par de dias, mas Khomeini orde- de meses, registaram-se diversas tentativas de
sobre qualquer outro poder do estado. nou-lhes que ficassem indefinidamente. negociação. A primeira reivindicação iraniana (não
O primeiro resultado dessa mudança de estraté- concedida) era a entrega do xá para o seu julga-
A CRISE DOS REFÉNS gia de Khomeini foi a demissão de todo o governo, mento e mais do que provável execução no Irão
Um mês antes, em 4 de novembro, Khomeini tinha com Bazargan e Yazdi à cabeça, que assumiu, com (tinham-lhe permitido a entrada nos Estados Uni-
recebido um presente do qual não estava à espera: esse gesto, a responsabilidade por não ter conse- dos para receber tratamento ao cancro).
a ocupação da embaixada dos Estados Unidos por guido impedir ou resolver um conflito diplomático Ao fim de três meses, os Estados Unidos aplica-
um grupo de estudantes islâmicos, que fez 52 reféns de impensáveis consequências. Deste modo, Kho- ram sanções económicas e congelaram os fundos
norte-americanos. A primeira reação do ayatollah, meini acabou, num só golpe, com qualquer réstia iranianos depositados em bancos norte-ameri-
que desconhecia o plano, foi expulsar os estudan- de moderação que ainda existisse no governo. canos. Ao sexto mês da crise, perante a falta de
tes, tarefa que atribuiu ao ministro dos Negócios A crise dos reféns levou 444 dias a resolver e avanços negociais, o presidente Jimmy Carter
Estrangeiros, Ebrahim Yazdi. Pouco depois, con- revelou-se o grande quebra-cabeças da Adminis- ordenou uma arriscada operação de resgate que
tudo, compreendeu que poderia tirar partido da tração Carter, motivando a sua derrota eleitoral acabou em tragédia: dois helicópteros despe-
situação e deu um passo atrás. Os estudantes frente a Ronald Reagan, e envenenou as relações nharam-se no deserto, registando-se seis vítimas
tinham pensado numa ação simbólica que duraria, entre o Irão e os Estados Unidos até hoje. Ao longo mortais.
68 SUPER
Conflito devastador. A guerra com
o Iraque durou oito anos, gerou um milhão
de mortos e acabou sem um vencedor claro.
Os Estados Unidos apoiaram secretamente
o agressor, o Iraque, que, além disso,
fez uso de armas químicas. A recusa
da ONU de condenar estas práticas
causou grande indignação no Irão.
Em setembro de 1980, alcançou-se um princípio SANGRENTO ATÉ AO FIM saco e fuzilada, sendo acusada de “promover a
de acordo que não foi avante devido ao início da A guerra Irão-Iraque durou oito anos, causou prostituição”. A crueldade do novo regime e do seu
guerra com o Iraque. Saddam Hussein quis apro- um milhão de mortos de ambas as partes e foi líder parecia não ter limites. Em meados de 1981,
veitar a debilidade do seu vizinho e lançou-se à devastadora, mas não foi a única calamidade que já com todo o poder nas mãos, Khomeini organi-
invasão do Irão com a aprovação tácita e o apoio se abateu sobre o povo iraniano. Uma das prin- zou uma brutal repressão sobre os seus antigos
logístico secreto dos Estados Unidos. cipais vítimas da revolução islâmica foi a mulher: aliados de esquerda. Entre esse ano e 1984, regista-
No fim, seria a própria guerra a obrigar o Irão depois de ter alcançado um certo nível de liberdade ram-se mais de doze mil assassinatos de opositores
a ceder. Necessitava urgentemente que fossem e independência nas décadas anteriores, viu-se e 140 mil detenções, na sua grande maioria estu-
levantadas as sanções e que fossem devolvidos novamente relegada para o ambiente doméstico dantes universitários ou do ensino secundário.
os fundos congelados para poder comprar armas. e submetida à autoridade dos homens até nos Em 1988, com a guerra contra o Iraque a apro-
Nesse momento, Carter já tinha perdido as elei- mais insignificantes pormenores da sua vida. ximar-se do fim e com ele mesmo às portas da
ções. Apesar disso, Khomeini levou a cabo uma Particularmente simbólico foi o caso de Far- morte, repetiu uma operação semelhante, dessa
última vingança: atrasou a libertação dos reféns rokhroo Parsa, médica, primeira mulher ministra do vez com milhares de assassinatos de presos políti-
até poucos minutos após a tomada de posse de Irão (Educação) e defensora dos direitos das cos que ainda permaneciam nas prisões.
Reagan. mulheres: em 1980, foi colocado dentro de um R.B.
SUPER 69
Moderados e fundamentalistas
Muçulmanos
do século XXI
70 SUPER
Como impedir que o Islão seja sequestrado por ideologias totalitárias?
Que medidas estão a tomar as nações muçulmanas para deter o avanço
dos fundamentalistas? O que está a fazer a comunidade muçulmana
moderada para evitar que o mundo a associe a movimentos terroristas?
SUPER 71
O
s usbeques afegãos são a nacionali- Morte indiscriminada. Os atentados
dade mais aguerrida da Ásia Central, promovidos pela Al-Qaeda em 11 de setembro
de 2001, nos Estados Unidos, colaram a todos
algo compreensível se tivermos em os muçulmanos a ideia de perigo social.
conta que os seus antepassados
foram fundamentais nas hordas de Gengis Khan.
Não obstante, a sua proverbial ferocidade não foi
suficiente para travar os talibãs quando eles chega-
ram ao poder em 1996. Com o apoio do Paquistão,
da Arábia Saudita e de Osama Bin Laden, o novo
regime fundamentalista sunita esmagou os grupos
dissidentes, cerceou as poucas liberdades de que o
povo disfrutava e proibiu o acesso das mulheres à
educação e ao trabalho, exceto aquele a que estavam
“obrigadas” na intimidade dos seus lares.
“O Islão diz que as mulheres são iguais aos homens
e que devem ser respeitadas, mas as ações dos talibãs
contra a liberdade fazem as pessoas revoltarem-se
contra o Islão”, escreveu Ahmed Rashid no livro
Taliban – The Power of Militant Islam in Afghanistan
and Beyond (2010). Este jornalista de origem paquis-
tanesa afirma que, anos antes de ser instaurada
a ditadura fundamentalista talibã, a elite feminina da
cidade de Herat tinha o francês como segunda língua
e copiava as modas que imperavam na corte do xá
do Irão. Ninguém as obrigava a utilizar a burka, o
pesado manto que cobre por completo as mulheres
e impede os seus movimentos.
Arábia Saudita e
Paquistão nunca
contestaram
os talibãs
DANÇAR E CANTAR
“Quarenta por cento das mulheres de Cabul tra-
balhavam, tanto durante o período da governa-
ção comunista como no dos mujahidins, depois de
1992. Mesmo as mulheres com uma escolaridade
mínima e trabalho trocavam a sua indumentária
tradicional por saias, sapatos de salto alto e maqui-
lhagem. Iam ao cinema, praticavam desporto,
dançavam e cantavam nos casamentos”, recorda
Rashid.
A chegada dos fundamentalistas mudou tudo.
Mesmo depois do derrube dos talibãs, em 2001, nas
cidades em que estes ainda detinham o poder, gru-
pos de jovens patrulhavam-nas armados de varas
e chicotes, golpeando as mulheres que não obser-
vassem os preceitos da decência no vestir e no
comportamento em público.
72 SUPER
SUPER 73
do ayatollah iraniano Ahmad Jannati, em 1996,
quando criticou os métodos educativos dos fun-
damentalistas de Cabul: “Com a sua política fos-
silizada, os talibãs impedem que as crianças vão à
escola e que as mulheres trabalhem fora das suas
casas, e tudo isso em nome do Islão.”
Desaparecido o regime talibã, as suas ações de
insurreição, sob a forma de ataques terroristas,
continuam a verificar-se no Afeganistão (um acordo
de cessar-fogo entre os radicais, os Estados Unidos
e o governo de Cabul, acertado já este ano, durou
o tempo de um suspiro). Os seus líderes mantêm
vínculos com a Al-Qaeda e esta, por seu lado, tem
relações com o autoproclamado Estado Istâmico,
organização que já praticamente não existe, mas
continua a inspirar radicalizações.
O fanatismo fundamentalista de todos eles con-
tinua a ameaçar o Ocidente e, sobretudo, algumas
regiões do Médio Oriente e de África. A sua pre-
sença em algumas nações muçulmanas é um ver-
dadeiro quebra-cabeças para a grande maioria de
moderados, que não nutrem qualquer afinidade
em relação à jihad empreendida por estes grupos
fanatizados. Na costa leste africana, o problema já
chegou à província moçambicana da Beira, onde
os extremistas semeiam o terror nas aldeias.
Os moderados
(a maioria) não
sentem afinidade
pelos radicais
TERRORISMO HISTÓRICO
A primeira manifestação de terrorismo religioso
registou-se na Palestina, no ano 66. Foi levada a
cabo pelos sicarii (daí a palavra “sicário”), um grupo
radical judeu que lutava contra a invasão romana
e os palestinianos que a apoiavam. A sua arma
era uma espada curta (adaga) que escondiam sob
as túnicas. Os que foram presos e condenados
à morte consideraram a sua execução como um
sacrifício positivo que os aproximava de Deus. Con-
vicção semelhante deve ter animado Mohamed
Atta quando atirou o avião que pilotava contra a
Torre Norte do World Trade Center, em Manhattan,
em 11 de setembro de 2001.
Dias depois deste ataque, em Ceuta, apareceram
pichagens contra a comunidade hebraica e vários
menores lançaram cocktails Molotov para o interior
da Igreja de São José, incendiando os seus arqui-
vos. Se os radicais muçulmanos demonstraram
alegria pelo derrube das Torres Gémeas e aplaudi-
ram sem pruridos as ações violentas inspiradas por
Bin Laden, os moderados expressaram o seu horror
e deram conta da sua preocupação com as conse-
quências daqueles atentados: a partir daí, todos
os muçulmanos passariam a ser suspeitos aos
olhos dos cidadãos do Ocidente.
EFE
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Cronista
da mudança
A hmed Rashid levou 21 anos a
escrever este livro, o mesmo
tempo que trabalhou como jornalista
no Afeganistão e o tranformou num dos
maiores especialistas sobre a região.
“A guerra afegã ocupou grande parte da
minha vida”, diz no prólogo de Taliban
– The Power of Militant Islam in Afgha-
nistan and Beyond (2010), que se tornou
um best-seller mundial. Na obra, explica
como os talibãs chegaram ao poder e
descreve o seu regime opressivo.
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MUÇULMANOS MODERADOS Arco-íris. O imã Ludovic-Mohamed
O exemplo de Ceuta ajuda a explicar o que Zahed, ativista homossexual, lê o Corão
com a advogada turco-alemã Seyran Ates.
ocorre hoje em boa parte do mundo muçulmano, Na mesquita que ajudaram a fundar, em
dividido entre os que apoiam diretamente o funda- Berlim, homens e mulheres rezam juntos.
mentalismo, os que o justificam, os que olham para
o outro lado e uma grande maioria de moderados
que rejeitam as posições extremistas, e cujo prin-
cipal receio é que os europeus confundam a sua
religião e a sua cultura com o terrorismo.
O que está a fazer a comunidade muçulmana
moderada para evitar que os ocidentais associem o
Islão ao fundamentalismo? O escritor marroquino
Tahar Ben Jelloun (n. 1944), autor, por exemplo,
de O Islão Explicado às Crianças (Livros do Brasil,
2002), e vencedor do Prémio Goncourt, responde
a esta questão: “De cada vez que o Islão é invo-
cado erradamente, há que explicar outra vez
que tudo o que de mal é feito em seu nome nada
tem a ver com os valores e os princípios da religião
muçulmana, que, por outro lado, é inspirada na
tradição judaico-cristã.”
Jelloun acredita que os atentados da Al-Qaeda
nos Estados Unidos e em Madrid, Londres ou Paris
foram também ataques contra o Islão, porque os
criminosos que os perpetraram colocaram um alvo
na testa de todos os muçulmanos. “Quem tem um
passaporte árabe é suspeito de terrorismo. São os
muçulmanos e os árabes que pagam a fatura do 11
de Setembro.”
Os radicalizados
ignoram o valor
universal da
cultura islâmica
VALOR CULTURAL UNIVERSAL
A Doença do Islão (Relógio d’Água, 2005) é
o título de um dos livros do escritor tunisino
Abdelwahab Meddeb (1946–2014), antigo profes-
sor de literatura comparada na Universidade Paris X
Nanterre. Nas suas páginas, analisou, sob uma
perspetiva histórica, os problemas que afligem o
mundo muçulmano.
Meddeb apoia-se na tese de Voltaire que advoga
que a intolerância era a doença do catolicismo
e, adaptando-a aos nossos dias, demonstra que o
fundamentalismo é a doença do Islão atual. Para
combatê-lo, o autor propõe duas medidas princi-
pais: reconhecer o valor do mundo muçulmano não
fundamentalista na civilização universal, algo que
os extremistas ignoram, e reformar os programas
educativos dos países islâmicos para recuperar a
memória da sua antiga diversidade.
RENOVAÇÃO E ABERTURA
Seyran Ateş (n. 1963), advogada alemã de origem
turca, considera um tremendo erro dizer que o
jihadismo nada tem a ver com o Islão: “Há muitos
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muçulmanos que são terroristas. Por isso, deve-
mos denunciar a existência de um extremismo isla-
mita e fazer todos os esforços para combatê-lo.”
Este tipo de posições granjeou-lhe o ódio dos
muçulmanos mais radicais e também de muitos
conservadores.
A publicação do seu livro O Islão Precisa de uma
Revolução Sexual, em 2009, e o envolvimento
na criação de uma mesquita, em Berlim, onde
homens e mulheres rezam juntos e são admitidos
crentes de todos os ramos do Islão e de outras reli-
giões, não caiu bem em alguns círculos religiosos
islâmicos: a Universidade de Al-Azhar, do Cairo, a
máxima autoridade religiosa do Islão sunita, a Dire-
ção dos Assuntos Religiosos da Turquia e diversos
mullahs iranianos lançaram ataques contra ela.
Os grupúsculos mais radicais do autoprocla-
mado Estado Islâmico identificaram-na como um
alvo a abater, razão pelo qual anda sempre prote-
gida por guarda-costas. Para ela, esta é a prova de
que a sua cruzada contra a intolerância e o radica-
lismo está a progredir na direção certa.
FÉ MAL INTERPRETADA
Muitos eruditos muçulmanos assinalam que o
Islão nunca pregou o suicídio nem o crime, e que
a jihad não consiste no assassínio de crentes de
outras religiões: o verdadeiro sentido da jihad é
Os moderados
têm de erguer
a sua voz para
se fazerem ouvir
o esforço que todos os muçulmanos devem fazer
para aceitarem a vida e as suas adversidades.
Jelloun, por outro lado, afirma que nos tempos de
Maomé houve uma jihad. Contudo, o problema dos
fundamentalistas do século XXI, considera, é pen-
sarem que ainda vivem no século VII.
Entretanto, o Ocidente tem a perceção de que no
mundo muçulmano existe uma absoluta preponde-
rância do conservadorismo e de se estar a assistir
a um inquietante apogeu do fundamentalismo, que,
em parte, estaria a ser financiado por algumas das
mais ricas monarquias do golfo Pérsico. O cresci-
mento dos setores mais radicais no Iraque, a manu-
tenção no poder dos talibãs em alguns territórios
do Afeganistão, a ditadura fundamentalista no
Paquistão, a rápida ascensão de grupos como o
Estado Islâmico e a Al-Qaeda e o apoio financeiro da
Arábia Saudita ao wahabismo parecem confirmar
uma crise profunda no mundo muçulmano.
Num artigo publicado em 2009, o filósofo francês
de origem argelina Sami Naïr (n. 1946) afirmava
que o Islão se tinha transformado em sinónimo de
terror ou de violência autoritária dos poderes
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Que medidas concretas estão a ser adotadas pelos de uma luta interna que faz pontaria tanto ao con- O que ocorreu no final de 2010 foi uma onda de pro-
países muçulmanos? servadorismo religioso como ao reformismo das testos populares e de exigências reformistas sem
O franco-argelino Naïr crê que as sociedades elites”, sublinha Naïr. precedentes e que varreu ao mesmo tempo o Médio
islâmicas são, no seu conjunto, pacíficas, mantêm Oriente e alguns países do norte de África. Come-
boas relações internacionais (à exceção do Irão) SOPRO DE ESPERANÇA çou na Tunísia e estendeu-se ao Egito, ao Iémen,
e possuem poderes fortes e estruturados. O atual Menos de um ano após ter sido publicado este ao Bahrein, à Líbia e à Síria.
diretor do Centro Mediterrâneo Andaluz da Uni- artigo de Naïr, as multidões tomaram as ruas em As revoltas derrubaram líderes autoritários,
versidade Pablo de Olavide, em Sevilha (Espanha), todo o mundo árabe, exigindo que os seus dirigen- como Hosni Mubarak, no Egito, ou Abidine Ben Ali,
comenta que a Europa e os Estados Unidos não tes políticos pusessem fim a décadas de opressão. na Tunísia. A Primavera Árabe parecia anunciar uma
conseguem compreender a grande batalha cultural revolução que iria mudar muitas coisas no mundo
que está a ocorrer nas sociedades islâmicas entre muçulmano. Contudo, passados os primeiros
três protagonistas principais: os poderes políticos Passada a euforia momentos de euforia, a violência e a guerra vol-
autoritários, os defensores do Islão conservador e taram com mais força a muitas dessas nações.
os novos intelectuais muçulmanos que combatem inicial, a chamada O Egito é governado por um militar e a Síria, o Iémen
os dois primeiros grupos no plano ideológico. e a Líbia desintegram-se perante o olhar passivo
Os escritos destes intelectuais, diz Naïr, mos- Primavera Árabe do mundo. Só na Tunísia parece ter prosperado,
tram que a verdadeira batalha pela reforma já está até ao momento, esse espírito de mudança.
em andamento no mundo muçulmano. “Trata-se resultou em caos F.C.
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O olhar dos artistas árabes
Em nome próprio
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Mostramos nestas páginas os trabalhos de quatro artistas visuais originários
do mundo árabe: Bahia Shelab (egípcia), Jananne Al-Ani (irlandesa
de origem iraquiana), Leila Alaoui (marroquina) e Aziz al-Asmar (sírio).
As suas obras são manifestos contra a injustiça e pelos direitos humanos. C.B.
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Muros feridos
Aziz al-Asmar, artista sírio de 45 anos, independentemente dos ataques aéreos”
destacou-se na imprensa internacional por ou “Que Alá guie o pai de Ivanka”, em alusão
pintar graffiti e murais nas paredes da cidade a Donald Trump, por exemplo). “A minha pintura
de Binnish, na província de Idlib, último bastião é um grito contra o regime de al-Assad e da
da oposição armada que resistia no norte Rússia, que bombardearam civis, hospitais
da Síria. Al-Asmar passou mais de vinte anos e escolas. Pinto sobre os escombros que eles
a trabalhar no Líbano, mas, quando rebentou deixam para trás. Quero que as minhas ideias
o conflito, em 2011, decidiu regressar ao seu cheguem às pessoas da Síria e do estrangeiro”,
país para viver com o seu povo “a revolução disse. Nos seus murais, aparece o presidente
e sentir com eles tudo o que estava a acontecer sírio, Bashar al-Assad, voando como um
e iria ainda ocorrer”, afirma. Sarcásticas vampiro, ou o príncipe herdeiro da Arábia
e furiosas, as suas mensagens são gritos sobre Saudita, Mohamed Bin Salam, armado com
as injustiças que se verificam em todo o mundo e uma motosserra, a cortar em pedaços
o drama da guerra na Síria (“Queremos aprender o jornalista Jamal Kashoggi.
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Romper o véu
A mulher
no Islão
Nos países muçulmanos, muitas mulheres lutam para aumentar as suas liberdades.
A imagem que temos, no Ocidente, das muçulmanas como sendo mulheres
reprimidas e subjugadas corresponde a alguma realidade? Foi sempre assim?
Como em quase tudo, há que olhar para o passado, contextualizar e distinguir.
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Tirania? A obrigação de ocultar
o corpo foi motivo de muitas
polémicas no mundo islâmico.
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A
perceção do Islão que temos no Oci-
dente não é inocente e implica conota-
ções negativas: barbárie, despotismo...
Estes preconceitos têm muito mais a ver
com as fantasias que evocam haréns, escravas,
danças eróticas, imagens de um Oriente lascivo e
rudimentar. Esta visão distorcida deve-se à igno-
rância sobre um mundo diferente do nosso e sobre
o qual metemos no mesmo saco costumes e feitos
islâmicos sem ter em conta as suas raízes, a sua
geografia e a sua evolução, entendendo-os, assim,
como universais e inamovíveis.
Entendemos a suposta situação de inferioridade
da mulher nas sociedades islâmicas como a principal
manifestação do atraso e do fanatismo religioso, um
pretenso caráter reacionário desde sempre atri-
buído aos muçulmanos. Contudo, é real a ideia
generalizada de mulheres submissas e “sequestra-
das”, ou é apenas fruto dos nossos preconceitos e
de etnocentrismo?
ISLAMOFOBIA CENTENÁRIA
A historiadora e filóloga espanhola Dolors Bra-
mon (n. 1943), especialista no mundo árabe, opta
pela segunda opção e elenca os seus principais
argumentos. O primeiro é considerar o Islão como
uma “entidade monolítica”. Se nos é fácil aceitar a
grande diversidade do mundo ocidental, devería-
mos ser capazes de perceber melhor a do mundo
islâmico. O segundo é “o abuso e mau uso da ter-
minologia com a qual o Ocidente se refere à forma
como o Islão encara Deus”.
Outros autores descrevem uma islamofobia com
Os clássicos
produziram
biografias
de mulheres
mais de quinhentos anos, surgida aquando da
perseguição à população muçulmana. Haveria
três momentos-chave deste sentimento: a Recon-
quista do Al-Andalus e a expulsão dos mouriscos, a
colonização europeia dos séculos XIX e XX, carac-
terizada pelo etnocentrismo, e a Guerra do Golfo
de 1991 e as teses de Samuel Huntington sobre o
“choque de civilizações”.
TEXTO FEMINISTA
Segundo Bramon, o Corão pode ser considerado
um livro feminista avant la lettre. Se o contextuali-
zarmos no lugar e no tempo (a sociedade árabe do
século VII, sem costumes ancestrais de discussão
de problemas de género), é surpreendente que dê
forma escrita a expressões como “os muçulmanos
e as muçulmanas”, “os crentes e as crentes”, “os Mística. Rabia de Bassorá,
devotos e as devotas”, “os sinceros e as sinceras”. representada numa miniatura
indiana do século XVIII.
A utilização do masculino e do feminino não era
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Género próprio
A o contrário da crença comum, os
antigos historiadores muçulma-
nos dedicaram uma atenção especial
às mulheres, mas não se ficaram por
aí, desenvolveram também um género
particular que lhes era dedicado, cha-
mando-lhe “notícias de mulheres”.
Dele fazem parte perfis biográficos de
mulheres famosas. Os seus autores não
eram principiantes, mas sim alguns
dos principais eruditos, imãs célebres
e reconhecidos literatos. Escolhiam as
suas protagonistas não só por serem
filhas, mães ou mulheres de homens
importantes, mas, sobretudo, pelos
seus méritos, pela sua participação
em acontecimentos históricos rele-
vantes, como sucedeu, por exemplo,
no nascimento do Islão. É o caso das
discípulas do profeta e autoras de tex-
tos religiosos. Ibne Sade (784–845),
na sua obra At-Tabqat al-Kubr, relata a
vida do profeta e regista as biografias
dos seus principais companheiros; o
oitavo e último volume é inteiramente
dedicado às mulheres. O mesmo acon-
tece na obra de Atabari (839–923),
História dos Profetas e Reis, em que são
apresentadas biografias das discípulas
e seguidoras do profeta. Os biógrafos
escolhiam mulheres que se destacavam
por algo mais do que a sua beleza, não
precisando de ser, necessariamente, rai-
nhas ou nobres; com efeito, abundam
biografias de escravas que se eviden-
ciaram pelos seus contributos culturais
ou de místicas como Rabia de Bassorá
(713–801), uma santa muçulmana.
PRÓS E CONTRAS
Não obstante, é preciso distinguir. Ainda que,
ao contrário de outras religiões “reveladas”, como
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e eximisse a culpabilidade de Eva e, por conse- Sem culpa. Ao contrário do que acontece
guinte, de todas as mulheres, é inegável a condi- nas outras religiões “reveladas” (cristianismo
e judaísmo), o Islão ignora o pecado original
ção de submissão a que eram votadas as mulheres. (aqui, pintado por Ticiano, 1490–1576).
As leis que permitem que o varão as proíba de tra-
balhar, viajar ou sair de casa quando querem são
alguns exemplos dessa condição.
Contudo, acerca deste tópico, vale a pena um
pequeno aparte para recordar que, por exemplo,
em muitas nações europeias, as mulheres não
podiam trabalhar sem permissão do marido, assi-
nar contratos, abrir uma conta bancária, adminis-
trar bens... Só conquistaram alguns desses direi-
tos já nos anos 1960 e 70.
Em geral, além de questões como a pretensa
obrigação do uso do véu, pode dizer-se que, na
Idade Média, as muçulmanas viviam melhor do que
as europeias. No casamento islâmico, podiam pedir
o divórcio e exigir monogamia; ainda que o Corão
reconheça a poligamia, não a recomenda, e a
maioria dos muçulmanos foram e continuam a ser
monogâmicos.
O Corão contempla também o direito a satisfazer
a líbido de ambos os cônjuges, uma ideia que
parece estar a anos-luz da misoginia dos autores
O Corão consagra
liberdades que
depois foram
sendo retiradas
mais influentes do cristianismo, como S. Agostinho.
Segundo Bramon, “na primeira geração árabe à qual
chegou a mensagem do Islão, foi dado um passo de
gigante no que respeita à libertação feminina;
depois, este passo de gigante começou a regredir
e inverteu-se devido às tergiversações das gera-
ções seguintes”.
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ALBUM
Inglesa nos banhos
Q uando o seu marido foi nomeado
embaixador em Constantinopla,
lady Montagu (1689–1762) decidiu
acompanhá-lo no seu novo posto.
Viveu na corte otomana, tornando-se a
primeira europeia a aceder aos banhos
turcos, que a impressionaram pela
naturalidade com que foi recebida pelas
mulheres, que a aceitaram sem receios,
apesar de envergar o seu traje de ama-
zona. Quando abriu a camisa e revelou
o espartilho, as turcas pensaram que se
tratava de algo em que o marido havia
encerrado o seu corpo, não insistindo
para que se despisse... Nos escritos
de lady Montagu, encontramos uma
desmistificação da vida das muçul-
manas. “O espaço sagrado do hamam
[os banhos] garante a homogeneidade
da comunidade feminina. Atrás dos
muros e das persianas das suas casas,
as mulheres organizam a sua própria
sociedade, os seus locais de encontro,
de discussão e de lazer. É um mundo
fechado mas cujas ramificações se
estendem até ao infinito. O anonimato
do véu permite-lhes circular com total
liberdade: festas, celebrações familiares,
ritos do banho, visitas de cortesia... Em
Constantinopla, em vez de testemunhar
a triste reclusão na qual acreditava que
se consumiam as mulheres otomanas,
vi-as correr de um lado para o outro,
com os seus véus, de manhã à noite”,
escreveu. Na imagem, O Banho Turco
(1862), do pintor francês Jean-Auguste
Dominique Ingres (1780–1867).
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MAMELUCOS AO PODER
No século IX, a rainha Zubayda, primeira esposa
do califa de Bagdad Harune Arraxide, expressava
as suas opiniões em público. Muitas mulheres tive-
ram uma destacada influência no governo através
dos seus maridos ou como regentes dos seus des-
cendentes. Um exemplo desta realidade foi Safiya
Khatun (1167–1242), que governou Aleppo durante
seis anos em nome do seu neto.
Menção destacada merece também Xajar Aldur
(1216–1257), considerada por alguns como a funda-
dora do poder dos mamelucos no Egito. Quando,
em 1249, no âmbito da Sétima Cruzada, Luís IX de
França desembarcou no país do Nilo, ela coman-
dou a resistência. Negociou com os comandantes
manter em segredo a morte do seu marido, caído
em combate, para evitar uma perigosa instabi-
lidade política, e ela mesma continuou a lutar e
conseguiu capturar o rei francês. Este, em troca
da sua libertação, devolveu Damieta e pagou um
avultado resgate.
Os mamelucos decidiram nomear Xajar como
soberana, caso único na história do Egito muçul-
mano, mas o califa abássida Almostacim recusou-
-se a reconhecer-lhe o título e o exército teve de
depô-la. Ela resolveu o conflito casando com um
poderoso general, Azz ad-Din, e assegurou-se de
que nas moedas e nos documentos apareciam os
nomes de ambos. A perdição de Xajar foram os ciú-
mes: não suportando a decisão do marido de ter
outra mulher, mandou matá-lo. Morreu à mão dos
escravos de ad-Din.
Benazir Bhutto
foi a primeira
governante de
um país moderno Benazir Bhutto
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DA ÍNDIA AO AL-ANDALUS foi Asma bint Shihab (m. 1087), que exerceu o papel NOS TEMPOS MODERNOS
O sultanato de Deli, capital do grande reino de corregente do Iémen juntamente com o marido. O inegável peso político das mulheres no mundo
muçulmano da Índia, também foi governado por Prova do seu elevado estatuto é que nas mesquitas islâmico não se limita ao passado. A primeira a
uma mulher, Raziya al-Din, conhecida como Razia se dizia um sermão em sua honra. Depois, Arwa governar um país muçulmano no século XX foi
Sultana (1205–1240). Não era escrava, como tinha al-Sulayhi (1048–1138), a “nobre dama”, governou Benazir Bhutto (1953–2007), “a Dama de Ferro” do
sido Xajar, mas filha do sultão Iltutmish (m. 1236), o Iémen durante mais de 70 anos. Paquistão. Convencida de que o Islão e a democra-
ao qual sucedeu durante quatro anos. Exerceu uma Também no Al-Andalus encontramos exemplos de cia são compatíveis, foi duas vezes primeira-minis-
autoridade completa, cunhou moeda e dirigiu o muçulmanas com poder, como Subh (c. 940–c. 999). tra (1988–1990 e 1993–1996). Contudo, o exército
exército. Segundo contou o explorador árabe Ibn Era uma cristã chamada Aurora, raptada e escravi- não confiou nela e acusou-a de corrupção. Obrigada
Battuta (1304–1377), uma das suas primeiras ações zada, que chegou a ser a esposa favorita do califa de a exilar-se, a sua figura acalentou uma réstia de
quando assumiu o poder foi tirar o véu: “Montava Córdova, Aláqueme II, que lhe permitia vestir-se esperança na luta contra o extremismo islâmico
como os homens, armada com arco e flechas, e como uma jovem e participar em reuniões veda- até à sua morte, vítima de um atentado.
não cobria a cara”, relatou. das a mulheres. Subh dominou a vida cortesã e Também não teve vida fácil Tansu Çiller (n. 1946),
Também surpreendeu Ibn Battuta o respeito alcançou grande influência sobre a política do primeira-ministra da Turquia entre 1993 e 1996: teve
que os mongóis demonstravam pelas mulheres, califado. Foi a mulher mais influente no reino mais de enfrentar o conflito armado entre as forças tur-
exibindo-as junto a eles, sem véu, nas cerimónias poderoso da época e governou como regente do cas e os separatistas curdos.
religiosas. Aquando da sua passagem pelas ilhas filho, Hixam II, com o apoio do seu tutor Almançor, À frente dos destinos da Indonésia, o maior
Maldivas, escreveu sobre a sultana Jadiya bint até que este, que ela tinha protegido, quis ficar com país muçulmano, esteve Megawati Sukarnoputri
‘Umar al-Bengali, que reinou entre 1347 e 1379. o poder absoluto. Segundo os rumores de então, (n. 1947), filha de Sukarno (1901–1970), o líder his-
Outra mulher reconhecida como chefe de estado eram amantes. tórico que conduziu o país à independência. Em
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Megawati Sukarnoputri Aminata Touré
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mil euros de fundos provenientes do empresário associado à total dependência do homem. Alguns
angolano Álvaro Sobrinho. países europeus proibiram a utilização do niqab e da
burka em espaços públicos. Inclusivamente, em
PERMISSIVIDADE OU PROIBIÇÃO março de 2018, uma universidade pública da Indo-
Antes como agora, é impossível pensar na mulher nésia, país em que mais de 86 por cento dos 260
no Islão sem imaginar o véu. No Corão, há poucas milhões de habitantes são muçulmanos pratican-
referências a ele e, ainda que usemos este termo, tes, proibiu as estudantes de usarem burka, o que
temos de distinguir os vários tipos de vestuário. deu origem a duras críticas dos ativistas islâmicos
Além disso, há que esclarecer que o hijab, palavra mais radicais.
popularizada no Ocidente que significa “cober- Controvérsia criou também a teoria sobre a ori-
tura”, não alude apenas a uma peça de indumentá- gem do véu da centenária (104 anos) historiadora
ria mas também à regra que obriga as mulheres a turca Muazzez Ilmiye Çig: era o lenço das sacerdo-
taparem o corpo; fala-se sobre “respeitar o hijab”. tisas sumérias que, há cerca de cinco mil anos, ini-
Entre o vestuário em questão, estão a shayla, um ciavam as jovens na vida sexual ativa. Um tribunal
grande lenço que se enrola no pescoço e se prende absolveu-a em 2006.
à altura dos ombros (um xaile), o tchador, que cobre Num momento em que cada vez mais se fala
todo o corpo e deixa ver o rosto, o niqab, que tapa de feminismo e de empoderamento das mulheres,
toda a cara exceto os olhos, e a burka, que cobre o véu islâmico parece ter resistido como um sím-
a totalidade do corpo e apenas permite a visão da bolo de tempos passados. Para muitos, o ponto
mulher através de uma estreita faixa de pano ren- fundamental desta discussão está na liberdade de
dilhado na zona dos olhos. escolha das mulheres em utilizá-lo ou não, mas ela
À margem da terminologia, o Ocidente abriu-se a não é assim tão fácil de aplicar.
um debate sobre se é ou não aceitável o uso do véu, L.M.
SUPER 97
O lugar mais santo para os muçulmanos
A Kaaba
AQUILE
Esquina da Síria
Estrutura
de madeira
Esquina do Iraque
Hatim
Cortina
Manto
de seda,
substituído
todos os anos
Paredes
de mármore
Esquina
do Iémen
Lâmpadas
O semicírculo
Colunas indica a extensão
de madeira da Kaaba à data
Piso em
da sua criação
mármore
Parede
Escada
para o terraço
Anéis para prender o manto
Reforço para facilitar
o escoamento de águas pluviais
Pedra Negra
(esquina sueste) Porta de acesso coberta
de ouro (parede leste)
Faixa de mármore (marca o início Al-Mutazam (parede entre
da marcha em torno da Kaaba) a porta e a Pedra Negra)
T
rata-se do santuário, de formato cúbico (kaaba
significa “cubo” em árabe), situado no centro
da Grande Mesquita de Meca, em cuja direção
Conta no Twitter
olham os muçulmanos quando rezam. Segundo
a tradição islâmica, foi construída pelos profetas Abraão e
Ismael. A Pedra Negra, colocada na face voltada a sueste
D esde setembro de 2017, a Kaaba
tem uma conta no Twitter:
HolyKaaba. Nos três primeiros dias de
(material cuja origem é discutida pelos peritos, ainda que, atividade, obteve mais de 72 mil segui-
provavelmente, se trate de um fragmento de meteorito), dores. A sua abertura coincidiu com o
teria sido trazida do céu pelo próprio arcanjo Gabriel. É início da peregrinação a Meca que os
seguro dizer que a Kaaba já existia antes do nascimento muçulmanos devem fazer, pelo menos,
de Maomé: albergava então, segundo consta, mais de uma vez na vida. Quase todas as men- que o Kiswa, o manto preto bordado
300 ídolos, que o profeta mandou retirar. No seu sóbrio sagens, em árabe ou inglês, centram-se que cobre a Kaaba, foi feito com 670
interior atual, encontram-se três colunas de madeira sobre na partilha de orações do Corão ou em quilos de seda, 120 kg de prata dourada
o pavimento de mármore e, na estrutura do teto, estão revelar dados curiosos. Por exemplo, e 100 kg de prata.
penduradas numerosas lâmpadas.
98 SUPER
Não
perca!