Você está na página 1de 248

JEA N GA LOT, S.J.

P1·otessor · de Teologia

O CORAÇÃO
DE MARIA

Tradução de

Valeriano de Oliveira

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br

FLAMBOYANT
Título do original

Le Creur de Marie

Copyright by

DEScLÉE DE BaouwER - Brug es

Capa de

JACQUES OOUCHEZ

1962

Todos os direitos reservados pela


1\
LIVRARIA EDITORA FLAMBOYANT
Rua Lavradio, 222 - Tel.: 51-5837 - São Paulo

Impresso nos Estados Unidos do Brasil


Prjnted in the United States of Brtuil

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Nihil obstat: São Paulo, 10 de j aneiro de 1962
Mons, JosÉ LAFAYETI'E ALVARES

Imprimatur: São Paulo, 11 de janeiro de 1962


t PAULO RouM LouREIRo
Bispo auxiliar e vigário geral

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
I N TROD UÇ ÃO

D escrever o coração da Virgem é coisa difícil, porque o Evan­


gelho oferece poucas indicações acêrca dos sentimentos íntimos
da Mãe de Deus. Enquanto uma descrição do coração de Cristo
pode apoiar-se em numerosos textos evangélicos, um retrato da
pessoa de Maria e uma história de suas disposições de alma só
mui superficialmente podem ser esboçados por meio de dados
escriturísticos. Como completar os indícios da Escritura? A
interpretação proposta pela tradição lança uma luz preciosa sôbre
o seu verdadeiro alcance e ajuda a compreender a grandeza do
papel da Virgem, através de palavras simples e discretas que o
evocam. Recorrendo aos próprios textos, considerá-tos-emos no
valor que lhes atribui a doutrina atual da Igreja.
Para conhecer os pensamentos e afeições da Virgem pode­
mo� ainda basear-nos de uma maneira geral no Antigo Testa­
mento; êle descobre a mentalidade em que se fêz a educação
religiosa de Maria. Entretanto, na Imaculada Conceição esta
mentalidade foi, desde o comêço, orientada e iluminada secre­
tamente por uma graça cristã; antes que o Nôvo Testamento
fôsse revelado expressamente a Maria, o espírito da mensagem
cristã havia-lhe penetrado na alma. Por isso é sobretudo f!ela
experiência da vida cristã que se pode chegar a caracterizar as
disposições da Virgem. Semelhante experiência, por mais ordi­
nária que seja, orienta a descoberta do coração da Mãe de Deus.

7
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A Virgem, com efeito, por mais alto que tenha sido colo­
cada entre as criaturas, não teve uma condição totalmente dife­
rente da do cristão; bem ao contrário, a graça agiu nela do
mesmo modo como age em todo o homem. Ela seguiu os mes­
mos caminhos, teve estados de alma análogos aos que experi­
menta o cristão comum; cultivou as mesmas virtudes fundamentais.
Não seria pois conforme à verdade colocar Maria num mundo
à parte, como uma pessoa que possuísse desde a sua existência
terrestre a visão beatífica ou vivesse na exaltação contínua de
sentimentos extraordinários. Semelhante representação tampouco
seria honrosa para a Virgem, que se tornaria um ser estranho e
factício, efetivamente favorecido com maravilha gratuita. Como
os demais homens, Maria teve de subir o caminho íngreme da
santidade na fé, na esperança e no amor, nos sofrimentos e na
alegria. A sua vida mostra-se assim estreitamente aparentada à
nossa. Difere dela somente pela missão única e grandiosa que
Deus lhe confiou, e pela perfeição sem número concedida à
sua alma. Em razão desta perfeição, a Virgem viveu de maneira
extraordinária a vida ordinária do cristão.
Estranhamente próxima e incomparàvelmente superior a nós,
Maria apresenta-nos uma alma simplicíssima numa beleza excep­
cional. É mister que elas nos pareça ao mesmo tempo familiar
e inexprimível. O seu coração nos é revelado e dado, mas como
um mistério.

8
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
PRIMEIRA PARTE

A CONSAGRAÇÃO

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPÍTULO I

CORAÇÃO IMACULADO

Cheia de graça

Quando o anjo Grabiel se apresenta a Maria para lhe anun­


ciar a palavra de Deus, começa por estas palavras: "Ave, cheia
de graça" (Lc. 1 ,28 ) . Por que não a saúda tom o nome de Maria,
nome que pronunciará logo depois, ao procurar acalmar a per­
turbação da jovem? Não é decerto sem motivo que em vez
do seu nome êle lhe diz: cheia de graça; para o anjo, como para
Deus, de quem é embaixador e intérprete, o verdadeiro nome
de Maria é êste, esta graça �de que a sua alma está cheia. O
nome só tem por finalidade distinguir uma pessoa de outra, fazê-la
reconhecida. O que distingue Maria entre tôdas as criaturas, é
que ela recebeu uma graça excepcional, é que é detentora da
graça por excelência. O nome que ela tem exprime aos olhos
de Deus a realidade de sua alma. Pode-se dizer que "cheia de
graça" representa a definição de seu coração, e por coração da
Virgem entende-se o fundo íntimo de sua personalidade.
Decerto, já no nome de Maria, achava-se inscrita como que
uma obscura intenção divina, uma certa evocação de seu destino.
A j ovem de Nazaré trazia o nome da irmã de Aarão, de uma
profetiza que fôra outrora associada de modo todo particular
ao maior acontecimento da história de Israel: a libertação do
povo "do jugo egípcio. Esta Maria acompanhara Moisés por
ocasião da saída do Egito e fôra testemunha da intervenção mira­
culosa de Javé que salvou a nação judaica; celebrara êste bene­
fício divino cantando com todo o povo um cântico de louvor

11
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

a Deus, um primeiro "Magnificat". (Ex. 25-1 ) . O nome de


Maria convinha pois de modo especial àquela qoe ia ser não·
somente a testemunha, mas o instrumento da verdadeira liber­
tação da humanidade, e que entoaria em breve um cântico defi­
nitivo para o Salvador que ela traria em seu seio.
Mas em lugar dêste nome cujas ressonâncias permaneceriam
misteriosas, Deus quis conferir à Virgem um nome que expri­
misse com maior clareza o amor único de que ela era o]:>jeto.
A grandeza de uma predileção divina excepcional traduzia-se
na apelação de "cheia de graça". Deus queria dizer a Maria
que êle a havia amado de uma maneira única, que a escolhera
por sua bondade preveniente. O anjo Gabriel saudava-a como
sendo aquela cujo nome significava: a favorecida de Deus, a amada
de Deus.
Amada de Deus ou cheia de graça: as duas expressões são
mais ou menos equivalentes. A segunda vem apenas apoiar e
completar a primeira, indicar-lhe as conseqüências. Conforme o
texto grego da Anunciação a palavra do anjo traduz-se literal-­
mente: "regozija-te, tu que fôste agraciada", com a diferen_ça
que esta infusão da graça é completa, o que nos leva a reconhecer
aí uma plenitude ou uma perfeição da graça.
Ora, nos escritos do Nôvo Testamento, êste verbo: "agra­
ciar" só se encontra no comêço da carta aos efésios, onde São
Paulo fala "da graça que Deus nos concedeu no bem-amado", isto
é, em seu Filho único (Ef. 1, 6 ) . E esta linguagem ajuda a
compreender a do anjo. Deus depositou a sua graça em Cristo,
para que ela venha a nós; e quis que esta graça de Cristo nos
chegasse por Maria. Assim como Jesus é "aquêle que foi amado"
e que recolheu para nós a graça divina, Maria é amada de Deus,
aquela que foi provida, cheia de graça. Amor e graça são para­
lelos: o amor indica antes a fonte primária, o sentimento divino
que incidiu sôbre Maria e fixou-se nela de uma maneira extra­
ordináriá ; a graça designa o favor objetivo de que êste amor
enriqueceu li pessoa da Virgem. A plenitude de graça constitui
o testemunho de que Deus amou Maria 1to máximo, e mostra o
magnífico resultado dessa predileção divina.

12
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

Em que consiste precisamente essa graça excepcional ? A


fórmula de saudação " cheia de graça" é extremamente elogiosa,
mas em si mesma é vaga e não faz alusão a nenhuma qualidade
especial de Maria. Ora, o anjo teve o cuidado de declarar mais
manifestamente o que êle entendia por esta graça, quando disse
à Virgem que ela encontrara graça diante de Deus e fôra esco­
lhida para se torn�r a mãe do Messias. Essa graça única era
portanto a de sua gloriosa maternidade, e ao mesmo tempo tôda
a perfeição de que Deus lhe enchera a alma para que ela pudesse
chegar a esta maternidade, uma santidade sem sombra e sem
mancha; porque não convinha que ela recebesse a sua missão
maternal por simples deputação exterior, mas pela maturação
de um trabalho íntimo no fundo de si-mesma. Desde o pri­
meiro instante da vida de Maria, o dom da maternidade divina
havia começado a agir nela para adaptá-la à sua vocação. Diri­
gindo-se àquela "que foi agraciada", o anjo visa esta graça total
de que Deus formou o seu coração no passado e cujo desabro­
char maravilhoso êle oferece no presente.
_É revelador que Maria seja assim distinguida pelo a�

pela graça de Deus, e não�or sua�prias qualidades ou vir­


rudes hum� Podena parecer-nos mais lógiêõCaracterizãrliin a
personalidade por seus recursos espontâneos e naturais, porque
concebemos o destino de alguém como um desabrochar de sua
personalidade, uma aplicação de seus recursos. E quando dese­
jamos exprimir o que constitui o valor ou o encanto, a beleza
ou o segrêdo de um coração, procuramos o sentimento humano
que o põe em evidência e lhe confere o seu atrativo. O coração
de Maria define-se de modo bem diverso. Não se trata de qua­
lidades nem de sentimentos humanos, porque o anjo não pro­
clama a excelência da virtude ou do mérito de Maria; não exalta
o que ela realizou ou deu, mas o que recebeu. Se Maria é pri­
vilegiada entre tôdas as criaturas, é em razão do favor divino,
favor que por definição é inteiramente gratuito, e portanto_ não
pôde ser merecido por Maria. O seu coração tem por primeira
característica, não o ter amado mas o ter sido amado, o ter sido
cumulado de amor por Deus. É o aínor di vino, e não o amor
�o que lJ::_�o seu �r. --
13
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

A formação do coração de Maria supõe portanto uma ope­


ração muito mais fundamental do que a simples educação em
nível humano: Os homens só podem contribuir para a educação
dos seus semelhantes favorecendo o desenvolvimento do que se
encontra em germe nêles; Deus procede de maneira inversa: co­
loca no princípio dêste. desenvolvimento uma fôrça divina. Doravaõ="
tehá Uilialei paraodesabrõaiãr dos corações, umãTei paradoxal,
e é que a fonte de sua vida profunda será o amor divino. E
há uma lei para todos os cristãos, a saber: êJs-só P.Odem existir
como tais recebendo o influxo vital, não de seus recursos hum'"'ã:"'


nos, mas da graça divma. E2!!J_Vl aria_esta le�e a sua�
_Eerteit ç O coração de Maria é inteiramente produto
s, da B:: aça divina.
· ---

É esta a razão por que j amais acabaremos de penetrar-lhe


as profundezas. No fundo de seu coração há como que um abismo
infinito, o abismo do amor divino, que recua incessantemente
o seu limite aparente à medida que o queremos atingir, e que,
depois de nos ter causado inúmeras maravilhas, proporciona-nos
ainda mil outros motivos de admiração. Tal foi o abismo que
o anjo Gabriel contemplou enlevado no momento da Anun­
ciação. A sua palavra "cheia de graça�', que poderia ser com­
preendida no sentido de uma beleza superficial, exprime uma
realidade abissal, cuja profundeZa o anjo podia contemplar por­
que tinha a visão de Deus.

Pureza do primeiro instante

O olhar do anjo, ao mergulhar nas profundezas da alma de


Maria, remontava também até à origem de sua vida. Remon­
tava ao instante do seu nascimento, quando Maria recebera um
nome que significava "amada de Deus". Mas passando além
do seu nascimento, chegava ao primeiro momento de sua exis­
tência, porque a Virgem fôra objeto dêsse amor excepcional desde
o primeiro instante de sua concepção. Nem um momento Maria
fôra desprovida da plenitude da graça. Antes que se formasse

14
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

o seu coração de carne, e bem antes que os primeiros vislumbres


da consciência lhe iluminassem a alma, o amor diYino havia to­
mado e_osse de to�_-� se�_�, !ste amo7?ormlfva um coração
para aquela que ainda não o tinha.
O momento da Imaculada Conceição foi divinamente so­
lene. Mas êste momento único na história fôra vivido por Maria
sem que dêle tivesse consciência. Deus operara nela um pro­
dígio, sem que ela pudesse entrevê-lo um instante sequer. A
luz divina que inundara essa alma em vista de iluminar a huma­
nidade, permanecia velada fara Maria nas trevas do inconsci­
ente. A Virgem começava ja a seguir a via traçada especialmente
para o seu coração: possuir riquezas imensas de alma sob apa­
rências normais e insignificantes, mas também conservar precisa­
mente o· que nem ela era capaz de compreender. Antes de se
tratar de uma conduta refletida, tratava-se de uma situação
necessária.
Alguns teólogos pretenderam que Maria tenha sido dotada,
desde o primeiro instante de sua vida, do uso da razão, e dêste
modo tenha podido acolher em plena consciência e aceitar com
tôda a liberdade essa primeira graça que lhe era conferida (I).
Mas isso é imaginar gratuitamente um milagre, que aliás não
parece conforme à maneira com que a graça agiu na alma da
Virgem, sem violentar a natureza. Por que haveria ela de ter
consciência de si-mesma desde o primeiro momento da existência,
se a graça não o exigia absolutamente? A graça santificava
Maria no estado em que se achava. Santificava primeiramente
o seu inconsciente, como santificaria ao depois a sua consciência.
A psicologia moderna, que dá muita importância à maturação
do inconsciente no desenvolvimento do indivíduo e reconhece
o papel imenso que podem desempenhar essas fôrças ocultas
na formação da personalidade, ajuda-nos a compreender o valor
desta primeira influência da graça na alma de Maria, mesmo à
margem de tôda a reação consciente. O inconsciente não é o
nada; o eu já se encontra aí obscuramente presente, e foi êste

<o' Por exemplo J. V. BAINVEL em !eu belo livro Le aaint cwur de Marie,
Paris, 1922, pág. 11.

15
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

eu que a graça envolveu no instante preciso em que entrava na


existência.
<
Maria não podia portanto ter a mínima lembrança dessa en-
trada da graça em sua alma. As lembranças das intervenções
extraordinárias de Deus em sua vida não remontam à sua concep­
ção; a sua primeira consciência de uma intervenção parece datar
da Anunciação, pois é a partir daí que ela começou a narração
de suas recordações, e isso já bastaria para nos precaver contra
tôda a hipótese de lhe atribuir iluminações excepcionais e pro­
digiosas. A perturbação da Virgem. ante a saudação angélica
su�ere que ela não vivia numa atmosfera de visões celestes. O
pnmeiro momento de sua existência fôra um milagre, mas um
milagre que havia respeitado as condições naturais do desenvol­
vimento humano. tle não iria sequer apressar êsse desenvolvi­
mento nem dar a Maria uma precocidade maior: era de outra
ordem, de ordem sobrenatural.
Desde o primeiro instante, a alma de Maria pertenceu a
Deus, primeiramente em suas profundezas inconscientes. É assim
que o fundo primeiro de sua psicologia foi cheio da graça divina,
e que esta graça dirigiu integralmente o desenvolvimento de sua
personalidade. Nela a graça não encontrava oposição; nem o
míriimo traço de pecado vinha agravar a hereditariedade de
Maria ou inclinar-lhe a alma para o mal. Não houve nenhum
conflito para lhe causar complexos ou lhe desequilibrar a per­
sonalidade: sob a ação todo-poderosa da graça, reinava a har­
monia em sua alma, uma hannonia perfeitíssima, em que tôdas
as tendênciàs humanas se uniam, transformadas e valorizadas pela
vida divina.
Não se poderia sublinhar bastante a influência dessa ação
obscura e inconsciente da graça na formação do coração . de
Maria. Com efeito, nada mais_ delicado do que essa formação;
o menor desvio, a menor arranhadura no eu ainda inconsciente,
no comêço da existência, podem traduzir-se no futuro por de­

feitos de caráter, por m s prope�sões que podem s.er �orrigi..;
A
das em parte, mas que nao cessarao de pesar sobre a v1da. Se
não houve nenhum desregramento, nenhuma instabilidade, ne-

16
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A consagração

nhuma fraqueza no coração da Virgem, é porque Deus interveio


bem antes do despertar dêsse coração, e jamais permitiu que
a alma de Maria existisse um só instante sem estar inteiramente
envolvida em seu amor.

Livre aquiescência

E a liberdade humana, que se tornou ela ? Como pôde Deus


tomar posse de um coração sem lhe solicitar o consentimento?
É verdade que a graça agiu em Maria bem antes de todo o. con­
sentimento. Mas para consentir à graça e responder ao amor
divino, é preciso estar capacitado para isso. Se Deus tomou
posse tão cedo da alma de Maria, não foi para lhe confiscar a
liberdade, constrangê-la a aceitar o destino que lhe reservava,
mas ao contrário, para pô-la em condições de consentir nos
seus desígnios com pleno conhecimento de causa e inteira liber­
dade, logo que chegasse o momento. T ôda a história da influ­
ência de· Deus sôbre a alma de Maria desde o comêço de sua
existência convergia para o momento em que Maria seria colo­
cada na alternativa de aceitar ou recusar essa influência. A graça
conferia a Maria a capacidade de se decidir, de fazer uma escolha,
e de fazê-Ia sem ter a inteligência obscurecida pelos preconceitos
nem a vontade arrastada ou escravizada pelas paixões. Isentando
Maria do pecado e de suas conseqi:i.ências, a graça tornava-a apta
a agir com um soberano domínio de si-mesma. Dava-lhe a facÜl­
dade de amar livremente, e por conseguinte, de maneira integral,
e é essa faculdade que devia constituir precisamente o coração
de Maria.
Quando foi pedido êsse consentimento à Virgem ? Quando
aceitou ela plename_nte a graça de sua Imaculada Conceição ?
Sabemo-lo pelo Evangelho: no momento da anunciação. Decerto,
desde as primeiras manifestações de sua vida consciente, Maria
começara a çorresponder ao amor divino, a acolher delibera­
damente o influxo da graça em sua alma. Submetéra-se de bom
grado à ação de Deus e prontificara-se sempre a cumprir os seus

17
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

menores desejos, executando fielmente até a menor de suas suges­


tões. Por seus atos de vontade, ela ratificava, tanto quanto lhe
era possível, tôdas as exigências da divina vontade; e comprazia­
se em satisfazer os mínimos desejos que Deus lhe exprimia na
intimidade de sua alma. Maria tivera portanto, antes da Anun­
ciação, grande número de ocasiões de manifestar a Deus a sua
aceitação da graça. Mas tais consentimentos permaneciam ainda
parciais, .porque Deus aguardava o momento em que a persona­
lidade de Maria, chegada à sua idade adulta, estivesse verdadei­
ramente formada e capaz de dar uma adesão total e definitiva à
graça tôda especial com que a favorecera. Nesse momento, en­
viou um anjo para esclarecer Maria sôbre o alcance dessa graça
e, por isso mesmo, sôbre o alcance do consentimento que lhe
era pedido. A graça da Imaculada Conceição fôra concedida
a Maria em vista de sua maternidade divina; o anjo lhe disse
que lhe fôra dada uma graça extraordinária a fim de que ela
pudesse tornar-se a mãe do Messias, do Filho do Deus, e pediu
uma resposta.
Maria tinha pleno poder de responder como quisesse. A
graça que lhe fôra conferida por Deus desde a sua concepção
tornara-se propriedade sua. Tudo fôra elaborado em sua alma
pela ação divina, tudo lhe vinha· de Deus; mas ao mesmo tempo
tudo lhe pertencia, porque houvera verdadeiramente da parte
de Deus um dom, e um dom irrevogável, sem arrenpedimento.
A plenitude da graça habitava-lhe no coração. É esta a razão
por que Deus lhe mandou dizer: "Regozija-te, cheia de graça",
atestando assim que essa plenitude de graça lhe pertencia a ponto
de formar o seu verdadeiro nome, de constituir a característica
fundamental de sua personalidade. Deus queria fazer reconhecer
que o que êle havia dado a Maria tornara-se dela e que êle
não mais o retomaria. É esta também a razão por que ordenou
que o anjo lhe declarasse: "tu, que fôste cheia de graça" e
não "tu, que fôste cheia de amor". Maria era portanto, em
todo o sentido da expressão, aquela que havia sido cumulada
de amor por Deus, a criatura amada de Deus por excelência. E
Deus a teria de boa mente chamado desta maneira, porque para

18
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

êle, Maria era a criatura que êle havia amado, escolhido dentre
tôdas, aquela a quem prendera o seu coração. Poderia, neste
momento da Anunciação, ter-lhe concedido um título ou expri­
mido diretamente o amor ardente que lhe votava. Mas em vez
de se colocar no ponto de vista da afeição que lhe dedica, �le
se coloca no ponto de vista da Virgem, de tudo o que ela
recebeu em virtude dessa afeição; escolheu-lhe um nome que
subentende o seu amor divino e aponta o seu esplêndido efeito:
"Tu, que fôste cheia de graça".
�sse efeito encanta o próprio Deus. Pela saudação angélica
êle se inclina ante tão admirável perfeição. Porque o anjo
é um simples embaixador; é da parte de Deus que êle se dirige
a Maria, e quando a saúda com urna palavra de imensa admira­
ção, é tôda a admiração de Deus por sua criatrira que se mani­
festa. Deus se conhece em sua infinita riqueza e em seu incom­
parável esplendor; conhece igualmente o poder de seu amor e a
sabedoria com que derrama as suas perfeições nos sêres que criou.
Foi êle quem tudo operou na alma da Virgem; êle o sabe, e con­
tudo, admira. Contemplando a Virgem, vendo-a revestida de
tôda a p raça que lhe deu, fica tornado de admiração, e é com
um autentico respeito ante a pessoa que êle criou e encheu de
seus dons que lhe envia o seu mensageiro e a saúda. É um res­
peito corno que penetrado de entusiasmo pela sedução de sua
beleza.
A Virgem é senhora dessa beleza e tem o poder de usar
dela corno quiser. Encontra-se tanto mais livre, mais soberana
em sua decisão quanto mais recebeu de Deus. D�us nunca arn<?�

tanto urna criatura, e contudo evita a todo o preÇo fazer r�
�s �
eu �mor êle quera res osta de um ViWa dro
amor, isto e, de um coração livre e sen or de si. Por isso faz
com que Maria se restabêleça da ligeira perturbação que pro­
vocou a entrada do anjo: "Não ternas, Maria". A Virgem deve
estar absolutamente calma e lúcida para responder.
A resposta foi também tão integral quanto o fôra o dom
divino. Maria quer que o seu consentimento tenha por medida
a extensão mesma da vontade divina: "Faça-se em mim se-

19
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

gundo a vossa palavra ! " (Lc. 1, 3 8 ) . Deseja que a palavra de


Deus reja inteiramente a sua vida. No grego, esta frase toma
a aparência de um voto, um optativo antes que um subjuntivo.
E ISSO indica a espontaneidade com que Maria consente: para
ela, não se trata de obedecer a uma ordem, mas de ter no cora­
ção uma aspiração que concorde com o pedido divino. Por­
tanto, bem mais do que uma submissão, é um transporte de todo
o seu ser que deseja o cumprimento do desígnio de Deus e com·
êle se regozija. Pode-se traduzir a sua resposta do modo seguinte:
"Faça-se assim como dissestes ! " Há em tal consentimento um
fervor apenas contido.
Neste momento, Maria acolhe em plena luz e com todo o
seu querer a graça que estava nela e que havia começado pel!_
Imacula9-ª.. _Conceição. Ao fervor com que Deus a enchera de
graça, respcinâiaõt ervor com que ela consentia. Assim se cons­
tituíra perfeitamente e desabrochara o Coração Imaculado da
Virgem. Para que um coração seja verdadeiramente formado,
e o seja segundo o destino sobrenatural do homem, é mister
que Deus tenha primeiramente agido por sua graça, tornado a pes­
soa capaz de amar, pois que essa pessoa deve r�on9.er livremente
ao seu amor. Essas três condições verificam-se em grau supremo
ein Maiiã: Deus agiu nela desde o primeiro instante de sua con­
cepção e de uma maneira completa; tornou-a capaz de amá-lo,
conferindo-lhe uma liberdade eminente, nascida tanto da pleni­
tude de graças de que Maria gozava como de sua preservação
de tôdas as ilusões e más inclinações do pecado; enfim, ap6s longa
maturação de sua personalidade sob a influência da graça, que
a tornava plenamente senhora de si, a Virgem consentiu com
tôda fôrça do seu ser; ela se deu e se abandonou com ardor à
divina vontade. 1\.9-�!!l o r que recebera e �he conferira a _

possibilidade de - �rti-ªL ela respondia com amor tambem uruco


e··ãõsôfuto; porseu fiat, o seu coração se consumava na perfeição
de um coração exclusivamente dado a Deus.

20
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

Alma sem pecado

A saudação do anjo reconhecia no coração de Marià uma


vitória absoluta sôbre o pecado. Com efeito, nesse coração só
a graça havia agido, excluindo dêle tôda a mancha e poupando
Maria da herança do pecado original. Nem um só instante a a�a
da Virgem estivera sob a servidão de Satanás; ela vivera uni­
cament� s�i?.__o influxo divino, na pureza e na santidade.
- --
No moment�. �ão, como se apresentavam os homens
aos olhos de Deus ? Por tôda a parte Deus só via pecadores; por
tôd� a J?arte os seus olhos só encontravam �orações que haviam
cedtdo a seduçao· , ao menos parcialmente e em certos
_ d� Satanas,
momentàs de sua vida. Em vão teria êle procurado na huma­
nidade almas que não houvessem sido contaminadas pelo pecado.
Havia urna exceção: em meio a essa massa imensa de pecadores
destacava-se o vulto da Virgem Imaculada. O que havia pro­
curado em vão noutra parte, Deus o encontrava l?erfeitamente
realiz?do no coraçã,o da Virgem. O demônio jamats conseguira
turvar a luz divina que inundava êsse coração, nem lançar-lhe
a sombra de sua malícia. Como semelhante exceção devia res­
plandecer aos olhos de Deus, e como o coração de Maria devia
brilhar em sua pureza intata no meio de todos os corações de
homens pecadores ! Foi êste espetáculo, o único que importa
para aquele que sonda o fundo dos corações, que fixou a deter­
minação divina.
o olhar divino não percorria somente a extensão atual do
universo, mas conservava diante de si todo o passado. A ap.e­
lação "cheia de graça" correspondia a um fato muito antigo,
sucedido nas origens da humanidade. Satanás arrastara ao pecado
a primeira mulher, Eva, mãe dos viventes. E a cólera divina
viera sôbre essa mulher, expulsara-a da presença d� Deus ·e do
paraíso terrestre, ela e sua descendência. Entretanto, antes mes­
mo que. essa cólera se manifestasse, Deus fizera uma promessa:
um dia a mulher, por sua posteridad_e, triunfaria da serpente,

21
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

esmagando-lhe a cabeça. :ftsse dia raiara com a conce1çao de


Maria: a mulher, em previsão dos méritos de seu Filho, con­
quistara uma vitória completa sôbre Satanás, porque fôra pr_e­
servada por Deus do pecado. Neste momento a promessa divina
cwnprira-se, enchendo Maria de graça, e a cólera divina desar­
mara-se; doravante entre a mulher e Deus já não havia inimizade,
mas aliança. A saudação angélica: "Ave, cheia de graça" ates­
tava essa reconciliação da mulher e da humanidade com Deus
como também-a.· grande desforra que "Deus acabava de flrar�
Satanás. O coração de Maria, em que só Deus havia penetrado,
era a réplica ao coração de Eva, que dera acolhida à serpente.
Ora, que longo tempo fôra preciso para preparar esta ré­
plica e esta desforra ! O coração imaculado de Maria fizera
parte do plano divino desde o momento em que Eva manchara
o seu; a reação divina ao pecado da primeira mulher foi que­
rer, antes de proclamar a queda da pecadora, a santidade VIto­
riosa de uma outra mulher. Vendo Eva desobedecer e colhêr
o fruto proibido, Deus pensara na Virgem, sua serva perfeita.
Mas para realizar essa criatura única que o seu amor hav1a exco­
gitado em resposta ao pecado, êle decidiu trabalhar previamente
as almas humanas sujeitas à miséria do pecado, e elevar pouco
a pouco suas aspirações a um nível que lhes permitisse acolher
uma alma tão perfeita.
A preparação estendeu-se por muitos séculos. Quando os
homens não eram ainda capazes de aspirar à beleza imac}llada
de um coração de virgem e não podiam prevê-la nem esperá-la,
Deus não cessava de contemplá-la de antemão. "Cheia de graça",
era o seu sonho, escondido nas profundezas insondáveis dos seus
desígnios: um sonho divino. A visão de um coração absoluta­
mente puro como o de Maria orientava de algum modo tôda
a ação divina; bem no fundo de todos os corações humanos, ainda
engolfados no pecado, Deus começava a formar, de uma maneira
ainda longínqua e como que em esbôço, o que êle queria rea­
lizar perfeitamente no coração de Maria. Introduzindo no mun­
do os primeiros apelos de sua graça, os primeiros toques de
sua santidade, tinha presente ante os olhos a perfeição a que

22
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A c o n sa g r a ç ã o

essa graça chegaria. O coração de Maria representava o têrmo


do caminho, o cume da subida.
Deus não somente fixava êste têrmo de seu olhar, mas o
esperava. Esperava que o sonho se tornasse realidade. Dir-se-ia
<]Ue havia nêle uma santa impaciência de ver enfim surgir Maria.
Impaciência tanto mais viva quanto mais o pêso do pecado
retardava o trabalho divino nas almas. Era tão difícil elevá-las
a um nível superior, purificá-las de suas imundícies! Deus
via sucederem-se as gerações humanas, que iam transmitindo umas
às outras a herança do pecad,o. Mesmo os homens tiveram cons­
ciência dêsse pêso que esmagava a humanidade, e quando São
Paulo quis descrever o estado do mundo antes da redenção de
Cristo, retomou as enumerações que a literatura de seu tempo
havia vulgarizado. Eis como descreve êsses homens pecadores:
"cheios de tôda a injustiça, de maldade, de estupidez, de malí­
cia; só respirando inveja, disputas, enganos, malignidades; difa­
madores, àetratores, inimigos de Deus, injuriadores, or�ulhosos,
arrogantes, engenhosos no mal, rebeldes a seus pais, tsensatos,
desleais, sem coração, sem piedade." (Rom. 1, 29-31). Se o
mundo lhe aparecia sob semelhante aspecto, como seria êle aos
olhos de Deus ? Se já aos olhos dos homens causava repulsa
tanta maldade, que impressão devia causar êste mundo àquele
que discernia tôàas as misérias ocultas, e via o fundo das almas ?
Porque ao lado dos vícios publicamente manifestos, havia tôdas
as maldades secretas, e não raro por detrás de uma fachada de
virtude, escondia-se uma inconfessável hipocrisia, daquelas hipo­
crisias que Jesus, sedento de verdade e de sinceridade, denunciou
de maneira tão enérgica. Testemunha de tantos horrores e de
tantas misérias, das quais nenhuma lhe escapava, e que eram tôdas
de natureza a provocar ao mesmo tempo uma JUSta cólera e
uma imensa piedade, Deus tinha pressa de poder enfim repousar
o seu olhar sôbre um coração imaculado, sôbre uma criatura
cujas aparências fôssem irrepreensíveis e cuja personalidade íntima
só lhe proporcionasse um espetáculo de pureza. Depois de tanta
tristeza acumulada pelo desenvolvimento crescente do pecado na
humanidade, Deus suspirava por aquela alegria que preparava
para si.

21
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria
,t
Mesmo aquela que outrora trazia o nome de Maria, a irmã
de Aarão, tivera um movimento de revolta semeando a hosti­
lidade contra Moisés, cuja autoridade queria suplantar. Ergue­
ra-se contra êle pretendendo-se também intérprete da vontade
divina; Deus manifestou a repugnância pelo seu pecado ferindo-a
de lepra, da qual.só foi libertada mediante uma expiação pública
(Num. 1 2, 1 -15). Desgostoso de vê-Ia extraviar-se assim no or­
gulho e na rebelião, Deus desejou mais vivamente a mulher que
haveria de receber totalmente, sem nenhuma reserva, o seu di­
vmo amor.
E quando suscitava no Antigo Testamento algumas belas fi­
guras de mulheres que anunciavam a beleza de Maria e a sua missão
libertadora, tomava ainda mais gôsto para suscitar enfim esta beleza
suprema; porque por mais belas que fôssem, essas figuras per­
maneciam todavia muito aquém do ideal. Achavam-se ainda em­
baciadas pela sombra do pecado. Em nenhuma delas, nem em
Débora, nem em Judite, nem em Ester, Deus podia encontrar
um coração imaculado. Havia muita coisa grandiosa nessas he­
roínas, mas o que Deus buscava era uma ahna tôda simples,
de aparência comum, mas cujo interior fôsse um santuário.
O coração imaculado da Virgem foi portanto o -têrmo de
uma longa espera. Com que vibração de entusiasmo o Senhor
deve ter criado aquilo que havia projetado há tanto tempo, e
com que amor deve ter contemplado, depois de tantas gerações
de pecadores, a pureza perfeita ! É essa vibração que ecoa ainda
na palavra do anjo: "Regozija-te, cheia de graça ! " Deus possuía
doravante uma criatura que êle podia contemplar sem experi­
mentar cólera nem tristeza, e na qual o seu olhar podia com­
prazer-se indefinidamente. O coração de Maria, espelho da per­
feição divina, proporciona finalmente um repouso ao olhar de
Deus, a êste olhar que durante séculos e séculos havia sondado
o coração dos homens, sem poder jamais deleitar-se nêles sem
reservas. :E:le satisfazia a aspiração e a impaciência de Deus.

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

Aurora de uma nova era

Aos olhos de Deus, que penetravam a história da humani­


dade em tôda a sua nudez e autenticidade, Maria apresentava-se
como a aurora de uma nova era. A pureza imaculada de seu
coração ia recomeçar a história humana, retraçando-a de uma
maneira divina. Ela era aquela "nova criação" de que fala São
Paulo (li Cor. 5, 17) ; uma criação bem superior à primeira, por­
que a santidade de Maria ultrapassava muitíssimo a que Eva
recebera antes da queda original. E esta novidade estava des­
tinada a refletir sôbre o mundo, provocando por tôda a parte
um surto de renovação e de pureza. "Passou o que era velho;
eis que tudo se fêz nôvo; e tudo vem de Deus" (I/ Cor. 5, 17-18 ) .
� �maculada Conceição havia inau�rado po:ranto" uma época
mte1ramente nova; era um acontecimento momo, mas que es­
tava destinado a ter repercussões universais.
Para compreender o alcance dêsse acontecimento e perma­
necer em nosso ponto de vista, que quer ver a alma de Maria
tal como aparecia ao olhar divino, devemos voltar ao texto de
São Paulo que considera o desígnio concebido por Deus desde
tôda eternidade. Fomos escolhidos em Cristo, sublinha o Após­
tolo, desde antes da constituição do mundo, para um destino
de santidade, porque Deus, em seu soberano beneplácito e na
grandeza de seu amor, decidira perdoar os pecados pela reden­
ção de Jesus, fazer-nos filhos seus por Jesus Cristo e conceder­
nos nesse Filho bem-amado uma graça rica e abundante (Ef. 1,
3-8 ) . Ora se o Pai nos amou de antemão em seu Filho, não
envolveu êle primeiramente nesse amor aquela que devia ser a
mãe dêsse mesmo Filho ? Maria foi, portanto, amada de Deus
desde o princípio naquele que era o Filho bem-amado. As gra­
ças concedidas pelo Todo-Poderoso em seu Filho foram reu­
nidas em primeiro lugar em Maria, para formar nela uma ple­
nitude . de graça. Nela', a perfeição de Cristo refletiu-se sein
a mínima sombra.

25
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

"Desde antes da constituição do mundo" o olhar divino es­


tava pousado na beleza da Virgem. É êste o motivo por que
a liturgia aplica a Maria o que o autor sagrado diz da Sabedoría:
"Javé me criou, como primícia de seus caminhos e prelúdio de
suas obras, desde o princípio. Desde a eternidade recebi a inves­
tidura, desde o comêço, antes das origens da terra. Ainda não
havia abismos quando fui concebida, e ainda não havia brotado
as fontes das águas. Fui dada à luz antes que fôssem assentados
os montes, antes das colinas, quando não havia ainda nem a terra,
nem os campos, nem os primeiros elementos da poeira do mun­
do. Quando preparava os céus, lá estava eu, quando traçou
um círculo na superfície do abismo, quando fixou barreiras ao mar
para que as águas não transpusessem os limites, quando assentou os
fundamentos da terra" (Prov. 8, 22-29) . Propriamente, essas linhas
deveriam referir-se a Cristo, na aplicação que delas se faz à reve­
lação do Nôvo Testamento, porque Cristo é que é a Sabedoria
divina. Mas a liturgia retoma o texto a propósito de Maria, para
nos sugerir que ela estava presente ao olhar divino por causa
de Cristo que haveria de se encarnar em seu seio. Se no mo­
mento da criação Deus tinha em vista o Verbo feito carne, êle
o via com Maria e nela. Todo o desdobramento da .fôrça pro­
digiosa que constituía a criação do universo dirigia-se para êste
ponto minúsculo e longínquo, perdido na imensidade do tempo
e do espaço, que era a formação de uma alma imaculada. Bem
mais, é a visão dessa alma que enfeitava de certo modo a obra
criadora, que estimulava a ação divina: como a Sabedoria, Maria
"brincava todo o tempo diante de Deus" (Prov. 8 , 30), propor­
cionando continuamente novas alegrias ao seu olhar. Ela era
o prazer de sua criação, e, para ser fiel às imagens bíblicas, o
repouso a que Deus aspirava durante o seu trabalho. Dêsse mo­
do, Maria possuía o favor do Criador, e Deus, através dela, con­
cedia o seu favor a tôda a humanidade.
Maria surgia desde então aos olhos de Deus como as pri­
mícias de uma multidão de graças. E sem dúvida, a própria
graça da Imaculada Conceição só lhe foi outorgada em previ­
são dos m"éritos redentores de Jesus: Maria devia portanto a

26
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

( :ri,lo tôda a sua santidade. Mas no desenrolamento temporal,


''"11 graça da Imaculada Conceição vinha em primeiro lugar e
l•n·faciava o desenvolvimento da obra da salvação. A partir dela,
kus via derramar-se a graça, como a partir de Eva o pecado
,,.difundira pelo mundo. Ao paralelo estabelecido por São Paulo
l'lllrc Adão e Cristo, corresponde o paralelo entre Eva e Maria.
I\ falta de uma única mulher fizera abundar o pecado na hu­
lll:lllidade; a pureza de Maria haveria de propagar a santidade
divina nas almas. "Onde o pecado abundou, superabundou a graça"
( Rom. 5. 20). Se Maria possuía em si uma superabundância
maravilhosa de graça, é que essa superabundância era destinada
11 jorrar sôbre a humanidade tôda. A Imaculada Conceição anuo­
dava a expansão da graça; Deus, que via multiplicar-se o pecado,
quis o coração imaculado de Maria como ponto de partida de
uma multiplicação mais impressionante de santidade.
Segundo São Paulo, Deus decidira "recapitular" tôdas as
coisas em Cristo (Ef. 1,10), isto é, restaurar todo o universo,
colocando-o sob o domínio de Cristo e fazendo-o participar da
vida divina que nos devia merecer a redenção. tle estava resol­
vido a promover essa recapitulação, essa restauração universal,
a partir da graça inicial concedida a Maria. Saudando-a como
"cheia de graça", o anjo reconhecia na Virgem uma plenitude
que acabaria por abraçar a humanidade e o universo.
Se tôda a obra da salvação e da santificação dos homens
já podia revelar-se na graça da Imaculada Conceição, temos aí
uma prova do poder que Deus encerro? no coração de Maria.
Nessa doce e humilde Virgem, ocultava-se uma fôrça que ia
revolucionar o mundo,. conquistá-lo pacífica mas invenc1velmente.
Quando se fala de um coração de virgem, pensa-se logo em fres­
cor poético e emoções suaves. No coração de Maria havia um
grande frescor, mas era o frescor inesgotável da novidade que
a graça introduzia por ela no mundo, porque em Maria tudo
era nôvo e por ela todo o universo seria renovado; havia tam­
bém nesse coração uma emoção secreta, mas era a emoção do
amor divino que tomara posse dela e lhe comunicara uma fôrça
invencível em face de Satanás. Nada poderia deter a expansão

27
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

dêsse amor entre os homens; o coração imaculado da Virgem


encerrava uma potência e um dinamismo que a sucessão dos
séculos iria pôr em evidência, e que Deus, seu autor, contem­
plava desde tôda a eternidade.

Harmonia íntima

Depois de ter olhado, como o próprio Deus, tudo o que


há de �randioso nesse coração imaculado, tentaremos penetrar
o que ele tem de íntimo, representar-nos essa pureza de cons­
ciência de Maria e descobrir mais concretamente os efeitos da
plenitude de graça que habitava nela. Semelhante esfôrço de
penetração é mais individual a cada um de nós; olhando para
o que se passa em nossa alma, podemos supor o que devia pas­
sar-se na alma da Virgem. Se lançamos um olhar sôbre o curso
de nossa vida, devemos reconhecer que se não houvesse nêle
a mancha dos nossos pecados, o nosso passado seria incompa­
ràvelmente mais belo; se todos os nossos atos se tivessem ori­
entado por um único princípio, isto é, pelo amor de Deus, a
nossa existência apareceria como uma obra perfeitamente rea-.
lizada e unificada. Mesmo em nosso estado de pecadores, é
o amor divino que imprimiu finalmente uma direção à nossa
vida, porque se rememoramos as r.roteções da Providência e
os planos da graça, vemos como eles davam ao nosso passado
o seu sentido e dominavam os acontecimentos por uma linha
contínua. Deus levou em conta os nossos pecados e extravios,
fazendo-os servir ao seu fim; a linha tornou-se mais sinuosa, mas
não foi rompida. Em Maria a linha é inteiramente reta, porque.
o amor divino nunca encontrou em seu coração um obstáculo
a contornar. Deus jamais precisou de infletir a direção que
havia imprimido a essa vida, porque tôdas as suas ações se de­
senvolviam sob a moção da graça, e a inspiração divina governa­
va-lhe todo o comportamento, conferindo-lhe uma admirável
·

unidade.
Por isso o coração da Virgem permanecia inundado de har­
monia profunda em todos os seus sentimentos. Nunca hesitara

28
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A c o n s agra;� o

e ntre o bem e o mal, e jamais consentira na menor partilha.


Não som�nte ,O pecado jamais perturbara ou refreara o cresci­
mento do seu amor, mas também Maria jamais sofrera dêsse
desequilíbrio moral que deriva do pecado original e produz uma
inclinação especial para o fruto proibido, uma complacência
secreta no mal. Semelhante complacência nunca pôde insinuar­
se nela nem atraí-la para baixo. O seu coração não conheceu
a mordida da carne, nem a sedução das coisas inferiores que

arrasta o homem à degradação, nem o atrativo das vaidades ter­


restres que impele o- homem a encher-sé de orgulho. Satanás
nunca pôde encontrar em Maria a menor cumplicidade.
Entretanto, essa harmonia e êsse equilíbrio não isentaram a
Virgem de tôda a tentação. Se Cristo sofreu essa prova, Maria
não devia ser preservada dela. Se Satanás pôde aproximar-se
de Jesus e solicitá-lo a trair a sua missão, fêz o mesmo com
Maria. fuse coração imaculado, sôbre o qual êle nunca teve a
menor ascendência, sofreu a aproximação de sua hedionda face.
Satanás procurou introduzir nêle, sob belas aparências, seus pen­
samentos de malícia. No deserto, esforçou-se por romper o
vínculo que unia o Filho de Deus ao Pai; repetia com a pessoa
de Jesus os esforços já empregados com a pessoa de Maria: a
ela também quis desviar do Pai do céu, romper o liame que
havia formado a lma·culada Conceição; jurou perder esta alma
tão bela, e aplicou contra ela tentações muito mais violentas
do que contra tôdas as demais criaturas. Havia compreendido a
importância da luta. Quantas vêzes andou em volta dêsse cora­
ção imaculado, procurando surpreendê-lo nalguma fraqueza para
explorá-lo! Como gostaria de fazer algum arranhão naquela pu­
reza !· Todo o poder do inferno e de seu ódio desencadeava-se
contra Maria. Se a jovem ficava pensativa, Satanás procurava
seduzir-lhe a imaginação com a miragem de felicidades terres­
tres; se se alegrava, tentava insinuar-lhe idéias de grandeza ou
desejos de glória; se se afligia, experimentava sugerir-lhe o desâ­
nimo, a desconfiança na bondade divina. Compreendendo que
seria inútil tôd_a a tentação grosseira, multiplicava a astúcia em
suas solicitações e fazia-lhe as propostas mais sedutoras. Ao ver

29
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

a poderosa inteligência de Satanás decidida a abrir wna brecha no


coração dessa jovem, qualquer um ficaria aterrorizado. Mas
tôda a malícia diabólica chocava-se cada vez com um muro
inacessível. Maria limitava-se simplesmente a renovar a Deus
a integridade do seu amor, e longe de sofrer o menor dano,
refulgia mais definitivamente imaculada do que antes da ten­
tação; longe de enfraquecer, a sua união com, o Pai celeste saía
reforçada. Conquistava de nôvo a vitória completa sôbre o de­
mônio, vitória essa que havia constituído a sua concepção ima­
culada. Obtinha êsse triunfo, como se êle fôsse fácil e natural,
na simplicidade de sua adesão a Deus e no acolhimento pleno
de sua graça.
Por isso ela nunca experimentou remorsos nem arrependi­
mento. Não houve em sua vida aquelas fealdades que mesmo as
almas fervorosas devem reconhecer em si, nalgumas de suas ações.
Maria não teve de lamentar a menor frieza em seu amor para
com Deus, a menor desatenção à vontade divina. Nunca pro­
vou a tristeza de ter ofendido o Pai ou de tê-lo esquecido.
Entre o amor de Deus a ela, que era imenso, e o seu amor a
Deus, não havia nenhwna falha. No coração de Maria tudo
era amor.
De fato, era do amor que derivava a sua pureza. Às vêzes
somos inclinados a considerar apenas o aspecto negativo da
pureza, a ausência do pecado. E olhamos para a moral como
para a abstenção de determinados atos. Se admitimos outra
coisa afora essa abstenção, consideramos todavia esta como ponto
de partida, como a base sôbre a qual se edifica o resto. Primeiro
a pureza, depois o amor. Mas na realidade a pureza é uma
manifestação do amor, e é o que se realizava no coração de
Maria: era imaculado porque estava cheio de amor.
Ainda mais: a primeira fonte dessa pureza, como já o disse­
mos, não era o amor de Maria a Deus, mas o amor divino que
enchera Maria de sua graça. "Nisto consiste o amor: em não
têrmos nós amado a Deus, mas em ter-nos êle amado primeiro . "
. .

(1 fo. 4, 10) . Esta verdade enunciada por São João fôra reco­
nhecida por Maria. Se havia nela bens inestimáveis, se ela vivia
}0
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

sem cometer pecado, sabia que a causa primeira de tudo isso


era o amor que Deus lhe dedicava. Por isso apresentava a Deus
a sua pureza imaculada como uma homenagem que lhe resti­
tuía: Deus operava tudo nela, ' e portanto era a ele que cabia
o mérito da paz e da harmonia que reinavam em sua alma;

era a êle que ela devia a beleza de sua vida. Era de Deus e de

seu amor que o seu coração imaculado recebera e conservava


a existência. E nisto consistia o motivo de sua alegria. Ao ouvir
proclamar-se "cheia de graça" pelo anjo, ela se alegrara de ter
sido simplesmente uma obra divina, saída do favor gratuito do
Pai celeste, e tirava dessa visão a certeza de que essa graça ja­
mais se perderia e de que a obra divina continuaria e se compfe­
taria nela. O coração imaculado de Maria era o testemunho de
um amor que não se desmentia, o penhor eterno do amor reden­
tor e de seu triunfo sôbre o pecado.

Jl
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
'
CAPITULO 11

CORAÇÃO VIRGIN AL

A promessa de virgindade

Quando, em resposta à saudação e à proposta do anjo, Ma­


ria pronuncia uma palavra, ela dá com esta palavra o testemunho
de uma resolução extraordinária, que à primeira vista parece
opor-se aos desígnios de Deus. Solicitada a tornar-se a mãe do
Messias, ela pergunta: "Como se fará isso, pois não conheço ho­
mem?" (Lc. 1,34) . Não conhece homem, isto é, guarda a vir­
gindade, como a guardou no passado e como está decidida a
guardá-la no futuro. Isto é dito em palavras muito simples, mas
também muito convictas. Se no comêço da entrevista Maria
teve um momento de temor e perturbação, suscitada pela voz
desconhecida do anjo, ela aparece agora lúcida e firme em sua
resposta, em pleno domínio de si. Não que estivesse pronta a re­
sistir a Deus, e, como às vêzes se pretende, a sacrificar a ma­
ternidade divina para salvar a sua virgindade. Maria considera-se
uma escrava do Senhor, e conserva-se inteiramente à sua dis­
posição; ela não pretende rejeitar a proposta divina, e deixa en­
trever o seu acôrdo, perguntando: "Como se fará isso ? " Diz
"fará" e não "faria". Não duvida de que a coisa se fará, de
que· o projeto divino se realizará, mas deseja saber de que ma­
neira se consumará o fato; certa disso, interroga o anjo sôbre
o "como".
Ela fala de seu grande segrêdo, de sua decisão de perma­
necer virgem. É de fato um grande segrêdo, que os habitantes
de Nazaré e todos aquêles que a conhecem, mesmo de perto,

JJ
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

nem p odem suspeitar, pois que a vêem casada com José. Mas
ao anJO que acaba de lhe revelar o destino que Deus lhe reserva
e que, proclamando-a cheia de graça, exprimia o fundo de sua
alma, Maria pode falar de seu segrêdo como de uma coisa de
que êle está bem informado. Isso não impede que ao pronun­
ciar estas palavras: "Não conheço homem", ela tenha experi­
mentado uma intensa emoção, porque não podia fazer alusão,
com frieza de coração, àquilo que constituía a mais íntima de
suas aspirações e a mais cara de suas resoluções. Descobria ao
anjo o que havia de mais profundo em sua vida, o seu coração
devia bater com fôrça ao mostrar o que êle tinha de mais precioso.
Se neste momento ela renova a sua decisão, é que está con­
vencida de se harmonizar assim com a vontade divina. Maria
sente confusamente que a sua virgindade não terá de ser sacri­
ficada à maternidade que lhe é proposta; o problema nem se
formula e não há lugar para conflito, porq ue virgindade e ma­
ternidade, ambas fazem parte do plano divmo. Com efeito, foi
para responder a um apêlo de Deus que a j ovem de Nazaré
fizera secretamente o voto de permanecer virgem. Ela tem per­
feita consciência de só ter seguido neste domínio a vontade
de Deus. O desejo de pureza absoluta que sempre teve, a voz
interior que fê-la tomar a r�solução de viver na virgindade, a
alegria profunda que �xperimentou ao emitir êsse voto, tudo isso
só podia vir de Deus. Maria está certa disso. Eis a razão por
que tanto preza a sua virgindade: manifesta com clareza ao
anjo a sua resolução, como uma coisa sôbre a qual Qão há tran­
sigência possível, porque o próprio Deus era o seu autor e devia
tê-la levado em conta em seus desígnios.
Não é o bastante dizer que no momento da Anunciação,
Maria se lembra de um voto que emitiu e se julga no dever de
o cumprir. A j ovem de Nazaré não se guiou pela concepção
jurídica de um compromisso a executar. Ela põe em sua reso­
lução todo o absoluto e o irrevogável que se exprime nos votos
solenes, mas o faz com espontaneidade total, fora de todo o
quadro convencional, de tôda a formalidade exterior. A sua ofe­
renda era ao mesmo tempo completa e simples, sem reservas na

34
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

alma e sem limites de palavras no consentimento. Essa oferenda


era para ela-mesma a sua própria expressão.
Compreende-se desde logo a que ponto Maria se identificava
com a sua virgindade e nela encontrava as suas aspirações mais
íntimas. Dizer que era virgem, que era a Virgem, é revelar o
<lue ela tinha de mais íntimo, aquilo que lhe era mais caro. As­
sim como as outras mulheres judias achavam natural o casamento,
assim Maria achava que em seu caso pessoal a virgindade era
inteiramente normal. Esta· vocação divina arraigara-lhe tanto
na alma que já não se distinguia dela. Maria era tal como Deus
a queria, não em virtude de uma submissão um tanto forçada
que lhe teria custado contínuos e penosos sacrifícios, mas em
conseqüência de uma harmonia de todos os seus desejos e de
todos os seus sentimentos com a vontade divina. A virgindade
era-lhe ao mesmo tempo um ideal que lhe sorria e uma reali­
dade que a envolvia inteiramente.

A vi1'gindade e a espe1'a do Messias

Dêsse ideal jorrava-lhe na alma uma paz e uma alegria inexpri­


míveis. Mas se êle se realizava sem sacrifício e sem desequilíbrio,
não era todavia isento de renúncia. Ao fazer voto de vir_gin­
dade, Maria renunciara deliberadamente àquilo que constitu1a o
sonho secreto de muitas mulheres do povo judeu: cqg_t�
sias entre os seus desc�. O!"l.-.Maria não �dia estar alheia.
a êsse sonho: se houve em Israel uma mulher que experimentasse
c(:im mtens1dade o desejo de se tornar a mãe ou ao menos uma
ancestral do Messias, essa mulher era ela. Não tinha ela,, muito
mais que as outras e num grau infinitamente mais forte, a preo­
cupação do advento messiânico, e não suspirava de todo o seu
coração pela vinda daquele que devia salvar os homens ? Em
sua pureza, ela ansiava pelo momento em que os pecados da
humanidade recebessem o perdão e em que o reino de Satanás
filsse suplantado pelo reino de Deus; desepva ardentemente uma
grande santidade para o universo. Em seu amor compassivo,

'}5
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

olhava com piedade para as misérias e fraquezas humanas, e es­


perava impacientemente o dia em que Deus viesse aliviar essas
misérias e curar a lepra das almas. Anelava pela hora em que
surgisse o poder do Messias para comunicar aos homens a fôrça
do amor e mudar a tristeza em felicidade.
Ora, para apressar êsse acontecimento e preparar-se para êle,
Maria queria permanecer virgem. As outras mulheres pensavam
em preparar a vinda do Messias tornando-se mães, e isso lhes
parecia normal e natural. Maria havia seguido o caminho oposto:
sacrificava a maternidade. Por quê ? Porque havia compreen­
dido que Deus recfamava para o advento messiânico uma consa­
gração absoluta de todo o ser. :tsse acontecimento, pensava Maria,
devia ser de natureza espiritual, viria inaugurar não uma nova
dinastia temporal, mas um regime de santidade. Por isso, consa­
grando-se inteiramente a Deus, esperava contribuir de sua parte,
da melhor maneira, para a vinda próxima do Messias: estava
segura de que Deus desprezaria a sua oferenda, mas atenderia
ao seu voto secreto.
Que se recorde a maneira como São Paulo encara a virgin­
dade: um ideal que convém à vinda iminente do Senhor e à fisio­
nomia passageira de nosso mundo: "O tempo é breve", declara
êle (/ Cor. 7, 29) . Era o espírito em que Maria adotara o seu
ideal. Ela desejava viver desde já dessa vida celeste, livre dos
entraves carnais, exclusivamente atenta ao Senhor. O tempo era
breve antes da vinda do Messias, e Maria apresentava a Deus o
seu coração virginal como uma expectativa.
A Anunciação, ao mesmo tempo que satisfez essa expec­
tativa, causou à Virgem uma grande surprêsa: quando o anjo
lhe anuncia que a escolha de Deus caíra justamente sôbre ela,
acredita imediatamente, mas não compreende como poderá tor­
nar-se mãe. A resposta: "Como se fará isso, pois não conheço
homem ? " mostra que Maria considera a sua virgindade como
um obstáculo à maternidade, e que apesar disso continua ape­
gada ao seu estado virginal.
Pede pois uma explicação. Sabe que se tornará mãe, con­
forme o anúncio que acaba de lhe ser feito; sabe também gu,e

36
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

permanecerá virgem, segundo a inspiração divina que a tem


guiado desde há muito; sabe, enfim, que Deus conciliará essas
duas coisas aparentemente incompatíveis, e pergunta como. Afir­
ma uma vez mais, neste momento solene, a sua intenção de
perseverar em sua consagração integral a Deus; e no tom de
sua voz nota-se já o sentimento que se manifestará mais clara­
mente na resposta final. Mesmo e sobretudo depois de ter rece­
bido a graça de se tornar mãe do Messias, Maria deseja permanecer
no estado de pertença total e absoluta ao Senhor. Ao pronunciar
as palavras: "não conheço homem", quer testemunhar a Deus
que longe de se considerar desligada, pela notícia do anjo, de
suas obri�ações de virgindade, ela se julga ainda mais estrita­
mente presa e mais indissoluvelmente unida a elas. Se houvesse
tibieza em sua resposta ao apêlo divino, poderia ter-se apro­
veitado da ocasião para se desligar de sua promessa. Teria usado
assim do poder que lhe conferia o oferecimento de !ie tomar
Mãe do Messias. Maria, pelo contrário, entrega êsse poder nas
mãos divinas, qeclarando-se mais do que nunca consagrada a
Deus: como mãe, quer permanecer virgem, para conservar uma
união completa com Deus. Dizer: "Não conheço homem", já
equivale a insinuar; "Eis aqui a serva do Senhor". Como mãe
do Messias, Maria quer ainda permanecer escrava, e a virgin­
dade é a expressão mais radical dêsse serviço, porque coloca
êsse serviço no fundo do coração, na fonte de tôdas as afeições
e de todos os atos. Eis a razão por que Maria ambiciona tão
vivamente dar a Deus, em resposta ao seu oferecimento, uma alma
e um corpo que permaneçam na virgindade integral.

C01'ação de espôsa
Esquivando-se a fornecer desde o comêço a Maria a luz
acêrca do modo de sua maternidade, Deus queria suscitar êsse
protesto virginal. Com efeito, êle poderia explicar imediata­
mente, pela voz do anjo, o meio que estabelecera para a con­
ce.Pção . do Messias; se deixa êsse ponto na obscuridade e difere
tais esclarecimentos, é que deseja uma reação espontânea de Maria,

J7
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

uma afirmação de seu desejo de conservar a virgindade. E


deseja-a como uma declaração de amor, porque a resolução de
permanecer virgem é uma declaração de amor; por isso apressa­
se a responder imediatamente a essa declaração, anunciando-lhe
que a sua virgindade não sofrerá o menor atentado, porque só
o Espírito Santo operará nela a concepção do Messias.

A frase: "Não conheço homem" é uma declaração de amor,


e não exprime um vazio, mas uma plenitude. Se Maria se abs­
teve de todo o amor carnal é que desejava ser possuída {mica­
mente por um amor espiritual. A sua virgindade não era antes
de tudo uma abstenção, mas um entusiasmo. Maria havia de­
dicado a Deus o seu amor, e o fizera com o fervor com que
uma espôsa se dá ao seu espôso. Porque a sua união com Deus
encerrava tudo o que o matrimônio pode ter de bom e de
belo, mas na ordem espiritual, no nível da alma.
Poder-se-ia entretanto perguntar se Maria teve realmente
a idéia de dar a Deus o seu amor à maneira de uma espôsa.
Não teria ela achado por demais audaciosa semelhante idéia, e
o Javé dos j udeus não era elevado demais em relação aos homens
para que uma pequenina judia pudesse pensar em lhe oferecer
um coração de espôsa ? Antes da Anunciação, Deus não havia
dado a mínima informação :i Maria acêrca do favor que lhe
destinava; não lhe havia manifestado ainda que a amava ae uma
maneira única, que ela era a sua bem-amada, a sua escolhida entre
tôdas. Como teria a Virgem podido responder por um "sim"
de espôsa a uma oferta de amor que não lhe fôra dirigida ?
Se nenhuma revelação lhe havia dado a conhecer semelhante
oferta, Maria, entretanto, a ouvira. Porque acreditava com
tôda a sua alma na palavra de Deus tal como era transmitida
pela Escritura. Ora, pela voz dos profetas e dos autores sagrados,
Deus fizera conhecer o gênero de amor que desejava estabelecer
entre Israel e êle. Segundo as expressões de Oséias, Javé pro­
pusera aliar-se a Israel, levá-lo para a solidão e falar-lhe ao co­
tação. "Naquele dia, declarava Javé, tu me chamarás "Meu
marido" eu te desposarei para sempre; desposar-te-ei na jus­
tiça e no direito, no amor e na misericórdia; desposar-te-ei na

38
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A c o n s ag r a ç ã o

l idclidnde, e tu conhecerás Javé (Os. 2, 16-18, 21-22) . Não se


pode imaginar que Maria tenha ouvido a leitura dessas palavras
l 'roféticas sem ficar abrasada do amor divino que nelas se mani­
't'sl'avn,
. e sem reter o alcance da promessa: um dia se realizariam
t'�ses esponsais. A j ovem que queria preparar-se para êsse grande
dia, decidira oferecer a Deus um coração de espôsa. Do mesmo
1 1 1odo que no dia da Anunciação ela teve a audácia de acre­
d i l'a r na realização das palavras do anjo, assim ela tivera antes
:1 audácia de acreditar no cumprimento da profecia de Oséias;
havia tomado a sério êsse oráculo e compreendera que o ofe­
recimento dos esponsais dirigia-se a todo o Israel, e por conse­
guinte a ela também. Havia tomado consciência de que Deus
reclamava dela, como do povo judeu, um amor de espôsa. E
acreditando nesse pedido de matrimônio como acreditará mais
t a rde na proposta de se tornar Mãe do Messias, ela havia corres­
pondido com tôda a fôrça de seu coração.
A sua frase: "Não conheço homem" forma como que um
t�co da palavra de Oséias: "Conhecerás Javé". É a Deus que
Maria desejava permanecer unida. A sua atitude constituía uma
réplica a tôdas as censuras que o profeta havia dirigido ao povo:
Israel fôra comparado a uma mulher que se maculava com adul­
l'érios, porque a idolatria a que se entregava assemelhava-se a
uma fornicação. Maria ouvira essas censuras de um amor ferido
pela infidelidade. Por isso quis, em pleno contraste com os
adultérios de Israel, reservar a Deus um coração que lhe perten­
cesse totalmente, numa intimidade tão absoluta e tão fiel que
excluísse todo o afeto da carne. Tinha-se resolvido a não co­
nhecer homem, a fim de conhecer unicamente Javé e tornar-se
uma espôsa segundo o ideal divino.
Ela sabia 9ue o amor oferecido por Deus encerrava tôdas
as ternuras e toda a sedução do amor conjugal. O Cântico dos
Cânticos lhe havia revelado discretamente êsses tesouros da afei­
ção divina. Ela, cujo coração não cessara de velar, reconhe­
cera-se na voz da espôsa: "Ouço o meu bem-amado que bate.
Abre-me1 minha irmã, minha amiga, minha pomba, rmnha per­
feita . . . O meu bem-amado desceu ao seu jardim, aos canteiros

J9
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

perfumados para apascentar o seu rebanho nos j ardins, e colhêr


lírios. Eu sou do meu bem-amado, e o meu-amado é meu" (Cân­
tico, 5,2; 6, 2-3 ) . Maria comprazia-se mais no Cântico que nas
profecias que anunciavam a união matrimonial de Javé com Israel,
porque os profetas faziam sempre menção das infidelidades da
espôsa e da cólera do espôso. O Cântico, ao contrário, pintava
o frescor de um primeiro amor que não havia sofrido ainda ne­
nhuma lassitude nem a mínima desilusão: era um amor ardente
e entusiasta, todo penetrado de felicidade. Tal devia ser, com
efeito, o amor que Deus estabeleceria com os homens nos tempos
messiânicos: um amor que conservaria eternamente o seu fre5-
cor e j amais seria abalado por infidelidade. É nesse al)1or idílico,
mas infalivelmente anunciado, que Maria queria entrar por sua
virgindade.
E era êsse amor que desejava manter em seu inesgotável fres­
cor. Ao ouvir chamar-se "cheia de graça" pelo anjo Gabriel,
ela havia discernido urna saudação de amor semelhante à do
Cântico. E não queria decair das alturas dêsse amor. Outrora
Deus havia dirigido a Israel palavras de espôso que tinham muita
analogia com as palavras da Anunciação. f:le mesmo criara a
beleza de sua espôsa: "Adornei-te . . . e tu te tornaste extraor­
dinàriamente bela, e chegaste à dignidade real. O teu nome se
espalhou por entre as nações por causa da tua beleza; porque
eras perfeita, graças ao meu esplendor que espalhei sôbre ti,
- oraculo do Senhor Javé" (Ez. 1 6, 1 1, 1 3 , 14) . Mas essa es­
pôsa havia explorado essa beleza para se afastar daquele gue
a havia feito, e trair o seu espôso. " Confiaste em tua beleza . . . "
(Ez. 1 6, 1 5 ) . Maria acabava justamente de ouvir o anjo pro- .
clamar a beleza de sua alma, cheia da graça divina, e anunciar
a dignidade real de seu filho. Queria repetir a Deus que jamais
exploraria contra êle o esplendor que lhe conferia. Permaneceria
unida para sempre a êle; jamais conheceria homem algum, e
viveria na fidelidade. Ela que Deus fizera extraordinàriamente
bela e perfeita, que chamara a uma dignidade real e cujo nome
se espalharia por entre as nações, dedicava a sua beleza exclusi­
vamente àquele de quem provinha.

40
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A c o n s ag r a ç ã o

l .ln ,nulo recebeu a ratificação de sua virgindade pela con-


1 1 1 1 1 1 > � 1, .lodo anjo acêrca da intervenção do Espírito Santo, com­
J I I I I I I I k l l ao mesmo tempo que Deus havia ratificado de uma
' ' "' ' 'I 1 1 .1 l'Xt r:wrdinária o amor de espôsa que lhe havia votado.
I 1 1 1 11 1 1' 1 1 1 1 1:1 palavra que significava ao mesmo tempo a afeição
, . " l 1 1 1 1 1 1 i l d :tde de espôsa: "Eis a escrava do Senhor". Era como
1 ··1 1que as mulheres judias se apresentavam ao espôso. To-
. 1 \' , 1 ';
exemplo de Abigail, a quem um mensageiro de Davi
1 1 1 1 1 1 1 1 ,.; o

d1 1 l . 1 ra : "Davi enviou-nos a ti a fim de te tomar por mulher.


I· L1 , levantou e tendo-se prostrado com o rosto por terra,
., .

d i ·,•,,· : eis que a tua serva se tornará uma escrava para lavar os
I " dos servos de meu senhor" (I Sam. 2 5, 40-4 1 ) .
•, Obser-
1 ,1 1 1 11 1� em 'Maria êsse mesmo movimento de alma: ela recebe o
l o� v o r de espôsa, mas humilha-se e se diz uma escrava. Escrava
n t i i i O deviam ser as espôsas em Israel, mas escrava do único
J
Sl· l l ho r.
Compreendemos por aí como em Maria se alia a virgindade
,\ humildade. A Virgem não encontra em sua virgindade e no ex­
d usivismo do seu amor a Deus nenhum motivo de se orgulhar.
llrm ao contrário, a graça divina que acaba de estabelecê-la
l�spôsa de Deus num sentido todo especial e por um prodígio
único, apenas suscita em Maria uma reação de abaixamento, uma
mais profunda atitude de escrava. Ser escrava é para Maria ser
verdadeiramente espôsa. Ela julgaria não dar a Deus todo o afeto
de que o seu coração era capaz se não se dedicasse inteiramente
ao seu serviço. Na palavra "escrava", exprimia-se o absoluto
do seu amor.
Essa palavra atesta igualmente a discrição de Maria nas efu­
sões do seu coração. Porque quando lhe atribuímos um amor de
espôsa, realçamos o que permanecia oculto em sua alma, o que
ela sentia sem o exprimir. Se, de um lado ela ouvira as expres­
sões do Livro Santo acêrca de Javé e de seu povo, de outro lado
ela via que a sua intimidade com Deus ultrapassava tôdas essas
expressões, notadamente as do Cântico dos Cânticos, que não
haviam perdido todo o seu sabor carnal. O matrimônio apre­
sentava · um quadro por demais imperfeito do pensamento gue

41
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

devia sugerir uma realidade mais elevada. O amor virginal trans­


formava em sua pureza os sentimentos da afeição conjugal, a
ponto de estabelecê-lo numa outra ordem e dar-lhe um significado
que os têrmos habituais de amor humano eram impotentes para
traduzir. Ser espôsa, não passava ainda de uma imagem, e Maria
experimentava em seu coração virginal um amor que se aproximava
e ao mesmo tempo diferia profundamente do amor humano; é
êsse o motivo por que só faz alusão a êle com grande reserva
e humilde pudor.

Ideal de perfeição e alegria

Assim, a virgindade não está aquém do matrimônio, mas


além. No coração virginal de Maria havia tôda a riqueza e tôda
a beleza de um amor de espôsa, transposto todavia a uma esfera
superior e levado ao seu pleno desenvolvimento. A virgin­
dade torna possível e realiza o que o amor conjugal persegue
sem poder atingi-lo: um dom de todo o ser que termine por
uma união sem reserva. No fundo do amor humano, com efeito,
oculta-se êsse desejo de uma união integral, de uma fusão das
pessoas em que cada uma procura abandonar-se completamente
a outra, dilatar-se sem medida e receber o seu dom. O amor é
inspirado e trabalhado por essa intimidade, e êle a queria numa
pureza transparente, de tal modo que essa unidade constituísse
verdadeiramente um ideal sob todo o ponto de vista. Mas êsse
ideal está acima de suas possibilidades: o amor conjugal não con­
segue atingi-lo. Mesmo quando não se desvirtua com pensamentos
carnais, quando procura elevar-se na pureza, não consegue esta­
belecer a sonhada fusão total das almas. As pessoas per­
manecem em certa medida fechadas uma à outra; unem-se
sem se revelar mutuamente tôdas as suas profundezas. Ora, o
que não é possível nas pessoas humanas, pode realizar-se nas
relações da alma com Deus. A Deus a alma pode dar o fundo
de si mesma, tudo o que tem de mais íntimo, e que lhe é
impossível abrir completamente a u m ser humano. A virgem

42
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A co n s a g r a ç ã o

,. ,,qucla que dedica a Deus a sua capacidade integral de amar,


1 udos os recursos de seu coração, formando com Deus uma
11 11i1l11 de todo o ser. Ela realiza essa fusão ideal em que dois
'•'' n·� se dão sem reserva, porque Deus lhe comunica a sua vir­
' 111k, êlc que foi o primeiro a oferecer-se para semelhante união
, '' ela chamou a alma; nessa união, tudo o que é carnal é
,,uhrc \mj ado, e portanto já não há a barreira da carne para lhe
.

I I I I J ICl ir a integridade; porque mesmo quando quer contribuir


j lil ra a fusão das almas, a carne dá provas de tal pobreza e
111suficiência, que esfria o fervor do verdadeiro entusiasmo. Já
n:ío há tampouco a barreira constituída pela imperfeição do outro,
porque é ao Ser perfeito que a alma se dá. Uma espôsa deve
11n�irar os defeitos de seu marido, e sobretudo a imperfeição ra­
dkal que faz com que o espôso não corresponda e nem possa
l'orresponder, como criatura e como pecador, ao ideal esperado;
11 virgem só encontra no espôso divino, uma perfeição, e uma
p erfeição sempre mais elevada do que a que ela sonha. Por
1sso nunca tem motivo para reter ou retirar algo do dom de
si-mesma: é convidada e atraída a unir-se sempre mais comple­
tamente a Deus. E realiza nessa união o ideal secreto de seu
co ração: p epencer inteiramente a um ser que lhe pertence total­
lllcnte. O amor virginal atinge na união aquêle além que o
umor conjugal busca sem poder obtê-lo.
Em Maria, êsse ideal do amor virginal verificou-se sem ne­
nhuma restrição. Jamais uma pessoa humana conheceu um amor
fervoroso como o da Virgem, jamais realizou a tal ponto a
nspiração de todo o amor, a união absolutamente pura e integral
com o ser amado. Nas profundezas mais íntimas de sua ,alma,
Maria estava aberta a Deus, unida a êle, e recebia sem limite o
dom que Deus lhe fazia de si-mesmo. Era um amor tão profundo
llue as suas expressões exteriores não passavam de um pálido re­
flexo; mais do que em palavras, Maria traduzia na vida esse amor.
Convém portanto que não nos deixemos enganar pela sim­
plicidade de Maria e por seu silêncio. Essa simplicidade oculta
um fervor e um entus1asmo pouco comum; êsse silêncio encobre
uma extraordinária atividade. Nenhuma eloqüência celebrou as

4J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

maravilhas de seu amor, mas essas maravilhas existem, e o amor


virginal desenvolveu ao máximo as suas virtudes afetivas.
Reuniu perfeitamente em si o que o mundo procura disso­
ciar: a santidade e o amor. Aos olhos de muitos, a santidade
apresenta-se com uma fisionomia severa ou aborrecida, que causa
repulsa ou indiferença, enquanto que o amor representa uma rea­
lidade cheia de encantos. Na alma de Maria a santidade teve o
encanto e a sedução do amor, e o amor comportava a substância
sólida da santidade. Tal é o ensinamento vivo que constitui para
nós a alma da Virgem: a santidade, que consiste em se dar a
Deus, é o verdadeiro amor que satisfaz o coração humano.
Maria cresceu nesse amor; procurou nêle a sua alegria e a
encontrou. Viu por experiência que o amor de Deus dá o que
promete. Porque se há austeridade para o coração de uma j ovem
em se reservar unicamente para Deus, a felicidade que resulta
necessàriamente dêsse amor indeniza-a amplamente de seu sacri­
fício. O amor humano dá muitas vêzes menos do que faz esperar:
depois de ter deslumbrado, desaponta. Mas o amor virginal traz
sempre mais do que dêle se espera. Deus não decepciona; êle
aparece melhor no fim do que no comêço, e se prepara alguma
surprêsa, é para tornar mais patente a extensão de sua genero­
sidade, que ultrapassa sempre o limite dos nossos desejos. Não
só não há nenhuma falha em Deus, em seu poder e em seu amor,
mas a sua plenitude comunica ao coração que se prende a êle
um inesgotavel enriquecimento. Desde o primeiro instante de
sua existência, Maria fôra cumulada da plenitude da graça; en­
tretanto, essa plenitude revelava-se progressivamente a ela num
crescimento contínuo, e Maria surpreendia-se cada dia por des­
cobrir novos tesouros em seu amor. Cada dia, também, devia
repetir a si-mesma que tivera razão de consagrar a Deus a sua
virgindade, e que essa consagração era-lhe para a alma uma fonte
sempre nova de felicidade, à qual nenhuma alegria humana podia
ser comparada. Se Maria se mostra tão firme em face do anjo
na afinnação de -seu propósito de virgindade, é que ela havia
renovado continuamente essa resolução com um fervor entu­
siasta, a ponto de identificar a sua vida com o seu amor virginal.

44
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A c o n s agra ç ã o

Amor e ternura

Como tôda a criatura, Maria tinha necessidade de ternura.


Tinha necessidade de amar e de ser amada. Decerto sabia que
, , amor não se confunde com a superfície sentimental do indi­
v iduo, com o fluxo e o refluxo das impressões e dos sentimentos,
1 1 1as é essencialmente uma disposição mais profunda, que consiste
{�111 querer amar, em querer o bem daquele que se ama. E toda­
via ela compreendia que o amor só desabrocha plenamente quando
ucompanhado de um sentimento, que lhe serve ao mesmo tempo
de expressão e de apoio: de expressão, porque o amor quer ma­
nifestar-se a fim de tomar posse mais àvidamente de todo o ser
amado; de apoio, porque se alegra com a afeição sentida. Ora,
{'SSa ternura do sentimento, Maria experimentou-a em seu amor
virginal. Consideradas as coisas do exterior, poder-se-ia pensar
que renunciar ao amor humano equivale a renunciar à ternura.
I )cus não é aquêle que se acha essencialmente distante ? Mesma
em sua presença, êle permanece ainda longínquo e como que
ausente, por que a sua presença não pode ser percebida pelos
sentidos. Ora, não exige a ternura uma presença sensível, um
ser que se se possa ouvir e tocar ? Nada parece mais oposto à
ternura do que a abstração, e um ser de cuja existência se fala
mas de quem não se pode aproximar como uma pessoa visível,
parece que só poderá provocar um interêsse impregnado de frieza.
Maria aprendeu por experiência de sua virgindade, que na verdade
{� hem diferente o que se passa. Não há amor em que o calor
d:t presença amada seja mais vivamente sentido do que o amor
virginal. Com efeito, o que é essa presença desejada por todo o
:tmor ? É na realidade menos uma presença ao alcance dos sen­
tidos do que uma presença à alma, uma presença espiritual. Se
:t presença sensível é desejada é porque ela manifesta a presen_ça

de uma pessoa. Ora, essa presença espiritual do ser amado veri­


fica-se no mais alto grau na alma da virgem em que Deus habita,
oferecendo-se ao amor que lhe é dedicado. Nenhuma presença
poderia ser mais intensa do que essa. Eis a razão por que Maria,

45
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

mais que tôdas as demais criaturas, possuía a presença amada,


porque, mais do que tôdas elas se tinha consagraào a Deus: desde
antes da Encarnação a presença divina habitava nela. Num co­
ração aberto de par em par, Deus podia entrar com a riqueza infi­
nita de seu ser.
Essa presença divina fazia-se sentir. Maria acreditava nela,
mas a sua fé era fortalecida pelo sentimento CJ_Ue tinha de estar
unida a Deus. Em certos momentos, Deus deixava-a entrever a
imensidade de sua ternura: a sua alma enchia-se repentinamente
de calor, e Maria sentia o quanto Deus era amável e atraente,
quanta alegria inefável representava a sua proximidade, alegria
impossível de ser exprimida em linguagem humana. Se ela não
fôsse extremamente comedida e discreta em suas atividades ex­
ternas, teria manifestado com entusiasmo o excesso de sua feli­
cidade. Essa grandeza de Javé, gue os profetas haviam descrito
em seus cantos, Maria reconhecia-a presente no fundo de sua
ahna, e descobria na experiência de seu amor tôdas as maravilhas
que êles haviam anunciado. O que ela apreciava particularmente,
é que êste fervor ardente não violentava de modo algum a sua
espontaneidade, porque era acompanhado de suavíssima doçura;
tudo se passava com uma delicadeza extrema e tratava-se sim­
plesmente de se abandonar. a essa suavidade. Maria discernia
nessa doçura como nesse ardor o infinito do amor divino.
O amor virginal de Maria conhecia portanto momentos de
enlêvo, em que a ternura de Deus lhe penetrava no mais íntimo
da alma. Mas os momentos de extraordinária felicidade afetiva
escoam-se ràpidamente. São como que relâmpagos que ilumi­
nam um instante o horizonte exterior e depois tudo recai numa
certa obscuridade. O arroubamento não enganou a alma: nesses
momentos, Marias sabia que o que ela experimentava correspondia
à verdade; a presença divina tem mais encanto do que os senti­
mentos humanos poderiam manifestar. Mas habitualmente essa
presença se oculta, e a Virgem via-se às mais das vêzes num estado
de alma sereno, em que as suas afeições já nada tinham de êxtas_e.
Entretanto, mesmo nessa serenidade havia - qual uma lamparina
de sacrário - a intuição secreta da presença divina: essa presença

46
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A c o n s ag r a ç ã o

continuava a ser sentida, mas de outra maneira. Maria sentia-se


envolvida pelo amor divino. Tal era a atmosfera, o clima de
sua vida. No fundo do seu coração havia um acôrdo com Deus,
uma paz fundamental sôbre a qual se edificava todo o resto. O
seu amor fornecia-lhe como que um lugar de repouso, com uma
satisfação obscura da divina presença. E tôda a sua atividade
emanava dêsse fundo oculto de sua alma, onde Deus estreitava
com ela o seu amor e fazia reinar sua paz e seu repouso. Maria
não cessava de perceber a intimidade que a unia a Deus, mas
como um último plano de todos os seus pensamentos e de tôda a
sua atividade. Deus era o companheiro de sua vida; ela não tinha
necessidade de o olhar a cada instante para ter consciência de que
êle estava perto dela, como precisamos olhar um companheiro
de viagem para saber que êle caminha ao nosso lado. Assim o
sentimento de que Deus a amava, a acompanhava, era semr_re
vivo na alma da Virgem. �sse sentimento mais ou menos oculto
na penumbra da consciência, desempenhava um papel muito im­
portante p.a psicologia de Maria; mantinha-lhe o espírito atento
11 Deus, e lembrava-lhe sem cessar que o seu amor virginal orien­

tava tôdas as tarefas de sua existência.

Amor e provação

Longe de ser um motivo de frieza a virgindade constituía


l�lll Maria uma fonte de ternura sempre pronta a derramar-se.
M as esta ternura teve as suas provações. Temos falado dos mo­
l llentos de alegria extraordinária, de exuberância interior, e do
l�stado de alma mais comum e mais sereno de uma presença divina
obscuramente sentida. Em certos períodos de perturbação, de
desolação e de desgôsto, Maria experimentava os tormentos da
n usência. Tinha como que a impressão de que Deus se afastava
dela, abandonando-a a si-mesma. Com grande temor, verificava
que nada em seu coração já lhe falava do Ser amado, que a sua
presença parecia ter-se dissipado. Um vazio terrível cavava-se
l' l l l sua alma. Cessara a vida íntima: nada mais havia do que

17
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

inércia e morte, uma apatia que nada podia despertar. O Cântico


dos Cânticos havia descrito a angústia da bem-amada ao perder
o seu bem amado: "Procurei-o, e não o encontrei; chamei-o
e êle não me respondeu". Maria recordava-se de ter ouvido ler
a invocação dirigida às filhas de Jerusalém: "Conjuro-vos, filhas
de jerusalém, se encontrardes o meu bem-amado, o que lhe di­
reis ? . . . Que estou enfêrma de amor". E em resposta vinha a
pergunta: "O que tem pois o teu bem-amado a mais do que os
outros, para que nos conjures dêste modo ?" (Cant. 5, 6, 8, 9).
De fato é esta a pergunta que são sempre tentadas a fazer as
testemunhas de um amor: por que amar de preferência tal pessoa,
por que colocá-la mais alto do que tôdas as outras? Mas essa
pergunta que se faz no amor conjugal relativamente à escolha
feita entre pessoas humanas, já não se justifica no amor virginal,
em que a escolha recai sôbre Deus de preferência ao homem.
Na virgindade, a preferência do coração é bem fundada, e o ama­
do tem algo a mais do que qualquer outro. Maria poderia ter
respondido como a espôsa do Cântico: "As suas palavras são cheias
de doçura, tudo nêle é encanto" ( Cant. 5, 1 6 ) . Ela conhecia
por experiência o encanto da presença divina e a doçura de suas
palavras. Mas neste momento ela só encontrava no Cântico um
reflexo longínquo de seu es�ado. Havia admirado o frescor poé­
tico do Cântico, no qual Deus quisera sugerir o sonho de amor
que havia concebido e que realizaria um dia com Israel. Entre­
tanto, parecia-lhe ver nessas expressões de fervor e mesmo nesta
angústia da ausência do bem-amado um estado invejável em com­
paração com a dor profunda em que se encontrava. As palavras
do bem-amado e da bem-amada comoviam-na e a enchiam de
admiração, mas nunca pensara que a dor de perder o amado
fôsse a que ela experimentava agora, êste sentimento de uma alma
abandonada, em que só há solidão e ausência. Seria isto, esta
impressão de abandono, esta espécie de insensibilidade ao amor,
que queria significar o episódio do Cântico? Maria começava
a entrever o realismo daquilo que se apresentava como uma des­
crição poética da fuga do amado: já não sentir em si a prese�ça
'
de Deus, procurá-la sem a encontrar, chamá-la sem receber res-

48
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A c o n s agra ç ã o

j 'l l'ol : t , e reconhecer-se desprovida subitamente de tudo o que


l l i t uía o encanto e o sustentáculo da vida, enfim, perder o
1 l l l'•

•l j ll ti o em que a alma pusera tôda a esperança, a fonte de que


1· • l 'l'l':tva tirar tôda a alegria. Experimentar semelhante tormento
1 1 1 1 ra passa a impressão que possa causar qualquer descrição, e
i\ l .1 ria, que havia dedicado a Deus tôda a sua afeição, sofria
l l ll l'I\Samente quando surpreendida por êste vazio. Tanto o amor
1 i rginal havia desenvolvido a sua ternura em plenitude, quanto

11 k s e sentia torturado na secura; tanto êle havia afinado os sen-


1 i n 1entos de Maria, quanto se transformava em dor profunda nes­
�l'S momentos de trevas.

O que havia ela feito para sofrer semelhante eclipse dos


favores divinos ? Os profetas que haviam falado de uma união
1 11:1trimonial de Javé com Israel sublinharam que Deus havia reti­
rado momentâneamente ao seu povo o favor que lhe havia con­
cedido, porque o povo se enveredara pelo caminho do pecado
c se tornara culpado de adultério. Era essa a razão por que a
cólera havia sucedido à ternura. Maria sabia muito bem que
não havia desagradado a Deus e que não podia haver uma ma­
nifestação de cólera divina nessa ausência que experimentava no
fundo da alma. O Cântico falava dessa ausência momentânea
mesmo num amor em que não havia a menor infidelidade, em
que a bem-amada não merecia nenhuma censura, pois fizera tudo
o que estava ao seu alcance. De fato, o seu coração estava vigi­
lante e ela se apressara em abrir a porta ao amado: "Abri ao
meu bem-amado, mas êle já se tinha ido, já havia desaparecido"
(Cant. 5, 6). Não podia portanto tratar-se de uma falta da es­
pôsa, e todavia fôra-lhe infligida uma grande angústia. Não queria
Deus ensinar com isso que mesmo à espôsa inteiramente fiel,
à virgem absolutamente pura e perfeita, êle subtrairia por vêzes
a sua presença e imporia os tormentos do isolamento ? Se houve
nesse amor ideal descrito pelo Cântico essa perda do espôso,
ela devia realizar-se também no amor ideal que unia Maria a
Deus. A virgem apercebia-se de que não havia nisso esfriamento
de D�us a seu respeito, nem o menor sinal de reprovação. E
esforçava-se de tôda a sua alma por manter bem vivas a sua fé

49
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

e a sua confiaça, por continuar sem fraqueza a acreditar naquilo


que já não podia perceber. Ela se apegava à presença divina,
que, a despeito de suas impressões, queria reconhecer ainda na
ausência, e punha tôda a fôrça de vontade de que era capaz em
oferecer a Deus o seu amor. Nesses momentos de desamparo,
o seu coração virginal dava provas de uma admirável firmeza;
não abandonava o seu fervor, mas mudava-lhe a forma. Maria
amava a Deus de modo diferente, sem o sentir; mas não o amava
menos.
A escritura esclarecia-a ainda mais acêrca do significado des­
sas horas desoladas. Por que enviava Deus êsse sofrimento à
alma que êle mais amava, sem que houvesse infidelidade alguma
de sua parte ? A resposta não estava formulada no Cântico, que
se limitava a descrever a angústia da bem-amada; mas Maria
encontrava-a instintivamente ao lembrar-se das declarações dos
profetas. O povo de Israel desviara o seu coração de Deus e
se entregara a vergonha do pecado; abusara do favor recebido
para agir segundo as suas próprias vontades, como uma mulher
abusa de sua beleza para proceder mal. Os Livros Santos estavam
saturados da narração dessas infidelidades do povo eleito. Maria,
que se tinha por espôsa de Deus, assim como todo o Israel o
era, considerava-se também solidária com os pecados dêsse povo.
Inteiramente fiel, ela se julgava ligada às terríveis infidelidades
do passado e do presente. Compreendia que essas faltas mere­
ciam a cólera de Deus, que elas justificavam o abandono de
Israel por Javé. Mas ela, a inocente, carregava-se também dessas
faltas. Desejava tomar sôbre si as conseqüências do mau pro­
cedimento do povo, e em sua pureza integral, pensava que não
devia eximir-se das conseqüências desastrosas de nenhuma falta,
por mais abominável que fôsse. Quando sofria a ausência de
Deus, adivinhava instintivamente que recebia essa provação pelos
pecados de Israel, porque êsses pecados haviam merecido o aban­
dono divino. E ela se alegrava finalmente de poder oferecer
êsse tormento da ausência pela massa inumerável dos pecadores.
Compreendera dêsse modo o valor social da desolação que sentia
em seu coração virginal: era o :;ofrilllç:nto que 9 povo havia

50
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A consagração

1 1 1crccido por suas más ações e que ela acolhia em espírito de


•,olidariedade. O vazio interior e a angústia de sua alma tomavam
lll:la um sentido de redenção e de expiação, e desempenhavam
:l'óim o papel que Deus lhe reservara em seu plano de salvação.
Nessas provações, Maria aprofundava a razão de ser de sua
vi rgindade e compreendia cada vez melhor que o seu amor vir­
ginal não era somente um vínculo de intimidade entre ela e
I >cus, mas ao mesmo tempo uma missão em favor da humanidade.
M ais tarde, Jesus apresentará a virgindade voluntàriamente esco­
lhida como um estado de vida particularmente apropriado aos
tempos messiânicos. Falando aos seus discípulos, êle visará dire­
t amente o caso dos homens que decidem viver numa castidade
completa. Mas o princípio vale tanto para os homens como
para as mulheres: Jesus louva aquêles que quiserem seguir êste
caminho "por causa do reino do céu" ( Mt. 19, 1 2 ) e acrescenta
que nem todos podem compreender esta palavra. Maria a com­
preendera, e tivera consciencia de haver dedicado a Deus o
seu amor "por causa do reino do céu", não só para entrar nesse
reino, como também para favorecer o seu estabelecimento uni­
versal na terra. Por isso as provações de seu coração que pode­
riam parecer uma coisa insignificante, tomavam a seus olhos um
alcance muito mais vasto. Era uma repercussão, em sua alma
tôda límpida, dos pecados da humanidade, cujo pêso queria tomar
sôbre si, e era um passo a mais para o perdão prometido e para
o advento de uma nova era. Pela própria historia de seu amor
virginal Maria aprofundava o papel do sofrimento; percebia que
sendo virgem, devia ser mais provada que os outros, recolher
mais dor em seu amor porque se achava ligada mais diretamente
ao desígnio redentor de Deus.
Por essa razão, o amor virginal, que havia isolado Maria
dos homens, unia-a a êles numa solidariedade mais profunda.
Era em favor da humanidade que Maria se conservava virgem;
ela oferecia pelos pecadores todos os sacrifícios implicados em
seu amor, notadamente o tormento que sofria cada vez que já
não percebia a presença divina e que Deus parecia tê-la aban­
donado. Essas provações, que a aproximavam dos homens pelos

51
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

quais as oferecia, aproximavam-na igualmente de Deus. Porque


na angústia redobrava-se o seu fervor, e no abandono, a sua fide­
lidade afirmava-se com mais vigor. Por isso, ao sair dêsses mo­
mentos penosos ela se achava mais abrasada de amor do que
antes. Saboreava tanto mais vivamente o encanto da intimidade
com Deus quanto mais sofrera a sua privação. Seu amor tornava-se
mais forte, sua união mais completa.

Amor virginal, preparação


para a maternidade

tste amor virginal que não cessava de se desenvolver e de


se consolidar, tornava Maria sempre mais sedutora aos olhos de
Deus. Porque se a virgem havia sentido, mais do que nenhuma
outra criatura, a sedução de Deus, a reciprocidade era igualmente
verdadeira. Conviria falar do encanto que Maria exerceu sôbre
o próprio Deus ao longo de tôda a sua vida. É claro que Deus
podena permanecer frio e inacessível em face de todo o encanto
de sêres inferiores a êle, porque é o senhor absoluto; mas era
livre também de se interessar pela beleza das almas que êle havia
criado. Escolheu êste último caminho. Ora, o que constitui a
seus olhos a beleza de uma alma, é o fervor de seu amor. Se
os homens se revelam muito sensíveis a todo o testemunho de
afeição, e se sentem atraídos para aquêles que lhes manifestam
simpatia, Deus, que quis ser verdadeiramente amado, não é me­
nos pronto em se comprazer na alma que vem a êle com entu­
siasmo. Tendo amado Maria mais do que tôdas as criaturas,
esperava igualmente dela um amor mais ardente que a de qual­
quer outra; e quando viu a espontaneidade e o frescor do amor
virginal com que Maria lhe dedicava todo o seu coração, como
não a teria contemplado com um redobramento de alegria ? Maria,
em sua simplicidade, ignorava o encanto que a sua alma vir­
ginal exercia sôbre Deus, assim como muitas almas ainda hoje
não sabem a que ponto a sua virgindade agrada ao Senhor; na
realidade, ela possuía o coração de Deus, e já como virgem adqui­
rira uma onipotência sôbre o Todo-Poderoso.

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
A c o n s agra ç ã o

É preciso evocar essa irradiação de Maria para compreender


a cena da Anunciação. O anjo diz a Maria que ela achou grasa
diante de Deus e que vai conceber um Filho. Se ela achou graça
diante de Deus, foi sem dúvida em virtude da decisão soberana
do Criador, que a elegeu por uma escolha inteiramente gratuita.
Mas esta escolha j á fizera de Maria, no momento da Anuncia­
ção, uma criatura perfeita, cheia da graça divina. Vendo a be­
leza dessa alma, o Pai eterno deseja que o seu Filho nasça de
Maria, a fim de que em seu rosto de homem Cristo traga os
traços de uma tal beleza e herde o frescor de uma tal sedução.
O encanto da Virgem deve ser herdado pelo Messias: é o que
o anjo acaba de pedir a Maria da parte de Deus.
Em seu amor virginal, Maria, sem o saber, tinha-se prepa­
rado para a maternidade. Antes da Anunciação, sabia que a sua
virgindade não ficaria sem fruto, porque confiava que a sua con­
sagração total a Deus iria contribuir, na medida de suas possi­
bilidades, para a instauração do reino messiânico; sabia igual­
mente que todos os sacrifícios que lhe eram pedidos comprova­
vam o seu amor virginal e representavam a sua colaboração na
expiação dos pecados do mundo. Essa fecundidade invisível de
sua vida, não lhe passava despercebida. Mas nunca pensara q�e
cultivando nela um amor de virgem Deus a formasse para a
maternidade. E no entanto, quanto mais ela crescia nesse amor
ideal, tanto mais realizava com plenitude a pessoa da virgem,
e tanto mais anunciava a pessoa de Cristo. É que a virgindade
é uma consagração que torna a alma semelhante a Deus e im­
prime traços divinos numa fisionomia humana. De fato, quando
Deus possui uma alma que se abandonou livremente a êle, co­
munica-lhe as linhas de sua própria perfeição e faz dela um
reflexo puro e límpido de sua beleza. Como virgem, Maria
recebia em sua fisionomia de mulher traços divinos, aquêles tra­
ços que numa fisionomia de homem refletiriam os do Filho de
Deus.

5J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
SEGUNDA PARTE

O DESENVOLVIMENTO

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O DESENVOLVIMENTO

A consagração do coração virginal e imaculado de Maria


deu lugar a um desenvolvimento que atingiu a sua plena pro­
porção no mistério de sua maternidade. Considerando êsse
desenvolvimento, penetraremos na profundeza essencial dessa alma
privilegiada entre tôdas, e compreenderemos a significação de seu
destino, pois que nela tudo foi disposto em vista de sua missão
de Mãe do Verbo encarnado.
O título de Mãe de Deus foi proclamado solenemente pela
Igreja no Concílio de Éfeso, para a alegria do povo cristão que
não deixou de manifestar logo o seu entusiasmo. :me exprime a
grandeza surpreendente de Maria, criatura tornada mãe do Cria­
dor. Que uma mulher possa ser a mãe do r,róprio Deus, eis um
assunto de inesgotável assombro para aqueles que vivem num
mundo cujo limite e fragilidade experimentam a cada instante,
e que sentem a sua própria fraqueza e caducidade. Um ser hu­
mano semelhante a êles ultrapassou êsses limites, recebendo a
Deus por filho; e a pequenez humana se viu com isso dilatada
ao nível da grandeza divina. Podemos admirar e louvar indefi­
nidamente êsse fato grandioso; mas o nosso objetivo consiste em
tentar compreender o que êle operou na alma da virgem e como
esta grandeza se traduziu em seus sentimentos e em sua conduta.
Devemos considerar a maternidade divina no coração de Maria.
Para estudar e compreender êsse coração materno podería­
mos aplicar-lhe a psicologia de tôda a maternidade humana. Di­
ríamos da Virgem o que se pode afirmar de tôda a mãe que tem
consciência de sua missão e procura desempenhá-la o melhor pos­
sível; sublinharíamos em seguida que essa afeição e êsse devota-

57
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

mento materno tinham como objeto o Filho de Deus, e impli­


cavam por isso um mistério. Semelhante estudo não laboraria
em êrro, porque Maria é mãe, e o é da maneira mais integral
e mais perfeita; é legítimo, portanto, reconhecer tôda a riqueza
do amor maternal. Mas o quadro seria fundamentalmente insu­
ficiente, e faltaria mesmo nêle o essencial da maternidade de Maria,
porque essa maternidade não implica somente um mistério; ela
mesma é um mistério. Situa-se num nível superior, sobrenatural,
muito acima de uma maternidade comum. Ela não tem somente
o caráter excepcional de unir Maria ao Filho de Deus, mas esta­
belece entre a mãe e o filho um vínculo bem diferente daquele
9ue une uma mãe a um filho. É a natureza da maternidade que
e transformada. A Virgem possui um coração maternal diversa­
mente constituído, que sublima tôda a riqueza de afeição em atos
e sentimentos propriamente religiosos. Em Maria, a fisionomia
da maternidade é transfigurada e a intimidade do coração ma­
terno toma uma profundeza até então desconhecida, que vai muito
além de tôdas as profundezas instintivas.
Como é transformada em Maria a natureza mesma da ma­
ternidade ? Tôda a alma se encontra implicada e comprometida
na ordem sobrenatural, porque Deus a eleva acima da simples
natureza humana a fim de estabelecer com ela relações verda­
deiramente pessoais, relações · da mais absoluta intimidade, em que
êle quer entregar-se a ela com tôda a sua divindade e em que
requer um dom total. Ora, em Maria essas relações pessoais
com Deus e a sua maternidade constituem uma só e mesma coisa,
porque as relações da mãe e do Filho são ao mesmo tempo as
relações da criatura com o criador. A intimidade que a Virgem
mantinha com o seu Filho, é idêntica à intimidade de uma alma
com o seu Deus. O amor materno reveste-se pois fundamen­
talmente, em Maria, de uma qualidade sobrenatural e estabelece­
se num plano infinitamente mais elevado do . que o do simples
afeto de uma mãe ao seu filho.
Deve-se acrescentar além disso que n� coração maternal
de Maria, as relações da alma com Deus atingem o seu ponto
culminante. Se a maternidade é ultrapassada pela realidade sobre-

58
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

1 1 .11 1 1 1':1 I, esta encontra no amor maternal um terreno particular­

l l ll'lllc lropício que lhe permite desdobrar-se ao máximo. Maria


1 '' 11 k Jar-se mais totalmente a Deus porque ela pode dar-se a
1\ k da maneira como uma mãe se dá ao seu filho; tôda a fôrça
dt· Sl�ll amor materno vem apoiar-se em sua consagração ao Senhor.
( ) n>ração maternal da Virgem marca o apogeu da intimidade
du u lma humana com Deus.
Por isso não se pode dissociar a afeição maternal da Vir­
f(l'lll de sua devoção, e não se pode considerar o seu coração
1 1 1:11 c rnal, sem estudar a vida sobrenatural que o anima, a sua
vida de fé, de esperança e de caridade. Mãe de Deus, Maria o
,. verdadeiramente pela fé, pela esperança e pela caridade, vir­
l udes estas que formam tôda a vida cristã e unem a alma ao
Senhor. É um nível incomparàvelmente elevado o dessa ma­
l crnidade, mas convém não se esquecer de que por ela a Vir­
gem se aproxima de nós, de que ela se torna mais semelhante
� vida de cada cristão: se o liame fundamental da maternidade
divina se uniu nessas virtudes, não nos parece êle logo bem se­
melhante ao que nos une a Deus? E não encontramos na mater­
nidade divina um parentesco com a nossa situação ordinária de
cristão ? Compreendendo a admirável profundeza sobrenatural
do coração de Maria, compreenderemos melhor a profundeza
insondável da vida de intimidade com Deus a que somos cha­
mados, nas pegad:>s Fia Virgem.
O que há de único na maternidade da Virgem, é pois, de
certo modo, o que ela tem de comum conosco. E isso já nos
indica que essa maternidade divina, tão elevada, foi conferida a
Maria para nós, e que a intimidade privilegiada da Virgem com
Deus foi estabelecida de tal maneira que possamos participar de
seus benefícios. Maria tornou-se mãe de Deus em vista de nossa
salvação, e nessa maternidade ela já começou a realizá-la. Em seu
coração maternal produziu-se o nascimento da vida propriamente
cristã; a fé, a esperança e a caridade, que lhe animavam a mater­
nidade, foi a primeira experiência cristã realizada. Essa vida e
essa experiência Maria as teve em nosso nome e por todos nós.
O reino de Deus não havia sido ainda pregado por Cristo, e

59
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

a Igreja não fôra ainda fundada, e já no coração da Virgem


se estabelecia êsse reino; a pureza e a santidade da Igreja aí
se formavam. Assim como o corpo maternal de Maria servia
de morada ao nosso Salvador, antes que êle nos trouxesse a sal­
vação, assim o seu coração maternal serviu por assim dizer de
asilo à Igreja antes de sua fundação propriamente dita. Num
sentido muito verdadeiro, pode-se afirmar que o coração ma­
ternal de Maria, foi, antes da vida pública de Jesus, o próprio
coração da Igreja, e em seguida continuou a simbolizá-lo.
Contemplando o coração maternal da Virgem, remontamos ao
bêrço da vida cristã. Para compreender inteiramente uma rea­
lidade viva, é mister procurar a sua fonte. Estudando a mater­
nidade de Maria, bebemos na fonte da fé, da esperança e da ca­
ridade, e descobrimos mais vivamente o seu significado. Sur­
preendemos o ideal cristão no momento mesmo de seu nas­
cimento, no frescor intato e puro de seu primeiro jato.

60
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPÍTULO III

CORAÇÃO ANI MADO PE LA FÉ

"Bem-aventurada tu, que crêste I"

Maria é a mãe na fé, e o é a tal ponto que a felicidade


de sua maternidade divina se prende à sua fé. Seríamos tentados
a estimar que tôda a felicidade de Maria lhe vem da dignidade
de Mãe de Deus, e que a sua grandeza é uma simples conse­
qüência da grandeza de seu Filho. Mas aos olhos de Deus não
acontece assim: a grandeza e a felicidade de Maria acha-se, sem
dúvida, em sua maternidade, mas enquanto essa maternidade se
enraíza na fé. O próprio Espírito Santo no-lo declara pela voz
de Isabel.
De fato, por ocasião da Visitação, Isabel, cheia do Espírito
Santo e da luz do alto, vê Maria como o próprio Deus a vê,
"bendita entre as mulheres". Ora, o que distingue ela na Vir­
gem ? Antes de tudo a sua maternidade, que era até então um
segrêdo entre Deus e Maria, e agora revelado pela primeira vez
a outra pessoa. Por intuição divina, Isabel reconhece em sua
parenta a mãe do Messias: "E bendito é o fruto do teu ventre !
Donde me vem esta graça de vir a mim a mãe de meu Senhor ? "
Mais precisamente, Isabel reconhece essa maternidade messiânica
no estremecimento de júbilo que ela mesma experimenta: "Por­
que, desde que a voz de tua saudação me chegou aos ouvidos,
o menino exultou de alegria em meu seio" (Lc. 1, 42-44) . Maria
espalha em tôrno de si a alegria messiânica, êste frêmito de feli­
cidade . que devia abalar os homens por ocasião do advento de
seu Salvador. "Regozijai-vos e exultai eternamente por causa

61
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

daquilo que vou criar" (ls. 65, 1 8 ) , comunicara outrora o Senhor.


Chegara o momento, e a criação predita se realizara, como se
vê nesse comêço de "exultação eterna" que acaba de experi­
mentar Isabel. Era a criação que havia tornado a Virgem Mãe
do Messias.
Isabel entrevê confusamente tôda a amplitude dessa nova
criação. Reconhece na jovem que vem a ela uma maternidade
de um poder extraordinário, cuja irradiação acabava de trans­
formá-la. Maria � na verdade "a mãe de seu Senhor", de um
Senhor que Isabel proclama seu e do qual sente a irresistível
ascendência. A mãe de João Batista compreende a imensa dis­
tância que separa a maternidade de Maria da sua própria ma­
ternidade. Tem uma tal consciência de sua pequenez, compa­
rada à grandeza da Virgem, que se admira mesmo de receber
semelhante visita, e declara-se indigna de tão maravilhoso favor.
Mas esquecendo-se logo de si para só ver Maria, quer procla­
mar a felicidade da Mãe do Messias. Ora, é aqui que inter­
vém uma nova luz do Espírito Santo. Porque se Isabel tivesse
seguido simplesmente a espontaneidade de seu pensamento, teria
declarado a Virgem bem-aventurada por sua maternidade. É por
uma razão bem outra que ela celebra essa felicidade: "Bem-aven­
turada tu, que crêste que .haveria de se cumprir o que te foi
dito da parte do Senhor" (Lc. 1 , 45). É portanto à sua fé que
se prenóe a felicidade de Maria.
A afirmação é tão surpreendente que se tem procurado elu­
di-la. Alguns exegetas ou tradutores, aproveitando-se de uma
ambigüidade do texto evangélico, traduzem assim a exclamação
de Isabel: "Bem-aventurada tu, que crêste, porque se hão de
cumprir as coisas que te foram ditas da parte do Senhor". O
fundamento da felicidade da Virgem já não residiria exatamente
na fé, mas no cumprimento do que havia acreditado, isto é,
Maria seria bem-aventurada em razão de sua maternidade divina.
Semelhante tradução, que tira à palavra de Isabel o seu valor,
correspÓnde bem menos ao sentido natural da frase, e sobretudo
ao contexto dos acontecimentos. Ela faz supor que a realidade
em que Maria acreditou deverá ainda cumprir-se, quando na

62
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

verdade já se realizou, pois que Isabel descobre o seu sinal indis­


cutível. A Virgem acreditou na maternidade messiânica que
l he propôs o anjo Gabriel, e essa maternidade se concretizou
imediatamente. Testemunha dêsse fato, Isabel remonta à sua
fonte e proclama que essa felicidade da Mãe do Messias teve a
origem na fé: "Bem-aventurada tu, que crêste que haveria de
se cumprir o que te foi dito da parte do Senhor ! "
Ela sublinha intencionalmente a excelência dessa fé. Compara-a
com a incredulidade manifestada por seu marido Zacarias, que
recebera também de um anjo do Senhor o anúncio de uma ma­
ternidade miraculosa, mas recusara dar-lhe crédito. O contraste
impressionara Isabel no momento do encontro: ao ouvir o tom
alegre da saudação de Maria ela se lembra da ausência de sau­
dação da parte de Zacarias, seis meses antes, quando voltara da
cerimônia em que fôra oficiante. Apresentara-se a ela silencioso,
num silêncio que permanecera absoluto desde então, como cas­
tigo de seu ato de incredulidade. A voz da Virgem acabava de
ecoar nesse silêncio, e Isabel havia discernido nela o sinal da
fé. Em face do infortunado Zacarias, condenado ao mutismo,
Maria era feliz por ter acreditado.
Como Isabel notou, essa voz da Virgem era verdadeira­
mente a voz da fé, voz alegre que penetra triunfalmente no triste
silêncio da dúvida e do ceticismo. Ela transformava a atmosfera
de uma casa sôbre a qual pairava há vários meses a lembrança
de uma recusa de crer. A fé de Maria entrava vitoriosa na
habitação de Zacarias, como seria chamada a entrar vitoriosa
num mundo habitado até então pela incredulidade. No momento
da Visitação, ela personificava a fé da Igreja, e a sua entrada
na casa de Isabel simbolizava a invasão da fé cristã no universo,
fé conduzida sempre na vanguarda pela Virgem.
Poder-se-ia no entanto perguntar se Isabel não lançara a
exclamação: "Bem-aventurada tu, que crêste" unicamente por
referência ao caso de seu espôso, sem querer declarar que ver­
dadeiqmente, consideradas as coisas com perfeita objetividade,
a fé, mais do que a maternidade, constituía a felicidade de Maria.
Como · se poderia comparar a grandeza da fé com a grandeza da
maternidade divina ?
6J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

É preciso confessar que o louvor de Isabel não deixa de


nos surpreender. :f:le traz o sêlo do Espírito Santo: a sabedoria
divina ultrapassa tôda a sabedoria humana e assegura-nos que a
felicidade autêntica de Maria reside em sua fé. É forçoso aceitar
plenamente a afirmação, embora cuidando de não dissociar essa
fé da maternidade divina. A maternidade divina é grande em si;
é um privilégio absolutamente único e de uma amplitude sim­
plesmente imensurável. É a obra de Deus, inclusa na obra-prima
suprema da Encarnação. Mas Deus não quis apropriar essa obra
à alma de Maria sem a sua colaboração, de sorte que a grandeza
da maternidade divina só se tornou verdadeiramente a grandeza da
Virgem mediante o consentimento livre de sua vontade. Ora,
é nesse consentimento que intervém a fé. Maria deu um con­
sentimento perfeito graças a uma fé total; foi portanto pela
fé que ela se apropriou, em tôda a medida, da grandeza de sua
maternidade divina.
Nas relações dos homens com Deus, as riquezas do dom
divino nunca são insuficientes, mas o são no homem a capa­
cidade e a vontade de os receber. Maria, porém, pela fé, abriu
ao máximo a sua capacidade e a sua vontade de receber o dom
de Deus. Está portanto em sua fé a origem de sua felicidade
e de sua grandeza.

Isabel apercebeu-se disso, ela que devia lastimar a descon­


fiança com que o seu espôso acolhera o imenso benefício de
Deus. A alma de Zacarias mostrara-se demasiado estr�ita para
admitir a amplitude da generosidade divina, e essa estreiteza re­
fletira sôbre a maternidade de Isabel. A maternidade da Virgem,
ao contrário, realizara-se plenamente numa fé sem limites, e essa
fé sustentara o coração maternal de Maria, colocando-o à altura
da maternidade divina que lhe fôra confiada. Pela fé, ato
animado da graça e do poder de Deus, o coração da Virgem
abrira-se e dilatara-se segundo tôda a grandeza do dom de Mãe
de Deus, e acolhera tôda a felicidade que lhe vinha dêsse privilégio.
Pela fé, a maternidade divina tornara-se propriedade da alma de
Maria, uma posse de seu coração.

64
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

A primeira bem-aventurança

� exclamação "Bem-aventurada tu, que crêste" constitUI a


primeira Bem-aventurança do Evangelho. As Bem-aventuranças
exprimem a alegria definitiva da época messiânica: felicidade
nova, que transcende todos os sentimentos simplesmente terrestres
c acompanha a instauração do reino de Deus. É essa felicidade
que Isabel atribui à Virgem. Bem antes do Sermão da Monta­
nha, Maria personificara o ideal das Bem-aventuranças. O seu
coração maternal possuíra integralmente essa felicidade que Jesus
prometerá aos pobres, aos puros, aos misericordiosos, aos p�r­
seguidos. E a possuíra pela perfeição de sua fé.
Pode, então, parecer estranho que a fé não seja mencionada
nas Bem-aventuranças enumeradas pelo Mestre. Na realidade,
sem ser aí diretamente expressa, ela não está ausente do seu
Sermão. "Bem-aventurados vós que sois pobres, porque vosso
é o reino de Deus", diz Jesus (Lc. 6, 20). Essa pobreza não é
um simples fato material, a situação daquele �ue está privado
dos bens dêste mundo; é uma atitude de esptrito, como pre­
cisa São Mateus: "Bem-aventurados_ os pobres de espírito" (Mat.
5, 3 ) . O que há de fundamental nessa atitude e por que o
reino de Deus lhes é reservado ? O pobre é aquêle que não
tem nenhum apoio terrestre, nenhum bem dêste mundo no qual
possa depositar a sua confiança. A riqueza, como símbolo do poder
do homem sôbre os bens do universo, parece-lhe uma ilusão;
desconfia da fragilidade de tôdas as coisas e põe a sua esperança
unicamente em Deus. Espera tudo do Senhor; é por êsse motivo
que o Antigo Testamento o louva e exalta. Do mesmo modo,
Cristo promete o reino de Deus aos pobres, isto é, àqueles que
só querem contar com Deus e só aspiram à posse dêsse reino
de natureza superior. Ora, essa pobreza supõe fundamentalmente
uma atitude de fé: a fé é a confiança ilimitada no poder divino,
a crença inabalável na infalibilidade da palavra de Deus. Os po­
bres são felizes, recebem a felicidade da salvação, porque são
homens de fé que confiam unicamente em Deus e em seus

65
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

oráculos. Compreende-se desde logo como a Virgem realizara


essa Bem-aventurança. Completamente despojada diante do anjo
que lhe vinha anunciar a sua maternidade virginal, perfeitamente
"pobre", ela fôra perfeitamente confiante na palavra e no poder
de Deus: acreditara "que se cumpririam as coisas que lhe haviam
sido preditas da parte do Senhor". A sua pobreza inclinara-a a
abandonar-se totalmente a Deus, e nessa atitude de fé, recebera
imediatamente todo o reino de Deus prometido aos pobres, aquêle
reino que começou a trazer desde logo na pessoa de Jesus.
Eis como a fé, pela "pobreza espiritual" que implica, deter­
mina profundamente o caráter da maternidade de Maria. Essa
maternidade divina não resulta da ambição de uma personali­
dade humana que desejasse estender-se e ampliar-se o mais pos­
sível, e dominar tôda a realidade a ponto de querer submeter o
próprio Deus e exercer sôbre êle um poder maternal. Seme­
lhante ambição teria sido análoga à que inspirara Adão e Eva
no pecado original e que consistia em quererem tornar-se seme­
lhantes a Deus, em conquistar um poder igual ao seu. Ao con­
trário dessa atitude reivindicadora, a disposição de Maria era
uma vontade total de despojamento, de despojamento que ia até
ao fundo da alma: não contar em nada consigo mesma e colocar
tôda a sua fé em Deus. Por essa fé absoluta, ela recusava tôda
a conquista e punha-se em estado de receber tudo; oferecia-se
à ação divina que devia operar tudo nela. Maria tornara-se Mãe
de Deus não tomando Deus, mas deixando-se tomar por êle
graças à sua fé.
Eis porque a bem-aventurança da maternidade divina se
encerra na bem-aventurança dos pobres, e a felicidade de Maria
se aproxima da felicidade de todos aquêles que põem em Deus
a sua confiança e vivem de sua fé. É o que o próprio Senhor
deu a entender a uma mulher do povo que, possuída de admi­
ração por êle, exaltara-lhe a mãe, não sem algum sentimento de
inveja: "Bem-aventurado o seio que te trouxe e os peitos que
te amamentaram ! " (Lc. 1 1, 27-28 ) , gritou ela no meio da mul­
tidão. Via a glória de Jesus refletir sôbre a sua mãe e imaginava
essa mãe enriquecida do esplendor de um tal Filho, inebriada

66
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

de felicidade. Cristo não contesta a f�licidade de sua mãe, mas


indica em sua réplica a verdadeira fonte dessa felicidade, e o
faz à maneira de uma lei geral: "Antes, bem-aventurados aquê­
les que ouvem a palavra de Deus e a põem em prática ! J.Lc.
1 1, 2 8 ) . A verdadeira bem-aventurança de Maria não se acha
no plano das alegrias humanas, na satisfação de uma mãe ante
o futuro brilhante de seu filho, nem nas honras e vantagens
que lhe valeria essa circunstância; situa-se no nível superior das
relações da alma com Deus. A Virgem é aquela que ouviu a
palavra de Deus, e a ouviu no momento da Anunciação como
a nenhum outro ser humano jamais foi concedido, com uma
disponibilidade ilimitada de coração, no abandono sem reserva
da fé. Desde então, ela conservou essa palavra no coraç,ão,
esforçando-se por aprofundar-lhe o sentido a fim de poder viver
sempre mais de sua fé. Encontrando, pois, em seu coração um
domínio ideal de penetração, a palavra de Deus encheu Maria
de uma bem-aventurança divina.
Semelhante bem-aventurança não é para ser invejada, mas
partilhada: a mulher do povo que lançara a exclamação estava
bem mais próxima do que pensava da Mãe de Jesus e de • sua
felicidade: bastava-lhe ouvir a palavra de Deus e a praticar. Eis
a animadora verdade que Jesus quis ensinar à sua ouvinte: o esplen­
dor que ela atribuía a Maria seria concedido a todos os que
tivessem fé e dela vivessem; a bem-aventurança da mãe do Messias
era também a de todos os seus discípulos.
De uma maneira ainda mais tocante, Cristo afirmou êsse
princípio por ocasião da visita de sua mãe e de seus irmãos,
durante uma pregação. Ao ouvir que os seus parentes o pro­
curavam, perguntou: "Quem é minha mãe e quem são meus
irmãos ? " E lançando o olhar por todo o auditório, continuou:
"Eis aqui a minha mãe e meus irmãos ! Porque todo aquêle
que faz a vontade de Deus êsse é meu irmão, minha irmã e minha
mãe" (Me. 3, 3 1-35). Chega a aplicar aos seus ouvintes o pró­
prio título de mãe, no momento em que lhe falam desta mãe
única . que é Maria. Com isso, dá a entender claramente que
não reconhece outro parentesco afora o da fé e da adesão à
vontade divina.
67
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

"Fazer a vontade de Deus" é antes de tudo e essencialmente


ter fé. Os "irmãos de Jesus", seus primos, vinham procurá-lo
por causa de sua falta de fé. Recusavam admitir a sua missão
e queriam reconduzi-lo à sua casa; e já que não acreditavam
nêle, opunham-se à vontade divina. Cristo censura-lhes o pro­
ceder, afirmando que a sua verdadeira família funda-se no assen­
timento à essa vontade. A reprovação dirigida aos primos é ao
mesmo tempo um elogio secreto de Maria, que só acompanhou
os seus parentes para melhor preservar Jesus. A Virgem par­
tilha dos sentimentos dos outros, pois crê em seu Filho e em sua
missão salvadora. Conforme a declaração do Salvador, é por essa
fé que ela permanece verdadeiramente sua mãe. A bem-aventu­
rança da maternidade divina reside, portanto, segundo as pala­
vras de Jesus, na bem-aventurança da fé; o Senhor estendeu-a
expr:essarnente a todos os que crêem, quando apontou para êles,
dizendo: "Eis aqui minha mãe . . . "

Fé virginal, fé maternal

Ante o olhar de Cristo que penetrava o íntimo dos que o


rodeavam e discernia em seus corações todos os graus de fé,
de hesitação temerosa ou de incredulidade obstinada, Maria surgia
como aquela que fôra a primeira a crer nêle, bem antes de
todos os ouvintes, pois acreditara nêle antes de o conceber, e
mais do que todos. Pe fato, a sua fé fôra perfeita desde o pri­
meiro instante, sem a menor sombra de dúvida e sem a mais
leve reticência. A Virgem apresentava-se aos olhos de Cristo
como o modêlo consumado da fé.
Ao exaltar a felicidade daqueles que ouvem a palavra de
Deus, Jesus detinha o seu olhar com predileção em sua mãe. A
vista divina reportava ao momento que precedera a sua vinda
à terra, quando a Virgem havia exercido o seu grande ato de fé.
Momento já sepultado no passado, mas que permanecia bem
vivo no espírito da mãe e do Filho, porque era um momento
único de sua história, como da história do mundo. Momento

68
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

que o cnstianismo não cessará de_ recordar, para contemplá-lo


e compreendê-lo sempre mais. Naquele momento, um magnífico
ato de fé, modêlo de todos os outros, respondera à Anunciação
do anjo Gabriel.
Não possuímos nenhuma afirmação expressa e direta dêsse
ato de fé. Sabemos apenas que depois de ouvir a proposta, Ma­
ria colocou-se imediatamente na perspectiva de sua realização
certa: "Como se fará isso?". Desejava simplesmente saber que
serviço Deus esperava dela. A sua pergunta diferia da de Za­
carias, que se originara da dúvida. Diante do mensageiro celeste
que lhe anunciava um nascimento miraculoso, Zacarias tivera
um recuo, um movimento de desconfiança, talvez justificável
aos olhos de uma prudência simplesmente humana, mas indes­
culpável em sua oposição à graça. f:le reclamara um sinal, uma
garantia: "Por onde reconhecerei isso ? Porque já sou velho e
a minha mulher é de idade avançada" (Lc. 1 , 1 8 ) . Não se
limitava a pedir um esclarecimento; formulava uma objeção e
requeria uma resposta apoiada por um sinal visível. Queria ver
antes de crer. É aqui que resplandece o contraste com Maria.
Zacarias recusava um assentimento de fé imediato e incondicional
à palavra do anjo; refugiava-se no baluarte das seguranças huma­
nas, à espera do visível. A Virgem, ao contrário, deu logo o
assentimento de sua fé; abandonou-se com entusiasmo aos impera­
tivos da fé, sem reclamar garantias. O dom de seu coração na fé
era sem reservas, e essa recusa de exigir garantias, que a pru­
dência humana teria talvez desaconselhado, era verdadeiramente
justificada pelo fato de que o dom era feito a Deus. Para Ma­
ria, crer na palavra do anjo, era dar-se pura e simplesmente a
Deus.
A fé da Anunciação é o dom de uma alma consagrada ao
Senhor, um dom virginal. Compreende-se melhor a origem do
contraste entre Zacarias e Maria quando se considera a vir�in­
dade desta. Pela virgindade, com efeito, Maria realizara já esse
abandono total que recusa todos os apoios humanos e terrenos
para c.olocar tôda a sua confiança em Deus. Prometendo ao
Senhor permanecer sempre virgem, ela queria esperar Unica-

69
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

mente de Deus tôda a afeição, todo o socorro e tôda a fecun­


didade, pois renunciara às esperanças da maternidade baseadas
no matrimônio. No momento da Anunciação, o entusiasmo de
sua virgindade prolongou-se num entusiasmo de fé: corno a vir­
gindade, a fé consistia em confiar cegamente em Deus. Urna
vez que Maria já havia sacrificado tôdas as garantias humanas,
bastava-lhe seguir o seu coração virginal para testemunhar a
Deus que ela acreditava com todo o seu ser na palavra divina.
A fé formou o traço de união entre a virgindade de Maria e a
sua maternidade.
Passando de urna à outra, a sua fé transformou-se profunda­
mente. Não mudou de natureza, porque continuava a ser, especial­
mente, confiança em Deus e crença na palavra divina. Mas no
momento da Anunciação, ela se orientou para um nôvo objeto,
para a pessoa concreta do Salvador. A revelação do Antigo
Testamento dava lugar à do Nôvo, e a fé da Virgem passava
de um regime para outro, tornava-se urna fé propriamente cristã.
A partir dêste momento, a fé de Maria possuía a substância da
fé da Igreja, que é urna fé em Cristo.
Os sentimentos que acompanhavam essa fé transformavam­
se igualmente. A fé virginal era sobretudo urna fé de renúncias,
a fé inteiramente despojada. que recusa buscar consolações ou
socorros nas coisas ou pessoas dêste mundo. Era aquela "fé
nua" de que falam os místicos, fé terrível no radicalismo de suas
exigências de separação, fé dirigida a Deus corno um sacrifício
austero. Decerto, há amor e mesmo entusiasmo na austeridade
dêsse despojamento, mas ocultos no segrêdo da alma, porque
a fé virginal se sente na obscuiidade, naquela obscuridade de
um Deus que atrai e ao mesmo tempo se esconde. É nessa obs­
curidade que permanecera a Virgem, até ao dia em que a luz
do anjo lhe apareceu. Neste momento, a sua fé virginal dila­
tou-se em fé maternal. Após o despojamento de todos os afetos
terrestres, vinha a plenitude divina, e o que se pedia a Maria
era que, depois de ter renunciado a tudo, se abandonasse a essa
:plenitude a fim de se tornar mãe. Um nôvo impulso era dado
a confiança contida já na virgindade e que era integralmente

70
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

aperfeiçoada na maternidade: Maria vai exercê-la com ardor


sempre maior, impelida pela consciência entusiasmante de sua mis­
são maternal.
Ao tornar-se mãe, uma mulher experimenta uma expansão
natural; Maria experimentou em sua maternidade uma expansão
sobrenatural, nascida de sua fé. O quadro do destino maternal
que Deus lhe reservava, esboçado ràpidamente pelo anjo, susci­
tara um desdobramento súbito de tôda a energia de graça que
estava à disposição de Maria. A sua fé enriquecera-se repenti­
namente de uma nova luz e de um nôvo calor: era exercida mais
fàcilmente e com uma nova alegria.
Poder-se-ia dizer que essa passagem da fé virginal à fé ma­
ternal se assemelha à passagem da "via purgativa" ou purificadora
à "via iluminativa". Antes da luz trazida pela mensagem do anjo,
Maria achava-se num período de preparação que tinha alguma
analogia com a "via purgativa". Sem dúvida não se pode aplicar
literalmente o nome de "via purgativa" à experiência religiosa da
j ovem de Nazaré, porque a sua alma era absolutamente pura e
não precisava de purificação. Maria, sendo imaculada, não podia
fazer a menor censura ao seu passado; não tendo j amais consen­
tido na mínima falta, não tinha nenhuma culpa pessoal a expiar
nem a reparar. E como havia escapado às taras do pecado ori­
ginal, à concupiscência, não era afligida por nenhuma tendência
desregrada, nem devia corrigir nenhum apetite desordenado. Tudo
era harmonia e paz em seu coração, e em sua consciência não
havia nenhuma daquelas divisões do querer que favorecem o im­
pério do mal, nenhuma daquelas complacências secretas no pecado
que tornam tão penosa a luta contra as tentações. Mas ela não
estava por isso dispensada do sacrifício e da renúncia. Em virtude
da perfeição que nela habitava, estava mesmo destinada a isso mais
do que os pecadores. Chamando-a a si e inspirando-lhe a pro­
messa de virgindade, Deus a submetera a uma espécie de "via pur­
gativa", pela qual desprendia impiedosamente o seu coração de
todos os laços terrenos. Maria crescera numa atmosfera familiar
necessária ao seu coração de criança; mas o seu coração de j ovem
devia ser retirado dêsse ambiente afetivo, aliás legítimo, para ser

71
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

animado pela única e grande afeição que devia possuí-lo. Foi a


austeridade virginal de Maria, guiada pela graça, que separou êsses
liames, e que, de uma criança normalmente apegada a tudo o que
a cerca, fêz uma jovem cujo amor era reservado unicamente a
Deus. Como os ramos da videira de que falará mais tarde o
Senhor, Maria fôra podada pelo Pai celeste. Deus havia cortado
todos os liames, exceto um: o da fé.
A êsse período "purgativo" êle fazia agora suceder o período
"iluminativo". Maria via, pela Anunciação, aonde a conduzia o
desp ojamento de sua vir�indade; apercebia-se subitamente, ins­
trmda pelo anjo, do desfecho magnífico de sua fé, e do funda­
mento de sua confiança.
Guardemo-nos, aliás, de estabelecer uma distinção absoluta
entre dois períodos. Já na experiência da vida espiritual e mística,
não se pode admitir a sucessão bem distinta de duas épocas, das
quais uma seria unicamente purgativa e a outra unicamente ilumi­
nativa. Os dois aspectos estão sempre presentes, mas o acento
varia. A confiança jamais faltara à fé virginal de Maria, mas
tornou-se mais lúcida e mais desenvolvida em sua fé maternal.
A partir da Anunciação, a fé de Maria reveste-se de sua forma
definitiva, numa alma cujo destino, ao mesmo tempo virginal e
maternal, estava doravante fixado.

O combate da fé

Devemos admirar-nos de que essa riqueza da fé da Virgem, no


momento de se tornar Virgem-Mãe, apareça tão pouco na narra­
ção evangélica ? O Evangelho habituoQ-nos à discrição acêrca
de tudo o que diz respeito a Maria, e é compreensível que uma
coisa tão íntima como a fé se deixe supor e adivinhar antes que
descrever. Basta-nos saber, pela relação da conversa com o anjo,
que essa fé se produziu; e nas entrelinhas da página sagrada po­
demos descobrir, através do que conhecemos da perfeição da Vir­
gem, o poder íntimo dessa adesão de fé, poder tanto mais forte
quanto mais interior.

72
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

Poderíamos ter· a impressão de que essa vibração de fé fôsse


coisa fácil e pouco meritória, porque Maria era simplesmente
solicitada a crer em sua felicidade. O anjo transmitia-lhe urna
mensagem feliz, agradável de ouvir, e prometia-lhe um esplên­
dido futuro. O destino que lhe oferecia não constituía justa­
mente o mais belo sonho das mulheres israelitas, isto é, ser a
mãe do Messias ? Lo�o, não era facílimo dar a essa predileção
um assentimento de fe ? Parece que Maria não tinha nenhum
obstáculo a vencer para acreditar; a �alavra divina era tão
atraente que se impunha, por assim dizer, a fé.
Imaginar semelhante facilidade é ceder a urna ilusão. A prova
de que a adesão perfeita de fé à mensagem do anjo não era coisa
tão fácil está em que outras mensagens divinas não haviam obtido
essa adesão. Zacarias era sacerdote e pode-se conjeturar que,
escolhido por Deus para se tornar o pai do Precursor, devia ter
urna grande santidade de vida e urna profunda veneração pelo
Senhor a quem era consagrado. Ora, a aparição do anjo Gabriel
e a sua proposta suscitaram-lhe dúvidas na alma. Entretanto, a
mensagem que lhe era dirigida realizava todos os seus desejos,
ultrapassava tôdas as suas aspirações: mas justamente Zacarias não
achou que a coisa era bela demais para ser verdadeira ? O esplen­
dor da promessa despertou-lhe suspeitas.
Bem antes de Zacarias, quando o profeta Isaías se apresen­
tou ao rei Acaz para lhe dar parte de urna mensagem divina,
êle adaptou a sua palavra à fraqueza daquele que devia ouvi-la.
Para incitá-lo à confiança, recomendou a Acaz que pedisse um
sinal a Javé. "Não o pedirei", respondeu o rei, pretextando que
não queria tentar o Senhor com êsse pedido de urna manifes­
tação visível de seu poder. Deus decidm então dar aos homens
o seu próprio sinal, o sinal da salvação que lhes queria conceder:
"Escutai, casa de Davi, replicou o profeta: parece-vos pouco
fatigar os homens, para que queiras fatigar também o meu Deus?
Por isso o próprio Senhor vos dará um sinal. Ei-lo: a Virgem
concebeu, e dá à luz um filho, e o chama Emanuel" (ls. 7, 12-14).
tsse sina� de urna maternidade virginal fôra portanto anunciado
por Deus em resposta à incredulidade humana. Mesmo quando

7'J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

prometia expressamente a salvação e a felicidade, Javé se cho­


cava com a desconfiança. A fé da humilde j ovem de Nazaré
virá qual uma réplica à recusa de crer do rei Acaz.
Se o rei Acaz rejeitou o convite divino, é que preferia con­
fiar em seu próprio juízo, em seus próprios meios, para assegurar
a salvação do povo, em lugar de esperar o socorro da mão de
Deus. Do mesmo modo, se Zacarias duvidou do anúncio do
anjo, é que pôs a sua confiança exclusivamente no que os olhos
viam e naquilo que as suas possibilidades humanas p odiam medir.
A lógica exigiria, decerto, que o homem pusesse toda a sua con­
fiança em Deus, sobretudo quando o próprio Deus lhe oferece
o socorro de seu poder. Mas essa atitude de confiança, que pa­
rece tão simples e fácil, choca-se com obstáculos, porque o
homem é inclinado a agarrar-se às coisas que pode tocar, e dificil­
mente concorda em desligar-se delas. Prefere confiar na apli­
cação dos meios de que dispõe a confiar no poder divino: julga-se
forte e desvia-se de Deus, porque pensa bastar-se a si-mesmo; e
quando descobre a sua impotência, desespera-se, rejeitando como
impossível qualquer salvação que lhe venha do alto. Por causa
dessa tentação de confiar em si e de medir tudo segundo a
capacidade humana, a confiança em Deus fundada na fé não é
um sentimento natural no homem; ela requer tôda a fôrça da
graça para lançar raízes e desenvolver-se.
Na Virgem que ouvia a mensagem do anjo, deve ter surgido
a mesma tentação. Satanás não deixou de atacar Maria. tle,.
que mais tarde desdobrará tôda a sua sedução nos momentos
essenciais -da vida de Cristo, principalmente no comêço do seu
ministério apostólico e depois no conflito da agonia às vésperas
da paixão, não estêve certamente ausente da casa de Nazaré no
momento capital da Anunciação. A resistência da alma imaculada
de Maria a tôdas as suas sugestões interiores, lhe fizera suspeitar
da importância da missão que Deus reservava a essa alma, e
levara ao extremo o seu desejo de fazê-la cair. Diante das pa­
lavras do anjo, que prometiam o Salvador à humanidade, tôda a
astúcia diabólica deve ter-se concentrado contra Maria para
demovê-la de seu consentimento. Mas como minar-lhe a fé ?

74
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

i\ Virgem nunca pusera demasiada confiança em suas próprias


i'c\rças, e nada era mais alheio à sua mentalidade do que a pre­
•,unção. Restava um só meio: procurar levar a humildade de
Maria à desconfiança. Sendo aquela j ovem tão humilde e tendo
1'l :t uma consciência tão aguda de sua pequenez, Satanás deve
l t�r-lhe sugerido neste momento levar até ao extremo essa humil­
dade, recusando a possibilidade de um tão maravilhoso destino.
"Sou demasiado insignificante para ser digna dessa maternidade.
fo: impossível que Deus tenha pensado em mim para ser a mãe
do Messias". Assim queria o demônio que ela dissesse, repre­
sentando-lhe vivamente, sob a aparência de modéstia, a sua in­
dignidade e incapacidade. De fato, no seu próprio juízo, Maria
nunca pensava em semelhante possibilidade e sentia-se plena-
11 Jcnte indigna e incapaz. Entretanto, não teve o menor movi­
Jilento de dúvida, como Zacarias, que sucumbira parcialmente à
l entação: "Sou velho e a minha mulher é de idade avançada"
( Lc. 1, 1 8 ) . Neste momento, Maria estava mais do que nunca
persuadida de sua humilde condição; mas achou nisso mesmo
nm motivo para confiar totalmente na escolha divina. Visto
qne era tão fraca e tão pobre, Deus faria tudo nela por seu
próprio poder; portanto só lhe restava abandonar-se a êle e acre­
ditar que êle realizaria infalivelmente o que havia decidido.
Se Maria tivesse o hábito de olhar para si-mesma, ter-se-ia
assustado com a perspectiva imensa que o anjo acabava de lhe
abrir; teria recuado instintivamente, invocando a sua impotência.
Mas tinha o costume de só ver Deus em tôdas as coisas, e julgava
l mio segundo as proporções infinitas de Deus. Nessa visão do
poder divino, podia atirar-se com uma fé magnífica à sublime
aventura que lhe era apresentada. Deus supriria tôdas as suas
fraquezas humanas.
Sem dúvida Satanás esforçava-se por explorar também o
obstáculo de sua virgindade. Sugeria-lhe, em nome dessa vir­
g-indade a que estava profundamente afeiçoada, repelir a pro-
llosta do anjo, e suspeitar de sua autenticidade divina: já que
>cus lhe inspirara a virgindade, não podia agora propor-lhe a
1 1 1aterni.dade ! Não seria preciso reafirmar ao anjo o caráter
nhsoluto de uma virgindade querida pelo próprio Senhor, e afas-

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

tar assim decididamente tôda a hipótese de maternidade ? Maria


não conhecia nenhum exemplo de virgem que se tornasse mãe.
A história de Israel comportava nascimentos miraculosos, graças
à intervenção de Javé; mas tratava-se sempre de mulheres casadas.
Era pois inaudito que uma virgem concebesse um filho. Depois
Maria se lembrou certamente da profecia de Isaías para aplicá-la
ao seu próprio caso. Mas nas circunstâncias concretas em que
se achava no momento de responder ao anjo, via a sua vir­
gindade simplesmente como um obstáculo. Todavia, era um
obstáculo criado pelo próprio Deus, e êle saberia vencer essa
barreira que êle-mesmo suscitara. A Virgem aceitou simples­
mente o fato anunciado pelo anjo, opondo uma tranqüila firmeza
às sugestões perturbadoras.
Dêsse modo, os obstáculos que poderiam ter levado Maria
a uma recusa ·de crer - a sua humildade e a sua virgindade -
vieram apenas reforçar o impulso de sua fé. Maria acreditou
com tanto mais convicção no poder divino quanto mais humilde
e mais fraca se sentia; acreditou mais vivamente numa intervenção
miraculosa, porque era virgem e queria continuar a sê-lo. A fé
da Virgem na Anunciação foi o triunfo de um combate breve,
mas profundo e decisivo.

O vigor de sua fé

Assaltada como foi de tentações, submetida à prova, a fÇ


de Maria aparece mais próxima da nossa. A Virgem mostra o
caminho às almas solicitadas pela dúvida, tentadas a perder a
confiança em Deus por causa da consciência da própria incapa­
cidade. Muitas vêzes, com efeito, a dúvida não se prende
somente à doutrina; a tentação toma uma forma mais pessoal
e impele o homem a duvidar do poder e do amor de Deus.
Corre o perigo de deixar-se levar pela impressão de que a sua
vida, longe áe ser governada inteiramente por Deus, desliza ao
acaso, à mercê das circunstâncias. Na alma da Virgem, a ten­
tação contra a fé teve ao mesmo tempo um alcance doutrinai
e pessoa� porque o anjo lhe pedia que acreditasse na Encarnação

76
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

do Salvador, verdade em que estava implicado todo o cnstta­


llismo, e em seu destino pessoal, como a escolhida de Deus para
M :l e do Messias. Maria afastou as sugestões que lhe apresen­
l a vam essa verdade como demasiado bela e êsse destino como
demasiado sublime para serem acreditados. Admitiu simples­
lllente a palavra divina em sua. integridade: foi êste o princípio
de sua vitória.
Essa luta confere ao episódio da Anunciação um caráter
diferente daquele que poderíamos reconhecer-lhe à primeira
vista. A cena é de um admirável frescor, cheia de um encanto
delicado, e dir-se-ia impregnado ainda, no texto sagrado, do per­
fume da alma dessa jovem, perfume de uma primavera que se
revela prenhe de promessas inauditas. Nada mais gracioso do
1c a perturbação de Maria desde as primeiras palavras do anjo.
T
l oder-se-ia imaginar uma alma frágil, sensível ao menor abalo,
IJUe Deus teria preservado a tal ponto que ela vivia numa atmos­
fera ideal, acima das contingências e agitações do mundo. Mas
quem assim pensas�e arriscar-se-ia a atribuir a Maria uma per­
sonalidade artificial, miraculosamente conservada à margem da
dura realidade cotidiana e de seus atritos. A alma de Maria não
f<lra envolvida numa gaze impermeável, e a sua adesão de fé à
palavra do anjo não foi um gesto simplesmente gracioso, todo
celeste, em vista da doce serenidade de que se achava impreg­
nado. Foi o ato decidido de uma alma viril. Na fé da Anun­
ciação achava-se encerrada tôda a fôrça de vontade de Maria,
f<lrça que rejeita tôdas as tendências contrárias e tôdas as suges­
tões diabólicas. Constituído na fé, o coração maternal de Maria
revestia-se daquele vigor que lhe seria tão precioso no futuro.
A tradição cristã compreendeu-o muito bem e o exprimiu de
uma maneira tocante, mesmo desconcertante, na antífona "Gaude
Maria Virgo": Alegrai-vos, Virgem Maria, porCJUe só vós haveis
destruído as heresias em todo o mundo" ( 1 ) . À primeira leitura
dêsse texto, poder-se-ia pensar que ela visa a intervenção de
Maria na vida da Igreja, no decorrer dos séculos, para aniquilar
sucessivamente tôdas as heresias. Mas o responso primitivo de
que fo� tirada a antífona mostra que não se trata de uma luta
(1) PrlmeJr& antlfon& do In Noturno do Comum das festas d& SS. Vlrg�m.

77
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

secular contra os heréticos, mas que a ação de Maria verificou-se


no momento da Anunciação: "Alegrai-vos, Virgem Maria, por­
que só vós haveis destruído as heresias em todo o mundo, vós
que acreditastes nas palavras do arcanjo Gabriel; sendo virgem,
gerastes o Homem-Deus, e permanecestes virgem intacta depois
do parto" ( l ) . Foi acreditando nas palavras do anjo que Maria
destruiu tôdas as heresias. E o fêz sozinha, na solidão da casa
de Nazaré. Não se deve representar essa vitória como uma
cavalgada de guerra nas fileiras da Igreja, nem como um comando
de operações dirigidas contra os heréticos, mas como um ato
único de humilde e firme confiança que condenou uma vez por
tôdas a totalidade das heresias e dúvidas.
Maria alcançou êsse triunfo em sua alma: foi no campo de
sua vida íntima que ela exterminou, por uma fé integral, as insi­
nuações que tendiam a provocar "heresias", isto é, no sentido
etimológico do têrmo, separações e divisões. Satanás, que tudo
fêz para separar Cristo de seu Pai, não empregou menor astúcia
para separar Maria de Deus. Procurou cavar o abismo da dúvida,
mas a Virgem aniquilou-lhe a tentativa.
Além disso, no momento mesmo da Anunciação, Maria con­
quistou essa vitória em nome de tôda a Igreja. Se fôr bem com­
preendido o alcance dêsse ato de fé, não se julgará excessiva a
expressão: "as heresias de todo o mundo". O objeto da fé de
Maria era a salvação do mundo, e é em nome da humanidade
que ela aderiu à mensagem do anjo. Comunicando a Maria a
sua proposta, Deus dirigia-se a ela como a uma representante da
humanidade; de fato, é à humanidade que oferecia a Encarnação
de seu Filho; é a ela que pedia, na pessoa de Maria, acolher o
Verbo. Pela pureza de sua alma, só Maria era capaz de acolh�-lo
plenamente, em nome de todos os seus irmãos humanos, os peca­
dores, que jamais teriam podido apresentar ao Filho de Deus uma
morada digna de sua santidade. Mas a pureza da Virgem não
bastava para êsse acolhimento; era apenas a sua condição preli-
( I ) " Gaude Maria Virgo, cu netas hacrcses sola lnteremistl quae Gabrielis
archangeli dictis credidisti ; dum Virgo Deum et hominem genuisti, et post partum
Virgo inviolata permansisti ". Esta fórmula encontra-se na festa do dia 2 de
fevereiro no mais antigo antifonãrio conhecido, o de Compiegne. Cf. D. L. Baou,
Marie, "destructrice de toutes les hérésies", e a bela legenda do responso Gaude
Maria Viroo em Ephemerides Liturgicae, LXII, 1048, pá.g. 821.

78
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

mmar. O acolhimento mesmo devia consistir essencialmente na


f é. Os homens eram incapazes de uma fé perfeita, como eram
incapazes de uma pureza perfeita; ora, Deus queria para o seu
Fi lho o acolhimento de uma fé integral. A Virgem lha propor­
cionou em nome de tôda a humanidade. Recebeu por nos, num
ato perfeito de adesão da inteligência e do coração, o Verbo feito
carne.
A fé de Maria foi uma vitória sôbre as dúvidas e infidelidades
do passado de Israel. A história do povo eleito fôra marcada
por "heresias", isto é, por retornos contínuos à idolatria e ao
llecado, por violações repetidas da aliança e rompimentos com
)eus. O povo não cessara de murmurar contra o seu Criador,
de se queixar de um destino em que julgava reconhecer o aban­
dono de Javé; fôra sempre tentado a pôr a sua confiança em
�i-mesmo e só tivera uma fé bem vacilante. Por isso os profetas,
censurando a incredulidade de seus comp atriotas, envidaram gigan­
tescos esforços por despertar-lhes a fe. Na Anunciação, Maria
reparou num instante todos êsses desvios e tôdas essas fraquezas;
fê-las apagar-se e desvanecer ante o esplendor de sua fé. Desem­
penhou-se em nome de todos da grande obrigação que o povo
l udeu contraíra pela aliança: a obrigação de crer no verdadeiro
)eus e de crer com uma fé que oriente tôda a vida. A incredu­
lidade que Satanás havia estimulado e reavivado no decorrer dos
séculos para opor o povo eleito a Javé, via-se destruída de um
só golpe pela absoluta profissão de fé da humilde virgem. Pro­
fissão de fé virginal que respondia perfeitamente às infidelidades
antigas, consideradas por Javé como adultérios.
O passado atinge pois na Anunciação um momento que o
transforma radicalmente. A recusa de Acaz e a dúvida, mais
próxima, de Zacarias, são cobertos pela fé luminosa de Maria.
Nessa nova fé, a humanidade recomeça a viver; triunfa para
sempre de sua queda. Porque a fé da Virgem encerra a segu­
rança do futuro; é uma fé definitiva, indefectível, a fé nascente
mas inabalável da Igreja. Crendo nas palavras do anjo, a Virgem
venceu de antemão tôdas as "heresias" dos séculos posteriores.
Ela colocou, na base da comunidade cristã, uma fé total que
jamais poderá ser dividida ou diminuída. É em nome de todos

79
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

os tempos, passados e vindouros, como em nome de todos os


povos, que ela deu a sua adesão, e esta adesão tem um valor
eterno. Se os assaltos de Satanás contra a fé da Igreja são infali­
velmente frustrados, e se tôdas as heresias acabam no fracasso e
na confusão, é que êsses mesmos assaltos já se haviam quebrado
contra a rocha virginal da alma crente de Maria.
Em sua fé, como em sua maternidade, Maria levava todo o
destino da Igreja. As tempestades que sacudirão em todos os
tempos a Igreja e os cristãos foram dominados uma vez por tôdas
pelo poder calmo e discreto dêsse ato de fé. Para contemplar
a vitória da Igreja sôbre todos os seus adversários, não precisamos
entrar na indefinida complexidade dos acontecimentos da história;
é o bastante situar-nos neste momento único da Anunciação, em
que a fé de Maria apaga as incredulidades do passado e ani9.uila
as revoltas do futuro. Um outro momento corresponderá a esse,
no fim dos tempos, quando se oferecer uma vista de conjunto do
destino do universo então completado: nesse instante final, poder­
se-á verificar que as promessas da fé da Anunciação foram inte­
gralmente mantidas pela fé da Igreja; dando fé às palavras do
anjo, Maria derrubara verdadeiramente tôdas as negações das
heresias. Tôdas essas negações dirigidas expressa ou indiretamente
contra a mensagem da Encarnação do Salvador, foram reduzidas
à impotência pelo assentimento perfeito da Virgem.

Fé e realidade

A fé da Anunciação desferiu o golpe mortal em tôdas as


doutrinas adversas, não sàmente porque constituiu a fé definitiva
da Igreja, como também porque concorreu para a realização da
mensagem a que aderia. O que era fé no coração de Maria
tornou-se realidade em seu seio. Houve passagem imediata da fé
à realidade. Acreditando na palavra do anjo, Maria fêz com que
ela se cumprisse. Poderia parecer excessivamente ousada essa afir­
mação e que não foi pràpriamente a fé de Maria nem a sua
aquiescência à mensagem que suscitaram a Encarnação; teriam
simplesmente fornecido as suas condições, já que a única causa

80
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

dessa realidade sublime era o próprio Deus. Mas atribuindo à


fé da Virgem a realização do desígnio divino da Encarnação, não
nos afastamos do ensinamento de Cristo. Em sua vida pública,
Jesus exigia a fé daqueles que lhe pediam milagres; reclamava-a
a ponto de "não poder" operar nenhum milagre onde encontrava

uma incredulidade geral '(Me. 6,5 ) . Ainda mais, atribuía formal­


mente à fé de seus interlocutores os milagres realizados, como se
essa fé os tornasse verdadeiramente autores do prodígio. Não
equivale a prolongar o pensamento do Senhor o fato de atribuir
à fé de Maria o milagre da concepção virginal? Pode-se repetir,
a propósito da Anunciação, a palavra que Jesus dirigia ao pai do
epiléptico que implorava a sua intervenção: "Tudo é possível
àquele que crê" (Me. 9,23 ) . A frase aplica-se tanto melhor a
Maria quanto mais ardente e mais firme era a sua fé. Para essa
fé total da Virgem, tudo era possível, mesmo a grandeza paradoxal
de uma maternidade divina, o poder de se tornar mãe do Filho
de Deus. A essa fé aplica-se ainda a resposta de Jesus à Cananéia:
"ó mulher, grande e a tua fé; seja-te feito como pedes" (Mt.
1 5,28 ) . É a fé que dá a sua proporção à realidade: "Seja-vos
feito segundo a vossa fé" (Mt. 9,29), dizia ainda o Senhor aos
dois cegos antes de lhes dar a vista. Deus havia pois pedido à
Virgem uma fé de uma grandeza surpreendente em vista da
imensa realidade da Encarnação. Êsse Deus era antes de tudo o
Pai, maS' com êle a Trindade e notadamente o Filho. O Verbo
solicitava a fé de Maria como solicitará mais tarde, uma vez
encarnado, a fé de seus ouvintes.
Desde que se formou o ato de adesão no coração de Maria,
a realidade surgiu. Poder-se-ia dizer que a fé exerce um poder
sôbre o Senhor de tôda a realidade, sobre Deus; poder querido
e consentido pelo próprio Deus. A Encarnação era confiada
verdadeiramente ao poder da fé da Virgem. Nada há que possa
ressaltar mais vivamente o poder da fé, de nossa fé. É da fé
que dependeu tôda a realização do plano de salvação traçado por
Deus: no momento da Anunciação, a sorte do mundo, o destino
da humanidade, estavam em j ôgo no coração de Maria. A adesão
de sua fé determinou a vinda de Cristo à terra, e transfi�rou
assim a face do universo e todos os aspectos de nossa existencia.

81
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

A realidade da Igreja estêve suspensa a essa fé, e a onda de graças


que se derramou entre os homens passara primeiramente pela
aquiescência de Maria. Tôda a felicidade da salvação e da vida
cristã dependeu portanto do impulso de confiança do coração da
Virgem no momento da Anunciação. Apropriando-nos de uma
palavra pronunciada tantas vêzes por Cristo: "A tua fé te salvou"
(Me. 5,34; 10,52; Lc. 7,50; 1 7,19), podemos afirmar que a fé
da Virgem salvou a humanidade.
Por êsse poder que a fé exerce sôbre o próprio Deus, com­
preendemos melhor o sentido da maternidade divina. Pela simples
maternidade física, Maria seria simplesmente mãe de um filho
que é Deus, e isso já bastaria p ara proclamá-Ia Mãe de Deus. Mas
há mais: por sua fé, Maria fez verdadeiramente vir Deus à terra;
à sua capacidade corporal de dar um filho ao mundo correspondeu
a capacidade de sua fé de introduzir Deus na humanidade. O
milagre da concepção virginal foi, como o milagre da Encarnação
do Verbo, resultado da fé de Maria.
Essa fé impôs para sempre, a tôdas as gerações vindouras, a
realidade da Encarnação do Salvador. A existência do Salvador
e a autenticidade de sua filiação divina nos são mostradas pelo
Evangelho e têm seu testemunho na vida e na wntidade da Igreja,
prolongamento de Cristo. Quando os cristãos opõem aos nega­
dores da fé ás evidências dêsse testemunho e a solidez histórica
das narrações evangélicas, não se esquecem de que essa realidade
do Verbo encarnado, afirmada com tanta fôrça, teve a sua origem
no assentimento de Maria; e lembram-se de que, se podem com
calma e segurança destruir por essa realidade tôdas as afirmações
contrárias, devem-no ao ato de fé exercido pela Virgem em
resposta ao anjo Gabriel.

Uma fé que progride


Na Anunciação, a fé da Virgem era perfeita. E somos ten­
tados a imaginar que essa fé, em razão de sua perfeição, não
precisou progredir, mas conservou-se simplesmente imutável.
Maria, tendo dado uma vez por tôdas o seu assentimento, e nada
faltando absolutamente à firmeza nem ao ardor de sua adesão,

82
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolviment o

que poderia ela adquirir ainda? Não devia limitar-se a manter


essa fé e dela viver?
Conceber a fé da Virgem como uma realidade imutável, seria
desconhecer o desenvolvimento por que passou a alma de Maria;
seria mesmo querer esclerosar ou mumificar essa alma. Houve
na Virgem um desenvolvimento progressivo de sua vida íntima.
Ela foi mãe desde o momento da Anunciação, mas daí por diante
a sua maternidade crescia sempre mais e o seu coração materno
não cessava de aprofundar os seus sentimentos. Que ela tenha
sido perfeita desde o primeiro instante de sua concepção, êste
privilégio extraordinário não a impedia de intensificar, desenvolver,
e aumentar pouco a pouco, pela experiência de sua vida e de
sua consciência, a sua união com Deus. Longe de excluir seme­
lhante evolução, a santidade inicial de Maria a exigia e provocava:
Deus não lhe havia dado talentos para que os enterrasse, mas para
que os fizesse frutificar. A graça conferida a Maria fê-la avançar
cada dia mais na intimidade divina. :e:sse progresso não impli­
cava na Virgem uma imperfeição anterior; passava de uma perfeição
a outra mais iAtegralmente realizada, porque a perfeição lhe era
concedida com a condição de a viver, e por conseguinte de a
desenvolver incessantemente ao longo de sua existência.
Essa condição de progresso constante aproxima ainda a fé
de Maria da nossa. Se tivéssemos de atribuir à Virgem uma fé
imutàvelmente fixada desde o momento da Anunciação, deveríamos
reconhecer-lhe uma fé diferente da dos cristãos; nesse caso, o
Senhor teria substituído por uma intervenção milagrosa o lento tra­
balho de aprofundamento a que está sujeita a fé na vida dos homens.
Mas Deus não faz semelhantes operações prodigiosas inutilmente.
O que êle quis para Maria foi uma vida propriamente humana,
com uma experiência verdadeiramente humana. Não formou o
coração da Virgem por meios artificiais, e se lhe inspirou uma
fé sempre perfeita, êle a quis sujeita à condição ordinária de um
aprofundamento progressivo. E por isso mesmo estimulou a
espontaneidade e a atividade pessoal de Maria; recusou fazer tudo
em seu lugar a fim de que a sua fé se enraizasse nas camadas mais
secretas cfe sua personalidade e fôsse verdadeiramente sua. Eis
a razão por que ao comunicar a Maria a mensagem divina, o anjo

83
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Gabriel, ao mesmo tempo que lhe pedia um assentimento imediato,


oferecia-lhe um assunto de meditação para o futuro; a sua proposta
só poderia ser assimilada plenamente pela Virgem depois de longos
esforços de reflexão. A Anunciação fêz surgir uma fé cujo
programa de desenvolvimento já trazia em si.
Como se efetuou êsse desenvolvimento? Pelo próprio desen­
volvimento do coração maternal de Maria. À medida que pene­
trava mais a fundo na intimidade de seu filho, através das
relações de mãe e filho, a sua fé se tornava mais luminosa. No
momento da Anunciação, Maria havia aderido à verdade abstrata
da mensagem angélica. Daí por diante, conservando essa men­
sagem no coração, procurava descobrir tôda a sua verdade na
pessoa concreta de Jesus. Contemplando incessantemente o seu
filho, ela se recordava da maneira como lhe foram preditas a sua
natureza e a sua sorte, e esforçava-se por desvendá-las, por lê-las
na fisionomia e nos gestos dessa criança misteriosa.
Contràriamente ao que se poderia pensar, essa concretização
da fé de Maria não era coisa fácil. Parece à primeira vista que o
fato de se achar constantemente em companhia do Filho de Deus
tornava espontâneo o ato de fé: como viver na intimidade de
Cristo sem crer nêle? Poder-se-ia mesmo invejar essa intimidade
excepcional como um convite perpétuo a crer sem esfôrço. Ora,
tudo se passava bem diversamente. A proximidade de Jesus
punha verdadeiramente à prova a fé de Maria. Como descobrir
nessa criança que parecia tão semelhante às outras e só diferia
delas pela ausência do pecado, o brilhante destino que lhe estava
reservado? Exteriormente, nada denunciava nessa criança o Sal­
vador do povo judeu, o Messias libertador: a sua vida escoava-se
de uma maneira tão ordinária e pacífica, que não se distinguia da
vida das outras crianças de sua idade, e dir-se-ia até impregnada
da mesma banalidade. Viver em presença dessa criança não
constituía um convite especial a crer nela.
A prova de que a facilidade dos contatos com Jesus na
vida cotidiana não era um convite a acreditar em sua missão
libertadora temo-la na atitude daqueles que o evangelho chama
de "irmãos de Jesus", os seus primos: êstes recusam positiva e
obstinadamente a lhe dar fé; no comêço de sua vida pública,

84
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

procuram mesmo pôr fim ao seu ministério apostólico, taxando-o


de loucura. Sem embargo, tinham oportunidade de freqüentar
essa alma excepcional de Jesus, dotada de uma virtude perfeita
e de qualidades transcendentes, e viviam habitualmente lado a
lado com êle na simplicidade do ambiente familiar, portanto, em
condições que não permitiam dúvidas e teriam logo dissipado as
ilusões de um primeiro contato. Deveriam ser as testemunhas
mais entusiastas do caráter extraordinário de Jesus. Na beleza de
seu comportamento, não deveriam ao menos adivinhar as pro­
messas de seu futuro? Ora, nada viam de tudo isso, porque
Cristo ocultara os tesouros de sua pessoa em aparências sem
brilho, e levava a vida ordinária das crianças e jovens da Galiléia.
Não puderam desvendar o seu segrêdo. E o seu juízo acêrca de
Jesus era partilhado pelos habitantes de Nazaré, que tampouco
notavam algo de excepcional: Cristo passara despercebido entre
êles. Por isso quando mais_ tarde tomar a palavra na sinagoga de
sua terra natal, provocará a extranheza de todos: "Não é êste
o filho de José?" (Lc. 4,22). Ninguém suspeitara de que o filho
de José pudesse pregar daquela maneira. Apresentando-se como
Messias, Jesus só encontrou entre êles uma incredulidade e uma
oposição que por pouco os levava ao crime.
Mesmo durante a sua vida pública, quando Cristo procla­
mava a sua missão e a sua origem, comprovando com milagres
as suas palavras, a vida ao seu lado não impunha necessàriamente
a fé por uma evidência imperiosa. Podia-se ver cada dia o
Senhor, participar da familiaridade de suas palestras, sem crer
nêle, como o fêz Judas, que preferiu o dinheiro ao seu Mestre.
Quando Pedro, em nome dos apóstolos, responde à pergunta de
Jesus acêrca de sua própria pessoa: "Tu és o Cristo, o Filho
do Deus vivo" (Mt. 1 6,16), o Mestre observa imediatamente que
essa profissão de fé não vem da "carne nem do sangue", mas
da revelação do Pai. Não foram os contatos humanos com Jesus
que criaram essa convicção; só a luz do alto pôde formá-la.
No caso de Maria, os contatos humanos eram ainda menos
decisivos para suscitar a fé, porque Jesus não chegara ainda ao
períodq da manifestação de seus poderes messiânicos. Não fazia
nenhuma das obras extraordinárias que haveria de semear mais

85
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

tarde nos caminhos de sua pregação. Crescia simplesmente sob


os olhos de sua mãe, e o seu crescimento revestia-se das propor­
ções normais. Se a fé da Virgem não fôsse de um vigor inaba­
lável e de uma profunda intuição, ela teria ficado perplexa, ante
êsse desenvolvimento tão humilde e banal de uma criança que
era preparada por Deus para uma tão elevada missão. Teria
ficado desconcertada notadamente pela submissão absoluta
de Jesus a seus pais. Essa submissão era perfeita e impres­
sionara profundamente Maria, como no-lo deixa supor a
frase de São Lucas: "E era-lhes submisso" (Lc. 2,5 1 ) . Aquêle
que o anjo havia designado como herdeiro do trono de Davi,
mostrava-se de uma obediência exemplar. Era uma virtude, não
há dúvida, mas isso parecia à primeira vista bem pouco conforme
com a dominação prometida à criança, com o papel de chefe
que deveria desempenhar! O seu reino não teria fim, como
certificara o anjo. Por que então essa atitude tão diferente
naquele que deveria comandar para sempre?
A medida que decorriam os anos, o espanto de Maria ante
a vida banal de seu filho se reforçava. Bem depois de ter
atingido a idade adulta e de se ter tomado homem, Jesus achava-se
ainda em Nazaré, sem manifestar a intenção de levar outra
existência. Parecia que a sua vida iria escoar-se tôda naquela
aldeia, a exercer um ofício dos mais vulgares; nada deixava prever
uma partida, e humanamente falando, o destino de Jesus devia
assemelhar-se ao de José. Maria não podia deixar de se perguntar:
quando e como se realizará a profecia do anjo? Até o presente,
tudo parecia desmenti-la. O anjo havia anunciado aconteci­
mentos extraordinários, que não se verificavam. É ao contato
dessa banalidade de cada dia que a fé de Maria teve de reagir.
Maria prendeu-se fielmente à mensagem da Anunciação para
tentar compreender seu filho. O seu olhar de mãe discernia
em Jesus aquilo que podia escapar a outros olhares menos íntimos
e menos amantes. Descobria cada vez mais nesse filho enigmático,
traços que confirmavam as palavras- da Anunciação. Maria
apreciava a sua nobreza de alma, que era mais difícil de ser
percebida, mas também mais tocante sob as aparências de bana­
lidade; ela admirava a pureza imaculada da criança, a perfeição

86
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

de tôdas as suas qualidades. Entre dois gestos, ligeiras diferenças


podem revelar uma diferença fundamental de mentalidade; obser­
vando seu filho entre as outras crianças, a Virgem impressionava­
se às vêzes com essas diferenças, que aliás só ela notava. Des­
cobria com freqüência, na simplicidade de uma ação de Jesus,
uma estranha sublimidade de sentimentos; observava tudo isso,
porque tinha para com Jesus não só a simpatia de uma mãe,
mas também uma conaturalidade na santidade. A Virgem era
também uma alma de qualidade excepcional, oculta sob aparên­
cias de extrema simplicidade; como o seu filho, era de uma
pureza imaculada; seus sentimentos atingiam os limites do sublime
sem que ela o notasse. E é por isso que ela percebia com tanta
acuidade os atributos de seu filho. Mas o que harmonizava na
inteligência de Maria todos êsses dados e o que lhe permitia
adivinhar cada vez mais o seu sentido profundo, era a mensagem
do anjo. A alma da Virgem permanecia suspensa a essa revelação
divina e o seu olhar maternal sôbre Jesus era iluminado pelo seu
ato de fé da Anunciação. Nesse olhar, ela não cessava de
abranger conjuntamente o quadro traçado pelo anjo e a fisio­
nomia pessoal de seu filho. Ela comparava; ela aprofundava o
grau de sua fé pelas verificações de suas experiências. Aos seus
olhos de crente, aparecia sempre mais nitidamente o Salvador de
Israel, cujos traços ia colhendo pacientemente no comportamento
de seu filho.
Todavia, ela foi surpreendida e desconcertada por muitos
aspectos dêsse comportamento. Segundo o Antigo Testamento,
a época messiânica devia ser marcada por imensas perturbações
e pelo brilhante triunfo do Messias. Ora, a glória de um sal­
vador sobrevindo no tumulto de uma vitória sôbre os inimigos
do povo não parecia, até o presente, desenhar-se na fisionomia
de Jesus; a mansidão e a humildade da criança pareciam anunciar
um destino diferente, bem mais modesto. Maria acreditava, mas
não via. É certo que ela via Jesus, mas não reconhecia nêle a
figura tradicional do Messias. Nessas trevas e dificuldades, a
sua fé só lhe ditava uma atitude: confiar simplesmente no mis­
tério de seu filho. Sim, porque era um mistério que se escondia­
por detrâs daquele rosto. Maria respeitava-o, aguardando a hora

B'l
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

em que a sua fé pudesse penetrá-lo mais a fundo. Quando se


chocava com essa espera do desconhecido ou quando observava
uma estranha maneira de agir, ela se calava e abandonava-se à
sabedoria divina. Desconcertada, redobrava imediatamente o
vigor de sua fé, concordando em não ver o que devia simples­
mente crer. Não tinha a menor dúvida de que a mensagem
da Anunciação haveria de se realizar integralmente em Jesus.
Confiando no mistério de seu filho nesses momentos de
surprêsa ou de desorientação, progredia ainda mais no conheci­
mento dêsse mistério. Aceitando as disposições desconcertantes
da sabedoria divina, acabava por compreender melhor como se
cumpriria o destino messiânico de seu filho. O contato com
Jesus transformava pouco a pouco a sua concepção de Messias.
Nessa alma de criança e de j ovem, tão notável por sua mansidão,
ela reconhecia cada vez mais o "servo de Deus", cujo retrato
fôra esboçado num quadro profético ( 1 ) . Não quebrar o caniço
rachado nem apagar a mecha que fumega, sofrer dores imerecidas
sem se queixar, aceitar de boa mente os fardos dos pecados
alheios para os espiar, tais eram as características do comporta­
mento de Jesus. Elas anunciavam um Messias manso e humilde,
e um triunfo messiânico bem diferente das. vitórias militares e
dos êxitos políticos. Essa transformação da fé no Messias, que
se realizará mais tarde no �spírito dos apóstolos, e que só mui
lenta e dificilmente se operará nêles durante a vida pública de
Jesus, Maria a experimentara pouco a pouco, durante os longos
anos da vida oculta: o sonho de um Messias glorioso à maneira
humana cedia lugar à realidade de um Messias modesto e sofredor.
A fisionomia de Jesus dava à fé de Maria uma nova inteligência
da mensagem.

A descoberta do Filho de Deus

Em seu desenvolvimento progressivo, a fé de Maria devia


descobrir cada vez mais em Jesus o Filho de Deus. Aqui,
sobretudo, é mister precaver-se contra uma noção simplista que
(1) Is. 17, 1-9 ; 49,1-9 ; 50,4-9 ; 52,18 - 58,12.

88
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

ut rihuiria à fé da Virgem, desde o momento da Anunciação,


1 1 1 1 1 n visão perfeitamente clara e distinta de tudo o que estava
Implicado na filiação divina de Cristo, com aquela precisão
doutrinai que foi adquirida na Igreja depois de muitos séculos.
Pura saber em que medida a fé de Maria foi esclarecida sôbre
u ori&'ern divina de seu filho, é preciso reportar-se às palavras
do anJO. Ora, o anjo empregou duas expressões alusivas à filiação
de Jesus: "êle será grande, e será chamado filho do Altíssimo"
( Luc. 1,32). A seqüência da declaração, em que se fala do
destino messiânico do menino, parece indicar que é chamado
filho do Altíssimo por causa de sua qualidade de Messias. Em
seguida o anjo anunciou que o menino nascido de Maria "seria
ehamado Filho de Deus". E indicou a razão disso: "o Espírito
Santo virá sôbre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá com a
sua sombra" (Luc. 1 ,3 5 ) . O que é visado diretamente pela
npelação de Filho de Deus, é portanto a concepção núraculosa
da criança pela operação do Espírito Santo: Jesus será chamado
Filho de Deus, porque o próprio Deus operou a sua geração
no seio de Maria. Não se diz expressamente que a criança é
o Verbo, o Filho eterno do Pai. A filiação divina no sentido
próprio e transcendente é proposta na mensagem do anjo de uma
maneira implícita: se Deus opera, pela intervenção do Espírito
Santo, a concepção da criança, é que êle quer manifestar a sua
estrita paternidade a respeito dela. Para revelar a geração eterna
do Fil?o pelo Pai, êle coloca a geração temporal no seio de
uma vugern.
A verdade sôbre a filiação divina de Jesus só fôra expressa
pelo anjo sob urna forma obscura, como um nústério implicado
no da concepção núraculosa. Maria não podia compreender
imediatamente tudo o que significava essa filiação divina; devia
penetrar pouco a pouco no mistério. Decerto, Deus poderia
ter-lhe revelado em têrmos luminosos, pela voz do anjo, a natu­
reza divina do Verbo, e ter-lhe enunciado o nústério da Santís­
sima Trindade tal como é definido atualmente na doutrina da
Igreja. Mas não o quis. Por quê? Primeiramente porque se
tratava de uma doutrina muito elevada, extremamente descon­
certante para os judeus em razão do seu monoteísmo: se havia

89
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

um só Deus, com exclusão de qualquer outro, como podia êsse


Deus ter um Filho, que também era Deus? Habituada a crer
com tôda a fôrça de sua alma na unicidade de Javé, Maria teria
ficado perplexa ante um enunciado claro da filiação divina de
Cristo. Ora, já a mensagem da Anunciação que a chamava a
tornar-se mãe do Messias constituía para ela um grande choque.
Deus não quis, neste momento, causar maiores surprêsas à Virgem,
e por isso só lhe revelou a origem autêntica de seu Filho de
uma maneira velada, em têrmos cujo sentido Maria poderia
aprofundar daí por diante.
Além disso, o que Deus queria suscitar essencialmente em
Maria, era menos uma simples adesão intelectual à verdade da
filiação divina do que uma fé viva nessa filiação, alimentada por
uma descoberta concreta e experimental. Deus queria que a
Virgem chegasse pouco a pouco, por sua contemplação de Jesus,
ao conhecimento profundo de sua natureza de Filho de Deus.
Era preciso que êsse conhecimento de fé se enraizasse em _seu
coração materno e assim j orrasse de tôda a sua vida íntima.
Inclinada sôbre o seu filho, Maria interrogava-lhe o semblante.
Fazia-o como as outras mães o fazem quando procuram em seus
filhos semelhanças de família e se esforçam por identificar-lhes
os traços. Maria procurava descobrir com quem se parecia o
seu filho. Reconhecia nêle a sua própria semelhança; mas essa
hereditariedade maternal não bastava para explicar tudo. Havia
traços que permaneciam um enigma: aí começava verdadeira­
mente o mistério. Maria recordava-se então do título de Filho
de Deus dado pelo anjo. Não seriam aquêles traços misteriosos
a marca divina? As outras mães regozijam-se ao encontrar em
seus filhos traços da fisionomia paterna. Maria esforçava-se por
discernir nesse filho vindo do céu os traços do Pai celeste, por
descobrir nêle grandiosas semelhanças. Que descoberta como­
vedora para aquela que nunca cessara de elevar os seus olhos
para o Senhor! Aquêle Deus em quem ela acreditava de tôda
a sua alma, a Virgem, surprêsa, arrebatada, via-o refletir-se em
seu filho. Invisível até ali, Javé tornava-se repentinamente visível
nos olhares e nos gestos de Jesus.

90
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

Foi principalmente na oração de seu filho que Maria pôde


11otar o reflexo do Pai celeste. Pertencia a ela educar Jesus na
oração, ensinar-lhe as palavras e fórmulas das orações humanas:
Maria ensinou-lhe portanto as orações tradicionais dos judeus.
Fssas orações eram balbuciadas pela criança com tanta alma que
11esse momento o seu rosto se transfigurava: uma afeição filial
i11tcnsa arrebatava-o para o céu, e êle ultrapassava logo as fórmulas
uprcendidas. Maria apercebia-se de que a intimidade de Jesus
com o pai celeste excedia muitíssimo o que a sua educação
maternal lhe podia dar.
Essa consciência de ser ultrapassada pelo mistério das rela­
�·õcs de seu filho com Javé, atingiu um ponto culminante por
ocasião da perda de Jesus no templo. Fôra por decisão de
Maria que o seu filho a acompanhara na peregrinação a Jerusalém;
mas Jesus foi além das intenções de sua mãe e permaneceu no
lugar sagrado, onde encontrava a presença do Pai celeste. A sua
resposta à pergunta ainda angustiada de Maria foi significativa:
"Não sabíeis que devo estar na casa de meu Pai? " (Luc, 2-49) .
Maria o sabia, segundo a palavra de Jesus. Sabia que o filho
fiira concebido miraculosamente por Deus, que êle pertencia a
Deus. E todavia não compreendeu a resposta, o que mostra
' l ue ela não alcançara ainda tudo o que comportava a filiação
1 ivina de Jesus. O menino de doze anos falava de "seu pai",
de Deus, opondo-o ao pai do qual acabava de lhe falar Maria,
isto é, José. Queria portanto afirmar que Deus era o seu pai
num sentido próprio, e que a sua verdadeira casa familiar era
o templo. Completava desse modo a revelação do anjo, expli­
cando em que sentido absoluto êle era Filho de Deus. tsse
título de sua filiação divina, devia ser entendido no sentido mais
estrito.
A Virgem reteve esta palavra que não havia compreendido
imediatamente; meditou-a comparando-a com tudo o que já
observara em Jesus. É assim que, pouco a pouco, ia-lhe pene­
t rando o significado. De fato, a resposta da criança esclarecia
11 sua origem primeira, a concepção miraculosa, e depois todo
o seu comportamento passado. A sua atitude extremamente filial
com Deus, que tomava tão bela a sua oração, a ponto de mais

91
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

tarde os apóstolos ficarem maravilhados, explicava-se plenamente


se Deus era o seu pai da maneira mais formal. E tôdas as seme­
lhanças e marcas divinas que haviam impressionado a Virgem
recebiam a sua justificação.
_

Demais, a palavra de Jesus era esclarecedora quanto ao seu


futuro. Fôra pronunciada na idade da adolescência, no momento
em que a criança ia tornar-se um homem. As qualidades humanas
de Jesus desenvolviam-se. Maria acabava de ser advertida de
que devia descobrir nessa personalidade em pleno desabrochar
uma réplica da pessoa do Pai celeste, o sinal de uma verdadeira
hereditariedade. A virgem pôs-se a descobrir o que a doutrina
posterior da Igreja chamará de igualdade das propriedades das
pessoas divinas. Reconheceu-o experimentalmente, observando
em seu filho qualidades semelhantes às de Javé. No jovem que
crescia diante de seus olhos, via desenvolver-se a fôrça prodigiosa
de um amor pronto a manifestar-se, a onipotência de uma bon­
dade misericordiosa que queria derramar-se. Na sombra em que
se ocultava a alma de Jesus, Maria descobria aquêle "Javé",
Salvador de seu povo, que mantinha na sombra de seus divinos
segredos um plano de salvação cuja realização se aproximava.
Jesus era "Salvador" exatamente como Javé: tinha o mesmo
desejo de libertar a humanidade, o mesmo poder pronto a intervir.
Na afeição terna e forte de seu filho, aberta a todos, Maria
reconhecia a benevolência fundamental do coração de Deus para
com tôdas as suas criaturas. Na lucidez penetrante de seu olhar,
que parecia ir até o fundo das almas, sem que elas se alarmassem,
a Virgem sentia a luminosidade do olhar divino, que desce até
às últimas profundezas das consciências com silenciosa doçura.
A retidão inflexível de Jesus não era a mesma retidão magnífica
da santidade e da justiça de Javé? E não se reproduzia na
magnanimidade de seus sentimentos a generosidade ilimitada do
Altíssimo? A riqueza e a simplicidade de sua alma pareciam
um reflexo da simplicidade e da amplitude imensa de Deus.
Nesse homem que encerrava tôda a· capacidade humana, Maria
discernia cada vez mais a plenitude divina.
Havia uma só diferença: essas propriedades que se achavam
em Javé sob uma forma paternal, Jesus refletia-as e as possuía

92
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolviment o

à maneira de um filho. Filho amante e obediente, Jesus o era


de todo o seu ser, e essa característica fundamental comunicava-lhe
à personalidade um colorido todo particular. Na criança 9ue
lhe era submissa, Maria reencontrava o filho inteiramente docil
ao Pai; na intimidade de Jesus com ela, descobria sua intimidade
filial com o Todo-Poderoso. Dêsse modo, por seu coração
maternal iluminado pela fé, penetrava pouco a pouco no mistério
da filiação divina de Jesus.
Graças a êsse trabalho de aprofundamento que se prolongou
durante tôda a vida oculta de Cristo, Maria compreendeu, por
um conhecimento vivo e concreto, o que era o Filho de Deus.
Jamais precisou fazer aquela pergunta que Filipe dirigiu ao
Mestre no fim de sua vida pública: "Senhor, mostra-nos o Pai".
O Pai fôra mostrado à Virgem, que adquirira assim o conheci­
mento supremo da fé: o Pai fôra-lhe revelado no Filho. Maria
poderia confirmar, por sua experiência pessoal, o que o Mestre
responderá a Filipe: "quem me vê, vê o Pai" (lo. 14, 8-9).

Fé de Maria e fé da Igreja

A fé da Igreja na filiação divina de Cristo formou-se no


coração maternal de Maria. Pode-se dizer verdadeiramente que
se a Virgem levou o menino Jesus em seu seio durante nove
meses para o dar ao mundo, ela levou em seu coração a fé da
Igreja durante trinta anos para formá-la e comunicá-la . em
seguida aos discípulos. Por isso o quarto Evangelho, refletindo
o pensamento do discípulo que viveu com Maria e recolheu a
sua mentalidade, acentua mais deliberadamente a filiação divina
de Jesus: "f:sse livro foi escrito para que vós creiais que Jesus
é o Cristo, Filho de Deus " (lo. 20,3 1 ) . A fé da Virgem
. . .

concentrara-se no Filho de Deus, que ela reconhecera sempre


mais intimamente em Jesus; a sua convicção, transmitida ao
discípulo amado sob uma forma particularmente viva, esclarece­
nos ainda mais através das páginas do "evangelho espiritual".
O · pro�resso da fé na alma da Virgem revela-nos ao mesmo
tempo a le1 do progresso da fé na Igreja. Como Maria, a Igreja

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

de todos os tempos deve crescer em sua fé. O desenvolvimento


do do�a faz aparecer com mais clareza e precisão no decurso
dos seculos a verdade cristã. A Igreja completa assim uma
progressão que teve comêço no coração maternal da Virgem.
Há todavia uma diferença essencial entre o caso de Maria
e o da Igreja. No momento em que a Virgem aprofundava a
sua fé pelo progresso de suas meditações pessoais sôbre o mistério
de Jesus, o depósito da revelação não estava ainda constituído.
Estava em vias de formação, e a própria Virgem colaborou para
essa formação, transmitindo aos discípulos as suas próprias
memórias, relatadas por São Lucas no Evangelho da infância.
Compreende-se melhor a extensão do progresso realizado pela
Virgem em sua fé se se lembra de que a revelação estava em
processo de formação, e de que a fé de Maria desenvolvia-se
com os acontecimentos de salvação de que era contemporânea.
O progresso do dogma na Igreja sobreveio ao contrário, após o
remate dêsses acontecimentos, após a constituição do depósito
da revelação.
Entretanto, mesmo que a Igreja não tenha de percorrer a
mesma distância em seu trabalho de aprofundamento da fé, Ja
que não lhe coube a formação dêsse depósito, ela deve inspirar-se
no exemplo de Maria. Como a Virgem, deve conservar as
palavras divinas em seu coràção, para penetrar-lhes sempre mais
o sentido por uma meditação contínua e cada vez mais apro­
fundada. Deve, sem dúvida, preservar o cabedal de verdades que
recebeu e defendê-lo contra todos os erros e mutilações; mas
deve sobretudo aprofundá-lo, e avançar sempre mais na com­
preensão do seu mistério. A sua missão é pôr em relêvo sempre
maior todos os seus aspectos. A reflexão da comunidade cristã
sôbre a mensagem divina prolonga as secretas reflexões pessoais
de Maria.
O exemplo da Virgem mostra-nos ainda em que direção
deve efetuar-se êsse progresso da fé. Maria acreditara nas
palavras do anjo, isto é, na voz do próprio Deus. Mas ao
mesmo tempo que mantinha a sua adesão total a essa men­
sagem e a consolidava, ela concentrava sempre mais a sua fé
na pessoa de Jesus, em quem se realizava a mensagem. Tudo

94
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

o que o anjo lhe havia dito, ela o descobria na fisionomia de


�cu filho, por uma experiência penetrada de fé. Da mesma forma,
n I g- reja esforça-se
por tornar a sua fé mais penetrante dirigindo-a
J ll:us profundamente para a pessoa do Salvador. O desenvolvi­
lllento do dogma não consiste somente na formulação de uma
doutrina abstrata, mas no reagrupamento dessa doutrina em seu
l"Cntro, isto é, em Cristo. À análise dos elementos doutrinais
deve corresponder sempre um movimento de síntese que reúna
o todo numa visão mais compreensiva da pessoa de Jesus. É
nssim que as definições dogmáticas da Imaculada Conceição e
da Assunção, afirmando os privilégios particulares de Maria,
levam a Igreja a descobrir melhor o Cristo em suas exig-ências
de santidade e em seu destino glorioso, porque um conhecimento
mais profundo da pureza imaculada e da glorificação da Virgem
deve provocar um conhecimento mais íntimo dessas mesmas
qualidades em seu Filho. O progresso da fé na Igreja acaba E�r
convergir sôbre a pessoa do Salvador um feixe mais abundante
de luz, a fim de que em face de tôda a Igreja como em face
de Nossa Senhora, Cristo ocupe sempre mais o lugar central, e
tudo se compreenda por êle e nêle.
Enfim, o exemplo da Virgem indica o meio de desenvolvi­
mento da fé: a intimidade com o Salvador. É por uma intimi­
dade crescente com Cristo que a Igreja, seguindo as pisadas de
Maria, deve progredir em sua compreensão da revelação. A
oração da comunidade cristã abre-a de modo particular a uma
luz mais vasta; a liturgia, que exprime o impulso da Igreja para
o Senhor em vista de estabelecer com êle uma união mais estreita,
contribui para esclarecer mais perfeitamente a doutrina. Na
linha do ideal de fé da Virgem, a Igreja aprofunda incessante­
mente o seu olhar de fé por uma adesão mais total ao Mestre,
de sorte que o desenvolvimento intelectual de seu tesouro dou­
trinai procede do progresso de sua vida em Cristo.
Assim acontece também com cada cristão em seu destino
religioso individual. A Virgem, que nunca deixou adormecer a
sua fé, convida os discípulos de Cristo a manter uma fé sempre
desperta, sempre cuidadosa de receber mais amplamente a luz
divin_a. Leva-os a compreender a beleza de uma fé que procura,

95
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

ativa mas tranqüilamente, no silêncio da oração e da meditação,


penetrar mais adentro num nústério que a ultrapassa; uma fé
que segue o atrativo profundo por descobrir sempre mais o centro
do nústério no Filho de Deus encarnado, por adquirir no contacto
oculto, mas real, com a adorável pessoa do Salvador, um conhe­
cimento mais experimental e mais saboroso da verdade, num
plano intelectual e afetivo em que a fé se junta ao amor. Mais
ainda, o progresso efetuado por Maria não é somente um ideal,
mas também um encorajamento e um reconfôrto: as trevas e os
pontos -de interrogação não foram poupados a Maria, que deve
ter-se esforçado por encontrar uma clareza sempre mais com­
pleta. Se a própria mãe de Deus teve de escrutar, à fôrça de
longas reflexões, o enigma do Filho de Deus, não é normal gue
o cristão tenha de lutar para triunfar das obscuridades de sua fé?
E, como no caso de Maria, não são essas obscuridades um esti­
mulante para olhar sempre mais a pessoa de Cristo, para "sur­
preender" o seu segrêdo e encontrar finalmente nêle a harmonia
superior da verdade?

Maturidade da fé

No fim da vida oculta, a fé de Maria na filiação divina


de Jesus chegara à maturidade. Temos um indício disso no
episódio de Caná, em que se revela o resultado do longo trabalho
de aprofundamento: a Virgem exerceu aí um ato de fé de
extraordinário vigor. Para compreender-lhe o alcance precisamos
analisar tudo o que supõe a diligência de Maria junto de seu
filho.
O que havia de mais simples para Maria, diante da situação
embaraçosa em que se achavam os nubentes, do que dizer a Jesus:
"tles não têm mais vinho? " (fo. 2,3 ) . Mas a simplicidade dessa
palavra não deve ocultar-nos a sua ousadia. Por ela, Maria pede
um milagre. Como Cristo poderia fornecer vinho a não ser
por seu poder milagroso? O pedido não teria sentido, se não
fôsse o pedido de um prodígio. Que gênero de prodígio? Maria
ignorava-o e não se preocupava de modo algum em indicar a

96
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

Jesus o caminho a seguir. Dirigia-se aliás ao seu filho de uma


maneira delicada, limitando-se a lhe confiar a situação. Expu­
nha-lhe o caso, sabendo que êle mesmo encontraria meios para
resolvê-lo, em virtude de sua onipotência divina.
Entretanto, Jesus não havia feito ainda nenhum milagre.
Para o futuro, quando Cristo tiver manifestado o seu poder
miraculoso, quando tiver dado a vista a numerosos cegos e a
saúde a uma legião de leprosos, compreende-se que lhe sejam
dirigidas petições de curas extraordinárias. Mas aqui Maria
reclama um prodígio à9uele que ainda não efetuou nenhum,
nem descobriu a ninguem o seu poder de efetuá-lo. Donde
tiraria ela a inspiração de seu pedido, senão da profundeza de
sua fé? Antes de ter visto, Maria acreditava. A ela em pri­
meiro lugar aplicava-se a palavra que o Senhor pronunciará
mais tarde: "bem-aventurados aquêles que não viram e creram"
(lo. 20,29). A Virgem repetia em Caná nesse princípio da vida
pública de Jesus, o ato de fé que praticar no dia da Anunciação,
crendo no nascimento miraculoso da criança.
Manifestava-se assim, numa atitude discreta mas muito signi­
ficativa, a fôrça excepcional da fé de Maria. No momento das
núpcias de Caná, Maria é a única a acreditar; e essa solidão
na fé, em vez de enfraquecê-la, dá-lhe um impulso que se pode
considerar como uma preliminar do prodígio que Jesus irá realizar.
Até então, na vida em Nazaré, Maria não havia reclamado de
seu filho nenhum milagre; conformara-se com a intenção de
Jesus de permanecer na sombra. Mas agora compreendia que
por seu ministério apostólico Jesus queria revelar-se ao mundo.
Maria estava consciente de pedir a Jesus uma manifestação pública
de sua onipotência: não recuou diante da ousadia de semelhante
prece. Ao ver a indigência que arriscava pôr têrmo à festa, e
como conhecia a simpatia de Jesus pelos pobres, não hesitou em
pedir-lhe para os nubentes um prod1gio que deveria revelar a sua
identidade. Adivinhava que a bondade de Cristo não lhe resis­
tiria, e que a sua confiança seria recompensada.
Entretanto, Jesus não parecia disposto a atender-lhe o pedido:
"Mulher, g ue há entre mim e ti? A minha hora ainda não
chegçm" (lo. 2,4) : Observava à sua mãe que ela intervinha num

9i
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

domínio que não era seu, o domínio da vida pública, onde as


simples relações entre mãe e filho não lhe conferiam nenhum
direito. A hora do primeiro milagre fôra fixada por Aquêle que __

dirigia tôda a missão de Jesus, o Pai, e essa hora não havia


ainda soado. Nessas palavras, que poderiam ser uma recusa,
Maria reconheceu que não havia uma vontade absoluta de
renegar o seu pedido; e o reconheceu sem dúvida, por sua intuição
materna, no olhar e no tom de voz do filho. A sua fé pôde
assim manifestar-se com mais fôrça e mais delicadeza. "Fazei
tudo o que êle vos disser", recomendou simplesmente aos servos.
O vigor de sua fé aumentara, porque ela ousava já prevenir os
servos como se Cristo se dispusesse a lhes dar ordens; mas
procedia com extrema delicadeza, porque a fórmula "tudo o
que êle vos disser" deixava a Jesus inteira liberdade e interdizia-se
de se antecipar à sua decisão. A Virgem manifestava claramente
que persistia mais do que nunca em seu pedido, e que esperava
vê-lo atendido sem demora; mas testemunhava que só queria
esperar essa graça do livre exercício da onipotência de seu filho.
A sua fé mostrava-se de uma perseverança docemente obstinada
e ao mesmo tempo de uma dependência total.
Cristo não tardou em recompensar essa perseverança.
Avançou a hora e fêz o milagre. Notemo-lo bem: foi à fé de
Maria e não somente ao seu título de mãe que êle concedeu
êsse favor. Jesus havia decidido que em sua vida pública êle
não usaria de favoritismo para com seus parentes: "Mulher",
dissera êle à sua mãe, , para _s_e colocar acima das relações íntimas
de família. O comportamento da Virgem contormara-se a essa
vontade. Diante da resposta pouco favorável de seu filho, ela
não insistiu junto dêle para tentar enternecê:lo: ao contrário,
afastou-se e foi ter com os servos; e foi à distância, a essa distância_
reclamada pela pergunta: "que há entre ti e mim?" que ela
continuava a apresentar a Jesus a persistência de sua oração.
Nada ilustra melhor a eficácia da fé. O que Cristo teria_
recusado a_ Maria como mãe, êle o ·concede a M aria comtY érente.
Por sua fé, a Virgem triunfou da objeção formulada pelo Sal­
vador: essa objeção valia no plano da intimidade humana, mas
não valia no da intimidade superior da fé. Fundamentalmente

98
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

animado dessa fé, o coração materno de Maria tornava-se irresis­


I Ível para Jesus.
Ora, essa vitória de Maria pode ser partilhada por todos os
! tue crêem. Se Cristo . tivesse concedido o milagre por causa da
s1mples afeição filial, inão poderíamos esperar um acolhimento
semelhante ao da Virgem, que formaria um caso inteiramente
único. Mas se o prodígio de Caná é uma conseqüência da fé,
somos chamados, por nossa fé, a participar do triunfo de Maria.
(.: bem isto o que nos ensina o Evangelho quando nos conta a
história da cananéia, a qual, posta à prova por uma recusa apa­
rente de Jesus, persistiu em sua fé e acabou por ser atendida.
Uma fé perseverante na alma mais modesta é um penhor infalível
do bom êxito . de sua oração.
A transformação da água em vinho acabava portanto de
sancionar a fé de Maria. Não era um privilégio que Cristo reco­
nhecia à sua mãe, o qual lhe permitiria mudar a seu bel-prazer
a ordem dos acontecimentos de sua vida pública. Era uma graça
que Jesus teria concedido a qualquer outra pessoa que tivesse
uma fé da mesma dimensão. Se êsse milagre constitui um acon­
tecimento excepcional, porque inaugura a série dos milagres, é
que a fé de Maria tinha um caráter excepcional, e inaugurava
a fé da multidão dos crentes. Foi um milagre que constituía
um símbolo da fé da Virgem, fé completa que ia até aos últimos
limites da confiança: as talhas foram enchidas até em cima, e a
abundância de vinho atingiu o seu máximo.

Missão sublime da fé

O episódio de Caná põe em relêvo a importância que Deus


atribui à fé na obra da salvação. Já sublinhamos essa importância
no episódio da Anunciação, quando Deus, antes de realizar a
Encarnação, pediu a Maria a sua adesão. Aqui, antes de revelar
aos homens a onipotência de Jesus pela realização do primeiro
milagre, êle inspira primeiramente à Virgem um ato de fé. A
fé de ]\1aria, que a tornou mãe de Cristo, torna-a mãe do primeiro
milagre.

99
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Segundo o plano divino, é a fé dos homens que deve . atrair


e provocar as manifestações do poder divino e a execução do
plano de salvação. Deus, que poderia agir sozinho, só quer operar
na humanidade em ligação com a fé, e a exige como condição
preliminar para a atuação de sua energia miraculosa. O que o
episódio de Caná revela de modo particular é o papel de inicia­
tiva espontânea e ousada que é atribuído à fé. No momento da
Anunciação, Deus havia comunicado a sua proposta a Maria e
solicitado o seu assentimento. Em Caná, é Maria quem propõe
e obtém, por sua fé, o assentimento divino. A Virgem intervém
para suscitar a primeira manifestação pública do Messias, e o faz
de sua própria iniciativa, aliás suscitada e guiada pela graça.
Intervém mesmo, aparentemente, para modificar a disposição do
plano divino; e se persiste em seu pedido depois da resposta de
Jesus: "A minha hora ainda não chegou", ela o faz consciente­
mente. A sua fé tem a audácia de reclamar uma mudança da
decisão divina, uma antecipação da hora do primeiro milagre.
Audácia aprovada finalmente pelo Senhor, que lhe concede plena
satisfação. Na realidade, a atitude de Maria não foi somente
aprovada depois de se manifestar; fôra desejada pelo próprio
Senhor. Deus esperava-a para mudar a hora. Decerto o pri­
.meiro milagre fôra previsto pelo Pai para outra circunstância; a
festa de umas bodas não parecia o quadro mais apropriado para
a revelação do Messias. Havia milagres mais importantes e muito
mais simbólicos do que o fato de dar vinho para entreter a
ale�ria de convivas: tantos infelizes esperavam a sua cura! Não
sena melhor que Cristo abrisse os olhos de um cego para mostrar
que êle era a luz do mundo, ou que devolvesse o movimento
a um paralítico para provar que vinha trazer a libertação dos
liames do pecado? É fácil compreender que na intenção divina
o primeiro milagre de Jesus não devia ser operado em Caná.
Mas o projeto do Pai celeste comportava ao mesmo tempo a
vontade de deixar à Virgem a possibilidade de mudar essa dispo­
sição. De antemão, e aqui esta o mistério, Deus entregara à fé
de Maria . o poder de determinar a hora. A fé, como já dissemos
a propósito da Anunciação, encerra como quç um poder sôbre
o próprio Deus.

1(}0
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

Assim se manifesta o papel da fé no desenvolvimento do


plano salvífico. Deus deixa à fé a iniciativa de provocar a
expansão de seu reino; deseja a santa violência de uma fé que
o obrigue a ceder, quer que ela dilate os limites im ostos ao
p
desdobramento da obra salvífica, porque êle mesmo so aspira a
alargar a sua generosidade; mas quer fazê-lo unicamente com a
colaboração humana. Testemunhando ousadia em sua fé, ao
entrar em luta com o Pai para atin�ir o seu objetivo, a Virgem
correspondeu ao mais ínttmo deseJO de Deus. Lutava contra
Deus, mas tinha o próprio Deus consigo.
Por sua vitória, Maria obteve de Deus um nôvo esplendor
para a missão pública de Jesus. Poder-se-ia temer que a reali­
zação do milagre no ambiente de umas núpcias fôsse menos digno
da grandeza de Cristo e desse uma idéia menos elevada de sua
missão. A Virgem não se preocupou com semelhantes conside­
rações que interessavam o conjunto da disposição divina; só via
o embaraço momentâneo dos pobres nubentes, e é essa situação
que ela queria remediar. Quanto ao resto, confiava na onipo­
tência do Senhor: atitude esclarecedora para nós, quando somos
tentados a perguntar se é razoável dirigir a Deus certos pedidos
para satisfazer necessidades particulares, dado que semelhantes
pedidos perturbariam, ao que parece, a busca de um bem mais
geral. Maria acreditou simplesmente que Deus era capaz de
conciliar tôçlas as coisas; abandonou-se a uma sabedoria superior
que não conhece embaraço. Para ouvir Maria, Deus não
se viu constrangido a adotar uma solução menos bela. A
primeira manifestação do Salvador não foi aviltada pelo quadro
das núpcias; ela se manifesta aí de uma maneira mais tocante.
Pôs em relêvo, notadamente, a bondade do Senhor, cheia de
ternura pelos pequenos e humildes, a sua preocupação por ajudá­
los até em suas menores necessidades e por lhes proporcionar
alegria. Improvisado a pedido da Virgem, o milagre de Caná
revelou precisamente a mensagem essencial de Jesus, o amor
divino que vem em socorro da miséria humana. A onipotência
divina correspondeu perfeitamente à confiança de Maria, fazendo
dêsse prodígio um testemunho da pessoa e da missão de Cristo.
Conferiu-lhe um valor simbólico, . pois a mudança da água em
I

101
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

vinho aponta para a transformação que Cristo vem realizar neste


mundo, e mais especialmente a transformação prodigiosa que nos
dá a Eucaristia. O alcance doutrinai do milagre estende-se ainda
ao matrimônio, no qual Cristo infunde um nôvo amor, melhor
do que o primeiro, e atinge a própria Virgem Maria, pondo em
relêvo o seu papel decisivo na distribuição das graças. O episódio
mostra-nos de uma maneira tocante como a profunda simpatia
de Maria p elos nubentes atraiu a bondade de Cristo sôbre êles,
e como a fé enérgica da Virgem determinou a primeira revelação
pública do Salvador; indica-nos também o laço estreito que existe
entre o coração de Maria e o coração de seu filho, laço formado
aqui por um amor comum à humanidade e por uma fé a que cor­
responde um infalível deferimento.

Mãe da fé dos discípulos

Pelo entusiasmo de sua fé, Maria cumpria a missão maternal


que lhe fôra confiada, a missão pública daquela que devia de
certo modo engendrar e multiplicar a fé. Mãe de Cristo na fé,
Maria torna-se em Caná mãe da fé dos discípulos. São João
termina a narração do episódio por estas palavras, de uma imensa
amplitude em sua aparente simplicidade: "E seus discípulos
creram nêle" �. 2, 1 1 ) . A fé dos ap óstolos surgiu no sulco
da fé da Virgem, suscitada pelo prodígiO alcançado por essa fé.
Em Caná, vemos a fé da Igreja nascer da fé que j á se achava no
coração maternal de Maria. Uma vez chegada à maturidade, a
fé da Virgem transbordava e transmitia-se aos outros. Podia
agora comunicar aos discípulos a fôrça íntima que havia acumu-
lado durante os anos de vida oculta em Nazaré. Assim se reve­
iava o desfêcho dêsse trabalho de aprofundamento que fôra
verdadeiramente destinado a constituir a fé da Igreja: Maria
fazia a comunidade cristã participante da luz de sua fé.
Ora, transmitindo a sua fé, a Virgem deixava na comunidade
a sua marca pessoal. Em Can'á, Maria acreditou no milagre. Já
sublinhamos a que ponto Maria teve de dar provas de vigor e de
audácia, para acreditar no poder miraculoso de Jesus, poder que até
então ficara sepultado no segrêdo de sua personalidade. A

102
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

Virgem confiou ao seu filho uma situação sem saída, e ousou


r.eclamar um prodí�io. Arriscamos por vêzes a perder de vista
l�ssa audácia magmfica da fé, que recusa considerar a ordem
natural das coisas como um limite fatal que não pode ser
u ltrapassado. A fé apela diretamente para uma ordem superior
q ue domina e envolve a natureza. Ter fé é crer no impossível,
porque o que Deus decidiu executar é algo humanamente impos­
s(vel, e tôda a emprêsa da salvação transcende absolutamente as
possibilidades do homem e das leis naturais. O milagre é uma
expressão dessa transcendência da natureza pela obra divina: êle
introduz na organização dêste mundo uma causalidade sobre­
natural. Se uma testemunha tivesse adivinhado, em Caná, o sen­
t·ido da súplica de Maria, se tivesse compreendido que se tratava
de um milagre a obter, não teria alçado os ombros diante de
uma tal pretensão, e não teria aconselhado uma prudente resig­
nação ao embaraço criado pela falta de vinho? E precisamente
esta fatalidade que a fé não admite, porque busca o seu recurso
numa fôrça que se situa acima dos limites humanos. Ousada­
mente, a fé pretende derrubar o muro das impossibilidades da
natureza. Imprimindo à fé cristã a audácia de Caná, Maria pro­
porcionou essa fé ao poder extraordinário da graça: em face de
um mundo que parece submisso às suas fatalidades e incapaz de
remediar a sua miséria, o cristão acredita num poder que resolve
os problemas aparentemente insolúveis, num poder que transforma

n humanidade fazendo-a sair de suas situações embaraçosas; acre­


dita no milagre que a graça realiza constantemente nas almas.
De outro lado, essa fé no milagre vem reforçar a confiança
pessoal em Cristo. Com efeito, foi essa confiança pessoal que
se estabeleceu nos apóstolos à vista do prodígio: e at está outra
característica da fé de Caná, que subsiste fundamentalmente na
fé cristã. Na Virgem, essa confiança não era um sentimento
passageiro, mas uma disposição de alma que se identificava por
assim dizer com a sua vida, que lhe tomava todo o ser e o
polarizava para o Senhor. Maria havia descoberto o que possuía
de mais íntimo, para comunicá-lo aos discípulos, de tal maneira
que tam�ém êles professassem essa confian�a total no Filho de
Deus e dela fizessem o motor de sua existencia.

JOJ
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Maria era a mãe da fé dos discípulos. Mas era-o voluntà­


riamente? Ao se aproximar de Jesus para lhe anunciar que
faltava vinho, desejava ela, secretamente, algum acontecimento
que provocasse a fé das testemunhas? O certo é que Maria
alimentava a profunda aspiração de repartir com outros a sua
fé no Salvador. Fôra-lhe penoso, durante os anos de Nazaré,
ocultar a sua fé, como fôra penoso a Jesus esconder o seu poder
salvador. Ela suspirava por derramar em tôrno de si aquêle tão
precioso bem da fé; contemplando aquêle que possuía nas mãos
a salvação da humanidade, anelava a que êle pudesse encontrar
o melhor acolhimento numa multidão de crentes. Por isso apro­
veitou a ocasião de Caná para suscitar, o mais cedo possíveL a
fé dos discípulos. Tinha verdadeiramente pressa de comunicar
a outros a felicidade que lhe iluminava tôda a vida, a alegria de
crer no Filho de Deus, libertador dos homens. No pedido de
Maria, que tendia a avançar a hora da primeira manifestação
pública do Messias, havia em último plano uma intenção apos­
tólica. Era uma intenção por assim dizer instintiva, pois ela sabia
que o seu Filho estava destinado a salvar a humanidade; mas era
uma intenção muito firme, que contribuiu para a insistência de
sua oração. Maria queria fazer triunfar a sua fé pelo milagre,
para lhe determinar a difusão.
Assim surgiu o caráter apostólico da fé cristã, que por sua
natureza tende a se propagar, a espalhar a doutrina evangélica
no mundo. Como a fé de Caná, a fé cristã é essencialmente
comunicativa; afirmando-se, ela se multiplica, do mesmo modo
como outrora, formada no coração da Virgem, ela havia conquis- ·

tado os corações dos discípulos.

A p1'0Va suprema da fé

Em . Caná, a fé de Maria foi posta à prova. A resposta de


Jesus: "Mulher, que há entre ti e mim?" impressiona-nos ainda
hoje pela rudeza de sua forma. Realçando a distância que o
separava de sua mãe, Jesus queria uma fé que a aproximasse dêle:
afastava-se de sua mãe no plano natural das afeições familiares,

1 04
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

para se unir a ela mais intimamente pela fé sobrenatural. Entre­


l u nto, só se tratava de uma prova preparatória; a fé da Virgem
i l'ia encontrar outras lutas e novas dores.
A medida que se desenrolava a vida pública, a hostilidade dos
udvcrsários de Jesus se tornava mais ameaçadora. Com os seus
olhos, em Nazaré mesmo, Maria pôde verificar essa hostilidade,
uotadamente no dia em que o seu filho tomou a palavra na sina­
f{oga: Jesus teve de fu�ir dali, perseguido por pessoas decididas a
punir com a morte aquele que julgavam um blasfemo. Queriam ati­
ní-lo num precipício, mas êle escapou no último instante. A Virgem
recolhia os ecos de outras ameaças que pesavam sôbre o seu filho,
l: apercebeu-se de que os fariseus procuravam uma ocasião
propícia para condena-lo ou lapidá-lo. Ora, essa hostilidade não
l'onstituía somente uma dor para o seu coração materno, mas
uma prova para a sua fé. A Virgem recordava-se das palavras
do anjo Gabriel: Jesus "será grande e será chamado Filho do
A ltíssimo; o Senhor Deus lhe dará o trono de seu pai Davi; êle
reinará eternamente sôbre a casa de Jacó, e o seu reino não
l erá fim" (Lc I, 3 2-33 ) . Cristo estava destinado portanto a
l'Stabelecer um reino definitivo. Ora, o desenrolar dos aconte­
l'imentos parecia reservar-lhe um destino bem diverso: tudo indi­
cava que Jesus caminhava para uma catástrofe, e que se êle
persistisse em sua pregação pública, não poderia escapar a um
fim trágico. Mais cedo ou mais tarde os seus numerosos e
influentes inimigos acabariam por triunfar dêle. E então, como
se realizariam as palavras do anjo? Tal era o enigma proposto
1\ fé de Maria.
Sem dúvida a Virgem não ignorava que o próprio Cristo
havia anunciado repetiáas vêzes aos seus discípulos a sua paixão
c morte. O fim trágico não se consumaria portanto contra a
expectativa e a vontade do Mestre, que o considerava como o
desfêcho de sua missão terrestre. Jesus havia profetizado ao
mesmo tempo a sua ressurreição; mas a sua profecia era bastante
misteriosa, e só se tornou clara depois do acontecimento. No
momento, a Virgem estava fortemente impressionada com esta
morte próxima do Messias, morte que parecia apesar de tudo
roubar-lhe o triunfo messiânico esperado, ou pelo menos uma

105
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

parte dêsse triunfo. Ante essa perspectiva cheia de obscuridade,


a fé de Maria teve de se manter com vigor: ela não vacilou um
instante sequer sob o pêso dos acontecimentos prontos a cair
sôbre o seu filho. Com uma energia mais valorosa que nunca
ela acreditou naquele que parecia votado à derrota.
Foi essa energia da fé que a manteve de pé junto da cruz.
Enquanto a fé dos apóstolos sofria um desabamento repentino e
a deserção universal criava um grande vazio em tôrno de Jesus,
Maria permanecia junto dêle como testemunho de fé, como repre­
sentante inabalável da fé da Igreja. Ela que nos primeiros dias
acolhera pela fé o Salvador do mundo na solidão de Nazaré,
renova-lhe em nome de todos êsse acolhimento da fé na solidão
do Calvário. Posta à prova, a fé de Maria permanecia firme e
inflexível. Maria conservava intacta a confiança que depositara
em Jesus; confiava nêle tanto mais radicalmente quanto mais
impotente o via, entregue a uma morte infamante. Para os
adversários, essa morte era invocada como uma prova do fracasso
completo de Jesus, capaz de solapar a fé dos seus partidários.
"Se és o Filho de Deus, desce da cruz! " (Mt. 27,40) . Ouvindo
essas zombarias, Maria reagia silenciosamente: descobria plena­
mente o Filho de Deus no Crucificado. A filiação divina de
Cristo manifestava-se-lhe de nôvo nesse mistério de sofrimento,
como já se lhe manifestara, no mistério de alegria e de paz da
vida oculta. Não era primeiramente e sobretudo o seu filho
que Maria contemplava, mas o Filho do Pai celeste, êsse Filho
que neste momento de dor indizível manifestava o seu poder
soberano e o seu sublime amor. Maria dirigia a êsse Filho não
o simples olhar de mãe, mas antes de tudo o olhar de fé, o olhar
daquela que é mãe na fé. "Verdadeiramente, êste homem era o Filho
de Deus! " O centurião, dando êsse testemunho, outra coisa não
fêz senão exprimir aquilo que o olhar de Maria, mais intuitivo
ainda e mais cheio de fé, não cessara de discernir em Jesus
supliciado.
No momento da morte, antes da explosão de dor, houve no
coração da Virgem um jôrro de fé. Ao ouvir as palavras de
Cristo entregando a sua alma nas mãos do Pai, Maria uniu-se
intimamente a êsse abandono repleto de confiança. Ao ver cair

106
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

a cabeça de seu filho, o seu primeiro movimento foi reerguer a


sua numa intensa afirmação de fé. Acreditava no Filho de Deus
c no seu triunfo. Foi pela fé que a Virgem acolheu a morte
de Jesus, como fôra pela fé que acolhera a sua concepção e o
seu nascimento: fé cuja vivacidade fôra levada ao extremo pela
crueza da provação.
Permanecendo firme em sua fé, Maria teve em breve uma
experiência que se assemelhava à do além. Viveu neste mundo
o momento em que a fé se transforma em visão no céu. Na
aurora da Páscoa, apareceu-lhe o seu filho ressuscitado. Viu o
esplendor do Filho de Deus em quem havia acreditado. A sua
fé via-se dêsse modo magnificamente confirmada e recompen­
sada. Decerto, essa aparição de Cristo glorioso não era ainda
a visão direta e imediata de sua divindade; era no entanto uma
aproximação e um penhor dessa divindade. Maria deveria ainda
viver na fé até à sua morte, mas essa fé triunfara da grande
provação, e no amplexo de Jesus ressuscitado ela apalpara, por
assim dizer, o seu objeto.
A prova da fé da Virgem precedeu as provas da fé da
Igreja, submetida em tôdas as épocas a novos ataques, mas asse­
gurada de sua perseverança e de seu triunfo. Ela derrama a
sua luz sôbre as provas que atingem a fé de cada cristão, seja
o vendaval exterior da perseguição, seja o drama íntimo da
desolação. No abatimento ou na dor, a fé do cristão retoma
vigoroso impulso se ela se identifica com o olhar de Maria,
cravado irresistivelmente em seu Senhor agonizante como a fonte
da salvação. É êsse olhar de fé que se transforma infalivelmente
n a visão de Cristo glorioso.

107
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPÍTULO IV

CORAÇÃO CHEIO DEESPERANÇA

A Virgem, símbolo da esperança

Tôdas as riquezas da esperança foram colocadas em Cristo,


porque, segundo a palavra de São Paulo, Cristo é a nossa espe­
rança, "a esperança da glória" (Col. 1,2 7 ) . E inseparàvelmente
de Cristo, essas riquezas foram colocadas em Maria, que se acha
intimamente unida ao seu Filho, e que, por sua maternidade divina
e sua colaboração na redenção, participou da vinda e da missão
do Salvador. Como Cristo e com êle, a Virgem é a nossa espe­
rança.
Essa verdade se acha ilustrada de uma maneira relevante no
dogma da Assunção. A presença de Maria no céu com o seu
corpo glorioso constitui para os cristãos um penhor da realização
de sua esperança: essa esperança mostra a salvação em seu acaba­
mento.
Pela Assunção, a Virgem recebeu um privilégio que só ela
partilha com Cristo: o de uma glorificação corporal antecipada.
Enquanto que os outros eleitos cfevem aguardar o fim do mundo
para receber essa glorificação, a Virgem já entrou, logo após a
sua morte, na bem-aventurança do corpo ressuscitado e associado
à alma. Com Jesus, ela precedeu o tempo do fim do mundo
pela obtenção imediata do triunfo prometido para a consumação
dos séculos, e contribui assim para apoiar a esperança cristã, que
tem por característica não se basear somente numa promessa, mas
encerrar desde já, em certa medida, o seu cumprimento. Na
Virgem, os cristãos possuem a concretização do triunfo final;

109
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

nela, todos precedem o momento do fim do mundo e recebem


uma garantia baseada numa realidade já presente.
Decerto, Cristo poderia bastar, por sua ressurreição corporal,
para fundar essa esperança; São Paulo só pensava nêle, e o pen­
samento do Cristo glorioso dava-lhe a certeza de que "a espe­
rança da glória" que animava os cristãos seria realizada um dia.
O triunfo pessoal do Senhor continua a ser a base essencial da
esperança, e a glorificação de Maria só vem juntar-se-lhe a título
secundário, em dependência da de Jesus. Todavia, a Assunção
traz à esperança um apoio todo particular, porque a Virgem é
uma criatura. A glória da ressurreição em Jesus parece-nos
convir à sua pessoa divina, e o seu corpo glorioso é afinal de
contas o corpo de um Deus; partilhando dessa glória, Maria
atesta que mesmo as criaturas podem receber em plenitude essa
felicidade estupenda. Ela faz com que a esperança se enraíze
ainda mais em nossa condição humana. É com razão, portanto,
que a intuição da piedade cristã tem buscado com predileção em
Maria um símbolo de sua esperança.
Ora, êsse papel de símbolo da esperança que a Virgem
desempenha para sempre na Igreja, pelo fato de sua Assunção,
vem desde os primórdios de sua vida. Já na Imaculada Con­
ceição, Maria fôra a nossa esperança, porque essa graça inicial
extraordinária fôra-lhe conferida em vista dos mistérios da
Encarnação e da Redenção, nos quais era chamada a participar
da maneira mais íntima. No pensamento divino, essa graça devia
arrastar tôdas as outras. Com a concepção de Maria, Deus pas­
sara da era das promessas para a das realizações. A alma ima­
culada que acabava de ser criada já continha o encadeamento de
tôda a obra salvífica. A partir dêsse momento, a esperança da
humanidade já não estava voltada exclusivamente para o futuro,
nem fundada em projetos; tornava-se a esperança do Nôvo Tes­
tamento, que possui na realidade atual um comêço das realidades
futuras.
Foi portanto a Virgem que introduziu no mundo a nova e
definitiva esperança. O comêço de sua vida coincidiu com o
aparecimento dessa esperança, como o fim de sua existência
marcou-lhe a consumação. A sua Imaculada Conceição anun-

110
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvim e n t o

ciava o triunfo de Cristo, cuja virtude operante ela já supunha;


c a sua Assunção confirmou êsse mesmo triunfo.
Entretanto, Maria não foi somente, com Cristo, a esperança
do mundo; ela-mesma teve de esperar, e a sua missão foi de
formar em si a esperança a fim de transmiti-la à Igreja.
Deus queria que a Virgem se tornasse Mãe do Salvador,
mas envolvendo nisso tôda a sua alma; não pedia somente a
colaboração de sua fé, -mas o concurso estreitamente paralelo de
!>�a esperança. Maria devia desejar a vinda do Messias na qual
ia tomar parte. Ela devia apressar essa vinda por uma grande
aspiração pessoal, em que entravam os seus mais íntimos senti­
mentos. A Anunciação seria sem dúvida uma intervenção divina
imprevista, que suscitaria uma imensa surprêsa em Maria; mas
era preciso que essa intervenção fôsse preparada por uma longa
maturação da esperança no coração da Virgem, e que a mater­
nidade divina adviesse como coroamento dessa esperança. É pois
no coração de Maria que devemos descobrir a esperança cristã
em seu primitivo frescor, como em sua completà eclosão.

Ápice da esperança de Israel

Antes da Anunciação, houve na alma de Maria uma recapi­


tulação da esperança de Israel. Essa esperança, que Deus susci­
tara em Abraão e desenvolvera progressivamente depois em seus
descendentes, devia culminar no coração da Virgem no momento
em que ia tornar-se realidade a promessa.
Maria recebera uma educação religiosa muito simples, seme­
lhante à de tôdas as demais jovens israelitas, mas retirara grande
fruto dessa educação e havia assimilado verdadeiramente a men­
sagem divina expressa nos Livros Santos. Extremamente sensível
à voz de Deus na Escritura, ela havia compreendido melhor do
que ninguém o valor da esperança messiânica. Os textos que
falavam dessa esperança deviam despertar ecos profundos em sua
a�ma; ela sentia . que Deus �ncerrara nes�as pági ?as ainda mis_!f­

(
nosas o seu mais caro segredo. Persuadida do Imenso amor· do
Todo-Poderoso pelos homens, ela reconhecia no advento mes-

111
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

siinico a manifestação dêsse amor, que traria a felicidade aos


homens. Esperar o Messias, o Salvador prometido, tornara-se
para Maria a forma habitual de suas aspirações religiosas. Ao
fervor com que o Todo-Poderoso anunciara a vinda do Messias,
ela queria corresponder com o fervor de sua expectativa. Fervor
extraordinário, porque a graça que a habitava possuía um vigor
extraordinário. ' Maria punha em sua esperança uma vibração
como nunca houve antes dela.
Vingava de certo modo a incompreensão e a hostilidade com
que se haviam chocado os profetas, pois recolhia plenamente a
esperança que haviam pregado. E elevava essa esperança a uma
altitude superior. Os profetas empregaram palavras vibrantes ou
angustiadas para predizer a era da salvação, mas a sua esperança,
por mais ardente ou por mais tranqüila que fôsse, j amais atingiu
a pureza serena e o ardor pacífico de que se revestia na alma
da jovem de Nazaré. Chegava-se a um ápice. Maria resumia
em si o passado, mas elevando-o a uma altura excepcional para
preparar a passagem ao futuro definitivo.
Resumia verdadeiramente o passado, porque a sua esperança
reunia tôdas as características da esperança dos profetas. Era um
grito de alívio ante o anúncio de uma vitória depois de tantas
derrotas, e de uma libertaçãq depois de tanta servitude; era uma
alegria admirativa diante do poder divino, que ia desdobrar-se
em sua soberana majestade; era a confiança entusiasta numa
abundincia de bens sem limites, a visão magnífica de um mundo
ideal, no qual Deus faria reinar a sua paz. Era - sobretudo a
consoladora perspectiva do amor pessoal de Deus às suas criaturas.
Com uma complacência particular Maria olhava a era messiinica
como a época em que Deus exerceria mais especialmente o ofício
do bom pastor e se ocuparia com urna solicitude admirável de
tôdas as suas ovelhas, notadamente daquelas que estivessem
enfêrmas ou feridas. Essas atenções pessoais da bondade divina,
descritas por Ezequiel (Ez. 34 ) , haviam certamente comovido e
impressionado a Virgem, que experimentava uma simpatia muito
viva pelas ovelhas fracas ou doentes. Quantas pessoas em tôrno
dela teriam necessidade de um bom pastor que lhes viesse pensar
as feridas ou reanimar as fôrças!

112
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

A Virgem esperava essa hora para breve. Impressionava-se


com a proximidade da salvação anunciada pelos profetas. !stes
haviam apresentado o acontecimento como iminente; Deus não
poderia tardar a salvar os que êle amava. Quando o profeta
Isaías falou do nascimento do Emanuel, sinal da salvação, êle o
via no presente, porque a concepção da criança já se realizara:
"Eis que a Virgem concebeu e dá à luz um filho . " (Is. 7,14 )
. . .

Nas perspectivas proféticas, o "dia de Javé", a manifestação


suprema do poder de Deus na humanidade, parecia muito pró­
ximo. Essa perspectiva profética respondia ao olhar divino, que
penetrando os séculos, contava como pouca coisa, em comparação
com os milênios anteriores da humanidade, o período que sepa­
rava os profetas do acontecimento predito. Era uma proximi­
dade à medida divina.
A esperança de Israel era também, à medida divina, suscitada
pela inspiração do alto. Se tivesse sido uma esperança puramente
humana, teria desanimado, porque a salvação anunciada para
tempos próximos recuava sem cessar. O que se esperava não se
realizava. Maria, se se tivesse limitado a estimações humanas,
poderia ter desconfiado de uma esperança que parecia esconder
o objeto de sua promessa, e recusado a crer numa proximidade
que até ao presente não se concretizara. Mas sustentada pela luz
que Deus lhe derramava na inteligência, a Virgem acreditava na
proximidade da salvação; tomava em seu sentido mais literal essa
proximidade tão estranhamente expressa pelos oráculos divinos,
e em vez de concluir que não tendo se verificado essa proximi­
dade no passado, ela não podia ser concebida num futuro pró­
ximo, Maria pensava que a era messiânica, tão longamente espe­
rada, iria produzir-se tanto mais depressa agora. Confiava na
fidelidade divina. Com um olhar mais penetrante ainda do que
o dos profetas, porque mais iluminado por Deus, Maria esperava
para logo o período de felicidade prometido ao povo judeu.
Mais ainda, ela se apercebia de que Deus reclamava seme­
lhante esperança para executar a sua promessa e fazer brilhar a
iminência da era da salvação. De sua parte, o Todo-Poderoso
mantit1ha o seu projeto desde a origem dos séculos, e só esperava
realizá-lo. O que faltava, era a preparação dos homens. Para

llJ
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

receber a salvação e não menosprezar o dom divino, era preciso


uma aspiração vigorosa pela vinda de um Salvador. A humani­
dade devia ter uma fome profunda dessa felicidade que lhe ia
ser apresentada, sob pena de não poder acolhê-Ia. O desenvol­
vimento dessa aspiração aceleraria o cumprimento dos planos
divinos, e tôda a educação dada por Javé ao povo eleito tivera
por fim promover êsse desejo fundamental. O povo judeu devia
familiarizar-se com o plano divino, fazê-lo entrar em seu pensa­
mento e em sua afeição, em suma, enquadrá-lo em sua esperança.
A missão de Maria era oferecer ao Senhor uma esperança tão
viva, tão confiante na vinda imediata da salvação que devia
precipitar os acontecimentos longamente retidos. O fervor da
aspiração que subia do coração da Virgem significava que a
humanidade estava pronta para acolher um Salvador.

Uma esperança realista

Por sua esperança, Maria olhava para um mundo ideal. Mas


não havia nisso uma fuga diante da realidade que tinha sob os
olhos. A Virgem não ignorava o que se passava em tôrno dela
e não queria de modo algum encerrar-se num universo imaginário.
A sua esperança era realista.
Maria defrontava-se a cada instante com o espetáculo do
pecado. Em razão de sua pureza imaculada, êsse espetáculo devia
ferir-lhe a sensibilidade e impressioná-la dolorosamente. Era
testemunha de muitas faltas, e cada vez que presenciava uma
ofensa a Deus, sentia-a vivamente e lamentava ao mesmo tempo
o prejuízo que a si-mesmos causavam os pecadores. Via existên­
cias roídas pelo pecado, almas que se aviltavam a tal ponto que
a corrupção tomava por vêzes proporções aterradoras. Na
maioria dos casos, a multiplicação das fraquezas parecia indicar
que o mal se espalhava irresistlvelmente. Havia a indiferença
espêssa daqueles que, obcecados pelo amor às coisas dêste mundo,
j á não tinham gôsto pela religião e só possuíam uma fé morta.
Havia também a hipocrisia daqueles que pretendiam servir fiel­
mente a Deus, mas na realidade só pensavam em suas ambições

114
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

c interêsses. Ante as devastações do pecado, dir-sc-ia que o povo


judeu continuava nos erros do passado. Os profetas haviam
acabrunhado de censuras os seus compatriotas; no tempo da
Virgem, as mesmas censuras poderiam ser formuladas. Seme­
lhante situação poderia ter tido um efeito desanimador sôbre
Maria. Não parecia ela condenar de antemão tôda a tentativa
de soerguimento? Não era preciso fechar os olhos para êsse
quadro aflitivo de pecados sempre idênticos, para aceitar a possi­
bilidade de uma salvação universal? A degradação dos homens
parecia indicar que os tempos messiânicos só podiam ser espe­
rados num futuro incerto e longínquo. A amargura do profeta
Jeremias ante a obstinação do povo em seguir o caminho do
pecado, amargura que chegava por vêzes quase ao desespêro,
deve ter atingido também a alma de Maria. Mas ela reagia com
tôda a sua esperança. Longe de se deixar dominar pela lassitude
ou pelo desânimo, a descoberta da imensa extensão do pecado
tornava-se para ela um estimulante da confiança. Visto que o
pecado causava tantas devastações e era tão profunda a miséria
das almas que gemiam sob o pêso de suas próprias culpas, Deus
já não poderia retardar a sua intervenção. A miséria era por
demais clamorosa para que o olhar divino não se comovesse.
No pensamento da Virgem, Deus já não suportaria por muito
tempo semelhante degradação, porque havia criado os homens
para a glória.
Maria não era dessas almas que discernern nos males da
humanidade a iminência de uma catástrofe, de um fim do mundo
determinado por uma conflagração universal. O abismo do
pecado punha-lhe diante dos olhos o abismo da misericórdia
divina. A imensidade dos pecados fazia-a prever um triunfo
divino mais próximo e mais brilhante. Conhecendo o coração
amante de Deus, Maria esperava urna demonstração magnífica de
sua bondade. Deus revelaria a sua santidade, não condenando
os pecadores, mas transformando-os em santos. Quanto mais se
multiplicavam as faltas dos homens, tanto mais elas atestavam a
necessidade dessa intervenção divina e reclamavam o socorro de
uma santidade superior. Maria achava que o pecado da hurna­
nida�e havia atingido um poder tal que Deus se via na obrigação

115
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

de esmagá-lo. O Todo-Poderoso já não suportaria ver os homens


chafurdar-se em sua miséria moral. Cheia de simpatia por todos
os infelizes, a Virgem ouvia o grito abafado de sua angústia;
como não o teria ouvido o próprio Deus ?
Assim constituía-se no coração da Virgem a esperança
autêntica, que não nega o mal, mas encontra no espetáculo
mesmo do mal uma nova razão de esperar. O otimismo cristão
não se ilude quanto à profundeza do pecado e à extensão de seus
estragos; não é ingênuo e quer olhar de frente tudo o que o
mundo comporta de corrupção ou de maldade. f:sse otimismo
formou-se na alma da jovem de Nazaré, que tinha a fôrça de
encarar sem mêdo a humanidade real, carregada de suas taras.
O olhar de Maria envolvia corajosamente tôda essa carga de
pecados e a apresentava a Deus para que êle mandasse sem
demora uma libertação. A esperança era tanto mais viva quanto
maior era o seu realismo.
Fortalecida em sua esperança pela vista do pecado, Maria
tinha consciência de penetrar mais a fundo nos sentimentos do
coração paternal de Deus. Compreendera, pelos anúncios dos
profetas, que o próprio Deus estava impaciente por conceder a
salvação. O desejo veemente de renovar a humanidade ardia
no coração de Deus, cujo a:r;nor queria derramar-se. Deus era
o primeiro a querer precipitar o momento de sua misericórdia.
E diante do quadro dos pecados dos homens, o desejo divino
se tornava mais premente: era essa impaciência divina que encon­
trava no coração de Maria uma réplica secreta no ardor redo­
brado de suas esperanças.

Esperança nobre e pura, sobrenatural

Defrontando-se ousadamente com as misérias morais do


mundo, a esperança de Maria não sofreu com isso nenhum
arrefecimento em suas aspirações. O ideal para o qual tendia
permanecia isento de todo o compromisso com o espírito do
mundo. Nunca veio ao pensamento de Maria desejar para os
homens uma felicidade mais fácil do que a das estritas exigências

116
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O d e s e n v o lviment o

da virtude; jamais ela teria admitido que em vista das inclinações


tão fortes de muitas almas para o mal, se fizessem concessões
ao seu egoísmo ou às suas paixões a fim de atraí-las melhor em
seguida para uma vida mais santa. Ela nunca sonhou tampouco
com um reino de Deus que consistisse antes de tudo em alegrias
terrestres.
Tanto Maria tinha conhecimento da imensa fraqueza do
coração humano, quanto conservava ante os olhos a altura do
ideal messiânico, à qual Deus queria elevar a humanidade decaída.
O Todo-Poderoso queria operar uma transformação completa
das almas; queria que os homens lhe pertencessem não somente
em seus gestos exteriores, mas também na oferenda de seus
corações. Essa grandeza do objetivo divino suscitava o entusiasmo
da esperança da Virgem.
Ela fugira à sedução de outros entusiasmos, de qualidade
inferior. O seu instinto religioso afastava-a da mentalidade de
muitos de seus compatriotas que sonhavam com um Messias
que viesse libertar a nação judaica, dar-lhe vitória contra todos
os seus inimigos e proporcionar-lhe um regime de abundância
material, na paz e no triunfo político. Embora desejasse sempre
aliviar a miséria que encontrava, Maria nunca pusera suas espe­
ranças numa maravilhosa multiplicação de riquezas. Habituada
a certas privações por causa de sua pobreza, reconhecia que essas
privações não eram um mal, antes favoreciam o desejo de se
unir a Deus. Aliás, observava em tôrno de si o quanto a
abundância de bens materiais podia levar ao orgulho ou à devas­
sidão, e pôr em perigo o destine eterno. Se a Virgem não
desejava para ninguém uma rmsena aviltante, que pela obsessão
do pão cotidiano impede o homem de pensar em sua alma,
tampouco suspirava por um regime em que os bens terrestres
fôssem concedidos a todos em abundância. Amava a sua própria
pob�eza, que lhe lembrava que Deus era o único bem desejável.
Em sua esperança, Maria não era animada de espírito de
vingança. Não desejava nem a vingança dos pobres contra os
ricos, nem dos judeus contra os estrangeiros. Embora amasse
muito � seu povo, a jovem de Nazaré nunca partilhara de suas
pretepsões nacionalistas. Admirava a grandeza que Javé havia

117
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

conferido ao povo que escolhera entre todos, o privilégio singular


de possuir o culto do verdadeiro Deus. Mas êsse benefício divino,
aos olhos de Maria, jamais devia constituir um motivo de orgulho
para a sua nação, nem de desprêzo pelos outros povos. E no
entanto ela se achava numa situação em que os sentimentos
nacionalistas se exaltam fàcilmente: a ocupação de seu país por
estrangeiros. A Virgem adotara espontâneamente a atitude que
o Senhor tomará mais tarde: dar a Deus o que é de Deus, e
deixar ao poder político o que é seu. Ela desconfiava de todos
os movimentos que pretendessem ligar o messianismo a interêsses
nacionalistas ou fazer uma revolução mais política do que reli­
giosa. A sua esperança, que era isenta de tôda a perspectiva
materialista de prosperidade, triunfava igualmente da tentação
mais sutil do nacionalismo, que gostaria de explorar o triunfo
messiânico em proveito do egoísmo e do orgulho nacional. O
reino vindouro, na aspiração de Maria, seria o reino autêntico
de Deus, e a libertação não atingiria um território, mas realizar­
se-ia no domínio dos corações. O que era preciso vencer não
era a ocupação estrangeira, mas a escravidão do pecado. A
esperança da Virgem estabelecia-se portanto num plano inteira­
mente sobrenatural. Era uma esperança perfeitamente reta e
nobre, sem compromisso com as reivindicações das paixões
humanas, voltada essencialmente para Deus e para os bens espi­
rituais. Nessa atitude adotada por Maria bem antes da Anun­
ciação, estampa-se a imagem da esperança cristã em sua primitiva
pureza, pureza que deve subsistir na esperança da Igreja através
de todos os séculos. As tentações que procuraram desviar de
seu objetivo a esperança de Maria, perpetuam-se em tôdas as
épocas e constituem urna ameaça para a esperança dos cristãos.
Poderosas correntes de idéias esforçam-se por dirigir a esperança
humana para a exaltação de um destino nacional, para o bem­
estar de uma classe social ou para a satisfação da humanidade
nos bens dêste mundo. Tôdas as formas de paraísos terrestres
continuam a solicitar as aspirações dos homens. Em face dessas
esperanças que prometem satisfações aos instintos humanos, a
esperança cristã segue o exemplo da Virgem, orientando-se para
o bem das almas e para a VIda eterna. Recusa concentrar os

118
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

seus desejos nos bens passageiros e relativos, e ousa dizer que


o pão, a paz e a liberdade, embora devam ser procurados, não

l'Onstituem o têrmo da existência humana e são incapazes de lhe


procurar a felicidade essencial. Proclama que a verdadeira liber-
1 ação é aquela que subtrai o homem aos liames do pecado e
das paixões, e espera uma salvação que consiste na vida superior
da alma.

Uma esperança que é compromisso,


acompanhada de sacrifício

Para preparar essa libertação espiritual, Maria compreendera


que a sua esperança implicava o compromisso de todo o seu
comportamento, e que ela devia tomar desde já a atitude que
seria o ideal do reino vindouro: a do dom absoluto de si a
Deus. Ela quis apressar a instituição da , soberania divina sôbre
o mundo e sôbre as almas, consagrando-se totalmente a Deus,

prendendo-se unicamente a êle. A esperança inspirou-lhe que


realizasse primeiramente em si, com o auxílio divino, aquilo que
esperava ver realizar-se no universo. Assim, contribuiria, na
medida de suas possibilidades, para a instauração do reino
messiânico.
Por isso a ousadia de sua esperança, que contava com uma
transformação total das almas, provocou a ousadia de seu com­
promisso. Pelo caminho que seguiu, o caminho do sacrifício
virginal, a esperança de Maria marcou uma diferença capital com
ns esperanças de ordem humana. Dir-se-á talvez que a ambição
humana sabe aceitar enormes sacrifícios em vista de satisfações
futuras, e que os partidários de uma esperança terrestre mostram­
se dispostos a esforços por vêzes dolorosos para assegurar o
triunfo de sua causa. Mas a atitude da Virgem manifesta preci­
samente o que há de único na esperança espiritual autêntica. A
esperança humana e terrestre explora os meios que considera
mais aptos para atingir o fim perseguido e confia na eficácia
dêsses �cios; Maria, ao contrário, para alcançar o objeto de sua
esperan�a, sacrificou todos os meios humanos que normalmente

119
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

a teriam levado a consegui-lo. Renunciou à maternidade, com


a qual teria contribuído de uma maneira natural para a vinda do
Messias ao mundo. Despojou-se expressamente dessa faculdade,
a mais bela que a natureza concedeu à mulher. Poderia tê-la
empregado legitimamente para a glória de Deus, mas preferiu
sacrificá-la sem reclamar compensações, inspirada como era por
um amor mais ardente do Senhor. Foi um ato de pobreza total,
feito de certo modo sem refletir, a ponto que parecia desar­
razoado.
Por êle Maria atestava que a sua esperança estava colocada
unicamente em Deus. Ela rejeitava todos os apoios humanos,
e para fazer triunfar a esperança messiânica sobrenatural destruía
em seu coração a esperança humana e natural da maternidade.
Comprometia verdadeiramente tôda a sua vida no entusiasmo
de uma esperança superior. Mais ainda do que as suas aspira­
ções por um mundo melhor, a sua promessa de · virgindade deve
ter ecoado aos ouvidos de Deus como o grito da esperança, grito
de uma fôrça irresistível. Como poderia Deus repelir essas mãos
que só a êle queriam prender-se? Como poderia recusar a
felicidade messiânica àquela que a solicitava pela austeridade de
um coração virginal, e a fecundidade messiânica àquela que lhe
oferecia em holocausto a sua fecundidade maternal ?
A promessa de virgindade testemunhava ao mesmo tempo
do esp1rito comunitário da esperança de Maria. A Virgem
sacrificava-se para apressar o advento da salvação à comunidade
humana. Deixando expressamente a outras mulheres judias a
honra de contar o Messias em sua descendência, revelava que
esperava verdadeiramente, não em seu próprio nome, mas em
nome de todos. Era uma esperança magnânima, e os sacrifícios
aceitos não a diminuíam; Maria não era daqueles que nas renún­
cias que se impõem, chegam a não mais suportar a felicidade
alheia ou a vê-la com maus olhos. Renunciando à sua mater­
nidade, suspirava de todo o seu coração pela maternidade daquela
que daria à luz o Messias, e queria contribuir para lhe obter
essa felicidade, que seria a felicidade de todos. Por sua forma
virginal, a esperança de Maria dilatava-se numa generosidade de
perfeito altruísmo.

120
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

Esperança e maternidade

A esperança não espera simplesmente de maneira passiva o


futuro que lhe sorri. Colabora para o advepto dêsse futuro,
porque Deus subordina a execução de seus projetos às aspirações
daqueles que devem beneficiar-se dêle. Reclamada p elo Todo­
Poderoso, a esperança, como a fé, exerce uma influencia eficaz
sôbre os acontecimentos para que se acha voltada; oferece ao
poder divino a condição de seu exercício. Por sua esperança,
Maria colaborou na execução do plano da salvação.
A mensagem da Anunciação significou para a Virgem o
triunfo de sua esperança. As palavras do anjo revelaram a Maria
a decisão divina que ela tanto desejava ouvir, a vinda do Salvador
pela qual aspirava com todo o seu ser. Nesse triunfo da espe­
rança da Virgem, realizava-se a esperança de tôda a humanidade.
Maria, que havia esperado em nome de todos os homens, recolhia
em nome dêles todos o bom êxito dessa esperança. A aspiração
que Deus colocara no coração de Adão e Eva no momento
mesmo que seguira à queda, ao predizer-lhes a vitória sôbre a
serpente, aspiração esta que passara de geração a geração e
desenvolvera a confiança numa salvação misteriosa, chegava enfim
ao seu tênno. Na casa de Nazaré, Maria representava diante do
anjo a esperança do mundo, esperança doravante satisfeita.
Embora realizando uma obra de bondade gratuita, Deus
havia levado em consideração a pureza e o fervor que a Virgem
pusera em sua esperança, de tal modo que se pode dizer com
tôda a verdade que Maria levou a esperança do mundo a bom
têrmo, e que pela perfeição de seu desejo e de sua confiança
ela provocou o dom divino da salvação. Ela atraiu à terra o
l\1essias. O Todo-Poderoso, que havia suscitado essa esperança,
atendeu-a com uma generosidade superior pelo dom da mater­
nidade miraculosa.
No prolongamento dessa esperança, a maternidade recebia
já um caráter doloroso. É certo que a mensagem que oferecia
a Maria . essa maternidade era uma mensagem de alegria. Mas
não devemos esquecer que o dom divino vinha em resposta a

121
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

um sacrifício da jovem. Deus havia pedido primeiramente a


Maria a renúncia a tôda a maternidade; reclamara dela o que lhe
poderia parecer urna terrível amputação de seu futuro e de sua
personalidade de mulher, se não estivesse animada de um intenso
amor do Senhor para oferecer tudo com entusiasmo. Fôra
preciso que a esperança messiânica de Maria se acompanhasse
dessa renúncia radical. Por isso a sua maternidade, dêsse ponto
de vista, era uma maternidade dolorosa, fundada na renuncia.
Fôra já penoso a Maria tornar-se mãe do Salvador. E êsse sacri­
fício inicial fazia pressagiar urna maternidade cheia de sacrifícios.
Repousando sôbre a abnegação, a esperança de Maria levara-a
a uma maternidade que seria profundamente dolorosa.
De outro lado, essa renúncia da virgindade que a esperança
de Maria comportava, engendrava urna alegria maior. Era a
alegria que Deus havia concedido àquelas mulheres que êle havia
privado de descendência, pela esterilidade, para em seguida
fazer-lhes dom de um filho miraculoso: a alegria de Sara, mulher
de Abraão e a de Ana, mãe de Samuel; mais próxima ainda, a
alegria de Isabel. Em Maria, a alegria era tanto mais elevada
quanto a sua esterilidade não fôra urna condição imposta pela
natureza, mas um estado livremente escolhido: à profundeza
espontânea da renúncia, correspondia agora a profundeza espon­
tânea do entusiasmo. Maria . exultava por reencontrar o que
havia sacrificado, por recuperar o que havia voluntàriamente
perdido. "Quem perder a sua vida ganhá-la-á" (Lc. 1,53),
declarará mais tarde o Senhor, lembrando-se de que devia a sua
vida terrestre àquela que havia perdido voluntàriarnente a sua
fecundidade e a havia recuperado maravilhosamente.
No Magníficar, êsse motivo de exultação aparece de maneira
tocante: Maria é aquela que tivera fome: o seu despojamento
virginal fazia-lhe saborear em plenitude a alegria de ter sido
"cumulada de bens" tornando-se Mãe do Salvador. Alegria
extrema, porque de sua confiança colocada unicamente em Deus
decorria urna maternidade recebida unicamente de Deus: tudo
fôra realizado pela magnificência divina. Maria chegava à última
raiz de sua alegria, que não consiste em se inebriar com os
próprios êxitos e triunfos, mas em se extasiar diante do que Deus

122
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

opera na alma, julgando-se feliz de que seja êle quem opera.


A alegria jorra da operação divina.
A esperança da Virgem contribuiu portanto para formar a
sua maternidade no sacrifício e na alegria. Contribuiu igual­
mente para conferir a essa maternidade o seu aspecto essencial
de colaboração na grande obra da redenção. Estritamente
falando, ser mãe do Salvador não implicava a necessidade de
Maria desempenhar um papel na obtenção da salvação. Teria
bastado que Maria se limitasse a dar à luz e a educar o Messias,
sem ser associada à sua ação redentora. Mas precisamente por
sua esperança, Maria pensara essencialmente na salvação; e pen­
sara mais nessa salvação do que no Salvador, cuja figura perma­
necia velada de mistério. O seu pensamento focalizara sobretudo
a libertação que Deus haveria de trazer aos homens, a felicidade

c a paz das almas que daí resultariam; imaginar o libertador


antes do nascimento de Jesus teria sido coisa mais difícil. Era
a salvação que constituíra o centro de suas reflexões. Diz-se de
certos homens que são pais de uma idéia, porque conceberam
essa idéia, meditaram-na e acariciaram-na por muito tempo em
seu espírito, dando-lhe finalmente uma expressão e difundindo-a
por tôda a parte. A Virgem não havia forjado a idéia da
salvação, pois a recebera da revelação divina; mas por sua espe­
rança ela a havia a tal ponto meditado e cultivado, acariciado
mesmo em sua afeição, que adquirira uma maternidade a seu
respeito. A solicitude de sua esperança fê-la mãe de nossa
salvação.
Essa maternidade entrou mais diretamente no domínio da
realidade pela maternidade física. Quando Maria ouviu o anjo
declarar que Jesus seria o Messias, compreendeu que a sua
maternidade seria uma colaboração na salvação dos homens. Se
o anjo lhe revelou o futuro do seu filho, quando as outras mães

ficam na ignorância acêrca do futuro dos seus, é que Deus queria


IJUe ela contribuísse para êsse futuro com tôdas as fôrças de seu
pensamento e de sua atividade, e fôsse verdadeiramente mãe
da salvação, ao mesmo tempo que mãe do Salvador. Inseparáveis
em sua esperança, Salvador e salvação permaneciam inseparáveis
em sua .maternidade.

123
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

A esperança da Virgem dava assim à sua maternidade a


amplitude de tôda a obra salvadora; dilatava o seu coração
maternal, animando-o de grandes intenções p ara o bem da
humanidade.

Maternidade e espeTança
Se a esperança de Maria contribuiu para a sua maternidade,
esta por sua vez ressaltou a sua esperança. Tornar-se mãe, é
semear uma nova esperança no mundo. Tôda a maternidade é
um impulso para o futuro, o motor de arranque de um destino
pujante e nôvo, prenhe de imensas possibilidades. No caso de
Maria, essas possibilidades imensas do menino que a sua mater­
nidade dava ao mundo eram conhecidas desde o comêço; a
Virgem estava certa do destino messiânico de seu filho, que,
conforme as palavras divinas, haveria de se realizar tão infall.vel­
mente quanto acabava de se realizar a sua miraculosa concepção.
A esperança de Maria podia pois tomar tôda a amplitude na
clarividência de um maravilhoso futuro para Jesus. Ganharia
também mais firmeza, porque possuía fisicamente aquêle que era
a fonte de tôda a esperança. Na pessoa de seu filho, Maria tinha
concretamente o objeto de sua esperança.
Que vigor e que entusiasmo deve ter experimentado Maria
em sua esperança quando pela primeira vez, em Belém, pôde ver
e admirar o seu filho! Nessa criancinha, ela via a salvação da
humanidade. "Os meus olhos viram a salvação" (Lc. 2,30), dirá
o velho Simeão, agradecendo a Deus a dita de ter podido ver
e tomar nos braços a criança que tanto havia esperado. O que
Simeão pôde fazer no momento da apresentação no templo, Maria
podia fazê-lo desde o nascimento: contemplar a salvação que
Deus enviara aos homens. Ela não tinha no coração menos
esperança do que o velho Simeão, e não era menos feliz em
contemplar aquêle que fôra o objeto de todos os seus desejos.
Mais feliz do que Simeão, ela ia desdobrar a sua esperança
assistindo ao desenvolvimento de seu filho.
Maria viu Jesus crescer "em estatura, sabedoria e graça diante
de Deus e dos homens" (Lc. 2,52 ) . Testemunha dêsse desenvol-

124
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

vimcnto, sentiu crescer a sua esperança. Esperança sempre per­


fl'i l·nmente sobrenatural e altruísta, convém que o sublinhemos.
Ma ria não experimentava simplesmente o orgulho de uma mãe
que vê crescer o seu filho; como a aspiração à salvação da
humanidade enchia-lhe o coração materno, ela se regozijava com
os progressos de Jesus, porque eram essa salvação em marcha.
Nn fisionomia e nos gestos do filho, esforçava-se por descobrir
n fôrça do Salvador e seus S"estos de libertação; nos sentimentos
de generosidade que ia mamfestando, reconhecia a generosidade
sem limites que ultrapassaria as fronteiras de tôdas as esperanças.
Fôra aliás estimulada pelo próprio Deus a colocar a sua
afeição materna na perspectiva de sua esperança sobrenatural.
Repetidas vêzes, acontecimentos que revelavam a intervenção
extraordinária do Todo-Poderoso, vinham orientar sempre mais
profundamente o coração da Virgem nesse caminho. No
momento da Visitação, Jesus, só com a sua presença no seio
de Maria, irradiou uma alegria sobrenatural que fêz estremecer
Isabel: manifestava já aquela "virtude" que durante a sua vida
pública sairia dêle e incitaria os homens a querer tocar em suas
vestes. "Hoje nasceu-vos um salvador" (Lc. 2, 1 1 ) , anunciou o
anjo do Senhl?r aos pastôres de Belém, que vieram contá-lo a
Maria; era um incentivo celeste a olhar a criança deitada no
presépio como o libertador da humanidade. As palavras visivel­
mente inspiradas de Simeão haviam confirmado ainda mais essa
indicação do destino de Jesus: salvação preparada por Deus à
face de todos os povos, luz para alumiar as nações e glória do
povo de Israel. Em tôdas essas intervenções, a Virgem descobria
uma vontade divina persistente que a convidava a considerar
Jesus com o olhar da esperança universal de Israel e dos outros
povos. Sabia que não podia olhar o seu filho unicamente como
seu, e que devia vê-lo com os olhos de uma humanidade indigente
que concentra tôda a sua esperança naquele que a vem salvar.

Altos e baixos da espet"ança

Tomando o seu filho nos braços, Maria tinha consciência de


segura� o futuro do mundo. Prêsa à pessoa de Jesus, a sua

125
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

esperança tornava-se cada dia mais robusta, mas também cada


dia mais impaciente, porque durante os longos anos de Nazaré
o espetáculo do mundo não havia mudado. O pecado continuava
as suas deva�>tações, e a degradação das almas não cessava de
aumentar. Em sua vida obscura e desconcertantemente simples,
Jesus nada fazia para modificar semell'\ante situação, e a Virgem
sentia-se cada vez mais impaciente por ver o dia em que êle
começaria o desempenho de sua missão. Além disso, como os
sentimentos de seu filho não lhe escapavam, ela se apercebia de
que o próprio Jesus experimentava essa impaciência, de que tinha
pressa de levar socorro a tantos infelizes, de curar tantas misérias
morais. Mas era retido pela vontade do Pai, que o prendia por
enquanto à morada de Nazaré. Essa situação do Messias, ansioso
por começar a sua obra, mas submisso à vontade do Pai que lhe
impunha aquela demora, revelava a Maria um dos grandes sacri­
fícios da esperança: o de esperar o momento escolhido pelo plano
divino. Mais tarde, na história da Igreja, muitas demoras serão
dispostas pela Providência na obra da conversão dos povos, e a
esperança da Igreja, que visa a conversão total do gênero
humano, deverá aceitar continuamente o sacrifício de não poder
atingir imediatamente o seu objetivo. Os sacrifícios da esp_e­
rança da Virgem, que tanto · havia esperado em Nazaré, inaugu­
raram dêsse modo os sacrifícios da esperança da Igreja, para lhe
servir de estímulo e de modêlo. Maria sabia unir uma aspiraç�o
extremamente viva, cheia de súplicas ardentes ao Pai celeste, a
uma submissão total às decisões divinas.
Quando veio a hora da partida de Cristo para a vida pública,
a Virgem ficou prensada entre dois sentimentos. O seu apêgo
maternal sofria com a perspectiva de abandonar a companhia tão
doce de seu filho; de outro lado a sua esperança exultava por
ver chegar enfim o comêço da atividade apostólica do Salvador.
Como a esperança havia prevalecido sempre em seu coração
materno, a alegria reinou em sua alma, e ela pôde fazer de
boa mente o sacrifício de sua afeição. Maria, que havia pensado
sempre na felicidade dos homens, regozijava-se com a idéia de
que as suas misérias seriam em breve socorridas.

126
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

Os primeiros triunfos do Mestre, os milagres tão numerosos


que semeava pelo seu caminho e despertavam o entusiasmo da
multidão, confirmaram essa esperança. Mas quando a hostili­
dade dia a dia mais encarniçada dos chefes do povo fêz prever o
drama final, a esperança de Maria teve de se desprender de suas
últimas estimações humanas e elevar-se acima das vicissitudes
terrenas, para se apoiar unicamente no poder infalível de Deus.
Ante o espetáculo de uma luta que lhe magoava a ternura
maternal, a Virgem elevou sempre mais alto a sua esperança no
triunfo messiânico de Jesus; e no combate supremo que teve
de sustentar aos pés da cruz, logrou ainda a fôrça de esperar
para breve êsse triunfo. Sob a imensidade da dor, a sua espe­
rança permaneceu intata, arraigada mais profundamente ainda no
mistério.
Aliás, o próprio Salvador havia incentivado a esperança de
seus discípulos, predizendo-lhes repetidas vêzes a ressurreição que
seguiria a sua paixão e morte. A Virgem, a cujos ouvidos
chegara o eco dessas predições, havia-as retido e meditado; e
quando se achou diante do cadáver de seu filho, só se abandonou
à sua dor formulando silenciosamente a sua esperança numa
proxtma ressurretçao. Contemplando o corpo rígido e imóvel
do filho, lembrava-se de sua vitalidade passada, mas o via ao
mesmo tempo, por antecipação de sua esperança, retomar uma
vida gloriosa. O cristão em luto, que se separa do despôjo de
um ser querido, é consolado pela certeza de que a separação é
apenas provisória; a Virgem tinha a certeza superior, apoiada pela
profecia de Jesus, de que a separação só duraria muito pouco
tempo. Ela confiou que a pedra rolada contra a entrada do
sepulcro não prevaleceria contra o poder divino de seu filho.
Eis a razão por que no acabrunhamento de sua tristeza persistia
um comêço de aurora: o alvor da Páscoa começou a brilhar em
sua alma desde a tarde de Sexta-feira Santa. Em tôrno dela,
todos os que amavam Jesus sentiam-se desorientados, tentados de
desespêro. Os discípulos estavam desnorteados, mas a mãe do
crucificado, embora ferida em pleno coração, permanecia mais
firme .q ue nunca em sua esperança. Personificava neste momento
a esp_erança da Igreja, fiel quando tudo desfalece, e por essa

127
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

esperança formava neste mundo o vínculo que- unia a morte à


ressurreição de Jesus.
A Virgem do sábado santo aparecia portanto como o símbolo
da esperança, símbolo precioso para a Igreja, a qual, a exemplo
de Cristo, deve passar continuamente da paixão a vida gloriosa;
nessa passagem dolorosa, a esperança, praticada uma primeira vez
pela Virgem, forma um liame infrangível. Símbolo precioso para
cada cristão; mergulhado no que se lhe afigura uma catástrofe
em que tudo parece perdido, ele deve lembrar-se de Maria que
na derrocada da morte de Jesus não cessou de acreditar no
triunfo. Do mesmo modo, nos períodos de desânimo, quando as
dificuldades e os fracassos se acumularem às vêzes de maneira
impressionante, e nos momentos de lassitude, de melancolia ou de
aridez interior, quando Cristo parecer distante ou morto, o cristão
deverá reencontrar o estado de alma da Virgem na monotonia
daquele sábado santo, quando Jesus estava terrivelmente ausente
e quando o silêncio do túmulo parecia sugerir que tudo estava
acabado; nessa atmosfera de dor, quem mais sofria era também
aquela que mantinha acesa a chama da esperança e a fazia irradiar.
Não se valeu da intensidade da dor para largar a esperança.
Quando Cristo ressuscitado apareceu à sua mãe, foi recebido
nos braços da esperança. Essa aparição, que foi uma passagem
da fé à visão, foi também um:i passagem da esperança à possessão.
Maria permanecera voltada para o seu filho; esperava-o, e o
esplendor de sua glória de ressuscitado satisfez a sua expectativa.
Em razão dessa esperança, Cristo não teve a menor dificuldade
em se fazer reconhecer por Maria, e não precisou de proceder
por aproximações progressivas a fim de revelar a sua identidade,
como o fêz com os discípulos de Emaús, que haviam esperado
e já não esperavam (Lc. 24,2 1 ) . Se Maria só tivesse alimentado
uma afeição maternal por Jesus, poderia ter-se encontrado numa
situação análoga à de Maria Madalena, que se viu cegada pela
vivacidade de sua dor mesmo quando se achou diante de Cristo
vivo. A Virgem, ao contrário, havia sobrepuj ado sempre, por
sua fé e sua esperança, a profundeza de sua angustia e só aspirava
a ver o seu filho triunfante. E quando o viu, a sua fé e a sua
esperança, mais ainda do que o seu instinto materno, prenderam-se

128
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

a Jesus com tôda a fôrça do seu entusiasmo. No Senhor ressus­


citado, Maria contemplou antes de tudo, como outrora no menino
de Belém, a salvação do mundo. Jesus aparecia-lhe cheio de
majestade, dotado de um poder soberano sôbre a humanidade,
sôbre a qual devia reinar sem fim. O coração maternal da
Virgem enchia-se do júbilo de uma esperança magnlficamente
recompensada.

O impulso da esperança
para o Espírito Santo

O estreitamento de Cristo ressuscitado nos braços de sua


mãe foi apenas momentâneo: Jesus retirou-se bem depressa, e
êsse desaparecimento foi seguido do da Ascensão, quando colocou
entre êle e a sua mãe a distância que separa o céu da terra.
A partir de então a esperança de Maria foi posta mais uma vez
em relêvo. Ela se voltou para a vinda do Espírito Santo, anun­
ciado pelo Mestre na véspera de sua partida. Mas não cessava
por isso de se orientar para Cristo, porque, como Maria estava
ciente, o Espírito Santo viria para fazer reinar a presença de
Jesus: . o Pentecostes seria um recomêço da Anunciação em bene­
fício da humanidade.
Por isso o Cenáculo onde se reuniram os discípulos depois
da Ascensão, foi ao mesmo tempo um lugar privile�iado da
esperança e uma reunião intimamente penetrada do esp1rito que
aí derramava a Virgem. A sua oração cheia de esperança criava
a unanimidade dos corações. Nos dias que precederam o Pen­
tecostes, a esperança de Maria foi verdadeiramente a inspiração
da esperança da Igreja. Era uma esperança calma e segura de
si, cuja serenidade se consolidava à luz da ressurreição de Cristo.
E era uma esperança ardente, que ao fervor do desejo de receber
o Espírito Santo prometido por Jesus correspondia o fervor da
expectativa naqueles que deviam ser agraciados com êsse dom.
Num recolhimento que lembrava o da casa de Nazaré, a Virgem
esforç�m-se por comunicar aos discípulos o dinamismo de suas

129
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

aspirações, a fim de que pudessem oferecer a Deus uma alma


tão aberta quanto o fôra a sua no dia da Anunciação.
Por essa oferenda vibrante de sua esperança, a comunidade
tornou-se capaz de receber a virtude do Espírito Santo e de se
prestar à violência de sua ação. A explosão do Pentecostes foi
a resposta divina à esperança da Virgem, que conduzia a da
Igreja. Como a Virgem, no momento da Encarnação, a comu­
nidade cristã foi cheia do Espírito Santo, e passou por uma
transformação total. A fôrça de expansão da Igreja fôra dora­
vante lançada no mundo com uma extraordinária energia de
penetração nos corações, como logo o demonstraram os resultados
da pregação de Pedro. Era a esperança de Maria, comunicada
por seu coração maternal aos discípulos, que tornava possível êsse
resultado.

O último impulso da esperança

Depois do Pentecostes, Maria ficou por assim dizer dividida


entre duas esperanças. De um lado, participava com tôda a sua
alma da esperança da Igreja, e desejava dar-lhe todo o seu apoio
nesses primeiros momentos de sua expansão. De outro lado, sus­
pirava pessoalmente pela presença de Jesus, e anelava por s;tborear
finalmente junto dêle a felicídade de uma união definitiva. Mas
como o seu amor materno fôra sempre dominado pelo desej o
da salvação d a humanidade, Maria deixava prevalecer em seu
coração a preocupação pelo futuro da Igreja. Como no Cenáculo,
a sua presença no seio da comunidade cristã continuava a ser um
símbolo da esperança e um estímulo. Ela entretinha uma atmos­
fera de confiança e de otimismo intrépido. Dir-se-ia que as
primeiras dificuldades e perseguições vinham quebrar-se contra o
ardor sereno de sua esperança: depois das dores do Calvário, que
abalo poderia ainda impressionar o seu coração materno? A
Virgem difundia só com a sua presença a convicção do triunfo.
Penetrada da fôrça invencível de Cristo, estimulava os discípulos
a enfrentar alegremente todos os obstáculos que lhes surgissem
no caminho. Nela se mantinha e se renovava a esperança de
todos.

130
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

Entretanto, chegou o momento em que Maria teve de partir


desta terra. Ela teve de abandonar esta Igreja cuja esperança
havia encarnado. Sem dúvida foi-lhe dado perceber neste instante,
como afirmam alguns autores em sua descrição da morte da Virgem,
que a sua partida, longe de prejudicar a jovem comunidade
cristã, ser-lhe-ia de imenso proveito: uma vez no ceu, o seu
coração poderia estender indefinidamente a sua solicitude.
Maria apercebia-se de que poderia velar melhor pelos homens
quando se achasse junto de seu filho. A esperança de ajudar
mais eficazmente a Igreja juntou-se à sua esperança pessoal de
se reunir a Jesus.
Quando compreendeu que a morte se aproximava, a Virgem
pôde abandonar-se inteiramente à grande e única aspiração de
seu coração, a de pertencer enfim ao seu filho de uma maneira
perfeita e inalterável para sempre. Se outros santos disseram
mais tarde ao Senhor que só a êle queriam como recompensa,
Maria nem precisou exprimir êsse desejo, porque todo o seu
ser tendia para êle. A sua morte foi um último alento de
esperança, que se consumou no êxtase. Recebendo a sua mãe
na morada celeste, Cristo deu-lhe com infinita superabundância
tudo o que ela havia esperado: a sua companhia mais íntima e
a alegria de viver em Deus, sem mais véus na visão nem entraves

na fusão.
Pela glória da Assunção, o Senhor ajuntou um brilho extra­
ordinário a essa recompensa da esperança de Maria. O coroa­
mento da existência da Virgem foi um contraste com a pequenez
aparente de sua condição terrena. Na terra, a Virgem vivera
sempre na sombra, e se ocultara tão bem que aquêles que a
conheciam estavam longe de suspeitar de sua grandeza. Exte­
riormente ela parecia nada ter de extraordinário, e os discípulos
de Jesus não descobriram o valor excepcional de sua alma. Não
ostentava os seus dons e queria passar despercebida, porque não
punha a sua esperança em si-mesma nem nas vaidades do mundo.
É a humildade de sua esperança que foi exaltada por Deus no
esplendor da Assunção. No invisível, Deus tirou a sua desforra
do abaixamento e da obscuridade da vida de Maria, como o
fará com tantas vidas cristãs sepultadas na sombra, exaltando no
além . o seu valor desconhecido.

lJI
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Já que a Virgem havia esperado em nome de tôda a huma­


nidade, é a esperança da humanidade que recebeu uma apoteose
na Assunção. A todos os que devem caminhar pela vereda da
esperança, a Virgem gloriosa mostra que essa vereda é o caminho
certo e que para êles há de raiar também o dia da ressurreição
na felicidade completa. Atesta por seu exemplo que a espe­
rança cristã é satisfeita além de tôda a medida, por uma gene­
rosidade divina que ultrapassa tôda a expectativa.
Além disso, é em nome de todo o universo que a esperança
de Maria foi satisfeita. De fato, segundo a observação de São
Paulo, mesmo o universo material participa da esperança dos
homens e suspira por uma libertação que deve refletir sôbre
êle. ítle foi submetido também à servidão do pecado, e é essa
a razão por que todos os sêres, violentados por essa situação
que contraria a sua natureza, têm sêde de uma salvação que
embora não os vise diretamente, refletirá beneficamente sôbre
êles (Rom. 8,19-2 3 ) . A matéria e a carne participarão do
mundo glorioso e do triunfo das almas. Pela assunção de seu
corpo ao céu, Maria afirma a participação do mundo corporal
na felicidade celeste.
Nada, portanto, é excluído do objeto da esperança, e a
carne, longe de parecer despJ,"ezível, apresenta-se como chamada
a um glorioso destino. A Virgem não podia desprezar essa
carne, que lhe valeu a sua maternidade divina. Mas essa carne
gloriosa foi uma carne absolutamente pura. Se o corpo da
mãe de Jesus está presente no céu, é que êle foi exclusivamente
um templo do Espírito Santo e conservou sempre intata a sua
santidade virginal. O que é coroado na carne de Maria é urna
esperança que jamais se manchou com a mínima complacência
culposa nem com a menor indulgência com as paixões humanas.
É a essa esperança elevada e santa que é arrastado o cristão; no
momento da morte, êle pode olhar para a sua própria carne e
para o mundo que o cerca, com a certeza de que os reencon­
trará um dia transformados, porque tem diante de si a imagem
da Virgem que chegou com a sua alma e com o seu corpo a
um perfeito esplendor, esplendor que ela quer partilhar com a
humanidade e com o universo.

132
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
CAPÍTULO V

CORAÇÃO ESTABELECIDO N A CARIDADE

A fim de preparar e constituir o coração maternal de Maria,


a caridade levou-a a manter relações especiais com as três pessoas
divinas. Fê-la penetrar de maneira singular no circuito de amor
da Santíssima Trindade. Possuindo o coração de Maria, êsse
amor revestiu-se de tonalidades apropriadas a cada uma das
pessoas. Para se tornar mãe do Filho, Maria foi primeiramente
filha do Pai e espôsa do Espírito Santo. Teve de cultivar um
amor filial e conjugal, que devia levá-la à perfeição do amor
maternal. É na perspectiva dessa tríplice relação de caridade que
é preciso considerar a formação de seu coração de mãe.

I - FILHA DO PAI CELESTE

Filha única
A graça inicial da Imaculada Conceição havia constituído
Maria num estado de filiação em relação a Deus. E como essa
graça era excepcional, ela fizera de Maria a filha do Pai eterno
a um título todo privilegiado. Nunca o Pai se inclinara para
uma criatura com um sentimento de mais completa paternidade.
De fato, Maria foi livre desde o primeiro instante de tôda a
influência do demônio; subtraída à triste filiação em face de
Satanás que comporta o pecado original, ela nunca teve outro
vínculo de filiação a não ser com Deus. Neste sentido, ela foi a
filha única do Pai celeste, e pôde ser envolvida sem reserva na
ternur� paternal.

lJJ
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Demais, como a graça da Imaculada Conceição fôra conce­


dida a Maria em previsão dos méritos de Cristo, o Pai lhe
dedicara, antecipadamente, o amor que votará mais tarde aos
homens em conseqüência do sacrifício redentor de Cristo. O
estado de filiação será adquirido verdadeiramente para os discí­
pulos na ressurreição de Jesus; é o Cristo ressuscitado que lhes
fará dizer "meu Pai e vosso Pai", e que os chamará de "irmãos"
(lo. 20, 1 7 ) . Maria foi bem antes a filha do Pai na plenitude
da graça de filiação, porque os frutos da redenção lhe haviam
sido aplicados previamente. O Pai amou-a desde o primeiro
instante, com aquêle amor que manifestará aos homens resga­
tados pelo sangue de seu Filho, com um amor de benevolência
total, de íntima familiaridade e de generosidade disposta a con­
ceder tudo. :f:le havia predestinado Maria a receber as primícias
de seu amor paterno para com os homens, porque a constituíra
em primeiro lugar na filiação, e nesta filiação ela já possuía de
algum modo todo o amor do futuro drama redentor. Fôra o
seu Filho, agonizante e vitorioso da morte, que o Pai havia olhado
para fazer de Maria sua filha. O amor eterno que votava ao
seu Filho refletira sôbre Maria.
Maria foi por conseguinte chamada a responder a êsse amor
por uma afeição filial. Na educação religiosa que recebeu, a
revelação da paternidade divina não era ainda o que havia de
ser no Nôvo Testamento. Entretanto, Maria prendia-se por um
instinto sobrenatural a tudo o que sugeria essa paternidade. Dos
ensinamentos que recebeu, reteve sobretudo os traços que apre­
sentavam Javé como um Pai bom e benigno.

Atitude filial

O seu ambiente familiar ajudou-a a desenvolver essa cons­


ciência filial. Maria foi levada a adotar para com Deus os
sentimentos que a animavam em relação aos seus pais. Era-lhes
inteiramente submissa, como o será mais tarde Jesus. Maria
aprendeu a comportar-se diante de Deus com a mesma submissão,

H4
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

elevada ao seu grau mais absoluto, pois que Deus era o senhor
soberano de tôdas as coisas. O Antigo Testamento sublinhava
êsse império de Javé sôbre o universo e sôbre os homens: Javé
criara tudo com a sua sabedoria, e não tinha de prestar contas
a ninguém; os seus pensamentos ultrapassavam tôdas as concep­
ções humanas e seus planos pertenciam à ordem do mistério.
Dominando a marcha de tôdas as coisas, êle traçara o destino do
p ovo judeu e regia a vida de cada indivíduo. Profundamente
Impregnada, por sua educação, da supremacia total e da majestade
transcendente de Javé, Maria curvava a sua alma diante dêle com
sentimentos de adoração e de abandono.
Tomou em face de Deus a atitude de uma serva que se
conserva à disposição do seu senhor. Serva com todo o devota­
mento que essa atitude comportava na mentalidade de sua época,
em que o serviço do senhor era concebido e praticado da maneira
mais radical, e requeria uma subordinação mais completa de todo
o ser. Serva do Senhor, Maria o foi até o fundo de sua alma,
porque era o fundo mesmo de sua alma que metia à disposição
do Todo-Poderoso. Numa dependência perfeita, ela punha a seu
serviço tudo o que possuía.
Todavia, a alma de Maria não foi esmagada pelo sentimento
da soberania divina. Ela foi serva, não escrava. Conservou em
seu serviço todos os recursos e tôda a espontaneidade de sua
personalidade. A sua docilidade, por absoluta que fôsse, foi
sempre uma docilidade inteligente, que procurava compreender
o que devia executar, a fim de realizá-lo com maior perfeição.
Vemo-la pedir ao anjo Gabriel um esclarecimento, para ser capaz
de corresponder melhor à divina vontade. No momento da
Anunciação, Maria adotou uma atitude que lhe era habitual:
ofereceu a Deus a sua disponibilidade total de serva, num espírito
de livre e lúcida submissão.
A sua docilidade foi, sobretudo, impregnada de afeição filial.
O Senhor do universo era também um Pai. Era antes de tudo um
Pai. "Temos um Pai, Deus" (lo. 8,41 ), dirão mais tarde os
fariseus a Jesus: a idéia da paternidade divina estava portanto
espalhaqa no meio em que viveu Maria. Dessa idéia, que se
arraigav� profundamente no Antigo Testamento, Maria recolheu

ns
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

o máximo, porque sentia confusamente que por êsse caminho ela


chegava ao conhecimento mais essencial de Deus. Dizer que
Deus é o Todo-Poderoso, não equivale ainda a revelar o seu
segrêdo mais profundo. Bem antes que São João o escrevesse,
Maria já havia com preendido que Deus é amor, que êle é sobre­
tudo amor, e que todas as disposições divinas acêrca dos homens
são ordenadas por êsse amor fundamental. Deus é um Pai cheio
de Bondade; sua afeição paternal inspira-lhe todos os atos. Em
sua vida interior, Maria sentia-se amada por Deus e era dominada
por êste sentimento reconfortante. No desenrolar de sua exis­
tência, ela encontrava por tôda a parte um amor paterno, sobe­
rano em sua solicitude.
Já dissemos que Maria refez as experiências religiosas de
Israel, elevando-as ao mais alto grau de intensidade, e que, nota­
damente, ela recolheu a fé e a esperança do povo eleito, para
consumá-las na perfeição. Ela refez também a sua experiência
pessoal da bondade divina. Tôda a história de Israel era a história
do amor de Javé, que perseguia um povo cumulando-o de bene­
fícios. t:sse amor não se esfriou com os extravios dos judeus,
e revelou-se mesmo tanto mais insistente e mais generoso quanto
mais infidelidade e rebeliões encontrava. Decerto, houve explo­
sões da cólera divina, descritas pelos profetas; mas como êles, e
mais ainda do que êles, Maria se apercebia de que a cólera servia
sempre de trampolim à misericórdia: tudo se resolvia na bondade.
Deus só se irritava na esperança de poder conceder um perdão
mais completo aos pecadores arrependidos. A divina bondade
havia decidido e mantido o destino singular do povo eleito. No
meio dêsse povo, e com êle, Maria sentia-se privilegiada em seu
destino, particularmente mimada pela inefável ternura daquele
que era preciso chamar de Pai. Tinha a impressão de uma
generosidade que a envolvia de todos os lados para a cumular,
sem medida, de um amor incessante que a queria enriquecer
sempre mais. Se cantou um Magníficat após a Anunciação, é
que já antes se habituara a êsses impulsos de reconhecimento. O
Magníficat exprimia um estado de alma freqüente em Maria, um
reconhecimento alegre pelas riquezas divinas com que Deus agra­
ciava a sua pobreza humana. Essa abundância extraordinária d e

1J6
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolviment o

benefícios - Maria não o ignorava - vinha-lhe exclusivamente


do amor gratuito de Deus. Ela não tinha direito algum a êsses
benefícios, e por isso sentia-se tanto mais amada.
Mais ainda do que Israel, cuja sublime experiência ela reco­
meçava ou completava, Maria se via objeto da predileção de
Javé, pois que recebera dêle maior santidade e mantinha com êle
uma maior intimidade. Como o pecado jamais lhe maculara a
alma, a face divina que a contemplava jamais se irritava, e mani­
festava-lhe uma bondade sem sombra e sem reservas. Mais do
que nenhuma outra criatura, Maria fêz a experiência do amor
paternal de Deus. Se o pensamento do poder divino a enchia
de sentimentos de adoração, as provas da imensidade do amor
divino a punha em êxtase. Mas o êxtase de Maria não conhecia
aquelas manifestações violentas e estranhas que caracterizam o de
certos místicos: era todo íntimo e permanecia oculto em seu
coração. Era uma admiração imensa pelo amor que a envolvia,
admiração que lhe seria impossível exprimir em sua verdadeira
dimensão, de tal modo a bondade divina ultrapassava tôda a
apreciação humana.
O êxtase, poder-se-ia pensar, resulta de um amor excessivo
na pessoa que o experimenta. Na realidade, deriva de um excesso
de amor, mas da parte de Deus. Deus ama a sua criatura com
uma intensidade e uma plenitude que excedem tôdas as fôrças
humanas, e para a criatura que toma consciência dêsse amor êle
se torna um motivo de arroubamento. A medida que Maria
crescia e tomava consciência de sua personalidade, percebia melhor
a imensidade dêsse amor que lhe inundava a vida, a imensidade
dos dons da benevolência divina. Em Maria, o êxtase não foi uma
perda de consciência, mas uma dilatação de sua consciência, que
percebia vivamente os testemunhos da bondade divina e atingia
a Deus sempre mais diretamente através de seus benefícios. Era
o sentimento de ser amada além de todo o limite, e de não poder
louvar e estimar suficientemente êsse amor.
Envolvida de tal afeição, Maria intensificava as suas relações
filiais com Deus. Com efeito, é a consciência de ser amada que
mais cootribui para desenvolver os sentimentos filiais na criança,
e como essa consciência era muito viva em Maria, a atitude

1J7
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

filial tomou tôda a sua amplitude. Maria acostumou-se a maru­


festar a Javé a confiança de uma filha para com o seu pai,
confiança que nunca duvida do amor paterno e que recorre
com simplicidade a êle em tôdas as circunstâncias da vida.
Instintivamente, ela confiava a Deus todos os seus desejos de
criança e de jovem, e abandonava-lhe nas mãos tôdas as dificul­
dades que encontrava; estava intimamente convencida de que a
grandeza divina não queria esmagar as criaturas, mas protegê-las
e ajudá-las. Mesmo os pequeninos cuidados não eram indignos
dessa grandeza: Maria notava que Deus se interessava por todos
os detalhes de sua existência, porque aos olhos do amor nada é
pequeno na pessoa amada. Confiar a Deus as suas preocupações
e fadigas, era render homenagem ao seu coração paterno.
As virtudes de Maria foram profundamente impregnadas
dêsse clima paterno. A virtude parece muitas vêzes significar
a!�o frio e . austero: em Maria,. era penet�ada do calor do . am?r
f11ial. Por 1ssó a sua pureza unha o carater de uma ded1caçao
filial decidida a evitar o menor desprazer a Deus: a delicadeza
de seu pu�or e o seu cuidado em evitar a menor imperfeição,
provinham da vivacidade dessa afeição. Do mesmo modo a
humildade de Maria, humildade fundamental que exprimia a
submissão integral da criatura ao Criador, estava animada do
amor votado ao Pai celeste: Mais tarde, quando Cristo quiser
ensinar aos seus discípulos a humildade, colocará no meio dêles
uma criança para lhes mostrar que a humildade dêles deve ser
espontânea e simples como a daquele menino, isento de tôda a
pretensão ou ambição. Na alma de Maria, a humildade tinha
essa espontaneidade que a tornava natural, porque provinha da
simplicidade da filha que reconhece sem vacilar a autoridade
paterna e não pensa em lhe resistir. Maria comprazia-se em sua
pequenez diante da grandeza divina, porque o seu amor filial
se tornava mais completo por essa pequenez. Como não se
regozijar com a grandeza de semelhante Pai, e como não desejar
tornar-se sempre mais pequena para que essa grandeza domine
sempre mais ? Era uma humildade contente consigo mesma,
fruto da alegria do amor. Semelhante humildade, desprovida de
qualquer amargor e de todo o pêso deprimente, dilatava a alma

l!JS
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O d e s e n v o lvim e n t o

de Maria e abria-lhe o olhar e o coração à imensidade infinita


de Deus, na qual gostava de se abismar.
Por isso a humildade de Maria teve a característica que
distinguirá mais tarde a humildade de Jesus: foi uma humildade
doce e amorosa. Nada tinha do esfôrço artificial que procura
formar uma imagem desprezível de si-mesmo. Maria não queria
viver diante de sua própria imagem, nem torná-la execrável, e
quando refletia em sua vida, só descobria nela a grandeza da
bondade divina: o seu olhar jamais se detinha em si-mesma;
só se fixava em Deus. Era sempre um olhar de gratidão, de
reconhecimento ao Pai por tantos benefícios que não tinha
merecido. O sentimento de sua própria nulidade prendia-se
invariàvelmente à consciência da imensidade do amor paterno.

Desenvolvimento da consciência filial

Tôda a vida íntima de Maria, criança e j ovem, foi marcada


por êsse espírito filial. O seu comportamento foi ordenado por
aquilo que se poderia chamar um instinto sobrenatural análogo
ao instinto natural que prende o filho aos seus pais. Maria não
precisava raciocinar para agir como filha em relação ao Pai
celeste; sentia-se levada a isso e não podia compreender que
alguém agisse diversamente. Nela, a caridade tinha a esponta­
neidade de uma tendência natural, porque essa espontaneidade
nunca fôra perturbada por inclinações contrárias ou embaraçada
pela presença do pecado original. O seu amor filial, excepcio­
nalmente puro, possuía portanto algo de extraordinário; todavia,
o instinto sobrenatural que agia em Maria é aquêle mesmo que
procura dominar tôda a vida cristã a fim de orientá-la para o
Pai num espírito de humilde e amoroso abandono.
Longe de ostentar os seus sentimentos em relação ao Pai
.celeste, Maria conservava-os no fundo de sua alma. Quem
tivesse observado atentamente a sua oração, teria notado o ardor
singular de sua atitude filial; mas ninguém pensava em observá-la,
e além pisso Maria punha em todo o seu comportamento para

1J9
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

com Deus uma grande discrição, aquêle pudor que esconde um


amor intenso a todos os olhares. A simplicidade exterior de sua
existência, que correspondia à simplicidade de sua alma, cons­
tituía a melhor das proteções. Sob as aparências de uma vida
banal, Maria ocultava um surpreendente fervor filial.
No momento em que cessou de ser criança para entrar
na adolescência, operou-se uma transformação nessa atitude filial,
que se tornou mais consciente de si-mesma e mais firme. Com
efeito, nessa idade em que a personalidade se forma definitiva­
mente, a criança começa a ver os seus pais com um olhar
diferente. Compreende melhor a sua dedicação e o seu afeto;
percebe o que recebeu dêles e põe-se a amá-los com amor refle­
tido. O que era instinto filial torna-se uma atitude de inteli­
gência e de vontade, uma decisão pessoal. Em Maria, um
progresso análogo efetuou-se em suas relações com Deus. Che­
gada à plena posse de sua personalidade, compreendeu mais
vivamente a bondade e a solicitude do Pai celeste. Ao mesmo
tempo que conservava êsse instinto sobrenatural que dava à sua
caridade uma forma filial, ela aprofundava-lhe as razões, distinguia
mais claramente o caráter autênticamente paterno do amor divino
e dava mais deliberadamente a sua confiança ao Pai dos céus,
por um ato de tôda a sua personalidade. Com uma vontade mais
lúcida e mais senhora de si, Maria resolveu ser de tôda a sua
alma a filha dêsse Pai amoroso.
Habituou-se também a reconhecer mais deliberadamente êsse
Pai em tôdas as coisas. A idade da adolescência é aquela em que
o ser humano, tomando posse de si, começa a perceber o lugar
que ocupa no universo e a formar uma concepção de conjunto
do mundo que o cerca. Maria fêz de tudo isso uma represen­
tação colorida por suas relações filiais com Deus: a sua desco­
berta do universo foi uma descoberta das múltiplas manifestações
do amor do Pai. Na natureza, descobria em tôda a parte uma
solicitude amante em ação: os pássaros do céu davam testemunho
da atenção paternal de Deus, que os alimentava como um pai
alimenta os seus filhos, gratuitamente, sem lhes reclamar trabalho;
os lírios do campo, embora minúsculos, possuíam uma corola de
púrpura que poderia causar inveja ao próprio Salomão, e no

140
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

entanto nunca haviam fiado nem tecido para obtê-la. A alma


de Maria devia impregnar-se de lirismo à contemplação dessas
maravilhas tão familiares, mas de um lirismo que se confundia
com o entusiasmo de seu coração filial e de sua oração. Descobria
em tôdas as coisas a magnificência e a bondade do Pai. Se pobres
sêres, pássaros e flôres, revelavam o amor paternal de Deus, êste
brilhava mais luminosamente nos homens; observando as pessoas
que se misturavam à sua vida, Maria via-as de certo modo receber
de Deus tudo o que possuíam: a sua existência parecia-lhe uma
acumulação de benefícios, como que o desdobrar da generosidade
divina. As suas alegrias falavam do cuidado de Deus pela felici­
dade de seus filhos, e suas penas manifestavam a sua vontade
de fortificar-lhes a coragem e enobrecer-lhes as almas. No amor
paternal de Deus, Maria encontrava a explicação de tôdas as
coisas, a fôrça essencial que ordenava o universo: ante seus olhos
tudo se unificava, porque tudo decorria dêsse amor.
Essa tomada de consciência mais viva de suas relações pes­
soais de filha do Pai e essa representação do mundo dominada pela
visão do amor paternal de Deus, preparavam Maria para a grande
missão de sua vida. A formação de seu coração filial devia dispô-la
para a aquisição de um coração maternal, e a sua concepção do
mundo devia torná-la mais capaz de entrar plenamente no plano
da redenção, obra do amor do Pai, de reconhecer nêle a marca
dêsse amor e de executar o que êle traçava.

Do amor filial ao amor materno

Pode parecer paradoxal dizer que Maria tenha sido formada


para o amor materno pelo amor filial. Opor-se-ão êstes dois
sentimentos ? O amor filial vem de um inferior; o amor materno
implica uma autoridade. Entretanto, a experiência aí está para
testemunhar que a afeição filial é uma preparação excelente para
a bondade paterna ou para a ternura materna, e que de fato as
crianças mais vivamente afeiçoadas aos seus .pais tornam-se na
maioria .das vêzes os melhores pais ou mães de família.

141
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

O essencial é ter aprendido a amar: o amor pode então


desenvolver-se, mudando de forma. No caso de Maria, não se
tratava de sentimento natural mas de amor sobrenatural. Nesse
plano sobrenatural, igualmente, o essencial era desenvolver ao
máximo a sua faculdade de amar: a mesma caridade que tomara
uma forma filial em relação ao Pai, iria desenvolver-se mais inte­
gralmente tomando uma forma maternal em relação a Cristo.
Tôda a ternura que se acumulara no coração de Maria para com
o Pai, passaria a referir-se, aliás sem se desviar do seu primitivo
destino, a Jesus. Não cessaria de se orientar para o Pai, pois
dirigir-se-ia a Cristo como Filho do Pai. Mas dilatar-se-ia e daria
ao coração da Virgem a sua plena expansão. No coração de uma
criança, é o amor filial mais intenso que representa o mais perfeito
desenvolvimento; no coração de uma mulher, é o amor materno.
Maria passaria de uma perfeição a outra e cumpriria o destino
feminino ideal, no domínio da caridade sobrenatural voltada para
Deus.
Se Maria, portanto, foi impelida pela graça a abrir-se total­
mente ao Pai dos céus em sua infância, era a fim de poder abrir-se
totalmente mais tarde à sua divina maternidade. O Pai havia
suscitado nela uma ternura filial a fim de que essa ternura, tomada
materna, pudesse acolher o seu Filho encarnado. E Maria tornou-se
tanto mais P.erfeitamente mãe do Verbo quanto mais perfeita­
mente era fdha do Pai.
Para compreender melhor essa preparação de Maria para a
sua maternidade, é mister sublinhar que a sua submissão filial
permitiu a Deus modelar-lhe a alma. Deus conformou-a à imagem
de sua própria paternidade divina. O filho toma a semelhança
dos pais não somente em virtude de sua hereditariedade mas mais
ainda pelo contato íntimo com a sua vida. As lições e exemplos
que êle recebe penetram-lhe profundamente no ser e na sensi­
bilidade, porque o amor que dedica aos pais torna-o extremamente
permeável à sua influência e o faz adotar a sua maneira de pensar
e de agir. Mais que qualquer outra criatura, Maria recebeu a
semelhança do Pai dos céus, porque mais que qualquer outra
comportou-se filialrnente para com êle. Jamais um ser humano
foi tão dócil para com Deus como a Virgem, nem o amou com

142
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

tanta perfeição; jamais alguém se deixou modelar tão completa­


mente pelo Criador. A imagem divina imprimiu-se em Maria
sem resistência nem deformação, de maneira que em sua alma
Deus realizou o ideal da humanidade, aquêle ideal que concebera
no momento da criação do primeiro homem e da primeira mulher:
formar um ser que trouxesse a sua semelhança.
Ao criar Adão e Eva, êle quis transmitir-lhes desde logo
uma participação em sua paternidade, pois que os queria pai e
mãe do gênero humano. Mas essa transmissão encontrara um
obstáculo: antes de receber a autoridade materna, Eva recusara
a submissão filial, e por seu pecado erguera-se corno rival do
poder supremo de Deus. Por isso a sua maternidade foi manchada
pela vergonha do pecado original que se transmitiu à sua descen­
dência. Semelhante rnaternióade já não era inteiramente imagem
da paternidade divina. É essa imagem perfeita que Deus quis
reencontrar em Maria. Tendo-a isentado do pecado e reencon­
trando nela a perfeição do amor e da docilidade filial, êle pôde
formar um coração materno que refletisse integralmente o seu
coração de pai.
Essa formação operou-se desde os primeiros anos de Maria.
Porque o instinto materno aparece normalmente na menina desde
a mais tenra idade, e a caridade sobrenatural que devia constituir
o amor materno de Maria acompanhou o desenvolvimento precoce
do instinto. Ela elevava êsse instinto ao nível do sagrado, e
ligava especialmente no coração da menina de Nazaré os pri­
meiros esboços do amor materno aos primeiros balbucios da
devoção ao Pai celeste. Movida por essa caridade, a menina
sentia-se inclinada a modelar a sua atitude não somente pela de
sua mãe, como é de regra, mas também pela de Deus. A palavra
atribuída ao jovem Francisco de Sales: "O bom Deus e mamãe
têm-me um grande amor", podia ser pronunciada bem cedo por
Maria. Nessa alma eleita entre tôdas, a consciência de ser amada
por Deus uniu-se estreitamente à consciência de ser amada por
sua mãe. Por isso o ideal a imitar era para ela, ao mesmo tempo
que o calor da afeição materna, o amor paterno de Deus que
ela percebia confusamente na base de tôdas as coisas. Queria
�er com_o a sua mãe, mas mais ainda corno Deus, corno aquêle

14J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

que derramava a sua bondade sôbre todos os sêres. O seu sonho


de menina foi ter um coração tão vasto e tão terno quanto o
coração de Deus.
Quando a descoberta do mundo desenvolveu nela o conhe­
cimento da bondade divina que cria e governa o universo, e
quando os seus sentimentos religiosos foram mais esclarecidos
pelos ensinamentos da sinagoga, Maria procurou, sempre mais
conscientemente, conformar a sua alma ao amor paterno de
Deus. Quando, ante o espetáculo da natureza, descobria a soli­
citude extrema de um Pai que tem um cuidado minucioso em
vestir impecàvelmente os lírios do campo e em alimentar gratui­
tamente os passarinhos, ela se unia espontâneamente a essa bon­
dade suprema; sentia despertar em si uma afeição materna por
êsses humildes sêres, e enquanto dava graças a Deus pelo esplendor
de seus dons, juntava-se à sua solicitude. Já em sua juventude
Maria sentia crescer em si um sentimento de maternidade em
relação a tôdas as coisas, primeiro anúncio do título que a
Igreja conferirá à mãe do Criador quando a proclamar mãe e
rainha da criação. O coração da menina começava a partilhar
da imensidade do amor do coração paternal de Javé.
É portanto pela submissão filial que Maria atingia a magna­
nimidade do amor materno. Pela humildade, a sua caridade
adquiria a sua maior envergadura. Longe de ser prejudicada
em seu desenvolvimento pela docilidade total, ela comunicava
por isso mesmo ao coração de Maria a própria grandeza da
paternidade divina; e êle se deixava modelar por essa paterni­
dade soberana, cujos sentimentos recolhia por uma espécie de
contágio.

Maria, imagem do Pai


aos olhos do Filho

Tornando-se mãe, Maria quis pem1anecer em sua condição


de humilde filha do Pai, e que o seu amor materno só se de�en­
volvesse dentro dêsse sentimento de amor filial. Por isso con­
tinuou a receber, depois da Anunciação, a impressão profunda

144
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

da paternidade divina. Graças a essa atitude, pôde oferecer ao


seu Filho uma alma em que se refletia fielmente o Pai celeste.
Na afeição de Maria, Jesus encontrou uma tradução humana
do amor eterno do Pai.
�ste foi o primeiro serviço que Maria prestou ao seu Filho:
fornecer-lhe uma atmosfera impregnada da presença paterna.
O papel de uma mãe consiste em introduzir o seu filho no
mundo, não somente física mas psicologicamente; por sua afeição
e solicitude, oferece um meio em que pode sentir-se à vontade
e acostumar-se às realidades do mundo ambiente. A Virgem
teve por missão introduzir a psicologia humana de Jesus em
nosso universo. Devia proceder de maneira que o filho encon­
trasse um clima que lhe permitisse desenvolver-se. Ora, diferente
de tôdas as demais crianças, esta tinha um passado, ou mais
exatamente, uma pré-existência: a de sua eternidade. Era o Verbo
que existia "desde o comêço" e se encontrava eternamente em
face do Pai. Descendo ao meio de nós, permanecia voltado para
essa presença paterna. O único ambiente que lhe convinha era
aquêle. E eis o que Maria lhe ofereceu ao lhe abrir uma alma
modelada à imagem do Pai. No coração materno da Virgem,
que foi o seu primeiro clima e o seu primeiro horizonte, Jesus
encontrou algo familiar, uma surpreendente reprodução do amor
paterno de Deus.
Quem poderia descrever êsse primeiro despertar da cons­
ciência, em que o filho, na fisionomia sorridente da mãe, reco­
nheceu a face eternamente bem-aventurada e amante do Pai ?
Ao cravar o seu olhar nos olhos de Maria, Jesus tinha a impressão
de um "já visto" num outro mundo. A contemplação simples e
infantil que dirigia à sua mãe prolongava uma contemplação
divina e desta se alimentava. O Verbo escondera o esplendor de
sua divindade na pobreza de uma vida de homem. Ora, eis que
êle descobria, pela humilde experiência humana do filho que con­
templa a sua mãe, o reflexo mais vivo do esplendor do Pai celeste.
O fato providencial do nascimento em Belém manifestou
mesmo a intenção divina de só dar por assim dizer ao seu Filho,
como meio e como ambiente, o amor maternal de Maria. Sem
díwida era imposta a Maria a exigência de renunciar a todos

145
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

os preparativos fe�tos em Nazaré, de se despojar de tudo para


receber o Salvador. Mas havia nisso uma homenagem à Virgem,
a quem Deus pedia constituir, por sua própria pessoa, o ambiente
de acolhimento para a vinda de seu Filho. Incomparàvelmente
mais que todo o resto, Maria representava a santidade e a afeição
do Pai. Na nudez da gruta, todo o calor devia vir ao recém­
nascido da irradiação maternal da Virgem, e dêsse modo era o
próprio Pai que queria acolher o seu Filho encarnado. Foi a
glória de Maria oferecer a Jesus a imagem do Pai eterno através
de seus olhares e gestos afetuosos de mãe. É a missão que ela
perpetua na Igreja, apresentando a todos os cristãos, por seu amor
misericordioso, a imagem da bondade paternal de Deus. Funda­
mentalmente orientado para o Pai, impelido para êle pela fôrça de
tôdas as suas aspirações, Jesus jamais cessou de procurá-lo em
sua mãe. E sempre o encontrou nela. É esta a razão por que
a sua submissão a Maria foi tão completa: a sua mãe representava
o Pai de uma maneira perfeita, e a obediência ao Pai podia assim
confundir-se com a que devia a Maria. Do mesmo modo, a sua
dedicação à mãe pôde ser sem reserva, porque podia alimentar-se
de sua afeição pelo Pai.
Poder-se-ia perguntar, no entanto, se uma vez saído da
infância Jesus continuou a ver em sua mãe a imagem do Pai
celeste. Na idade de doze anos, não parece tê-los dissociado,
abandonando a mãe para ficar junto do Pai? Neste momento,
fêz prever a · separação que se realizaria no Calvário, quando
deixaria a sua mãe para voltar ao Pai. Mas a perspectiva dessa
separação não o impediu de continuar a olhar a Virgem como
a imagem mais sublime da perfeição do Pai. Se durante a sua
vida pública encontrou a presença operante do Pai nas almas
dos pequenos e dos humildes que vinham a êle com fé, na alma
de seu discípulo Simão Pedro, que o reconhecia como Cristo,
como o Filho de Deus, não devia êle encontrar essa presença do
Pai em Maria, cuja fé era inabalável e cuja caridade não conhecia
tibieza? Se se comprazeu em louvar na declaração do seu discí­
pulo uma revelação do alto, que nada tinha de comum com os
pensamentos da "carne e do sangue", isto é, com os pensamentos
simplesmente humanos, como não teria admirado, na comunidade

146
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

silenciosa de Nazaré e depois nas entrevistas fugitivas da vida


pública, a alma de sua mãe que jamais se deixava arrastar pela
carne ou pelo sangue, e que era constantemente esclarecida pela
luz pura do Pai celeste?
Maria nunca cessou de representar o Pai aos olhos de Jesus.
No momento de sua mais terna infância, olhara para a Virgem
como o filho vê a sua mãe: como o centro do universo. Daí
por diante, abrangendo com o olhar o mundo que o rodeava,
continuou a colocar Maria no cimo de tôdas as coisas. Porque
em tôdas as coisas contemplava o Pai, e é em Maria que encon­
trava o reflexo mais vivo dêsse Pai tanto amado. Para Jesus,
a Virgem estava assim colocada acima de todos os sêres. Admi­
rava nela a excelência de sua graça, superior à das outras criaturas,
excelência que lhe conferia uma realeza de dignidade no universo.
Seria preciso à Igreja vários séculos para tomar implicitamente
consciência dessa realeza, proclamá-la e venerá-la; mas o Salvador
compreendera plena e imediatamente essa supremacia da alma
de Maria, e é a sua intuição que o Espírito Santo comunicou
pouco a pouco à Igreja. Para aquêle que discernia no conjunto
e no detalhe dos sêres a presença paterna, Maria, imagem perfeita
do Pai, brilhava com um esplendor verdadeiramente soberano.
A afeição de Cristo à sua mãe, animada inteiramente por
seu amor ao Pai, situava-se portanto num plano sobrenatural. Por
isso Jesus manifestou repetidas vêzes que tratava com a sua mãe
nesse plano e não somente no plano dos afetos familiares: a
sua resposta à pergunta de Maria no Templo de Jerusalém, a
sua resposta nas núpcias de Caná, depois a sua réplica ao louvor
dirigido por uma mulher do povo à sua mãe, ou a que deu aos
seus primos, tôdas essas palavras do Mestre visavam mostrar a
qualidade sobrenatural de seu amor a Maria. Apreciava em sua
mãe aquela que cumpria a vontade divina, a filha do Pai celeste.
Elevando a êsse plano o seu amor a Maria, Cristo colocava-o
no nível do amor que dedica a todos os homens. Não admitia
nenhuma preferência por motivo "da carne e do sangue". Amava
Mari� e a admirava na medida em que reconhecia nela a santa
semelhança com o Pai, como amou e admirou nos homens o

147
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

reflexo da santidade divina. E como Maria possuísse em grau


excepcional essa semelhança, Jesus amou-a de modo excepcional.
Mesmo através da grande provação do drama redentor, Maria
continuou a refletir a imagem do Pai e de sua vontade perfei­
tamente cumprida. Eis a razão por que, no momento em que
teve de se separar temporàriamente de sua mãe, ao partir para
a vida pública, e depois no momento em que precisou separar-se
definitivamente, pela morte na cruz, Jesus não se viu prensado
entre a afeição que devia à sua mãe e o amor que dedicava ao
Pai eterno. A própria Virgem ratificava plenamente a vontade
divina que a separava do filho; olhando-a, Jesus só via nela essa
fidelidade absoluta às decisões do Pai, e podia, por isso mesmo,
continuar a amar a sua mãe sem restrições, com o mesmo fervor
sagrado.
Nessa mãe que se conservava ao seu lado no Gólgota, reco­
nhecia ainda uma imagem do Pai. O Pai oferecia o seu Filho
em sacrifício pela salvação da humanidade; Maria modelava-se por
essa atitude, e em vista da salvação dos homens oferecia o holo­
causto de seu filho. A sua generosidade em dar o seu filho único
pela felicidade do mundo, imitava a generosidade do Pai celeste.
Nesse instante capital em que o seu coração materno recebia
a mais viva ferida, Maria revelava-se mais que nunca a filha do
Pai, aquela que se submete inteiramente a êle e recebe a sua
semelhança. Ela se conservava de pé junto da cruz, com tôda
a fôrça já vitoriosa de seu amor, como o Pai se conservava invi­
sível perto de seu Filho, com a sua onipotência. Nesse vigor sem
desfalecimento de sua mãe, Jesus discernia o reflexo da energia
divina do Pai.
É êste o motivo por que neste instante êle se sentia mais
que nunca unido a Maria. O seu mais íntimo acôrdo residia em
sua submissão comum ao Pai celeste. É a filha do Pai que o
coração filial de Cristo, imerso na dor de seu sacrifício, se com­
prazia em contemplar uma última vez na Virgem: uma filha que
aceitava como o Filho o cálice de sofrimento e abandonava-se
nas mãos do Pai. Jesus sabia que ao soltar o seu último grito de
abandono, seria acompanhado em seu impulso por Maria. Por
isso, embora experimentasse cruelmente a dor da separação de

148
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

sua mãe, tinha consciência, na própria morte, de permanecer com


ela em comunhão de amor ao Pai.
Em razão de sua submissão total na provação, a Virgem
recebeu uma nova soberania, um nôvo poder real sôbre a huma­
nidade resgatada. Em conseqüência de seu sacrifício, pelo qual
chegara ao extremo do despojamento e do aniqüilamento, Cristo
recolheu a dominação sôbre os homens e sôbre o universo, o
poder de santificar tudo para submeter tudo ao Pai. Em virtude
de sua participação no sacrifício, Maria recebeu uma participação
na realeza de seu Filho, o poder de interceder eficazmente pelos
homens em vista de procurar a salvação a cada um dêles. Tornou­
se rainha do universo, aguardando o momento em que a sua
Assunção faria dela a rainha do céu. E assim adquiria uma nova
semelhança com o Pai, Senhor do céu e da terra. Depois da
ressurreição, Jesus comprazeu-se em saudar em Maria essa imagem
mais completa do Pai e de sua realeza, e no céu continua a venerar
e a louvar na Virgem a filha do Pai, herdeira de seu esplen­
dor real.

Uma bondade que reflete


o amor do Pai

Se Jesus, dos primeiros dias aos últimos instantes de sua vida


terrestre, reconheceu em Maria a imagem mais perfeita do Pai
celeste, é mais precisamente em sua bondade maternal que dis­
cerniu essa imagem. Foi a ternura da Virgem, a inexprimível
doçura de seu afeto, que lhe apresentou mais vivamente a per­
feição do Pai. Porque se Deus é amor, é em seu amor que o
Pai se dá inteiramente, que revela o fundo de si-mesmo -: no
coração amante da Virgem êle reproduziu o seu mais íntimo
segrêdo.
Filha do Pai, Maria o era não somente por sua obediência,
mas sobretudo pelo amor divino de cuja imagem era portadora.
A ternura materna já é, para um filho qualquer, o que mais
suscita a �ua confiança e a sua total admiração; é o sentimento

U9
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

mais apto para lhe revelar a bondade divina, porque na aurora


da vida essa ternura vem envolver totalmente a criança e parece
formar a seus olhos um primeiro absoluto, uma primeira base
de sua existência. O filho sabe que poderá apoiar-se sempre nesse
amor materno, mesmo quando cair em falta ou quando puder
temer da parte de outras pessoas algum castigo. A sua mãe
oferece-lhe um refúgio que êle julga onipotente, com um acolhi­
mento infalível. Por isso essa afeição materna é a via que poderá
facilitar ao filho a crença no amor divino. Quando crescer,
embora não cessando de admirar a sua mãe, compreenderá que
o seu amor não possui nem uma perfeição total nem a onipotência
imaginada outrora; poderá no entanto conservar a idéia de um
amor perfeito, dotado de um poder ilimitado: o poder do Pai
celeste. É. a nobreza da maternidade humana que mais reflete
a idéia do amor absoluto de Deus.
Jesus não precisava da_ternura de Maria para admitir a bon­
dade paternal de Deus: êle descobria esta bondade por uma
intuição direta que excluía as imperfeições da fé, com a visão de
seu olhar divino. Mas devia descobri-la igualmente numa expe­
riência humana, e é aqui que o amor da Virgem desempenhou
um papel primordial. �sse amor maternal foi o louvor humano
dirigido pelo Pai celeste ao seu Filho. Tôdas as atenções dêsse
amor que envolveram o filho, foram outras tantas provas da
solicitude do Pai. O calor dessa afeição despertou em Jesus a
recordação da cálida presença paterna.
Em particular, Jesus apreciava a maravilhosa gratuidade e o
completo desinterêsse do amo!: _ de Maria. No amor oculta-se
sempre um mistério, porque a razão gostaria de encontrar motivos
para o ato de amar, e seria inclinada a descobrir nêle motivos
interesseiros. Ora, o amor autêntico não persegue e não se baseia
em motivos particulares: ama-se uma pessoa por ela mesma, sem
outra razão a não ser ela mesma. Isso verifica-se plenamente em
Deus. No homem o amor acompanha necessàriamente uma ten­
dência a querer o seu próprio bem, porque o homem deve pro­
curar a perfeição de sua natureza, e precisa de amar os outros
para atingir essa perfeição. Amando outra pessoa, êle procura
satisfazer essa necessidade, realizar uma aspiração fundamental;

150
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O d e s en v o lviment o

não pode desinteressar-se inteiramente de si-mesmo. Em Deus,


ao contrário, nenhuma necessidade existe de amar os homens; se
os ama, é por pura gratuidade, por um movimento de genero­
sidade integral. Deus amou-nos porque queria amar-nos, e porque
êle mesmo nos tornou amáveis aos seus olhos. Amando o seu
filho, Maria permanecia sem dúvida nos limites do amor humano
e satisfazia uma necessidade de seu coração e de sua natureza.
Mas imitava, tão completamente quanto é possível a uma criatura,
o desinterêsse do amor divino. Jamais quis considerar o seu filho
como propriedade sua, ou tomá-lo nos braços como uma possessão
materna. Amou Jesus por êle-mesmo, esquecendo-se por assim
dizer de seu coração de mãe e deixando-se fascinar exclusivamente
pela pessoa de seu Filho.
Por essa atitude, lembrava a Jesus o gesto eterno do Pai
voltado para o seu Filho com um amor perfeitamente extático.
Desde tôda eternidade, o Pai tinha os olhos fixos no Verbo e
perdia-se na contemplação de seu Filho. Neste mundo, Maria
prolongava êsse olhar do Pai, tendo a Jesus como único objeto
de sua atenção e contemplação. Dedicava ao seu Filho um amor
que a absorvia inteiramente.
Se o amor de Maria não fôsse inspirado pelo Pai celeste,
poderia desviar-se fàcilmente. Não era tentador para uma mãe
publicar a glória de semelhante filho, apropriar-se de seu mérito,
de sua grandeza e aproveitar-se de seu poder? O afeto maternal
não tardaria a manchar-se de egoísmo e de ambiç:io, e a solicitação
do amor-próprio teria sido tanto mais atraente quanto mais verti­
ginoso era o poder confiado a Maria em sua maternidade. Se
Mari;t nunca quis apoderar-se de seu filho, tirar dêle vantagens
ou quaisquer motivos de vaidade, ela o deve à qualidade sobre­
natural de seu amor, réplica do amor do Pai. Permaneceu desin­
teressada, amando Jesus simplesmente porque era Jesus.
Ela teve, aliás, de dar um testemunho supremo dêsse desin­
terêsse na oferenda do Calvário. Na nudez do Gólgota, Jesus
recebeu o calor da ternura materna que recebera outrora na nudez
da gruta de Belém. No momento em que era coberto de ver­
gonha e . submerso pela dor, Maria estava junto dêle para parti-:­
cipar de seu sofrimento, mostrando-lhe que o amava por êle.

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

mesmo, a ponto de tomar com êle o fardo de tôdas as penas.


Outras mães manifestam a seus filhos a fôrça infatigável de seu
amor testemunhando-lhes uma indulgência delicada quando se
tornam culpados de certas faltas; Maria nunca teve de exercer
misericórdia com o seu Filho, que era a própria santidade, mas
pôde revelar-lhe a incansável energia do seu amor materno ao
pé da cruz. Nesse afeto que o seguia até ao fim, no meio de
tantas deserções e diante de tantas zombarias, crueldades e escár­
nios, Jesus reconhecia a afeição mesma do Pai.
A presença de Maria dava a êsse drama sangrento uma nota
de doçura e de bondade. Parecia atestar que havia uma bondade
superior a todos os ódios, bondade que dirigia todos os aconte­
cimentos e presidia ao sacrifício. Na oferenda materna da Virgem
podia-se discernir um testemunho de que êsse sacrifício era na
realidade obra do amor do Pai, que entregava o seu Filho por
amor dos homens. Jesus, que já não experimentava sensivelmente
a felicidade da presença do Pai e de seu amor, continuava a
encontrar em Maria o símbolo do amor paterno. No Gólgota,
a Virgem era a seus olhos a filha de um Pai sempre amante, a
sua mais nobre imagem.
Eis porque quis que Maria permanecesse para sempre, em
seu amor materno, o símbolo da bondade divina. · Nesse momento,
instituiu-a mãe dos homens a · fim de que ela representasse dora­
vante a seus olhos a imagem mais viva do amor fiel do Pai
celeste. Querendo levá-los a carregar a cruz e a oferecer os seus
sacrifícios, desejou que Maria continuasse a sua presença no seio
dêsse sacrifício e junto dessa cruz, e que desse aos sofrimentos
humanos uma nota de doçura e de ternura. Colocou-a, em meio
às provações do universo, como sinal indefectível de um amor
paterno que se inclina com profunda simpatia para as chagas
dos homens. Aquêles que estão imersos na dor poderão assim
reconhecer, na fisionomia amante de uma mãe, a proximidade
da bondade de Deus.

152
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

li - ESPôSA DO ESPíRITO SANTO

"O Espírito Santo virá sôbre ti'

Na mensagem com que dava a conhecer a Maria o seu


destino, o anjo Gabriel havia pronunciado estas palavras: "O
Espírito Santo virá sôbre ti e a virtude do Altíssimo te cobrirá
com a sua sombra" (Lc. 1 , 3 5 ) . Essas palavras não podiam ter
para a Virgem a clareza que têm atualmente para nós, porque
Maria não encontrava no judaísmo um ensinamento que afirmasse
o dogma da Santíssima Trindade nem uma distinção de pessoa
para o Espírito Santo. Quando o anjo lhe falava do Espírito
Santo, ela não podia compreender imediatamente que se tratava
de uma pessoa divina diferente da pessoa do Pai. Todavia, a
mensagem orientava-lhe o pensamento nessa direção e tendia a
introduzi-la numa revelação da Trindade.
fuse Espírito Santo não era inteiramente desconhecido para
a Virgem. Não fôra êle nomeado desde o cornêço do livro do
Gênes1s, para descrever a origem dos tempos: "O Espírito de
Deus pairava sôbre as águas" ? (Gên. 1,2 ) . É certo que no
sentido primitivo do texto tratava-se do "sôpro de Deus", enten­
dido no sentido material do vento que agitava a superfície do
oceano. Mas ao depois os judeus compreenderam êsse "sôpro"
de urna maneira mais espiritual, como a fôrça divina que se dis­
punha a lançar-se na grande obra da criação. fuse sôpro ou
"Espírito de Deus" aparecia portanto como o princípio de tôda
a vida, dessa vida que ia derramar-se no mundo. Quando Maria
ouviu de nôvo, depois da Anunciação, a leitura dos primeiros
versículos do Gênesis, talvez se apercebeu de que houve uma
espécie de recomêço: o Espírito de Deus havia-a coberto com
a sua sombra para fazer surgir nela uma vida de natureza mara­
vilhosa, como havia coberto outrora as trevas primordiais para
aí semear a vida do universo. Uma segunda criação, infinitamente
mais eleyada, sucedia à primeira, sob o impulso do Espírito
Santo.

15J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Bem mais, Maria conhecia o papel que desempenhara o Espí­


rito de Deus na história dos grandes homens de seu povo. Era
êle que conferia a sabedoria; graças a êle, José pôde interpretar
os sonhos do Faraó e governar a casa do rei com tôda a terra
do Egito; ninguém, com efeito, era tão sábio e inteligente como
José, porque possuía o Espírito de Deus (Gên. 41,38 ) . Mais impres­
sionante era o extraordinário poder que o Espírito de Deus havia
comunicado a certos combatentes famosos por sua bravura: forti­
ficara Gedeão para lhe assegurar uma irresistível vitória (]z. 6,34 ),
apoderara-se de Sansão para animá-lo de uma fôrça sôbre-humana
(]z. 14,6), conduzira Saul a um brilhante triunfo sôbre os seus
inimigos (I Sam. 1,6). Maria deixou-se por sua vez penetrar do
"poder do Altísssimo", poder que havia efetuado o prodígio da
concepção virginal. Do mesmo modo que a narração do Gênesis
sôbre a presença do Espírito de Deus por cima das águas pôde
ajudar a Virgem a perceber melhor, em suas meditações, a sole­
nidade da intervenção dêsse Espírito anunciado pelo anjo, e a
reconhecer o seu alcance cósmico, assim as proezas e combates
dos heróis possuídos do Espírito permitiram-lhe compreender
melhor o extraordinário vigor do poder divino que descera nela.
Por ser menos visível, o prodígio que se realizou no seu seio
não era menos surpreendente: trazia a marca do Espírito.
A Virgem reteve sobretudo, dos textos do Antigo Testa­
mento, que o Espírito de Deus haveria de vir e derramar-se na
época messiânica. Desceria e repousaria sôbre o Messias: "Sairá
um ramo da haste de J essé, um rebento crescerá de suas raízes.
Sôbre êk repousará o Espírito de Javé" (ls. 1 1, 1-2 ) . O que o
profeta Isaías proclamou, foi repetido daí por diante: Javé dizia
do Messias, seu Servo: "Eis o meu Servo, a quem sustento; o
meu eleito, em quem se compraz a minha alma. Pus sôbre êle
o meu Espírito; êle promulgará a sua religião entre as nações"
(ls. 42, 1 ) . É êsse Espírito divino que devia conduzir o Messias
em sua obra de evangelização, de cura e de libertação: "O
Espírito do Senhor Javé está sôbre mim, porque Javé me con­
sagrou pela unção. Enviou-me para anunciar a boa-nova aos infe­
lizes, curar os corações feridos, anunciar aos cativos a liberdade
e aos prisioneiros a libertação" (Is. 61,1 ) .

154
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

Do Messias, o Espírito de Deus devia transmitir-se à huma­


nidade, porque a era messiânica seria caracterizada pela difusão
universal do Espírito. Ezequiel vira um campo imenso de ossos
que se erguiam, vivificados pelo Espírito. "Assim fala o Senhor
Javé: eis que abrirei os túmulos e vos farei sair dêles, ó meu
povo, e vos conduzirei à terra de Israel . . . Porei o meu Espírito
em vós, e vivereis, e vos darei descanso em vossa terra . . . " .(Ez.
37, 1 2-14) . Essa vida nova trazida pelo Espírito, será uma vida
de santidade, porque o Espírito derramado sôbre o povo é um
"Espírito de graça e de oração" (Zac. 1 2, 1 0 ) . A transfonnação
que êle opera não pertence ao simples domínio da vida física,
mas produz-se nos corações: "Dar-lhes-ei um só coração, porei
nêles um Espírito nôvo; tirarei seu coração de pedra e dar-lhes-ei
um coração de carne, para que andem em meus mandamentos
e guardem as minhas leis" (Ez. 1 1 , 19; 36,26) . A metamorfose
se manifestará por prodígios excepcionais e atingirá os mais
humildes dos homens, tão eficaz e total será a efusão do Espírito:
"Derramarei o meu Espírito sôbre tôda a carne; os vossos filhos
e filhas profetizarão; os vossos anciãos terão sonhos e os vossos
j ovens visões. Naqueles dias, derramarei também o meu Espírito
sôbre os escravos e sôbre as escravas" (!oel 3,1-2 ) .
A palavra do anjo Gabriel sôbre a vinda do Espírito Santo
vinha portanto completar felizmente o anúncio do nascimento do
Messias. Lembrando-se dos textos messiânicos que a haviam sempre
enchido de alegria e devoção, porque representavam o ideal que
lhe enchia todo o ser, Maria recordava-se dessa misteriosa efusão
do Espírito de Deus. Era essa efusão que havia começado nela.
A Virgem compreendia porque o Espírito Santo viera sôbre ela;
era a fim de que o seu filho pudesse dizer um dia, como o fará
Jesus na sinagoga de Nazaré: "O Espírito do Senhor Javé está
sôbre mim". Era preciso que se cumprisse a profecia e que o
Espírito Santo, que havia inspirado a declaração do profeta, lhe
assegurasse a execução.
Maria deve ter-se extasiado notadamente diante do fato de que
êsse cumprimento das profecias se inaugurava nela: o Espírito de
Deus d�via, conforme a predição, descer e repousar sôbre o
Messias. Ora, êle descia e repousava primeiramente sôbre a sua

155
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

mãe. Por sua maternidade messiânica, ela era o primeiro lugar


da vinda e do repouso do Espírito Santo. Era assim associada
por prioridade ao destino do filho, cuja missão seria dirigida pelo
Espírito, e preludiava a transformação que mudaria a fisionomia
e o coração dos homens. Nela vinha realizar-se êsse transborda­
mento da generosidade do Espírito Santo, que dá uma fecundidade
incomparável ao que teria permanecido estéril: "O Espírito do
alto será derramado sôbre Israel, o deserto mudar-se-á em vergel,
e o vergel em floresta" (ls. 32, 1 5 ) . Transformando o seio vir­
ginal de Maria num seio materno que daria à luz o Messias e
a sua imensa descendência espiritual, não operava o Espírito Santo
a mudança do deserto em vergel, e do vergel em floresta ? A
Virgem não poderia, sem ação de graças, tomar consciência de
que nela acabava de se instaurar a grande efusão do Espírito
Santo que transfiguraria o universo.

O Espírito, dom do amor divino

Maria deve ter experimentado, depois da Anunciação, um


atrativo mais vivo por êsse Espírito Santo que estava nela. Antes
ela havia pensado com complacência na futura expansão do Espí­
rito de Deus: ela que amava de antemão o Messias, e que esperava
com justa impaciência os bens messiânicos, não teria pensado sem
amor nesse Espírito que acompanharia o Messias e que seria o
primeiro de todos os dons messiânicos. E desde que êsse Espírito
descera nela, sentia-se tanto mais vivamente prêsa a êle e dirigia-lhe
o seu entusiasmo por ver abrir-se o período da salvação. Não
podia ela deixar de se sentir especialmente comovida pela intimi­
dade com que o Espírito Santo quis agir e estar presente nela,
com a sua grandeza e o seu poder. Como não reconheceria nisso
um apêlo a aderir a essa presença, a lhe abrir o coração ?
Entretanto, ela não tinha ainda idéia clara sôbre a perso­
nalidade distinta do Espírito Santo, que só será revelada bem
mais tarde, pelo ensinamento de Cristo. Mas percebera contudo
na mensagem do anjo uma certa distinção. O anjo havia falado

156
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvim ento

do Senhor Deus, que daria .ao filho o trono de Davi, o poder


mess1amco. Havia atribuído ao Espírito Santo a concepção
miraculosa. Havia feito, portanto, ao que parece, alusão a duas
atribuições distintas: o Senhor Deus, que conferiria ao "Filho
do Altíssimo" a sua soberania, e o Esp írito Santo que operaria
em Maria para torná-la mãe. Sem duvida êsse Espírito Santo
não era outro senão o Espírito de Deus, "o poder do Altíssimo",
e por conseguinte a sua ação era uma ação divina, e a sombra
com que cobriria Maria era a da presença divina. Não se podia
dissociá-la do "Senhor Deus", mas estava-lhe reservada uma função
mais particular. Repetindo a mensagem do anjo, meditando tôdas
as suas palavras, Maria apercebia-se de que nessa mensagem não
se devia identificar pura e simplesmente o Senhor Deus, detentor
de tôda a soberania sôbre o universo, com o Espírito Santo,
responsável pela formação do filho no seu seio virginal.
Aos olhos da Virgem, o Espírito Santo parecia representar
uma fisionomia especial da divindade. Essa fisionomia encon­
trava-se no contexto do que Maria havia aprendido nos textos
da Bíblia. No Antigo Testamento, de fato, o Espírito de Javé,
era o próprio Javé, mas considerado no dom que fazia de si
aos homens. Era a fôrça de Javé que se comunicava aos homens
e se tornava de algum modo a sua propriedade, a fôrça de um
Sansão ou de um Saul. Era também a sabedoria de Javé concedida
aos profetas: "O Espírito entrou em mim", "o Espírito de Javé
veio sôbre mim e me disse", declarava Ezequiel (Ez. 3,24; 1 1,5) .
E Davi tinha consciência d e que o Espírito falava por sua bôca:
"O Espírito de Javé falou por mim, e a sua palavra está em meus
lábios" (ll Sam. 23,2). Essa comunicação de poder ou de ver­
dade não se fazia somente de maneira transitória e ocasional.
Permanecia também no homem sob a forma de santidade. Por
isso o salmista pedia a Deus que renovasse nêle o seu Espírito,
dando-lhe um coração puro, e lhe conservasse êsse dom: "Não
me expulses para longe de tua face e não me retires o teu
Espírito Santo" (Sl. 5 1 , 12-1 3 ) . Era um dom tão bem possuído
pelo homem que era difícil discernir se se tratava do Espírito
de Deus incriado ou do espírito do homem transformado pelo
Espírito divino.

15'1
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Sumàriamente, o Espírito era Deus que se dava aos homens,


que se encontrava nêles para os transfigurar. Era, pode-se dizer, o
amor divino em exercício, a generosidade divina que se entregava
às almas. "Um Espírito que ama os homens", dizia o Livro da
Sabedoria (Sab. 1,6) com uma tendência a personificar êsse Espí­
rito, essa Sabedoria de Deus. Eis porque o pecado era mais
particularmente declarado contrário ao Espírito, porque se opunha
precisamente ao dom de Deus aos homens: "Ai dos filhos rebeldes,
declara Javé, que formam projetos sem mim, que fazem pactos
contrários ao meu Espírito, para acumular pecado sôbre pecado"
(ls. 30, 1 ) . O pecado feria a Deus em seu amor, e ofendia dêsse
modo o seu Espírito Santo: "Não foi um mensageiro, um anjo,
mas a Face (de Deus) que salvou (os seus filhos) . Em sua
bondade e misericórdia, êle próprio os resgatou; ergueu-os, levou­
os em todos os dias do passado. Mas êles se revoltavam, afligiam
o seu Espírito Santo" (ls. 63,9-10) . São Paulo retoma uma forma
análoga quando quer mostrar aos efésios que o pecado atinge
um Deus presente nêles para os salvar. "Não entristeçais o Espí­
rito de Deus, no qual fôstes marcados com o sêlo para o dia da
redenção" (Ef. 4,30). O pecado ofende a Deus, e o ofende mais
especialmente em seu Espírito Santo, amor divino que habita
no homem.
Para reter urna aproximaÇão que fazia o profeta, o Espírito
Santo é a face de Deus, face voltada para o homem. É Deus
que olha o homem com amor e o salva. O salmista havia empre­
gado equivalentemente as expressões: "ir para longe do Esptrito
de Deus" e "fugir diante de sua Face" (Sl. 1 39,7) . Era uma
Face, um Espírito cujos pensamentos eram admiráveis e cuja
obra encantadora.
A representação do Espírito de Deus que o Antigo Testa­
mento fornecera a Maria era a de uma fisionomia vigorosa e
amante de Deus. E era uma preciosa orientação para a revela�ão
da pessoa do Espírito Santo. De fato, na revelação do Novo
Testamento, o Espírito Santo devia aparecer como aquêle que
comunica aos homens as riquezas divinas que Cristo lhes adquiriu,
corno a pessoa pela qual Deus se dá à alma, pela qual Deus faz
jorrar a sua vida na alma e nela estabelece a sua santidade. O

158
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

Espírito Santo é aquêle que Cristo ressuscitado enviou aos seus


discípulos para levar-lhes, por sua presença, o mais alto teste­
munho do amor do Pai e do Filho. A êle é atribuída tôda a obra
da santificação. Por êle desce aos homens o dom divino. E não
é de estranhar que êle seja amor e dom com respeito a nós, pois
em Deus mesmo êle é o amor mútuo ou o dom recíproco do
Pai e do Filho.
Se a Virgem, conforme a tradição j udaica, não podia ainda
considerar o Espírito Santo como uma pessoa distinta, ela havia
já compreendido que por seu Espírito Deus se comunicava aos
homens, e que êste Espírito era o dom divino que se derramava
sôbre a humanidade. Via nêle um poder que, embora perten­
cesse a Deus, podia no entanto ser distinto dêle em razão da
missão particular que desem penhava. Ora, a mensagem da Anun­
ciação veio confirmar essa vtsão. O Espírito Santo era aquêle que
vinha a Maria para lhe comunicar o dom inefável de uma excep­
cional maternidade, para constituir em seu seio o Filho de Deus
e conceder à humanidade um Salvador. �sse Espírito Santo de
que falara o anjo, apresentava-se como o Espírito de amor, como
aquêle que traz aos homens a presença divina. Não intervinha
êle expressamente na mais sublime comunicação que Deus fazia
de si-mesmo à humanidade ?
Sem ter ouvido a doutrina da distinção de três Pessoas em
Deus, Maria já compreendera o papel eminente desempenhado
pelo Espírito Santo; descobrira que o Espírito Santo significava
o amor divino. Sem conceber teoricamente a Santíssima Trin­
dade, ela se viu introduzida pràticamente nela, pela mensagem do
anjo que, ao lhe dar como filho o Filho de Deus, fazia derivar
do Pai celeste o seu poder messiânico e do Espírito Santo a sua
concepção miraculosa. Era pelo Espírito Santo que Deus operava
em Maria e a tornava mãe: era portanto a êle que a Virgem se
estimava devedora de tudo o que lhe acontecia, da imensa feli­
cidade de sua maternidade. A alegria da Anunciação, era aquela
mesma que o Espírito Santo procurava por sua vinda.
O Espírito Santo devia permanecer para sempre, aos olhos
de Maria, como a imagem do amor de Deus. Nêle, ela admirou
tudo o que êsse amor queria agora dar aos homens. E mais que

159
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

nunca, sentiu nessa vinda física do amor divino um apêlo de Deus


ao amor de sua criatura. O Espírito Santo vinha comunicar o
seu amor, conferindo à presença divina uma realidade concreta
que jamais tivera. Maria correspondeu à sua solicitação por um
impulso de fervor reconhecido. Por seu Fiat, entregou ao mesmo
tempo a sua alma e o seu corpo à ação do Espírito Santo e
abriu-se à invasão do seu amor, desejando ser totalmente possuída
por essa plenitude divina que a enchia.

A escolha da esptSsa

Era ao Espírito Santo que incumbia realizar a aliança de


Deus com Israel, aquela aliança definitiva que Maria havia espe­
rado e cuja realidade via agora concretizar-se. A Virgem per­
cebia confusamente tudo o que essa aliança significava doravante
para ela: era a ela que Deus dirigia o amor matrimonial que
havia prometido ao seu povo, e era em seu seio que se concluía
a união. O Espírito Santo vinha a ela como um espôso à sua
espôsa: a Anunciação devia consumar o amor de ,esposos que os
profetas haviam predito.
Ora, o que ordinàriamente enche de alegria profunda o
coração de uma espôsa é o sentimento de ter sido escolhida pelo
espôso. A Virgem experimentou êsse sentimento, indagando-se
aliás, em sua humildade, o que poderia ter motivado essa escolha,
pois nada achava em si que a pudesse merecer. A sua afeição
prendeu-se por isso tanto mais vivamente ao Espírito Santo. �te
não deixou de proclamar essa escolha única e extraordinária: cheia
do Espírito Santo, Isabel devia exclamar com entusiasmo: "Bendita
és tu entre as mulheres ! " (Lc. 1,42 ) . Não era o espôso divino
que por essa voz humana repetia a Maria que ela era a sua
eleita, aquela que êle havia preferido a tôdas as outras mulheres ?
A partir da Anunciação, Maria viveu na intimidade do
Espírito Santo à maneira de uma espôsa. Como poderia ela
comportar-se diversamente com aquêle que a havia tornado mãe ?
O Espírito Santo descera humildemente ao seu seio a fim de

160
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

cooperar com a sua natureza física para produzir o corpo do


menino. Descera também ao seu coração, pois queria cooperar
com a sua alma, sua inteligência e seus sentimentos, a fim de
formar a educadora de Jesus. Mais ainda que um corpo materno,
o Espírito Santo queria dar a Maria um coração de mãe. A
sua tarefa não era somente oferecer ao Filho de Deus uma habi­
tação corporal, mas sobretudo preparar-lhe um clima de amor e
de caridade na pessoa de Maria.
Certas mulheres têm a secreta aspiração de se modelar por
seu espôso; têm mesmo a arte e a habilidade de se confonnar
com a sua maneira de pensar e de sentir. Mas cedo ou tarde
são detidas nesse caminho pelas imperfeições do espôso e pelos
choques que daí se seguem. A Virgem podia ir até ao fim nessa
direção. Percebera nas palavras do anjo uma intenção divina de
fazê-Ia compreender que devia abandonar-se inteiramente à ação
do Espírito Santo em vista de sua maternidade. Ela se deixou
modelar por êle, e o fêz com o intenso amor de uma espôsa
que se sentia pequenina diante de tão grande espôso e que queria
conformar-se tôda inteira a êle para não ser demasiado indigna
de lhe ficar unida, e para corresponder o mais perfeitamente
possível à graça dessa união.
A grandeza do Espírito Santo não suscitava na alma de
Maria nenhum recuo de temor. O temor teria roubado ao seu
amor de espôsa a proximidade confiante que devia ter. A Virgem
não temia êsse Espírito, cujo poder no entanto se manifestava
violento e prodigioso, como se vê nos heróis e nos profetas de
Israel. Não ficava inibida nem intimidada diante dêle porque
fizera a experiência de sua doçura quando êle desceu sôbre ela
e lhe apresentou o seu amor. f:le só veio depois do seu consen­
timento, um consentimento que foi dado sem o menor cons­
trangimento. f:le havia protegido a liberdade de sua aquiescência
e afastado tôda e qualquer pressão.
Preservando a liberdade de Maria, o Espírito Santo havia
cuidado de não assustar o pudor de seu coração virginal. Bem
mais, foi à sua profissão de virgindade que êle quis corresponder
com a · sua vinda. Porque o anjo só falou do Espírito Santo e
de sua operação depois da afirmação de Maria: "não conheço

161
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

homem". O Espírito Santo pretendia vir a Maria, não apesar de


sua virgindade, mas em razão dessa virgindade. Satisfazia assim
a aspiração mais cara da jovem, que considerava a sua virgindade
como um bem sagrado. Vinha confirmar e selar para sempre
essa virgindade, e o fato de ter realizado êsse desejo mais funda­
mental de Maria havia estabelecido uma relação de confiança
total e de abandono perfeito da Virgem a seu respeito.
A vinda do Espírito Santo fôra portanto uma aprovação
solene da resolução de virgindade. Fôra também a demonstração
de seu valor. O Espírito Santo, apresentando-se à maneira de
um espôso, esclarecia-a mais vivamente sôbre o sentido da pro­
messa pela qual ela se ligara a Deus. Maria havia compreendido
desde o comêço que se tratava de uma consagração de todo
o seu ser ao Senhor, consagração que a obrigava a lhe reservar
todo o seu afeto. Dedicara a Deus o seu coração com todo o
frescor de amor que há no coração de uma espôsa. O que a
Anunciação lhe revelou, foi que Deus havia tomado à letra êsse
compromisso, e que assim como ela lhe oferecia o amor de uma
espôsa, receberia verdadeiramente um espôso divino. O Espírito
Santo vinha, como espôso virginal, ao encontro da oferenda
virginal de Maria.
Consagrando-se ao Senhor, Maria pensava entrar numa ver­
dadeira intimidade de amor com Deus; j amais teria imaginado
que essa intimidade tomaria uma forma tão concreta, ou que o
Espírito viria a ela para torná-la mãe. Tôda a fôrça do amor
materno que despertou nela o Espírito Santo por sua vinda, veio
redobrar o seu afeto virginal a êle. Normalmente, uma mãe
torna-se mais profundamente espôsa pelo fato de sua materni­
dade, e o filho constitui um liame a mais que a une ao seu
espôso. Longe de se combaterem mutuamente, o amor conjugal
e o amor maternal se fortificam. A mãe regozija-se de encontrar
no filho os . traços do espôso, e a sua admiração materna vem
consolidar o*seu afeto de espôsa. Maria não havia esquecido que,
segundo as palavras do anjo, Jesus era "santo" porque fôra
concebido pelo Espírito Santo. A santidade que ela não cessou
de observar no seu Filho deve portanto ter-lhe lembrado a san­
tidade do Espírito Santo, e o amor que dedicou a Jesus veio

162
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

reforçar o amor de espôsa que a prendia ao Espírito Santo. Tudo


o que contemplava e admirava em seu filho, ela o fazia remontar
à sua origem misteriosa e por tudo dava graças ao espôso que
lhe fôra dado.

A formação da espdsa

A luz do que lhe fôra anunciado pelo anjo, Maria podia


discernir a significação do seu passado. Se o Espírito Santo lhe
fôra dado como espôso em resposta à sua profissão de
virgindade perpétua, não havia nisso o indício de que êsse
Espírito havia inspirado êle-mesmo essa virgindade, e de que o
seu amor de espôso havia já penetrado, desde há muito, no
recôndito da alma de Maria e a havia modelado em vista dêsse
matrimônio espiritual ? A Virgem sabia que Deus não improvisa
os seus dons. Se o dom do Espírito Santo lhe pareceu tão bem
acomodado às suas próprias inclinações, não era sinal de que
fôra preparada por aquêle que queria fazer dela uma espôsa
adaptada aos seus gostos divinos ?
Recordando-se de tudo o que havia precedido a Anunciação,
Maria podia encontrar o roteiro dessa silenciosa preparação.
_

Quando chegou à idade da adolescência, idade em que normal­


mente a jovem se desliga do seu ambiente familiar, ela entrou
numa verdadeira solidão moral. De fato, recusava todo o apoio
dos afetos humanos e renunciava às satisfações que proporcionam
certas companhias fáceis e agradáveis. Tinha a impressão de que
essas companhias possuíam algo de ilusório, e de que os triunfos
da juventude eram cheios de promessas falsas. Havia o perigo
de se deixar seduzir por êles e perder de vista o essencial. Maria
sentia com extrema vivacidade a que ponto uma afeição humana
procurada por si-mesma ocultava um vazio fundamental e levava
a decepção. Só queria afeto em Deus e por Deus; �ra realizá-lo,
compreendia que devia, embora permanecendo no meio em que
vivia, estabelecer-se numa verdadeira solidão interior. Era-lhe
precisá preservar o seu coração. A sua pureza contribuiu para
essa preservação. Jamais houve em Maria uma sombra sequer de

163
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

galanteria, de desejo de atrair os olhares, e ainda menos de urna


solicitação que pudesse lançar a perturbação em tôrno dela. Não
punha em realce a sua beleza. Seu modo de trajar, simples e
reservado, fêz com que todos passassem ao lado dela sem a
observar, e é isso justamente o que mais desejava. Para perceber
a sua beleza, seria preciso descobrir-lhe a alma no rosto e
possuir uma alma da mesma qualidade. A Virgem pôde assim
permanecer ignorada no meio daqueles que julgavam conhecê-la
ou que permaneciam indiferentes à sua vista. Viveu numa autên­
tica solidão. Logo que se formou a sua personalidade de mulher,
ela se achou isolada.
Essa solidão não impediu Maria de se dar aos outros. Ela
não ficou à margem da sociedade, e nunca foi dessas pessoas
que se tornam pesadas para os que as cercam. Nunca alguém
descobriu nela olhares enfadados, tristes ou impacientes; em seu
coração j amais se aninharam sentimentos de crítica e de descon­
fiança para com os outros. Bem ao contrário, participava da
vida social, sabia manifestar o afeto que dedicava realmente aos
outros, sabia prestar alegremente serviços e semear a alegria em
tôrno de si. Mas nunca buscava a afeição privilegiada de alguém,
nem procurava suscitar uma preferência que lhe viesse lisonjear
o amor-próprio.
Manteve obstinadamente essa solidão do coração, solidão
que não deixou por vêzes de lhe parecer dura e penosa. Depois
da Anunciação, notou com maior evidência que essa solidão
fôra inspirada pelo Espírito Santo. Se havia recusado com vigo­
rosa determinação seguir a via que trilhavam as outras j ovens,
é que o poder do Altíssimo a havia j á coberto com a sua
sombra para se apropriar do seu coração. Era o Espírito Santo
que lhe havia mostrado a nulidade dos afetos exclusivamente
terrestres, a sua incapacidade de satisfazer as aspirações funda­
mentais da alma humana. Era êle que a havia tornado vigilante
na guarda de uma pureza que poderia ter sido ameaçada pelos
costumes do seu meio. Era êle sobretudo que lhe havia dado
o gôsto da solidão interior, porque queria conservar ciosamente
o seu coração para os desposórios divinos. Enchera-lhe a ahna
de uma caridade extremamente generosa, que a impelia a se

164
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desen v o lvim e n t o

interessar pelos outros, a simpatizar-se por êles, a ajudá-los, por


vêzes mesmo a custa de grandes sacrifícios. Mas ao mesmo
tempo pusera-lhe no amor um desprendimento tal que Maria
se dava sem se tornar escrava de sua afeição, e fugia de tudo
o que pudesse seduzi-la ou prendê-la.
Maria admirou êsse radicalismo com que o Espírito Santo
a afastara dos afetos terrenos. Era uma honra que lhe era feita,
porque demonstrava com isso o ardor com que a reservava para
si. Admirou igualmente a suavidade com que a levara a essa
solidão, sem embargo austera. Atraíra com tal delicadeza a
sua alma a essa intransigência de comportamento original, que
ela a havia adotado como que correspondendo ao seu próprio
desejo. O que a outros teria parecido antinatural, identificava-se
de certo modo, nessa ação penetrante e sutil do Espírito Santo,
com a própria espontaneidade de Maria. A Virgem experi­
mentou nisso um· verdadeiro desabrochar. Em sua solidão, havia
sentido uma alegria superior. Em lugar de encontrar um vazio,
atingiu uma plenitude. Depois da Anunciação, percebeu que
essa plenitude não era outra senão a presença do Espírito Santo,
porque na realidade ela jamais ficara sozinha: o Espírito Santo
estava incessantemente inclinado para ela a fim de lhe dar a
sua companhia invisível. Amando a solidão de sua virgindade,
Maria amava na verdade aquêle que a sustentava e a enchia.
Desde há muito estava desposada ao Espírito Santo, sem conhe­
cer-lhe expressamente o nome: não teve portanto dificuldade
em se reconhecer sua espôsa. Na Anunciação, o coração virginal
estava maduro para os desposórios divinos.
Lançando um olhar retrospectivo, Maria admirava a maneira
com que o espôso divino a levara a encontrar um espôso
humano. Poder-se-ia acreditar numa incompatibilidade entre a
sua resolução de virgindade e o matrimônio. Mas o Espírito
Santo lhe havia inspirado a virgindade a fim de preparar a sua
maternidade miraculosa em relação ao Salvador; ora, essa mater­
nidade exigia o apoio e a proteção de uma união conjugal. Era
preciso que a Virgem se casasse e permanecesse ao mesmo
tempo virgem. O Espírito Santo cuidou disso, e Maria pôde
discernir a sua ação providencial no encontro com José e em

165
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

seguida na troca do mútuo consentimento; o que a arrebatava


nessas circunstâncias tão visivelmente dispostas pela bondade
divina, é que a sua virgindade não se viu exposta a nenhuma
perturbação, ao menor abalo. O Espírito Santo havia velado
não somente pela virgindade do seu corpo, mas também pela
guarda de seu coração virginal.
Isso supunha evidentemente na alma de José um trabalho
interior levado a efeito paralelamente àquele que se tinha efe­
tuado na alma de Maria. Sem êsse trabalho, José não teria sido
capaz de entrever a profundidade que se ocultava na fisionomia
da jovem, nem se sentiria atraído por ela; sobretudo não teria
compreendido a exigência de virgindade que comportava o
acesso a êsse coração consagrado a Deus. Mas o Esp 1rito Santo
pusera nêle uma secreta aspiração a uma união virgmal, preser­
vada de todos os entraves da paixão, e unicamente desejosa de
servir a Deus numa comunidade de vida. Bem mais, formara
de tal maneira o espírito de José que êste se dispôs a aniquilar-se
na presença de Maria: José não pretenderia penetrar os pensa­
mentos dessa alma virginal, nem tomar em seu amor conjugal
o fundo do coração da Virgem. Respeitaria as disposições
íntimas de Maria, das quais não podia alcançar a última signi­
ficação. Tornar-se-ia o servo de sua virgindade.
O encontro com José realizara-se num plano tão elevado
e tão puro que longe de desviá-la de Deus, infundia-lhe um
desejo mais vivo da união com o Senhor. O seu matrimônio
desenvolvia nela sentimentos de espôsa, aquêles sentimentos de
que ela desejava reservar a melhor parte para Deus. Fôra por­
tanto preparada para acolher o espôso divino na Anunciação.
Tudo era obra do Espírito Santo, que conduzira a alma de
Maria ao têrmo visado. Refletindo na marcha dos aconteci­
mentos, a Virgem só podia louvar esta maravilhosa continuidade
da ação divina, essa constância do Espírito Santo em lhe dar o
estado dalma perfeito de espôsa.

166
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolviment o

Em caminho com o Espírito Santo

Depois da Anunciação, Maria viveu nessas disposições de


espôsa. O anúncio da vinda do Espírito Santo ao seu coração
enchera-lhe de um profundo entusiasmo. Ela não manifestou
ao anjo êsse entusiasmo, porque não compreendeu desde logo
tôda a felicidade que lhe era reservada. Mas as primeiras medi­
tações que fêz sôbre o imenso acontecimento que acabava de
se realizar, suscitaram nela um fervor extraordinário. Pensava
com ternura no Espírito Santo, que havia se dignado apro­
ximar-se tão perto dela, e sentia-se unida a êle para sempre
numa excepcional união.
Se quisermos fazer uma idéia do entusiasmo que se apoderou
da ahna de Maria, é mister olharmos para a jovem a caminho
das montanhas de Judá, pouco depois de ter recebido a boa­
nova. Partira de sua casa em demanda da casa de Isabel, e
o fizera precisall}ente para se conformar a uma sugestão do
Espírito Santo. Porque quando o anjo lhe anunciara que Isabel
daria em breve à luz um filho - para lhe fazer compreender
que "nada é impossível a Deus" - Maria percebera, pela luz
do Espírito Santo que acompanhava essa palavra, um convite
a ir em auxílio de sua parenta. Foi portanto sob o signo de um
acôrdo completo com o Espírito Santo, de quem reconhecera
a caridosa inspiração, que Maria empreendera a viagem.
E foi no espírito de um acôrdo íntimo com o espôso divino
que ela se manteve durante a penosa caminhada. Não se tornara
ela uma morada preferida para êsse espôso? Levando consigo
o seu filho, levava também a presença do Espírito Santo, pre­
sença que lhe penetrava totalmente a alma. O Espírito Santo
não podia abandonar aquêle cuja concepção operara, nem aquela
em quem a havia efetuado. Habitava em Maria, cobrindo e
envolvendo a presença corporal de Jesus. Pode-se dizer mesmo
que derramava essa presença na pessoa de Maria, e que difundia
nela a sua irradiação espiritual. Se a Virgem estava tôda impreg­
nada da. vida de Cristo, ela o devia ao Espírito Santo. t!le,
que havia dado comêço à vida física do menino, assegurava a

167
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

expansão de sua vida divina. Enquanto fazia viver Jesus no


seio da Virgem, fazia viver a Virgem em Cristo.
Alma do Corpo Místico, chamará a Igreja ao Espírito Santo
depois de muitos séculos. O Corpo Místico começara a existir
pela comunidade que unia Jesus à sua mãe, e o Espírito Santo
era a alma dessa comunidade. tle se infiltrava até o mais
íntimo do coração de Maria, para fazê-la aderir inteiramente
ao seu filho e fazê-la beneficiar-se desde já de tôdas as riquezas
trazidas pelo Salvador a êste mundo. Pode-se dizer ao mesmo
tempo que o Espírito Santo dera Jesus à Virgem, e que o
primeiro dom feito pelo filho à sua mãe foi o dom do Espírito
Santo, como será êste mais tarde o dom principal feito aos
discípulos.
Pelos caminhos da Judéia, Maria concentrava o seu pensa­
mento em seu filho, e por isso mesmo pensava na plenitude
do Espírito Santo de que estava penetrada. Experimentava aliás
a necessidade de pensar nêle, porque uma mulher encontra
normalmente em seu espôso um apoio e um reconfôrto p ara
a sua missão maternal; a Virgem buscava êsse apoio no Espuito
Santo. Queria tomá-lo por confidente em tôda a sua existê.ncia
de mãe, e testemunhar-lhe assim a confiança de uma espôsa,
esperando dêle um constante amparo. José não poderia desem­
penhar êsse papel, porque permanecia à margem do mistério
da miraculosa concepção. A Virgem compreendera sem demora,
no momento da Anunciação, que devia conservar em silêncio
o acontecido, mesmo em relação a José. tste devia ser o seu
confidente no plano de sua união terrestre, em tudo o que
dizia respeito aos interêsses do lar com suas necessidades coti­
dianas. Mas no plano da união celeste que acabava de lhe ser
proposta, Maria sabia que só o seu espôso divino, o Espírito Santo,
podia esclarecê-la e guiá-la. Por isso na ocasião em que se
dirigia à casa de Isabel, José ignorava o milagre que acabava
de transformar a vida de sua espôsa. A Virgem só podia falar
de sua maternidade e de seu filho ao Espírito Santo. me era o
único que podia conduzi-la na via do mistério.
E a conduzia com ardor. Não nos diz o Evangelho que
nos dias imediatos à entrevista que teve com o anjo, Maria se

168
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

levantou e foi com pressa para a montanha ? Apressava-se


porque era impelida por uma fôrça interior. Desde que descera
nela, o Espírito Santo dera um nôvo impulso à sua existência.
�le que de . modo violento havia tomado posse dos heróis e dos
profetas de Israel, e que tomará violentamente posse dos discí­
pulos no dia de Pentecostes, apoderara-se de tôda alma de
Maria. Por que não acenderia nela aquela chama que mais tarde
acenderá na primitiva Igreja ? Não devia ser a Virgem a pri­
meira a ser a�rasada por êsse fervor invencível que se manifes­
tará em Pentecostes ? Pelo caminho, sentia-se levada pelo Espí­
rito Santo, e o seu andar era tão vivo e tão alerta que ela mal
experimentava a fadiga. Caminhava devorada p elo fogo de um
ardor divino, como fará São Paulo em suas vtagens apostólicas,
e como fará igualmente, num longínquo futuro, São Francisco
Xavier, correndo quase sem o perceber, na exaltação do seu
zêlo, pelas estradas do Japão. O caminho da Visitação, era o
primeiro giro do Espírito Santo para espalhar a santidade de
Cristo.
Maria não tinha dificuldade em se conservar na presença
daquele que lhe animava a caminhada, em conversar com êle,
em lhe abandonar a direção de seus pensamentos e de sua
vontade. Pelo entusiasmo que lhe inundava a alma, sentia-se
uma posse do Espírito Santo, a propriedade de seu divino espôso.
Tinha consciência de lhe pertencer totalmente, e êste sentimento
de pertença sem reserva tinha algo de inebri'ante. Mas de outro
lado não perdeu a sua liberdade interior; ao contrário, achava-se
mais do que nunca senhora de si, com o pleno desabrochar de
sua personalidade. Experimentava uma ve1 dade fundamental
para a vida cristã: o verdadeiro desenvolvimento não é aquêle
que o homem gostaria de ter, mas o da alma que se deixa
arrebatar pelo Espírit6 Santo e que, dando-se completamente
a êle, vê-se transfigurada e dilatada.
Maria vivia de tal modo da vida do Espírito Santo que
ao final do caminho encheu a sua parenta dêsse mesmo Espírito
com a sua saudação, e a fêz soltar uma exclamação inspirada
do alto. Pela Virgem, o Espírito Santo comunicou-se a Isabel
e ao seu filho. Na alma de Maria êle provocou uma explosão

169
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

de alegria e de ação de graças, o Magnificat. Era o hino que


dava expansão aos sentimentos que a dominavam durante a
viagem e que podiam enfim manifestar-se. Maria podia dar livre
curso à sua emoção sem trair nenhum segrêdo, porque o Espírito
Santo havia esclarecido Isabel acêrca de sua maternidade.
O Magnificat estava à altura da grandeza do- Espírito Santo.
Revelava a que ponto essa - grandeza se tinha transmitido às
disposições de Maria e suscitava nela uma admiração e um
reconhecimento penetrados de generosidade. Mostrava também
o têrmo final aonde o espôso divino queria conduzir sua espôsa.
O Espírito Santo, enviado do Pai, desejava conduzir ao Pai a
afeição e o abandono virginal de Maria. Já dissemos como, no
caminho para a Judéia, êle unia a jovem mãe ao seu filho. O
seu objetivo último consistia em unir a Virgem ao Pai, pois
que tudo vem dêle e deve voltar a êle. Vemos atingido êsse
objetivo no Magníficat. Porque êste canto não traz nenhuma
menção do Filho nem do Espírito Santo; Maria não nomeia
nem o seu filho nem o seu espôso; faz remontar tôda a glória
de sua felicidade e da felicidade dos homens ao Senhor Deus
a quem chama seu Salvador, ao Pai misericordioso que cumpriu
a sua promessa de socorrer Israel seu servo. Imprimindo essa
direção ao seu louvor, o Espírito Santo fazia Maria participar
do seu impulso de amor eterno ao Pai: dava à sua espôsa um
olhar de afeição e de veneração semelhante ao seu.

Presença esclarecedora e operante

Depois da explosão de entusiasmo do Magnificat, vieram


horas mais calmas. O Espírito Santo faz sua entrada na alma
por meio de carismas, nos quais se exerce o poder de sua ação
e a inefável sedução de sua presença. Em seguida, por uma
operação menos sensível e mais sutil, penetra na profundeza da
alma que êle comoveu. A Virgem não cessou de experimentar
a doçura da proximidade do divino espôso, mas fazia-o de uma
maneira mais serena. Essa doçura continuou sempre a fazer

170
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

parte de sua vida, se bem que sob uma forma muitas vêzes
discreta e velada: no fundo de sua consciência permanecia para
sempre a alegria da união ao Espírito Santo, de um acôrdo que
nada podia romper. Alegria que ficava em certos momentos
sepultada sob a dor da provação, mas que persistia suficiente­
mente perceptível para constituir um secreto e inabalável apoio.
Com efeito, nunca a Virgem perturbou essa harmonia que
o Espírito divino havia instituído nela. Foi uma união sem a
mínima sombra de dissenção. Bastava que o Espírito Santo
murmurasse uma sugestão para que a sua espôsa correspondesse
imediatamente: todos os desejos divinos encontravam no coração
de Maria um acolhimento favorável e solícito. A Virgem foi
a única criatura que jamais opôs a mínima resistência a Deus,
a única que nunca entristeceu o Espírito Santo. Manteve-se
sempre numa concórdia ideal com o seu espôso.
Todavia, essa concórdia perfeita não significava imobili­
dade. Na calma dos dias de Nazaré, prosseguia o lento e siste­
mático trabalho do Espírito Santo na alma de Maria, porque
se se tinha apresentado a ela como espôso, era para realizar nela
uma obra longa e progressiva, a formação e o desenvolvimento
de um coração maternal.
Ora, êsse desenvolvimento requeria um esfôrço de com­
preensão dos acontecimentos extraordinários que haviam mar­
cado a vida da Vir� em. f:sses acontecimentos ultrapassavam de
tal modo a inteligencia humana que era preciso tempo para
penetrar-lhe o sentido. Maria "conservava-os em seu coração";
retinha fielmente o que lhe suscitava a admiração, o que não
chegava a compreender. Por que o retinha, e por que o Evan­
gelho nos fala em duas ocasiões dessa atitude verdadeiramente
característica da Virgem ? (Lc. 2, 1 9 e 5 1 ) . Conservando tais
recordações, ela não tinha certamente a intenção de as publicar,
como o fará efetivamente mais tarde; conservava-as antes como
segredos que permaneciam ligados à pessoa de seu filho. Queria,
na medida do possível, penetrar-lhes a significação, e era nessa
esperança que as repassava tantas vêzes em seu espírito, medi­
tando as. palavras que tinha ouvido. Tinha grande preocupação
por não confundir nem perder nada dessas lembranças: eram um

171
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

mistério sagrado que era preciso salvaguardar absolutamente


intato, tal como lhe fôra confiado.
Para entrar mais adentro nesse mistério, Maria não se enclau­
surava em seus próprios pensamentos. Não se interrogava a
si-mesma. Para quê, já que tinha consciência de ser ultrapassada
pelos acontecimentos ? A sua impotência para elucidar o alcance
dêsses acontecimentos levava-a a pedir a luz divina. Era ao
Espírito Santo que interrogava, e a sua meditação não se fazia
sob a forma de monólogo, mas de diálog-o. Não tinha ela um
espôso encarregado de esclarecê-la e dirigt-la ? O Espírito Santo
iluminou pouco a pouco Maria e revelou-lhe o que se escondia
na face do seu filho, o que deixavam supor algumas de suas
· atitudes ou declarações. Exerceu junto de Maria o papel que
lhe seria confiado mais tarde junto dos cristãos: indicar-lhes o
sentido das palavras e dos gestos do Mestre: "O Espírito Santo
que o meu Pai enviará em meu nome vos ensinará tôdas as
coisas e vos lembrará tudo o que vos tenho dito". "O Espírito
de verdade vos conduzirá à verdade total" (lo. 1 4, 26; 16, 1 3 ).
Na medida em que Maria podia compreender, descobria-lhe
a pessoa autêntica de Cristo. Fazia a Virgem crescer na fé, e
aumentava ao mesmo tempo a sua esperança e caridade, porque
se Jesus crescia em graça �os olhos de Deus e dos homens,
era preciso que o coração maternal de Maria crescesse de maneira
análoga para corresponder às necessidades de seu filho. Era ao
Espírito Santo que cabia manter essa harmonia entre o filho e a
mãe, e fazer de modo que o desenvolvimento de ambos se conju­
gasse. Dilatava a alma maternal de Maria à medida da sabedoria
e da graça que acumulava no filho.
Essa ação não se deteve quando Jesus atingiu a idade adulta,
nem quando começou a vida pública. O Espírito Santo fêz Maria
progredir ainda em sua inteligência da revelação e em seu amor
a Cristo. Foi êle que inspirou em Caná aquêle pedido da Virgem,
tão surpreendente pela fé que implicava. E foi êle que, ante a
resposta abrupta de Jesus, encorajou Maria a p erseverar doce­
mente em sua súplica. Estava verdadeiramente JUnto dela como
espôso que guia, ilumina e reconforta. :tsse apoio, êle o concedeu
ainda em maior escala à Virgem no momento terrível do sacrifício

172
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

supremo. Se Maria se conservou de pé junto da cruz, deveu-o


à fôrça do Esp írito Santo; e se lançou para o seu Filho moribundo
um olhar che1o de fé, é que a luz indefectivel do Espírito Santo
esclarecia-a em meio às trevas. Quando teve ante os olhos o
cadáver de seu filho, o espôso divino, inclinando-se com ela nessa
muda contemplação, tornava inabalável a firmeza de seu coração
materno. Dava-lhe o apoio que parecia ter-lhe prometido outrora,
fazendo-lhe anunciar a sua vinda. Na solidão do Sábado Santo,
Maria reconheceu, na ausência do filho, a presença do hóspede
que havia sempre habitado sua solidão virginal. Foi em companhia
do Espírito que esperou a aurora da ressurreição. E foi com o
estremecimento de alegria e de exultação do Espírito Santo que
acolheu o seu Filho portador de uma nova vida.
Tôda a existência de Maria escoou portanto na intimidade
do Espírito Santo e foi animada por sua presença: êle foi a todo
o instante o confidente, o inspirador de seus pensamentos e de
suas efusões mais secretas. Para ler e compreender a vida da
Virgem, · é nêle que é preciso buscar a sua fonte profunda.

Nova consagração da união


de Maria com o Espírito Santo

No Cenáculo onde os discípulos aguardavam o Pentecostes,


Maria téve um lugar de destaque. Parecia inteiramente natural
que ela estivesse onde se encontrava a comunidade, entre as
mulheres que haviam seguido Jesus. Mas um desígnio providencial
a queria especialmente lá, porque na qualidade de esposa do Espí­
rito Santo, devia desempenhar um papel primordial- na preparação
do grandioso acontecimento.
A promessa que Jesus fizera de enviar o Espírito Santo Con­
solador havia ecoado na alma de Maria com mais fôrça do que
na dos discípulos. Ela sabia, com efeito, o que significava seme­
lhante promessa: o Espírito Santo era o hóspede familiar de sua
vida, êle havia inspirado a sua virgindade, transformado o seu
destino· pela maternidade e finalmente estabelecido nela um clima
todo divino. Conhecia por experiência os entusiasmos que o Es-

17J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

pírito Santo podia suscitar com a sua descida numa alma, e os


prodígios que podia realizar à sua passagem. Apreciava portanto
no mais alto grau a promessa solenemente feita por Cristo no
momento da Ascensão. O Espírito Santo anunciado era o dom
mais excelso que podia ser concedido aos discípulos.
A Virgem suspirava de todo seu coração por essa vinda; ardia
no desejo de ver o Espírito Santo repetir nos discípulos as mara­
vilhas que havia operado nela, a transformação profunda de todo
o seu ser e o ardor irradiante de uma irresistível caridade. fuse
desej o tomava a forma de uma oração: ao mesmo tempo que os
disc1pulos suplicavam ao Senhor que lhes enviasse aquêle Espírito
misterioso que acreditavam não conhecer ainda, a Virgem pedia
por êles àquele que ela conhecia, admirava e amava. Era o seu
espôso que ela invocava, e compreende-se que êsse apêlo tenha
tido uma eficácia particular.
Quando o Espírito Santo desceu sôbre a comunidade no dia
de Pentecostes, foi à súplica de Maria que êle atendeu. A Virgem
fôra a sua preferida e continuava a ser para sempre. Entre ela
e êle havia uma afinidade que tinha por resultado atraí-lo onde
quer que ela se encontrasse. Não somente na hora de Pentecostes,
mas em tôda a história da Igreja e das almas, o Espírito Santo
compraz-se em intervir onde a Virgem o pede. Nos corações
que se colocam na intimidad"e de Maria, êle surge infalivelmente
para operar prodígios de santidade e de apostolado.
Para a Virgem, Pentecostes renovou o milagre da Anunciação.
Outrora, o Espírito Santo havia-a tornado mãe de Cristo; agora
estabelece-a em sua nova maternidade em relação aos cristãos.
Constituindo a Igreja pe!o dinamismo de sua caridade, êle fêz
de Maria a mãe da jovem comunidade, segundo a palavra pronun­
ciada por Cristo na cruz. A Virgem foi penetrada do zêlo maternal
que a faria velar pelos primeiros desenvolvimentos do cristianismo.
Foi nesse momento que recebeu todos os tesouros de bondade
e de misericórdia que o seu amor materno j amais cessou de dis­
pensar aos homens: a mãe que se inclina com solicitude para
todos os cristãos é uma criação do Espírito Santo.
Por isso, assim como a união de Maria com o seu espôso
divino foi indissolúvel durante a sua vida terrena, assim essa união

174
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O d e s e n v -o l v i m e n t o

permanece indissolúvel na ação que exercem no seio da Igreja.


Há uma impressionante analogia entre a maneira de proceder da
Virgem e a do Espírito Santo. Maria age com discrição; sugere
delicadamente, como fêz em Caná, com uma insistência impreg­
nada de doçura; e em suas sugestões reconhecem-se os traços da
atividade do Espírito Santo, que opera suavemente. A presença
da Virgem modela-se pela de seu espôso; é a presença silenciosa
de Nazaré, que não faz barulho algum e cuj o ardor se encerra
totalmente no interior da alma. Sobretudo, e uma presença que
se apaga diante de Jesus; porque Maria só tem um desejo, isto é:
atrair os olhares para Cristo, desaparecendo ela-mesma por detrás
dêle. Assim também o Espírito Santo se faz esquecer na alma
em que reside para concentrar tôda a atenção sôbre o Salvador.
Mas êsse aniquilamento não é fraqueza: a Virgem, como o Espí­
rito Santo, sabe mostrar audácia e perseverança em suas emprêsas;
os cristãos consideram-na como a grande inimiga de Satã, aquela
que persegue os pecadores mais endurecidos e não abandona um
só. A sua paciência maternal para reconduzir os desgarrados ou
melhorar os fiéis, imita a paciencia incansável do Espírito Santo,
que trabalha obstinadamente em derrubar todos os obstáculos
levantados nas almas contra a caridade. Enfim, se o Espírito
Santo é amor e fonte de amor, a Vir�em, com seu coração
materno, aparece aos homens como o stmbolo mais expr�ssivo
do amor misericordioso.
Formada por seu divino espôso, Maria propaga a perfeição
que dêle recebeu, e torna-se na Igreja a mensageira dos dons do
Espírito Santo.

II1 - M Ã E DO VERBO

Elevação do amor maternal de Maria

Filha privilegiada do Pai e espôsa do Espírito Santo, Maria


tinha com Deus liames excepcionais. Mas é sob o título de Mãe
do Verbo que está unida à divindade pela relação mais íntima.
Deus quis precisamente, para manifestar o seu amor à humanidade,

175
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

estabelecer entre êle e uma de suas criaturas a relação de um


filho para com uma mãe. Nada podia ser mais íntimo do que
semelhante relação: o nome glorioso de "Mãe de Deus" que a
Igreja reconheceu a Maria exprime o limite extremo do amor
divino que se uniu tão humildemente ao ser que havia criado.
�le si�nifica também a estonteante grandeza que êsse amor
confenu à Virgem.
Decerto, Maria não é mãe da divindade, o que seria aliás
impensável. É mãe de Deus porque é mãe da pessoa divina do
Verbo. Fisicamente só gerou o corpo humano de Jesus; mas é
mãe de tôda a pessoa de seu filho, porque a maternidade cria
uma relação de pessoa para pessoa. Eis a razão por que Cristo
é Filho de Deus segundo a sua divindade, e filho de Maria segundo
a sua humanidade. Maria tem portanto o mesmo Filho que o
Pai celeste. O Verbo, que existia desde tôda a eternidade, tornou­
se seu filho. Qual foi êsse coração materno que pôde acolher
o próprio Deus ?
me possuía tudo o que um coração materno encerra normal­
mente de ternura e dedicação. Como tal, o amor materno é uma
forma altíssima de amor, porque implica o mais vasto dom de si.
Por êle, a pessoa dá-se mais que nas outras espécies de afeição:
no amor filial que um filho dedica aos seus pais, o dom não é
tão radical porque o filho recebe muito mais do 9.ue pode dar,
e se acha numa situação em que tudo conver�e para ele como para
um centro de afeição; no amor conjugal, ha a busca essencial de
um apoio e de um reconfôrto no cônjuge, de tal forma 9 ue nêle
se recebe tanto quanto se dá. No amor materno, porem, é a
mãe que se dá e que consagra suas fôrças à educação do filho:
ela não poderá obter dêsse amor tudo o que nêle despende, porque
trabalha na formação de uma personalidade que se desprenderá
progressivamente dela. O seu objeto não é receber algo de seu
filho, mas prover ao seu bem e fazer dêle um homem. Tornando­
se filho de Maria, o Verbo quis pedir a um coração materno êsse
dom completo do amor; desejou ser acolhido na humanidade pela
afeição humana mais total.
Superior a qualquer outro, o amor de Maria tinha primeira­
mente este caráter único: era ao mesmo tempo maternal e virginal.

176
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

A virgindade conferia um frescor incomparável ao afeto com que


Maria olhava para o seu filho. Podia dar-lhe um coração que
jamais fôra manchado por nenhuma servidão carnal, que se tinha
reservado intato numa atmosfera ideal. Essa preservação virginal
contribuiu para dar uma nota de perpétua juventude ao amor
materno de Maria. Nela, o fruto não fêz morrer a flor; o perfume
da primavera persistia na maturidade. Não foi uma das menores
satisfações de Jesus poder contemplar na fisionomia de sua mãe
os traços inviolados de uma virgem.
O amor materno de Maria foi mais ainda marcado de um
caráter excepcional pela pureza imaculada de sua alma. tle se
assinalou por uma perfeita santidade, que o pôs ao abrigo dos
extravios a que teria sido normalmente exposto. Mesmo que urna
mãe queira dar-se tôda inteira ao seu filho, ela não pode escapar
completamente a certas reivindicações do egoísmo, buscando em
seu filho as suas próprias satisfações, ou a certas tendências de
temperamento, que a levam a excessos de nervosismo ou de impa­
ciência. O filho descobre depois de certo tempo essas imperfei­
ções, e a imagem de sua mãe, embora permaneça sagrada a seus
olhos, perde muito de sua nobreza. Jesus não experimentou
semelhante desilusão, porque Maria fôra isenta do pecado original,
e não trazia em si êsse atavismo que inclina o homem para o
mal. Ela não cedia em nada às solicitações do egoísmo, mantinha
o equilíbrio de suas tendências e dominava serenamente o seu
humor. Essa harmonia interior que reinava em sua alma intro­
duziu uma perfeita harmonia em suas relações com o seu filho.
Cristo não foi decepcionado em nenhuma circunstância pelo
comportamento de sua mãe; não se viu na situação embaraçosa
do filho que se acha prensado entre o desejo de julgar sua mãe
perfeita e a evidente verificação de uma falta cometida. Entre
a mãe ideal e Maria não havia o menor choque.
Se a sombra do pecado jamais se interpôs entre a Virgem
e o seu filho, a perfeição de sua concórdia não tinha somente
êsse fundamento negativo. O amor materno de Maria fôra elevado
pela graça ao nível da caridade teologal, porque êsse amor devia
dirigir..se a Deus mesmo, à pessoa divina do Filho; e para atingir
verdadeiramente essa pessoa divina no filho que lhe fôra dado

177
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Maria precisava da caridade sobrenatural, que une o homem


diretamente a Deus. Sem dúvida, essa caridade é concedida por
Deus a todos os homens que consentem em lhe abrir a alma;
mas em Maria, ela tomava a forma do amor materno e identi­
ficava-se com êsse amor. As outras mães amam a Deus e a seus
filhos com dois amôres diferentes; Maria amava a Deus e a seu
Filho com o mesmo e único amor. Quando se diz das outras
mães que adoram os seus filhos, um limite é necessàriamente pôsto
a essa adoração, pois que no sentido próprio a adoração só pode
ser dirigida a Deus. Maria não conheceu êsse limite, e pôde
legitimamente adorar o seu filho, adorá-lo com religiosa vene­
ração.
Ora, a caridade sobrenatural, apoderando-se do amor maternal
de Maria, havia acentuado e levado ao extremo o seu desinterêsse
no dom. Porque a sua característica é conduzir a alma a amar
a Deus por êle-mesmo, por complacência na grandeza e na bon­
dade divinas. Ela levava a Virgem a amar o seu filho, o Filho
de Deus, por êle-mesmo, e a se esquecer por amor dêle. Levava-a
a servi-lo, e a consumir tôdas as suas fôrças nesse serviço, sem
reclamar descanso nem recompensa. Impelia Maria a só pensar
em Jesus, sem nunca olhar para si-mesma.
Eis a razão por que, depois de saber pela Anunciação gue
o seu filho seria chamado a reinar eternamente sôbre o povo a
título de Salvador, Maria não procurou obter um lugar de des­
taque nesse reino. Os discípulos de Jesus alimentarão semelhante
desejo; disputarão os primeiros lugares e farão diligências por
obtê-los, como os filhos de Zebedeu, cuja mãe intervirá junto do
Mestre para lhes assegurar a preferência. Não somente a mãe
de Jesus nunca fêz em seu proveito diligência semelhante, mas
j amais alimentou o desejo de se aproveitar do triunfo de seu
filho. Acreditava mais que qualquer outro no maravilhoso poder
de que Cristo era investido, mas só pensava nêle e na felicidade
dos homens. Jamais lhe veio ao pensamento a idéia de se reservar
um lugar privilegiado no reino. To dos os seus esforços visavam
a grandeza de seu filho, e em sua missão maternal ela se gastava
sem medida para preparar essa gtandeza.

178
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

Em seu afeto de mãe, Maria realizava o voto de todo o amor


teologal: consagrar-se a Deus a ponto de querer unicamente nêle
a sua felicidade, de lhe abandonar todos os seus interêsses para
só pensar em sua glória. A Virgem só tinha um objetivo em sua
existência: a glória do Filho de Deus.

O que Maria deu ao Verbo

Tornando Maria mãe do Verbo, Deus queria que ela desse


ao seu Filho o máximo do que uma criatura pode dar ao seu
Criador. Punha assim em evidência o poder concedido a um
ser humano de dar verdadeiramente algo a Deus, de lhe dar
mesmo o que devia tocá-lo profundamente. Tão grande poder
assombra o homem a tal ponto que êle tem dificuldade em
acreditá-lo. Em face de Deus o homem se vê, com efeito, na
posição daquele que tudo recebe: sua existência, sua persona­
lidade, suas qualidades e posses, tudo vem . dêle. E em sua ativi­
dade também, êle tudo recebe do poder divino. Como poderia
dar o que quer que seja àquele que tudo lhe dá ? É que Deus
elevou o homem a um outro plano, ao plano das relações pessoais
com êle, que comporta um intercâmbio de amor e um dom
mútuo. Neste plano, o homem foi tornado capaz por Deus de
lhe dar alguma coisa. Ora, é na maternidade da Virgem que êsse
nôvo poder atribuído ao homem se revela em tôda a sua extensão.
Maria deu ao Verbo uma vida humana e um coração humano:
foi ela que teve a responsabilidade de formar a fisionomia
humana de Cristo, de determinar-lhe os traços físicos e de fazer
desabrochar a sua constituição psicológica.
Que prova maior poderia Deus nos dar da admiração que
dedica às suas criaturas, do que confiar assim a uma delas o
cuidado de imprimir profundamente a sua semelhança na natureza
humana do Verbo ? Tôda a hereditariedade física de Jesus vinha­
lhe de sua mãe; foi ela quem lhe deu os seus traços corporais.
Quando se pensa no destino dêsse corpo de Cristo, que devia
não só tornar-se na paixão o instrumento de nossa salvação, mas

179
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

também, depois de ter revestido o esplendor da ressurreição, con­


tinuar indefinidamente na Igreja a sua presença sob a forma
eucarística e oferecer-se em alimento a todos os cristãos, com­
preende-se a imensidade da confiança divina que fêz nascer êsse
corpo da Virgem Maria.. Por tôda a parte no universo e através
dos séculos até ao fim do mundo, êsse corpo levaria a marca
profunda de sua origem materna.
A confiança divina foi ainda maior ao atribuir a Maria urna
influência decisiva sôbre a alma de Cristo. Maria não deu somente
a Cristo o seu corpo e o seu temperamento físico; contribuiu
também para a formação de seu espírito e de seu coração. Foi
mesmo essa a sua missão primordial, porque a missão de uma
mãe reside muito mais na educação do filho do que na simples
geração. Somos tentados a recuar diante de tudo o que implica
essa missão no caso de Maria. Não tinha Jesus o poder de se
formar a si mesmo sem requerer a intervenção de sua mãe ? Não
possuía êle na perfeição e na santidade de sua natureza divina a
regra de seu comportamento ? Então, por que quis sujeitar-se
a uma educação ? Finalmente, reconhecer a Maria a faculdade
de formar a ahna do Verbo não parece colocá-la acima da divin­
dade ?
Eis a dificuldade que se. inclui no mistério da maternidade
divina da Virgem. Concebe-se dificilmente a idéia de que um
ser humano tenha podido exercer uma influência real sôbre uma
pessoa que era Deus, e que tenha podido dar-lhe realmente alguma
coisa. E no entanto, a verdade da Encarnação é inseparável da
verdade da maternidade divina. O Verbo poderia ter criado para
si um corpo sem recorrer ao serviço da Virgem para introduzi-lo
no mundo; poderia formar para si uma alma independentemente
de tôda a ajuda maternal. Mas não o quis. Fêz-se homem inte­
gralmente, aceitando a formação normal de seu corpo no seio
materno e deixando formar a sua alma no clima de um amor
maternal. Não houve simples aparência de educação, do mesmo
modo � ue não houve simples aparência de geração: Jesus foi
tão autenticamente educado por sua mãe quanto foi verdadeira­
mente nascido dela. Abandonou-se, para a formação de sua psico­
logia, ao coração maternal de Maria. Foi portanto êsse coração

180
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

matemo que se tomou responsável pela fisionomia do Salvador;


foi êle que traçou secretamente o primeiro esbôço da figura de
Cristo descrita nos evangelhos.
Maria exerceu sôbre o seu filho uma ascendência maior do
que as outras mães. Longe de entravar a influência· materna, a
divindade de Jesus acentuou-lhe a fôrça, porque em razão de sua
santidade, dedicava à mãe um amor filial de excepcional inten­
sidade, e ao mesmo tempo uma total submissão. Poder-se-ia dizer
que por sua obediência êle se esquecia de que era Deus; a sua
soberania engenhava-se em se submeter. Ora, por essa obediência
e por êsse amor, Jesus abria-se completamente à ação de Maria.
A obediência fazia-o cumprir até os menores desejos de sua
mãe, e o amor impregnava-o das qualidades da Virsem, fazendo-o
assimilar as tendências profundas de sua personalidade.

A educação do Filho do Pai

O que Maria contribuiu para formar em Jesus, foi essen­


cialmente uma atitude humana de Filho do Pai. Cristo devia
ser em sua natureza humana o que era por sua pessoa
divina; era preciso que a sua filiação em relação ao Pai tomasse
uma forma humana, expressões e sentimentos humanos. Vemos
no Evangelho que essa filiação dirige todo o comportamento do
Salvador. Jesus preocupa-se antes de tudo em afirmar a sua
união com o Pai: como fundamento de sua doutrina, de seus
milagres, de tôda a sua obra, êle indica o Pai.
Essa mentalidade humana de Filho do Pai era exigida pela
pessoa do Verbo, mas só foi adquirida com o concurso de Maria.
Foi a Virgem quem ajudou Cristo a traduzir em sua humanidade
o seu afeto divino ao Pai. Ela foi capaz de assumir essa respon­
sabilidade porque recebeu a graça de uma excepcional fi­
liação em relação a Deus. Filha do Pai, ela o era em plenitude,
em virtude de sua Imaculada Conceição e de sua santidade sem
mancha; já vimos como ela viveu dessa filiação e como - a har­
monia de suas relações com o Pai nunca sofreu eclipse. Espon-

181
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

tâneamente, ela transmitiu a Jesus essa atitude filial, e permltlu­


lhe assim exprimir numa linguagem e em gestos humanos as
profundezas de sua filiação divina.
No fundo, Maria outra coisa não fazia senão dar a Jesus
o que dêle recebera. Porque se se tornara filha do Pai, devia-o
aos méritos redentores de Cristo: por uma aplicação antecipada,
êsses méritos haviam-lhe valido a graça da Imaculada Conceição.
A Virgem recebera antecipadamente a filiação divina que o
Salvador queria comunicar aos homens, de tal modo que pôde
educar o seu filho num clima de amor filial em relação a Deus.
Cristo achava-se pois na origem dos sentimentos filiais de Maria,
mas êstes transmitiram-se verdadeiramente à sua psicologia humana
por via da educação materna.
À Virgem coube a honra de fazer ouvir pela primeira vez
a Jesus, na língua do povo judeu, o nome de Deus. tsse nome
foi repetido pelo filho com o acento particular de absoluta
veneração que punha nisso a sua mãe, como um nome que
jamais se pronuncia com leviandade e ao qual está suspensa a
existência de tôdas as coisas. Maria havia herdado de sua raça um
temor sagrado diante do nome de Javé, e todavia em seus lábios
êsse nome não significava terror, mas a reverência de todo o ser
e o reconhecimento de uma soberania sem limites; a Virgem
imprimia a êsse nome um sabor mais familiar, em que se notava
um sentimento de grande confiança. Ao mesmo tempo que
levava ao extremo a adoração que merecia êsse nome, abrandava­
lhe a ressonância, e para que êle penetrasse no coração de Jesus,
ousava pronunciá-lo com alegria e complacência. Em Maria,
com efeito, o temor de Deus, tão recomendado pelos livros
santos, tomava a forma de uma submissão e de um respeito
inspirados pelo amor. Não queria que o nome de Javé se
tornasse o sinal de um terror esterilizante. Trazido a Jesus por
seu amor materno, êsse nome chegava a êle impregnado de
imenso afeto.
Do mesmo modo, Maria ensinou ao seu filho as orações tradi­
cionais do judaísmo, inculcando-lhas palavra por palavra, frase
por frase. A isso também dava urna nota particular de confiança
filial na maneira de as compreender e de as explicar; em sua bôca,
182
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

essas orações recebiam um valor diferente de seu valor original,


o valor do Nôvo Testamento, em que Deus é considerado como

mais próximo dos homens. Como não teria a Virgem introduzido


semelhante modalidade nessas orações, ela a quem o Nôvo Testa­
mento começara a ser revelado, que vivia na intimidade do
Espírito Santo e que se via constantemente na proximidade do
próprio Filho de Deus? Essa mentalidade particular a Maria
manifestava-se aliás no conjunto de seu comportamento, nos
impulsos espontâneos que em muitas ocasiões de sua vida subiam
de sua alma para Deus. Na prece do coração, Maria testemunhava
mais livremente os seus próprios sentimentos do que nas fórmulas
consagradas. Mais tarde, Cristo, herdeiro dessa atitude, exprimirá,
mais explicitamente ainda do que Maria, a confiança filial que
deve caracterizar a oração. Pedirá. a seus discípulos que chamem
a Deus "Pai nosso" no comêço de suas súplicas: era o nome que
a Virgem não havia encontrado nas orações judaicas, que não
podia introduzir nelas, mas sob o qual teria gostado de invocar
a Deus, porque só queria dirigir-se a êle como a um Senhor
cheio de bondade paternal.
Aliás, a compreensão pessoal que Maria tinha das orações
judaicas e que havia transmitido ao seu filho não era de modo
algum contrária ao espírito dessas orações. Jesus dirá que não
veio ab-rogar a lei, mas cumpri-la, levá-la à perfeição (Mt. 5 , 1 7 ) .
É o que s e podia aplicar a Maria, que não s e opunha à tradição
recebida, mas a integrava completamente, a ponto de fazê-la
produzir novos frutos. Dirigindo-se a Deus como a um Pai,
ela cumpria o voto mesmo das orações do Antigo Testamento.
A oração de cada dia começava por estas palavras: "Ouve,
Israel, Javé é o nosso Deus, Javé é único. Amarás Javé teu
Deus de todo o teu coração, de tôda a tua alma e de tôdas as
tuas fôrças" (Deut. 6,4) . Para amar a Deus de todo o coração
e de tôdas as fôrças, não era preciso amá-lo com um amor
filial? É o que havia compreendido Maria.
Falava com entusiasmo ao seu filho da bondade de Deus.
Ao lhe explicar os elementos da religião judaica, punha nesse
rudimentar ensinamento materno tôda a sua argúcia de apreciação.
Traçava-lhe swnàriamente a história do povo eleito e insistia

181
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

sôbre a benevolência e solicitude do Todo-Poderoso que havia


acompanhado a raça judaica através de todos os acontecimentos
do seu passado; punha em relêvo as atenções de um Deus amante,
que brilhavam por vêzes em grandiosos prodígios, de um Deus
paciente que nunca abandonava os filhos que não cessavam de
se revoltar contra êle e de ofendê-lo. O princípio em que se
baseava a explicação dêsse destino privilegiado era portanto um
Deus invencível em seu amor, incansável em sua misericórdia,
um Deus que possuía um coração de pai. Jesus sabia muito mais
coisas dessa história do que sua mãe, e conhecia também melhor
do que ela o coração do Pai. Todavia, a humilde exposição
feita por Maria tomava a seus olhos um grande valor; acolhia-a
àvidamente para se compenetrar dela, porque exprimia ao vivo
numa linguagem popular a imagem que um pensamento humano
formava de Deus, além de constituir um modêlo de reconhe­
cimento filial pelos benefícios divinos. Ao contato de Maria,
êle experimentava a que ponto a verdade da presença de um
amor paterno no govêrno de tôdas as coisas podia dilatar o
coração e encantar o espírito. Esta verdade exercia sôbre a
Virgem uma sedução imensa, e entretinha a sua alegria e con­
fiança.
Mais tarde, quando o Mestre fundou todo o seu ensinamento
sôbre o amor de Deus aos homens, não se contentou de buscar
êsse princípio em sua consciência divina de Filho, mas esforçou-se
por inculca-la de uma maneira semelhante à de Maria. Ao decla­
rar que o Pai estava na origem de sua vida, dç sua doutrina e de seus
milagres, quis que a admiração manifestada outrora pela Virgem
fôsse partilhada por seus discípulos, é que a convicção da bondade
do Pai que dirigia a obra redentora formasse o fêcho de abóbada
de sua fé. Essa convicção devia sustentar o seu entusiasmo, como
havia sustentado o entusiasmo de Maria. Todo o ensinamento de
Jesus visou pois revelar a sua filiação em relação ao Pai, filiação
que exprimia com sentimentos e com uma linguagem modelados
pela educação materna.

184
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lviment o

Educação do Salvado1'

Maria sabia desde a Anunciação que o seu filho era o Messias,


destinado a procurar aos homens a salvação. O anjo havia-lhe
mostrado que educação devia dar a Jesus: na medida de sua influên­
cia maternal, devia contribuir para formar nêle o Salvador.
Mas como formá-lo ? Revelando-lhe a perspectiva de glória
que fôra aberta pela declaração do Anjo Gabriel ? O trono de
Davi, um reino que não teria fim, eis o que lhe era prometido.
O velho Simeão havia acrescentado que essa glória se estenderia
por tôda a terra, por que era "aos olhos de tôdas as nações" que
· ela devia brilhar, e Jesus seria a luz que iluminaria os povos estran-
geiros (Lc. 2, 3 1- 3 2 ) . Maria ficara maravilhada com essa profecia.
Iria empregá-la para fazer viver Jesus na visão de sua futura gran­
deza ? Não se educam os príncipes inculcando-lhes a grandeza da
missão real que lhes incumbirá um dia ?
Não foi êsse o método da Virgem. Maria não falou a Jesus
nem do anúncio do anjo nem da predição de Simeão. Guardou
para si, no segrêdo do coração, o quadro grandioso do futuro de
seu filho. Via que o seu papel não consistia em ajudar Jesus a
perseguir honras; ela que nunca as havia procurado e que per­
manecia inacessível às ambições terrestres, só podia educar o seu
filho numa atmosfera de humildade. Percebia que a glória não
era um objetivo a conquistar, mas um favor a receber de Deus;
não devia portanto fazer brilhar aos olhos de seu filho o esplendor
de seu futuro reino. Deus mesmo cuidaria da realização de sua
promessa.
Contudo, a revelação com que Maria fôra agraciada devia
guiá-la em sua missão de educadora: ela devia levar em conta o des­
tino messiânico de Jesus. O que fêz para prepará-lo ? Não sabia
por que meios êsse destino chegaria a -realizar-se, mas conhecia a
inspiração que devia dirigir o Messias, ou seja, um amor misericor­
dioso pelos homens a salvar; e compreendia igualmente, pelas pre­
dições ouvidas, que a alegria da salvação não se obteria sem dor.
Foi nes�e espírito e nessa perspectiva, que correspondiam aliás ao
seu estado de alma, que a Virgem educou o seu filho.

18,
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

O seu coração materno não precisava fazer esforços para en­


treter Jesus num clima de amor misericordioso. Desde sempre,
Maria condoía-se da miséria humana, principalmente das misérias
morais que descobria em tôrno de si e cuja extensão infinita através
do mundo, adivinhava. Diante da malícia dos homens, compreen­
dia a prontidão do salmista em reclamar a vingança divina, . porque
experimentava um imenso horror ao pecado; mas inclinava-se antes
com piedade para olhar os pecadores. Considerava-os como infe­
lizes que haviam sucumbido à sua fraqueza, e que precisavam de
uma fôrça superior para se reerguer. Sabia aliás que essa piedade,
conforme a Escritura, era o sentimento do próp rio Deus em face
dos extravios do seu povo; a cólera era provisoria, a misericórdia
seria definitiva. Eis porque Maria havia aspirado de todo o seu
ser ao advento da época messiânica. Agora que êsses tempos
haviam chegado, como não intensificaria o seu desejo de miseri­
córdia, o seu amor por aquêles que precisavam tão urgentemente
de socorro ?
Em sua infância, Jesus foi testemunha do comportamento de
Maria em face daqueles que se chamavam pecadores. Enquanto
que os fariseus, que se pretendiam justos, recusavam todo o con­
tato com êsses infelizes e lhes manifestavam o seu desprêzo, a
Virgem manifestava-lhes uma solicitude tôda particular logo que
se apresentava uma ocasião. . Na maneira com que falava dêles,
sentia-se tôda a simpatia que lhes votava. Essa simpatia não era
recusada nem mesmo aos pecadores verdadeiramente endurecidos,
que pareciam zombar da religião. Maria estimava-os tanto mais dig­
nos de piedade quanto mais inconscientes pareciam de sua miséria.
Quando Cristo velar a sua cólera, em face de adversários obsti­
nados, com um olhar de simpatia consternada, apenas reproduzirá
o olhar maternal de Maria ( Me. 3 ,5 ) . E o perdão que pediu na
cruz por seus piores inimigos prolongará as súplicas de Maria em
favor dos pecadores mais pervertidos. Amigo dos publicanos e
dos pecadores, Jesus o será em plenitude e como que sem esfôrço,
por preferência de gôsto, porque fôra acostumado a isso pela bon­
dade de sua mãe.
O amor dos homens encontra-se na base da Encarnação do
Verbo; o Verbo fêz-se carne a fim de resgatar os homens, de liber-

186
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

tá-los do pecado e devolver-lhes a amizade divina. A natureza


humana de Cristo já é portanto urna expressão do amor divino
pela humanidade. A Virgem não transmitiu a Jesus êsse prin­
cípio do amor aos homens e aos pecadores, que era a própria
razão de ser de sua existência terrestre. Mas estava encarregada de
favorecer-lhe o desenvolvimento. E podia fazê-lo porque havia
compreendido de maneira eminente a verdade capital que devia
ordenar todo o plano de salvação: a bondade divina decidida a reer­
guer rnagnl.ficarnente a humanidade. Em seu amor materno, con­
siderava-se corno a agente dessa bondade; procurava fazê-la trans­
parecer em tôdas as suas atitudes a fim de transmiti-la o mais fiel­
mente possível à alma de seu filho.
Foi a educação materna que trouxe a Jesus o exemplo con­
creto do atrativo que exerce sôbre os homens urna doçura benevo­
lente. O filho notou o reconhecimento que despertava a simpatia
de Maria em tôrno dela, especialmente naqueles que se viam repe­
lidos pela sociedade. Por essa simpatia, a Virgem tinha acesso
aos seus corações e conseguia adquirir sôbre êles uma feliz influ­
ência: os seus conselhos eram bem recebidos; aliás nem eram neces­
sários, porque o exemplo de sua vida bastava para convencer. e
arrastar. Graças à sua bondade, Maria transformava insensivelmente
as pessoas com quem entrava em contato, mesmo aquelas que pare­
ciam mais refratárias à sua santidade. Jesus lembrar-se-á disso quan­
do intepelar o publicano Zaqueu. Por seu ofício e seu comporta­
mento, Zaqueu suscitara em tôrno de si a reprovação geral; em
público, era seguido por olhares de severidade e de desprêzo. Era
a semelhantes pessoas que Maria, sem temor de crítica, gostava de
testemunhar compreensão; e foi o que fêz Cristo. Aos olhos de
todos, dirigiu ao publicano palavras amigas para lhe anunciar que
se hospedaria em casa dêle, naquela casa que tantos judeus evitavam
com horror. Vendo o reconhecimento daquele homem e a trans­
formação que êsse gesto de amizade acabava de operar em sua
alma, decidida a começar a fazer o bem, Jesus reconheceu os frutos
que haviam produzido ordinàriamente a benevolência de sua mãe:
gratidão profunda e melhora das disposições íntimas. Decerto,
tais frutos derivam aqui diretamente de seu poder salvador; mas
o método assemelhava-se àquele que Maria aplicava em seu humilde
ambiente.
187
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

O comportamento de Maria havia mostrado igualmente a Je­


sus, numa experiência humana palpável, a grande repercussão de
humildes serviços materiais. A Virgem era animada de um imenso ,
zêlo apostólico; experimentava o mais vivo desejo de conduzir as
almas desviadas ao bom caminho, de tornar melhores aquelas gue
se arrastavam na mediocridade. Mas abstinha-se de lhes impor suas
idéias com discursos ou pregações; sabia calar-se por respeito às
almas que não poderiam suportar urna intrusão tão imediata em sua
consciência ou que não estavam dispostas a ouvir um conselho.
Maria testemunhava-lhes simplesmente o seu afeto prestando-lhes
serviços; aguardava a ocasião em que pudesse tornar-se útil. No­
tadamente, dedicava a sua atenção aos enfermos, e tanto quanto
lhe permitiam os costumes ou as possibilidades do lar, ajudava-os
materialmente. Essas atenções e êsses cuidados corporais abriam­
lhe a porta das almas. Do mesmo modo, o confôrto que dava às
almas sofredoras, simpatizando-se sinceramente com a sua dor,
acompanhava-se de urna irradiação de sua santidade. Cristo não
esquecerá essa lição, porque inaugurará o seu ministério apostólico
pela distribuição generosa de benefícios materiais; multiplicará as
curas corporais a fim de poder curar as almas e lhes perdoar os
pecados; manifestará a sua simpatia a todos os que sofrem. E com
isso suscitará um grande movimento de afeição à sua pessoa, afei­
ção que lhe permitirá agir sôbre a multidão e elevar os seus pen­
samentos para os bens superiores.
Observando sua mãe, Jesus deve ter admirado a sua paciencia.
A paciência, com efeito, é uma virtude materna. Maria, que j a­
mais precisou de exercê-Ia em relação ao seu filho perfeitamente
obediente, praticou-a em relação a outras pessoas._ Seria um êrro
imaginar que a perfeição da Virgem preservou-a de se chocar
com inimizades. Nem a mais alta santidade escapa às más acusa­
ções. Maria não deixou de ser invejada e caluniada. Para responder
às palavras ou aos atos de malevolência, ela manejou uma só arma:
um silêncio paciente; e nunca tomou pretexto das más intenções
do próximo para condená-lo em seu. coração e lhe retirar o seu amor.
Dava crédito até ao fim às boas disposições dos outros, esperando
que acabariam por triunfar. De seu lado, perdoava e esquecia todo
o mal recebido, oferecendo sem cessar a sua amizade. Quando se

188
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolviment o

quer salvar alguém, onde se pode deter no caminho do amor ?


É êsse silêncio paciente, essa oferenda incessante de amizade, que
Jesus praticará a respeito de Judas, chegando até a chamá-lo de
"amigo" no momento da traição. Quando estiver prestes a expirar
na cruz, a extenuação de suas fôrças físicas não lhe diminuirá a
paciência; ao pedir uma última vez o perdão para os inimigos
que o haviam perse�uido encarniçadamente, Cristo prodigalizara
os tesouros de paciencia amante acumuladas em seu coração de
criança pela educação materna. Esta será a sua vitória de Salvador.
Entre as palavras de inspiração divina que foram pronunciadas
acêrca de Jesus, as de Simeão haviam impressionado Maria de ma­
neira vivíssima. Faziam prever grandes dificuldades e enormes
sofrimentos no cumprimento da missão salvadora. A Virgem não
conhecia em pormenores as provações que deviam vir. Conforme
a profecia do ancião, o menino se tornaria um sinal de contra­
dição entre os homens, e encontraria muita oposição. Embora
abalada por essa predição, Maria não a estranhou, pois que os pro­
fetas de Israel haviam suscitado também fortes resistências e so­
frido maus tratamentos. O servo de Javé, descrito por um dêsses
profetas, não haveria de ser objeto de escárnio e ultrajes, e não
deveria, em face de seus adversários, "tornar o seu rosto seme­
lhante a uma pedra" ? (ls. 50,6-7 ) . Maria sabia que devia formar
o seu filho em vista dessas provações, ajudá-lo a adquirir uma fir­
meza inflexível para que pudesse enfrentar seus inimigos com uma
fisionomia semelhante à rocha. Eis porque a doçura de seu amor
materno não a impedia de introduzir uma verdadeira austeridade
em sua educação: doçura não significava moleza. Maria não temia
fazer seu filho passar pelos incômodos da pobreza; não se apiedava
além da medida dessas penas de criança, e acostumava-o a supor­
tá-las fàcilmente, sem lhes dar demasiada importância. Jesus possuía
uma sensibilidade agudíssima, que aumentava a sua capacidade de
sofrer, tanto física como moralmente. Era uma sensibilidade seme­
lhante à de sua mãe, e via como a Virgem a conservava em har­
monioso contrôle. Aprendia a dominar como ela as suas emoções.
Submetido aos choques da vida social, exposto às primeiras incom­
preensões e às primeiras injustiças, preparava-se, pelo contato com
Maria, para reagir com coragem e magnanimidade. Foi na escola

189
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

de sua mãe que adquiriu a tenacidade tranqüila diante das contra­


dições, aquela tenacidade que conservará nos sofrimentos e nas
injúrias do suplício extremo.
Ajudando Jesus a tomar posse de tôda a sua fôrça de alma,
Maria era guiada pela profecia do gládio de dor; sabia muito bem
que êsse gládio passaria primeiramente pelo filho antes de atingir
a mãe. Ao mesmo tempo que se preparava para suportá-lo, devia
fortificar o seu filho em vista da provação. Mas essa perspectiva
dolorosa não dava à sua obra educadora nenhuma nota dominante
de sombria severidade. Quando mais tarde, em sua vida pública,
Cristo anunciar a sua morte aos discípulos, não o fará com modos
de tragédia; chorará não por si-mesmo mas pela cidade de Jeru­
salém. Haverá sempre em todo o comportamento do Salvador um
otimismo profundo, que nem a previsão dos sofrimentos futuros
poderá suprimir. Foi nesse espírito de paz serena e alegre que fôra
educado por Maria.
Sabe-se que um clima de alegria é necessário para a educação
fanúliar; uma mentalidade sombria entrava o desenvolvimento da
criança e a penetra de incapacidades e estreitezas cujas cadeias
ela terá de arrastar a vida inteira. Maria sabia prodigalizar ao
seu filho os testemunhos da alegria em que vivia, e fazia-o por
convicção sobrenatural mais que por simples consciência de seus
deveres de mãe. Acreditava · na era messiânica que acabava de se
abrir; ora, essa época devia caracterizar-se por uma imensa feli­
cidade derramada sôbre todo o povo. Como tinha de acreditar
nessa felicidade, Maria participava já de sua alegria. Fôssem _guais
fôssem as dificuldades que acompanhariam o estabelecimento do
reino de seu filho, o triunfo seria finalmente dêle. A Virgem estava
intimamente persuadida disso, e vivia desde agora da paz e da feli­
cidade que o Messias iria trazer ao mundo. Como poderia o seu
rosto permanecer sombrio ou melancólico, quando já se realizavam
nela as Bem-aventuranças?
Jesus foi arrastado nessa corrente de alegria, da qual era aliás,
como Salvador, a fonte primeira. Por vêzes um grande entusiasmo
fazia vibrar a alma de Maria em hinos ardentes de reconhecimento
a Deus, em cantos de Magnificat silenciosos que nenhum evan­
gelista poderia transcrever, porque a própria Virgem já não se

190
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

recordava distintamente dêles. Essa alegria, discretamente signi­


ficada por um sorriso, penetrava habitualmente todos os atos de
Maria, impregnando-os de doçura. Semelhante atmosfera permitiu
ao menino encarnar em plenitude a alegria que vinha trazer aos
homens. Jesus apreciava tôda a beleza dessa alegria na pessoa de
sua mãe, em quem reconhecia um esplêndido reflexo da felicidade
divina. Compreendia a que ponto uma disp osição fundamental
de otimismo constitui um estimulante psicologico; verificava que
sedução exercia a presença sorridente de Maria; experimentava êle­
mesmo o quanto a alegria era contagiosa. Mais ainda, sentia essa
alegria de sua mãe como uma honra que lhe era feita: de fato,
era um testemunho da imensa felicidade que lhe proporcionava a
sua maternidade, a companhia de seu filho. Ela rendia ao mesmo
tempo homenagem ao Pai celeste, e êste era sem dúvida o aspecto
mais tocante da alegria aos olhos de Jesus: dar testemunho da
bondade do Pai. Jesus participou de tôda a sua alma da alegria
de Maria, e deixou-se penetrar por ela até o íntimo de sua alma.
Não devia essa alegria ser a impulsionadora de sua atividade apos­
tólica, a fonte de seu infatigável ardor ? E não devia fazer dêJe
um semeador de alegria ?
Foi assim que Cristo se apresentou aos homens, isto é, como
aquêle que lhes anuncia a felicidade e lha dá efetivamente. Para
derramar essa alegria, aceitou de boa mente os piores sofrimentos.
E como a sua mãe, que exultava quando podia entronizar a alegria
onde reinava a tristeza, Jesus deleitou-se com a idéia de poder,
depois de sua ressurreição, transformar os corações tristes em cora­
ções jubilosos, de fazer suceder o sorriso às lágrimas. Prestou êsse
serviço primeiramente à sua mãe, quando lhe apareceu na manhã
da Páscoa, recompensando-lhe dêste modo o benefício que lhe dis­
pensara outrora quando trocava as suas penas de criança em doce
alegria. Depois estendeu a todos os discípulos a sua alegria de
res�uscitado; ser Salvador, era encher a humanidade de uma alegria
definitiva. A exemplo de Maria, Cristo era cioso de fazer triunfar
a alegria, como homenagem ao amor do Pai, cuja vitória e triunfo
ela exprime.

191
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Respeito do mistério

Tôda a mãe sente-se ultrapassada pela tarefa de educação que


lhe incumbe. A personalidade de seu filho permanece sempre
para ela, ao menos em certa medida, um enigma, e o seu destino
futuro lhe é desconhecido. À medida que cresce, seu filho vai-lhe
escapando. Por isso deve compreender que é essencial ao seu
papel de mãe respeitar o que se oculta em seu filho. A sua missão
consiste em favorecer-lhe o desenvolvimento, em guiá-lo antes que
em comandá-lo.
O que é verdade para tôda a mãe verificava-se mais ainda
no caso de Maria. Mais que qualquer mãe, com efeito, ela se
sentia ultrapassada por êsse Filho de Deus que pusera no mundo.
tle se lhe apresentava como um mistério vivo, no qual só se podia
penetrar entrando nas profundezas íntimas de Deus. Maria queria
respeitar êsse mistério. Decerto, assumia tôdas as suas responsa­
bilidades de educadora do Filho de Deus e do Salvador; mas a
sua primeira responsabilidade consistia em proteger o filho, a fm
de que adquirisse autênticamente a sua personalidade própria. Não
podendo dominar o mistério de seu filho, devia cuidar de não lhe
embaraçar o crescimento, de não lhe esterilizar nenhum germe.
A Virgem deixava crescer Jesus, contentando-se de agir sôbre
êle por seu exemplo e por seu contato cotidiano. Não procurava
impor-lhe os seus próprios limites, e a obediência de seu filho
não lhe inspirava o desejo de dominá-lo inteiramente. Não pre­
cisava mandar para que lhe fôsse submisso; tudo consistia em rela­
ções de amor, e ela cuidava de não se exceder.
O mistério de Jesus surpreendeu-o mais profundamente por
ocasião do episódio ocorrido à idade de doze anos. Nesse mo­
mento, o filho furtara-se à obediência; e desde então Maria com­
preendia que a submissão de seu filho não era semelhante à das
outras crianças: era voluntária e fazia parte de um plano divino
todo particular. O incidente abalara a Virgem, mas nessa ocasião
deu prova de seu respeito pelo mistério: absteve-se de tôda a
censura e limitou-se a fazer uma pergunta, indagando o porquê

192
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O d es envo lviment o

de sua atitude. Adivinhava, com efeito, que motivos superiores


haviam ditado a Jesus o seu comportamento, e desejava ser escla­
recida. Exercia assim pura e simplesmente o seu ofício de mãe,
e o fêz' com a máxima delicadeza. Quando recebeu uma resposta
que não pôde compreender, calou-se.
A partir dessa época, apagou-se sempre mais diante de seu
filho. No decorrer da vida pública, êsse aniquilamento será no­
tável. Maria só quererá aparecer ao lado de Jesus quando todos
o tiverem abandonado, no Calvário. Quando uma mulher do povo
fizer a Jesus o elogio daquela que o amamentou, ela estará ausente.
Enquanto se espalhar a glória de seu filho, ela permanecerá na
sombra, para que a luz não se divida entre ela e êle, e só êle
apareça aos olhares. Ora, êsse apagamento fôra praticado desde
há muito por Maria, desde antes do ministério apostólico de
Cristo. A sua educação visava deixa-r Jesus agir com plena liber­
dade, e portanto reduzir ao mínimo a sua influência materna.
Maria queria ser esquecida, posta de lado, para que o seu filho
pudesse impor-se com absoluta facilidade. De bom grado diria,
ant� de João Batista: "É preciso que êle cresça e que eu
diminua" (lo. 3,30) . Por isso tornava a sua presença o mais dis­
creta possível. Mantinha-se diante do seu filho como diante de
uma presença divina, em face da qual a alma procura fazer-se
pequenina. À medida que se escoavam os anos, ela se regozijava
de ver a amplitude que sob aparências humildes tomava a pessoa
de Jesus, e impressionava-se sempre mais com a fôrça divina que
emanava dêle, aquela fôrça secreta que mais tarde jorrará dê_le
para operar milagres e que atualmente se traduzia pelo poder do
olhar e da vontade. A Virgem inclinou-se sempre diante do
mistério.
Por sua atitude, Maria assegurou a liberdade de seu filho.
E Cristo serviu-se dessa liberdade. Durante a vida pública esta­
beleceu entre a sua mãe e êle uma certa distância, não temendo
chamá-la: "Mulher". Maria deve ter-se regozij ado com isso: aí
estava um testemunho de que ela não havia abafado a personalidade
de seu filho, de que a sua educação havia feito dêle um homem
independente. Estava preparada para ouvir a palavra pronun­
ciada no Calvário: "Mulher, eis o teu filho" (lo. 1 9,26). Impon-

193
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

do-lhe o sacrifício de aceitar outro filho e de consentir na morte


de seu filho único, Cristo sabia que correspondia ao voto heróico
incluso na educação dada pela Virgem: o voto de torná-lo capaz,
com tôda a liberdade, de se arrancar de sua mãe.

Ideal do amor

Aos olhos do filho, a mãe representa um ideal. Aos olhos de


Cristo, Maria não cessou de representar o ideal da nova huma­
nidade. No coração de sua mãe, Jesus não reconhecia sàmente o
ardor do amor maternal, mas o fervor de uma caridade j á per­
feitamente cristã. Sob o véu da simplicidade e da humildade,
descobria a figura humana integralmente restaurada em sua san­
tidade; antes mesmo que a Redenção se cumprisse, Maria teste­
munhava do esplendor de seus frutos. Mostrava ao Messias o
magnífico resultado de sua vida e de sua obra. E apresentava-se
como o penhor de todos os triunfos futuros da emprêsa salvadora.
Poderia parecer que o ideal evangélico era por demais supe­
rior à fraqueza e à miséria humanas para poder ser ensinado às
multidões. Cristo poderia perguntar-se se o povo seria capaz de
compreender e aceitar a sua pregação. Decerto, êle, o senhor da
graça, sabia melhor do que ninguém que tudo é possível a Deus.
Mas essa ciência entrou plenamente em sua experiência humana
pelo contato com Maria. Em sua mãe, via o ideal realizado. Era
uma mulher do povo, que não havia recebido instrução especial
nem cultura refinada; e sem embargo trazia em si tôda a perfeição
que o Messias queria estabelecer nas almas. Em sua pregação,
propôs o ideal com tanta firmeza que lhe bastava, para descrevê-la,
recordar-se da fisionomia de sua mãe. Proclamando a felicidade
dos pobres, dos corações puros e misericordiosos, daqueles que
têm fome e sêde de santidade, que fazem reinar a paz em tôrno
de si e que sofrem com galhardia as suas provações, traçava o
quadro das qualidades que havia observado em Maria; ensinando
aos discípulos a agir como servos, revia " a serva do Senhor".
O que havia apreciado sobretudo no amor de Maria a seu
respeito, foi que êsse a:mor dirigia-se a êle, não antes de tudo

194
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lviment o

como a seu filho, mas como aquêle que o Pai enviara. Nêle, ela
respeitava e amava o dom misterioso do Pai celeste. Mais tarde,
discípulos e inimigos de Jesus opor-se-ão aceitando ou recusando
reconhecer nêle o mensageiro e o Filho do Pai; Maria o havia
reconhecido sem reserva. Prendera-se ao seu filho no próprio ato
de adoração e de amor absoluto que dedicava ao Pai. Impunha-se
assim como modêlo de todos aquêles que, descobrindo em Jesus
o Pai, seriam atraídos para êle. Ela formou o primeiro vínculo
de caridade que une a humanidade a Cristo em vista da união
com o Pai.
Cristo desejou conservar na Igreja o ideal do amor represen­
tado por Maria. Pode-se mesmo dizer que êle modelou a sua Igreja
pela Virgem. Quis que a Igreja se revestisse, no meio do mundo
pecador, de uma pureza imaculada que refletisse a da Mãe de
Deus. Deu-lhe uma fisionomia materna, semelhante à de Maria,
de tal modo que pode ser chamada, com Maria, a mãe dos cristãos.
Fêz dela, à imagem de sua própria mãe, um símbolo do amor
misericordioso e confiou-lhe a missão de conferir o perdão aos
pecadores. Erigiu-a qual centro de perpétuo acolhimento: êle
que nascera e morrera nos braços de Maria quis uma Igreja na
qual pudessem as almas nascer pelo batismo, encontrar aí um
refúgio incessante e aí expirar docemente. Enfim, tornou essa
Igreja, como sua mãe, indefecdvehnente unida a êle pelos laços
da fé, da esperança e da caridade.
Instituindo a Igreja com suas mãos de Redentor, Cristo tinha
os olhos fixos em Maria. Por isso suas mãos deram aos homens
uma nova mãe. Sabia que o ideal representado por Maria, des­
coberto pelos cristãos a despeito de seu aniquilamento e de seu
silêncio, exerceria sôbre êles um grande atrativo; via a imensa
influência do exemplo de sua mãe sôbre as gerações futuras. Mas
queria que antes essa influência fôsse inscrita na estrutura mesma
da Igreja. Deu portanto à sua Igreja um coração materno, cheio
de uma caridade ideal, semelhante ao coração da Virgem
imaculada.

195
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

IV - MÃE DOS HOMENS

�Eis o teu filho"

Cristo modelou a sua Igreja por sua mãe. Mas não quis que
uma se substituísse à outra e que o modêlo subsistisse simples­
mente a título de recordação. Para que a Igreja fôs�e completa­
mente penetrada do ideal de Maria e oferecesse aos cristãos um
clima de amor materno, decidiu que a presença operante da
Virgem permanecesse nela para sempre. É Maria que está encar­
regada de tornar a Igreja plenamente maternal.
Para isso, Jesus constituiu a Virgem mãe de todos os cristãos.
Mãe de Deus, ela possuía um coração que se havia dilatado sem
medida para acolher um Filho de uma perfeição infinita; êsse
coração era pois bastante vasto para estender o seu amor materno
a todos os homens. Tendo tido bastante capacidade para receber
Deus, teria também assaz amplitude para envolver a humanidade.
No momento em que ia entregar a sua alma, Cristo fêz Maria
passar da maternidade divina à maternidade espiritual: "Mulher,
eis o teu filho" (lo. 1 9,26 ) . Nesse instante solene, a declaração de
Cristo moribundo não significava uma simples atenção de amizade
para com o discípulo João, nem apenas o desejo de que Maria
considerasse êsse discípulo como seu filho. Aliás, nem a situação
particular de Maria, que tinha consigo a sua "irmã" Maria de
Cléofas e podia habitar com os primos de Jesus, nem a situação
pessoal de João, que tinha ainda a sua mãe, teriam reclamado
semelhante disposição. A intenção do Senhor ultrapassava mani­
festamente o domínio das relações particulares. Dando como filho
a Maria o discípulo que se achava ao pé da cruz, cumpria um
gesto simbólico. A presença de João no Calvário evocava a de
todos os discípulos que, no decorrer dos tempos, se uniriam à
paixão do Salvador pelo sacrifício da vida cristã: era a cada
um dêles que Maria era dada por mãe. Cristo não proclamava
diretamente a Virgem mãe da comunidade cristã, porque dese­
j ava acentuar mais especialmente a destinação individual do amor

196
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

maternal de Maria: êsse amor envolveria cada um dos cristãos,


individualmente, com a mesma solicitude com que envolveria São
João. Jesus queria insinuar, pela designação de um único discípulo,
que não se tratava de um amor vago e geral; cada cristão rece­
beria da parte de Maria todo o afeto particular que se recebe
de uma mãe, sem que o número indefinido dos filhos pudesse
prejudicar a atenção concedida a cada um. Para conservar o seu
valor, o amor materno deve individualizar-se, e nada pode descui­
dar do que interessa o indivíduo. É êsse amor extremo, que se di­
rige a cada um como se fôsse único, que Cristo quis assegurar
aos discípulos.
Além disso, fazendo expressamente êsse favor ao discípulo
amado, deixava entrever que havia nisso uma marca excepcional
de seu amor. O que dava ao discípulo a quem amava com o
mais terno amor, queria dar a todos. Jesus confiava-lhes o que de
melhor e mais precioso possuía. Tendo conhecido por expe­
riência pessoal as maravilhas do coração materno de Maria, e
vendo do alto da cruz a sua admirável fidelidade, desejava que
outros pudessem beneficiar-se por sua vez dessas virtudes de
sua mãe, pudessem saborear e apreciar essa doce presença, apro­
veitar-se dêsse ardor em servir e receber dêle ajuda e encoraja­
mento. Os tesouros de afeto que ficaram sepultados na solidão
de Nazaré deviam derramar-se através do mundo inteiro. Maria
havia recebido um coração cheio de amor a Jesus, mas também a
todos os que deveriam viver da viãa de Cristo e tornar-se filhos
de Deus. A sua maternidade não expirava no Calvário; dilatava-se.
Essa nova maternidade seria exercida no invisível. No plano
espiritual, a influência materna de Maria seria inseparável da mis­
teriosa presença de seu filho. Cristo que havia pedido aos seus
discípulos que permanecessem nêle e lhes prometia uma perpétua
assistência, desejava que vivessem igualmente na intimidade
de sua mãe e que, como São João, a tomassem em suas casas:
"A partir daquele momento, o discípulo a tomou em sua casa"
(lo. 19,27). Já que os cristãos deviam viver da vida de Cristo,
teriam de recebê-la de Maria, de assimilá-la em seu clima de amor
materno. Para se tornarem semelhantes ao seu Salvador, deviam
tornar-se, em tôda a fôrça da expressão, filhos da Virgem. Em

197
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Cristo a filiação em relação ao Pai e a filiação em relação a Maria


estavam unidas como a natureza divina e a natureza humana; nos
cristãos, a filiação divina está do mesmo modo indissoluvelmente
unida à filiação com respeito à Virgem.
O amor materno em que desabrochara a alma de Cristo seria
o mesmo em que desabrocharia a alma dos cristãos.

/
A lei da caridade

Já temos sublinhado a que ponto o amor materno de Maria


estava animado de uma profunda caridade teologal: em seu filho,
a Virgem amava o Filho de Deus; o seu afeto possuía a qualidade
sobrenatural de um amor verdadeiramente religioso e sagrado, a
mesma qualidade da adoração que se deve a Deus. Ora, recebendo
em conseqüência de sua maternidade divina uma maternidade espi­
ritual em relação aos cristãos, Maria cumpria uma lei fundamental
da caridade, especialmente afirmada no Nôvo Testamento: o amor
que se dirige a Deus deve implicar um amor que envolve os homens.
Interrogado sôbre o primeiro mandamento, Cristo responde
que é o mandamento do amor de Deus. Mas êle-mesmo julga
essa resposta incompleta, porque não pode separar o primeiro
mandamento do segundo: "Amarás o teu próximo como a ti­
mesmo" (Mt. 22, 39) . Êste segundo mandamento, no pensamento
do Mestre, é "semelhante ao primeiro", partilha da importância
primordial do primeiro. Compreende-se desde logo que a Virgem,
que praticara o primeiro mandamento de maneira eminente em
seu afeto maternal, tenha sido levada a praticar da mesma ma­
neira o segundo mandamento, e que depois de ter envolvido
aquêle que era Deus, o seu amor materno se tenha derramado
sôbre os homens.
Essa lei da caridade devia realizar-se em Maria tanto mais
imperiosa quanto mais universal era a recomendação de Cristo
aos seus discípulos de tratarem o próximo com as mesmas atenções
com que tratariam o seu Mestre. Em cada homem, deviam amar
Jesus. O Salvador dirá, com efeito, aos eleitos: "Vinde, benditos

198
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

de meu Pai, tornai posse do reino que vos foi preparado desde
a criação do mundo; porque tive fome, e me destes de comer;
tive sêde, e me destes de beber; fui peregrino, e me acolhestes;
nu, e me vestistes; enfêrmo, e me visitastes; prisioneiro, e me
fôstes ver". O princípio é afirmado com clareza, não como uma
metáfora ou um paradoxo, mas como uma estrita verdade. "Em
verdade vos digo: tudo o que fizestes ao menor dêstes meus
irmãos, é a mim que o fizestes" (Mt. 2 5, 34-40).
Desde logo, aos olhos de Maria cada cristão representa ver­
dadeiramente Cristo. Cada um, pode-se dizer, aparece-lhe como
alguém que tem fome e sêde, peregrino e nu, prisioneiro dêste
mundo carnal; cada alma tem sua miséria própria, sua incapa­
cidade de encontrar o que deseja, sua imensa necessidade de amor.
A Virgem vê decerto tôdas as misérias corporais, e vem-lhes em
socorro; e o faz com tanta solicitude que entre os cristãos é
especialmente invocada nesse sentido. Todavia, como a sua ma­
ternidade é de ordem sobrenatural e invisível, são as misérias
espirituais que mais atraem os seus olhares. Ela se encontra na
presença de uma multidão inumerável de famintos e de enfermos.
O espetáculo seria suficiente para suscitar uma piedade natural.
Mas o que guia a misericórdia da Virgem, é que ela reconhece em
tôdas as angústias e misérias humanas a dor e a angústia de seu
Filho crucificado. Ela vê Jesus, por assim dizer, sofrer nos mem­
bros de seu Corpo Místico. A sua nudez lembra-lhe a dêle;
suas cadeias e perseguições recordam-lhe os maus tratos infligidos
a Jesus; a sua sêde traz-lhe à memória o grito do Calvário. Em
tôda a fisionomia marcada pela tristeza ou pela provação, des­
cobre a face lívida e dolorosa de Cristo. Em cada homem que
sofre, venera e ama o Deus que sofreu.
Essa atitude não se baseia sàmente na lei geral de caridade
enunciada por Cristo, mas na aplicação expressa que dela fêz à
maternidade da Virgem. No Calvário, Jesus quis que a sua mãe
dedicasse ao discípulo João o afeto maternal que lhe havia votado.
Por isso a Virgem começou a tratar êsse discípulo como havia
tratado o próprio Jesus: nêle, reencontrava o seu filho desapare­
cido. Sabia que ao lhe testemunhar a sua solicitude e afeto, con­
tinuava' e redobrava o seu amor a Cristo.

199
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Nisso está a fonte do ardor com que Maria ama os homens:


é o seu amor a Cristo que se prolonga indefinidamente. No afeto
materno que dedica a cada cristão, há tôda a fôrça do afeto ma­
ternal dirigido a Jesus.

A Visitação

A conversão do amor a Deus em amor aos homens não data


em Maria da hora do Calvário. A sua maternidade espiritual para
com a humanidade foi promulgada nesse momento pela voz ago­
nizante de Jesus; mas o seu amor aos homens fôra desde sempre
uma qualidade primordial do coração da Virgem.
Que tôda a infância e juventude de Maria tenham sido ba­
nhadas nessa atmosfera de caridade, prova-o a atitude que adotou
no momento da Anunciação. Aí se revela um amor ardente ao
próximo, que manifesta o que foi o passado da Virgem, porque
a reação repentina diante de um acontecimento surpreendente
descobre as energias secretas de uma alma. Maria mostra-se
amante porque o fôra sempre e porque não podia conceber com­
portamento diverso.
Em resposta às palavras do anjo, declarou simplesmente que
era "a serva do Senhor". Mas a quem se põe ela a servir imedia­
tamente depois dessa declaração ? À sua prima Isabel. Para Maria,
o serviço do Senhor traduz-se pelo serviço do próximo. O
segundo decorre logicamente do primeiro; é a sua manifestação.
O anjo não a havia convidado expressamente a visitar Isabel.
Se lhe falou do caso de sua prima, foi para lhe explicar que
"nada é impossível a Deus", e não para exortá-la a ir vê-la.
Isabel só era citada como ilustração de um anúncio cuja luz se
concentrava tôda no Messias. Maria não recebeu, portanto, ne­
nhuma missão do anjo para fazer a viagem, e poderia ter con­
centrado todo o seu afeto e tôda a sua alegria na pessoa de seu
próprio filho, sem querer participar especialmente da alegria de
Isabel. Muitas razões a teriam autorizado a ficar em Nazaré:
não devia ela preparar o nascimento do filho, evitar tôdas as im­
prudências e fadigas excessivas, regular a questão delicada de

200
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

seu casamento com José, entrar em sua nova casa ? Nenhuma


dessas razões pôde desviá-la de seu projeto. Haveria outra razão
ainda: a dignidade de mãe do Messias, superior à de Isabel, não
devia rebaixar-se a uma posição de serva. Ditada pelo amor­
próprio, esta razão não podia sequer roçar no pensamento de
Maria. A Virgem estava por demais consciente de ter recebido
essa dignidade do amor gratuito de Deus para julgar-se mere­
cedora dela ou reivindicar homenagens. De fato, a caridade
intensa que animava o coração de Maria varreu todos os motivos
de frouxidão ou pusilanimidade que podiam apresentar-se a ela,
e fê-la reconhecer que Deus queria essa viagem.
Eis porque ela se pôs a caminho. Fê-lo "com pressa", impe­
lida pela alegria de· possuir o seu filho, mas também pelo desejo
de fundir essa alegria com a felicidade de Isabel. Desde que se
tornara mãe do Messias, pensava ainda mais nos outros. Pelo
caminho, regozijava-se com o favor que fôra concedido à sua
prima. Sabia o quanto fôra penosa a Isabel a impossibilidade de
tornara mãe do Messias, pensava ainda mais nos outros. Pelo
filhos. Conforme a mentalidade judaica, êsse desgôsto acompa­
nhava-se de certa vergonha diante da sociedade: a vergonha de
ser uma mulher sem descendência. A provação havia durado lon­
gos anos. Por isso Maria imaginava a imensa alegria que semelhante
maternidade inesperada e miraculosa, presente extraordinário do
Senhor, podia causar.
Sabe-se que no sofrimento o homem é tentado de se concen­
trar em si-mesmo, de pensar exclusivamente no que lhe diz res­
peito. A tentação não é menor na alegria: quando uma pessoa
recebe um grande benefício, que lhe concerne individualmente,
corre o risco de esquecer tudo mais e de se desinteressar dos
outros. A Virgem acabava de receber o maior bem, a maior
felicidade com que possa sonhar uma criatura. Em lugar de se
encerrar em si-mesma, procurava mais que nunca apreciar a feli­
cidade dos outros, simpatizar-se com êles. Por isso, quando
chegou à casa de sua parenta, dirigiu-lhe uma saudação cheia de
entusiastas felicitações.
Isabel compreendeu logo a nobreza da diligência de Maria,
porque reconheceu nela, pela luz interior, a mãe do Messias.

201
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

"Donde me vem a dita de que me venha visitar a mãe do meu


Senhor ? "" (Lc 1, 43 ) . Percebia o paradoxo da caridade de
Maria: era a bendita entre as mulheres e vinha apesar disso
inclinar-se diante de urna delas; era a mais digna de admiração, e
admirava com tôda a sua alma a maravilha operada em sua
parenta; merecia que todos fôssern a ela para honrá-la e servi-la,
e vinha servir. "Donde me vem essa dita ?" pergunta Isabel,
compreendendo que havia nisso um mistério: o mistério da cari­
dade revelada na caridade de Maria. Era do coração amante da
Virgem que provinha a diligência, e, através dêsse coração, do
coração de Deus.
O episódio revela corno em Maria a maternidade divina foi
essencialmente voltada para o próximo. Pode-se ver aí, em par­
ticular, um símbolo da assistência que Maria quer oferecer a
tôdas as mães, pois que se pôs a serviço de Isabel para ajudá-la
a preparar o nascimento de seu filho. É verdade que a Virgem
é a mais qualificada para formar as outras mulheres para a sua
tarefa maternal, e que a sua própria maternidade lhe inspirou o
desejo profundo de ajudá-las nesse papel difícil. Entretanto, a
narração evangélica da Visitação tem um alcance mais universal
ainda, e indica que o coração maternal de Maria, apenas consti­
tuído, quis derramar o seu afeto sôbre os homens.
Simboliza sobretudo a função apostólica da maternidade di­
vina, porque Maria não traz a Isabel somente o seu afeto e os
seus serviços: a sua visita é urna visita da graça, enche Isabel do
Espírito Santo. A caridade da Virgem opera pois urna transfor­
mação espiritual naquele que toca; ela propaga a santidade nas
almas, e o faz com urna fôrça extraordinária. No Calvário, a
maternidade divina de Maria foi acrescida oficialmente de sua
maternidade em relação aos homens; desde a Visitação, essa exten­
são começara a realizar-se. O que Maria exerce em relação a João
Batista, não é urna maternidade na ordem da graça ? Não é a
presença da Virgem que comunica à criança a sua primeira san­
tificação ? Eis uma imagem da maternidade espiritual de Maria,
em virtude da qual o nascimento para a vida da graça efetua-se
pela sua mediação. A criança recebe de sua mãe natural a vida do
corpo e de sua mãe espiritual a vida da alma, corno foi o caso

202
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

do Precursor. Maria não é autora da vida da graça, como tam­ ·


pouco urna mãe é autora da vida corporal; mas transmite a vida
e favorece-lhe em seguida o desenvolvimento.
A Visitação põe assim em relêvo a eficácia da presença ma­
ternal da Virgem. O afeto de Maria não é daqueles que se limitam
a efusões sentimentais. Opera verdadeiramente alguma coisa. O
seu contato não é somente o do atrativo e da sedução psicológicas;
determina uma transformação íntima da alma. Na Igreja, a per­
sonalidade da Virgem aparece corno uma sublime figura poética;
o seu amor materno exerce um encanto unversal; mas sobretudo
a sua ação intervém de · maneira constante e frutuosa nos destinos
individuais. Maria faz penetrar a graça nos corações, e alarga
sem medida o domínio da santidade. O seu trabalho permanece
habitualmente discreto, se bem que a exemplo da Visitação certas
manifestações excepcionais de seu poder se produzam aqui e acolá.
Desde a sua Assunção, Maria está presente em tôda a parte . junto
de cada cristão, como estêve junto de Isabel. Encontra-se no céu
para melhor visitar a terra. As suas visitas prolongam-se indefinida­
mente naqueles que merecem acolhê-las, e traduzem-se sempre,
às vêzes na luz e o mais ordinàriamente na sombra, por mara­
vilhosas metamorfoses espirituais.

Cuidado dos poln-es

A presença de Maria nas bodas de Caná é reveladora. Suge­


re-nos urna concepção sadia e realista da caridade da Virgem.
Maria não vivia como uma reclusa, e aquêles que forjaram a narra­
tiva de sua apresentação e de seu longo enclausurarnento no tem­
plo não compreenderam a que ponto ela pertenceu ao seu povo
e permaneceu no seu ambiente natural. Maria não era do mundo;
não trazia a menor marca do mundo e era completamente isenta
do espírito mundano; mas vivia no mundo, mergulhada na socie­
dade de seus semelhantes, feliz de estar continuamente misturada
no meio dêles.
Poder-se-ia conceber que em razão de sua pureza, Maria re­
duzisse ao mínimo as suas relações sociais e vivesse retirada. Não
havia um perigo perpétuo do ambiente para a sua alma imaculada ?

20J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Maria devia avizinhar-se constantemente de pessoas que se acha­


vam a mil léguas de sua mentalidade, totalmente estranhas à sua
elevação de pensamento. Essas pessoas jamais compreenderiam
por exemplo que ela se decidisse a permanecer virgem. Em suas
conversas revelavam intenções baixas e terrenas, costumes dema­
siados livres. Por tôda a parte em tôrno de si via o espetác:.ulo
do pecado, e nem podia deixar de vê-lo, porque não era mgênua,
embora fôsse extremamente simples. A tentação de se refugiar
em sua própria existência, de se retirar o mais possível de um
ambiente tão corrompido, devia ser forte. Mas era uma simples
tentação, e Maria a repelia. Permanecia nesse meio sem condená-lo
por julgamentos peremptórios. Não temia levar a vida ordinária
de uma jovem, e ao depois de uma mulher israelita, com tôdas as
relações que tal vida comportava. Era impelida a isso não só
por sua confiança na graça mas por seu amor ardente ao próximo.
A sua pureza não era sobretudo uma recusa; era antes um amor
mais intenso que procurava manifestar-se por relações cordiais e
ami�áveis com todos. A Virgem desejava entrar em contato com
aqueles que viviam ao seu lado, queria aprender a conhecê-los, a
estimá-los; esforçava-se por ajudá-los; podiam recorrer sempre a
ela para um serviço. Levada avante por essa caridade, exerceu a
sua influência sôbre o meio: longe de se deixar impressionar e
deteriorar por êle, contribuiu · para torná-lo melhor.
O fato de ter sido convidada para as bodas de Caná e de ter
atendido ao convite, prova que a Virgem tinha uma vida social
ordinária, que a sua presença era desejada nas festas. Espontânea­
mente aproxima-se essa atitude de Maria do comportamento do
Mestre, que não temerá assistir aos jantares a que fôr convidado,
e que manifestará assim a alegria de se achar entre os homens, de
estar em sua companhia e de ouvir as suas palavras.
O episódio de Caná mostra mais especialmente que Maria
possuía amizades entre os pobres e os humildes. Na ocasião do
nascimento de Jesus, ela havia compreendido a vontade divina de
associar simples pastôres, êsses homens rudes do campo, despre­
zados pelos citadinos, à alegria da vinda do Salvador. Via nisso
um sinal de que essa alegria era verdadeiramente concedida " a
todo o povo" (Lc. 2 , 10), sem que fôssem esquecidos aquêles gue

20-4
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

poderiam parecer menos dignos. Ao ouvir os pastôres contar (J


seu encontro com o anjo, ficou maravilhada, não só de que Deus
tivesse manifestado com prodígios o favor que fazia à humanidade,
mas também de que o tivesse revelado a homens· sem cultura, quando
tantos letrados ficariam lisonjeados de receber a boa-nova. Foi
toqtada daquele entusiasmo que mais tarde se apoderará de Cristo
quando verificar as adesões de fé da parte dos pequeninos e dos
humildes. Já no Natal, a Virgem ficou surpreendida com a
grandeza dos planos divinos, que ocultavam o acontecimento "aos
sábios e entendidos", e o anunciavam aos humildes do povo; o
seu hino de júbilo subiu para o Pai, fazendo pressagiar o de Jesus.
Maria conservou uma impressão indelével de tudo isso. Por­
que "conservava tôdas essas coisas" (Lc. 2, 1 8 ) no coração. A
preferência divina pelas pessoas de condição modesta encorajava-a
no amor que lhes dedicava: as suas disposições pessoais harmo­
nizavam-se com os desígnios de Deus. Como o Senhor, ela mos­
trava um vivo interêsse pelos pobres. É o que explica a sua
presença em Caná.
Os dados evangélicos permitem-nos acrescentar que Maria não
compareceu à festa simplesmente para se unir à alegria das núpcias;
tinha a intenção de se tornar útil. De fato, é ela quem nota a
falta de vinho e ordena aos servos. Parece que se ocupava do
bom andamento do festim e que lhe haviam confiado certas res­
ponsabilidade no serviço. Ser serva dos pobres não era o equiva­
lente de ser serva do Senhor ?
Pedindo o milagre, prestou um humilde serviço aos nubentes,
e um serviço tão humilde que poderia parecer indigno de consti­
tuir o objeto de um prodígio, do primeiro prodígio realizado
pelo Messias. Tratava-se de dar de.beber, de providenciar vinho.
Maria pedia o supérfluo, não o necessário: reclamava aquilo que
pudesse entreter a alegria de uma festa. E reclamava-o por simpatia
pelos esposos, a quem queria poupar a vergonha de revelar a
sua probreza, e pelos convidados, aos quais desejava poupar uma ·

decepção.
fuse pedido era tanto mais significativo do amor de Maria
quanto menos essencial era o favor solicitado. A Virgem teste­
munhava com isso que mesmo as mais humildes necessidades como-

205
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

viam-lhe o coração e que nada do que podia proporcionar alegria


aos homens a deixava indiferente. Não descuidava o supérfluo,
e sabia esforçar-se por obtê-lo. Mais ainda - particularidade tôda
própria das atitudes de Maria - ela velava pelo bem dos esposos
e de seus convidados, prevenindo um contratempo que êles mes­
mos não tinham observado. Supria as deficiências da preparação
da festa e a negligência atual dos responsáveis. Semelhante pre­
vidência estava bem no âmbito de uma missão maternal.
Po de-se ver portanto na atitude da Virgem em Caná o sinal
de sua solicitude em se ocupar mesmo do bem dos homens e
em lhes obter até os favores menos necessários, certas alegrias
terrestres. No desempenho de sua missão maternal, Maria nada
excetua de sua vigilância; tudo o que perturba, ameaça ou fere a
felicidade humana encontra nela um eco de simpatia. Tudo lhe
pode ser confiado, inclusive os desejos mais íntimos. Sabem-no
muito bem os cristãos, que não hesitam em pedir tudo a Maria.
Aliás, antes que o peçam ou tomem consciência de sua necessidade,
já a sua solicitude maternal entrou em ação e supriu as suas inca­
pacidades. Para discernir essa intervenção silenciosa da Virgem,
que não dá lugar a nenhuma evidência sensível, é preciso fé.
Muitas vêzes, nos indícios fornecidos pelos acontecimentos, a fé
cristã reconhece a discreta mas magistral presença materna da
Virgem. Sem poder demonstrar a sua convicção, inúmeros cris­
tãos adquirem a certeza, pelo olhar que lançam sôbre certas cir­
cunstâncias de seu passado, de ter sido protegidos ou gratificados
de maneira notável por sua mãe do céu.
Providenciando o supérfluo, Maria não descuida o necessário.
A narração evangélica deixa-nos supor que Jesus foi convidado
para as núpcias por causa da presença de Maria. A Virgem estava
lá, com efeito, e Jesus foi também convidado: "Houve umas
núpcias em Caná da Galiléia, e a mãe de Jesus estava lá. Jesus
foi também convidado para essas núpcias, com os seus discípulos"
(lo. 2, 1-2 ) . Pode-se pensar que, oferecendo-se a ocasião, Maria
se tenha arranjado de maneira que o filho viesse à festa. Seme­
lhante convite parecia inteiramente natural. Mas na intenção da
Virgem havia uma aspiração de maior alcance. Certamente, na
hora em que foi dirigido o convite a Jesus, ela não pensava na

206
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvo lvimento

possibilidade de um milagre. Mas conhecendo o missão de Cristo,


e sabendo que êle havia, por sua atividade pública, inaugurado o
seu ministério messiânico, desejava que viesse a esta casa de gente
simples e pobres. Desejava que se repetisse de algum modo o
favor outrora feito aos pastôres de Belém, a quem o Salvador
fôra revelado e apresentado. No espírito de Maria, a vinda de
Jesus à festa de Caná seria uma vinda do Salvador entre os pobres,
para participar de suas humildes alegrias; seria um testemunho mar­
cante da simpatia do Messias pelos mais desprezados da sociedade.
A Virgem quis alcançar para essas núpcias uma graça elevada,
superior a todos os serviços materiais que estava prestando.
Quando faltou o vinho, a Virgem ousou pedir um prodígio
ao seu filho. A sua ousadia repousava essencialmente em sua fé
na onipotência de Jesus; mas justificava-se mais especialmente nesse
caso porque se tratava de gente muito modesta. Sabia que Jesus,
como ela, alimentava grande predileção pelos pobres, e contava
com isso. Longe de julgar as núpcias um ambiente indigno da
realização do primeiro milagre, achava conveniente uma manifes­
tação do Messias nesse meio popular, de maneira que os pobres
recebessem as primícias dos bens trazidos pelo Salvador. Não
era a êles, por excelência, que devia chegar a boa-nova, o "evan­
gelho? "Os pobres são evangelizados" (Mt. 1 1 ,5) , dirá o Senhor
para afirmar que havia começado a era messiânica. Maria havia
notado que certas profecias falavam disso: "Naquele dia . . . os
humildes se alegrarão em Javé, e os mais pobres rejubilar-se-ão
no Santo de Israel" (ls. 28, 1 8-19) . E já que havia raiado aquêle
dia, os humildes e pobres de Caná não eram os primeiros cha­
mados a se regozijarem ?
Implorando a intervenção de Cristo em favor dêles, Maria
cumpria um dever de afeição maternal para com os deserdados
da sociedade. Obteve que o primeiro milagre fôsse realizado em
seu favor e que Cristo lhes "manifestasse a sua glória" (]o. 2, 1 1 ).
Aí estava um símbolo da herança messiânica oferecida aos pobres,
um antegôsto da realização da Bem-aventurança: "Bem-aventu­
rados vós que sois pobres, porque vosso é o reino de Deus ! "
(Lc. 6,20). Reclamando e obtendo o prodígio de Caná, a cari­
dade de Maria tomou o mesmo rumo do amor divino.

Z01
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Tolerdncia

Entre os poucos indícios semeados aqui e acolá nas páginas


do Evangelho acêrca da caridade da Virgem, convém sublinhar
aquela que ela testemunhou aos "irmãos" ou primos de Jesus.
Em lugar de partilhar da fé de Maria, queriam reconduzir Jesus
a Nazaré, porque julgavam que tivesse perdido a razão (Me 3, 2 ) .
Esta censura de demência deve ter ferido profundamente o coração
maternal da Virgem. Do mesmo modo, as palavra de desprêzo
proferidas pelos primos noutra ocasião: "Ninguém age em segrêdo
quando deseja ser visto" (lo. 7,4) . Supunham que Jesus se
guiasse pela ambição, e aconselhavam-no a realizar prodígios
ostensivamente; convidavam-no a acompanhá-los na viagem a
Jerusalém, na esperança de que a glória de seus milagres refletisse
sôbre êles. Semelhante injúria atirada em rosto a Cristo por
parentes próximos, atingia o coração de Maria tão dolorosamente
quanto o de seu filho. Não que houvesse verdadeira maldade
nessas palavras; mas encerravam uma tal cegueira diante da san­
tidade do Mestre, uma tal incompreensão da parte daqueles que
viveram sempre junto dêle, que a sua atitude constituía um tor­
mento para a alma fervorosa de Maria.
Entretanto, apesar dêsse sofrimento íntimo, Maria não rompeu
as relações com êles. Coisa surpreendente: vemo-la em companhia
dêles quando fazem a tentativa de pegar Jesus e arrebatá-lo ao
seu ministério apostólico (Me. 3, 3 2 ) . Estava sem dúvida ani­
mada de sentimentos totalmente diversos a respeito de Jesus, e
procurava protegê-lo, na medida do possível, contra semelhante
tentativa; queria aproveitar as menores circunstâncias para demo­
ver docemente os primos de seu projeto; e se acabaram por de­
sistir, foi certamente pela influência de Maria. Mas amava-os
bastante para permanecer com êles e viajar em sua companhia.
Isso foi um grande sacrifício para a Virgem, porque a sua
fé em Cristo era o seu bem mais precioso, aquilo que lhe era
mais caro ao coração. Ora, devia viver com pessoas que negavam
e mesmo vilipendiavam essa fé. A julgar pelos dois fatos nar-

208
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

rados pelo Evangelho, quantos outros hão de ter ocorrido ! Quan­


tas palavras hão de ter proferido êsses primos, ofensivas para o
afeto e mais ainda para a convicção de Maria ! Os contatos
cotidianos com êles reavivavam sem cessar a ferida. Contudo, a
disputa que se poderia temer, não surgiu. Maria soube calar-se,
soube dar prova de uma paciência heróica e permanecer unida
àqueles que a faziam sofrer.
Praticou nessa situação verdadeiramente difícil a virtude da
tolerância. Mostra-se intolerante aquêle que não suporta que
outros tenham opiniões diferentes das suas. A intolerância
toma por vêzes a aparência de zêlo pela verdade; a verdade, com
efeito, exclui o êrro, e muitos concluem apressadamente daí que
aquêle que possui a verdade deve banir aquêle que vive no êrro.
Por si-mesma, instintivamente, Maria fazia distinção entre os di­
reitos da verdade abstrata e os das pessoas. Sabia que estava com
a verdade, mas não se reconhecia com direito de banir de suas
relações aquêles que via no êrro. Em nome da caridade, con­
sentia em viver com êles, em aparecer com êles em público, a
ponto de correr o risco de ser julgada solidária com a incredu­
lidade dos seus parentes. E o risco existiu realmente, pois alguns
exegetas, ao lerem no Evangelho a narração da vinda da mãe e
dos irmãos de Jesus (Me. 3 , 3 2 ) , inferiram daí que Maria devia
ter as mesmas intenções que os seus parentes. Maria expôs-se a
êsse perigo porque não queria opor limites à sua caridade. Tinha
consciência de que um julgamento sadio e esclarecido saberia dis­
tinguir entre a simpatia manifestada a uma pessoa e a identidade
de vistas com ela.
Essa tolerância não significava frouxidão na afirmação da fé.
Maria não procedia como se a sua fé não existisse; não a escondia
aos olhos dos primos, e mostrava suficientemente que a sua con­
vicção permanecia intata. Mas abstinha-se de afirmá-la de uma
maneira irritante ou demasiado imperiosa em fase dos incrédulos.
Abstinha-se até mesmo de fazer pressão, porque via que a fé só
desabrocha numa alma livre; não se pode forçá-la. Julgava a cons­
ciência alheia eminentemente respeitável. Quanto mais firme e
inabalável era a sua certeza, tanto maior delicadeza e discrição
punha em exprimi-la em face das opiniões contrárias.

209
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

A sua tolerância tampouco implicava frieza. Era verdadeira


e profunda a amizade que a Virgem dedicava aos primos de Jesus.
Não se esquivava dêles por causa de sua incredulidade; tôdas
as feridas que recebia redobravam-lhe o amor no coração. Maria
não se engenhava em manifestar desaprovação ao seu comporta­
mento, nem procurava dar-lhes lições. Tudo fazia por viver
em bons têrmos com êles. Estimava que a caridade era a melhor
arma, uma arma sem corte, para fazer triunfar a verdade.
O triunfo produziu-se. A fé de Maria acabou por ser parti­
lhada pelos primos rebeldes, pois na assembléia reunida no Ce­
náculo antes do Pentecostes, os "irmãos de Jesus" estavam pre­
sentes. Por sua mansidão e tolerância, a Virgem obteve o que
urna atitude de rigidez ou uma afirmação agressiva de sua convic­
ção lhe teria feito perder. Através de sua bondade serena e
paciente, era o espírito de mansidão e de humildade de Cristo
que havia atraído os primos à fé. A tolerância, com efeito, é a
característica de um coração manso e humilde.
O exemplo de Maria continua atual para a Igreja e para os
cristãos. A tentação de transformar a intransigência da verdade
numa atitude de intolerância em face das pessoas, continua a
subsistir. A Igreja não pode admitir o mínimo atentado ao de­
pósito da fé, e deve manter que todo o homem tem o dever de
aderir à verdade que ela propõe; todavia, proclama ao mesmo
tempo que a adesão deve ser dada livremente. Como Cristo, ela
não se impõe às consciências para oprimi-las, mas para libertá-las
e fazê-Ias desabrochar. A sua rnensa&"em de caridade dita-lhe
wna atitude benevolente para com aqueles que lhe resistem. O
cristão será ajudado, pelo exemplo da Virgem, a adotar essa
benevolência e respeito para com os incrédulos. Como Maria,
sofrerá essas diferenças de opinião, porque o seu ideal é ver a
sua fé partilhada por todos; mas ao mesmo tempo que conser­
vará intata a sua convicção e a sua firmeza em exprimi-la sem
temor, terá a delicadeza de não querer introduzi-la à fôrça nos
outros, terá a coragem de manifestar uma sincera amizade àquele
que permanece em oposição à fé. Fá-lo-á, persuadido de que a
caridade abre caminho à conversão, e de que uma bondade sem.e­
lhante à da Virgem constitui uma fôrça mais irresistível que a
violência.
210
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolviment o

Amor aos inimigos

O velho Simeão havia predito a Maria que o seu filho seria


objeto de contradição. Durante os anos tranqüilos de Nazaré,
essa profecia poderia sepultar-se no esquecimento; todavia, a Vir­
gem via uma confirmação dela na incompatibilidade que notava
entre a santidade absoluta de Jesus e o espírito do mundo. Essa
incompatibilidade fazia pressagiar uma luta.
Logo que teve princípio a vida pública, começou a luta.
Mesmo em Nazaré, Maria foi testemunha do desenvolvimento
e em seguida do desfêcho da hostilidade contra o seu filho. Na
sinagoga da aldeia, pôde contemplar com terror as fisionomias
malignas, os olhares de ódio e pode assistir, ofegante, à eclosão
de um motim para dar cabo de Jesus. Viu como o Salvador
escapou da morte n� derradeiro instante.
Após o incidente, era-lhe preciso cruzar na rua com aquêles
mesmos que haviam excitado o povo. Sabia que se se apresentasse
de nôvo a ocasião, consumariam o seu desígruo. Podia ler-lhes nos
olhos a tenacidade de suas disposições. O que fazia Maria, ao
encontrar-se com êsses inimigos encarniçados de seu filho ? Não
os censurava, nem manifestava cólera a seu respeito, como fêz
Cristo em certas circunstâncias, porque o seu papel não era pre­
gar-lhes a doutrina, nem julgar o seu comportamento; isso per­
tencia ao Salvador. Conservou-se reservada, de maneira a evitar
tôda a disputa. No que dizia respeito aos seus sentimentos ín­
timos, desejava responder a êsses movimentos de ódio por um
maior amor. Depois que certas pessoas haviam ameaçado e per­
seguido o seu filho, ela os amava ainda mais, perseguia-os mais
insistentemente com o seu afeto. Aliás, mal podia manifestá-lo,
pois todo o contato arriscaria envenenar a situação antes que melho­
rá-la. Maria nada podia fazer nesse momento para mudar as
disposições dêsses infelizes. Pacientava e esperava.
Mais ainda do que em Nazaré, o seu amor aos inimigos foi
pôsto . à prova no Calvário. A Virgem achava-se ali bem ao lado
do filho, e todos os insultos que er2m dirigidos a Jesus atingiam

211
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

a mãe em pleno rosto; todos os escárnios refletiam sôbre ela.


Sentia todo o calor do sôpro de maldade que feria a Cristo.
Uniu-se simplesmente à oração de perdão pronunciada por seu
filho: "Pai, perdoai-lhes, porque não sabem o que fazem" (Lc.
2 3, 34). Havia recomendado sempre os seus inimigos à bondade
do Pai celeste, e fazia o mesmo agora que a sua hostilidade
chegava ao extremo. Fazia-o com sinceridade total, procurando
desculpá-los: verdadeiramente, não sabiam o que faziam. Se ti­
vessem, como ela, a felicidade de conhecer a Cristo na intimidade,
jamais o crucificariam. Eram fracos e cegos, deixavam-se arrastar
por suas paixões. Por isso Maria implorava a piedade divina em
favor dêles.
Reconhecia, aliás, nos inimigos encarniçados em martirizar-lhe
o filho, uma fôrça estranha 9ue se servia dêsses homens para desen­
cadear a sua malícia. Satanas manobrava tôda a emprêsa, animan­
do-a com o seu espírito. Era êle que retorquia com suas zombarias
às palavras aplicadas outrora pelo anjo Gabriel a Jesus: Salvador
É o rei de Israel. "Salvou a outros, e não pode salvar-se a si-mesmo!
É o rei de Isrâel; desça agora da cruz ! " (Mt. 27, 42 ) . A Virgem
sabia discernir a voz do demônio, e fazia distinção entre as res­
ponsabilidades propriamente humanas e as do príncipe das trev�s.
Acreditava, portanto, que os adversários de Cristo eram no fundo
de suas almas melhores do gue manifestavam com seu compor­
tamento. Decerto, não miruzava o pecado dêles; via-os atual­
mente dominados pelo poder diabólico, mas confiava em que um
dia haveriam de sacudir êsse jugo.
Acima de tudo, jamais deixou penetrar no seu coração o
menor desejo de vingança. As injúrias eram perdoadas e esque­
cidas à medida que a atingiam. Fremindo ante os atrozes sofri­
mentos de Cristo, Maria não alimentava rancor algum contra aquêles
que se engenhavam em supliciá-lo. A generosidade do seu coração
materno, que ao pé da cruz ia abrir-se ao discípulo amado e a
todos os outros discípulos, tendia também a envolver os adversários.
Não era por êles que morria Cristo? Tinham todos um valor
sagrado aos olhos da mãe do Crucificado; cada um representava
o preço do sangue de seu filho, e merecia por conseguinte um
imenso amor.

212
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O d e s e n v o lvim e n t o

Inaugurou-se assim a missão materna de Maria para com os


innúgos do Salvador. Triunfante, a Virgem continua a mi�ão
delicada que começara no sofrimento: persegue os adversários com
um amor discreto mas tenaz ao extremo. O papel de uma mãe
não consiste justamente em testemunhar uma solicitude mais afe­
tuosa e mais obstinada para com o filho rebelde ?

Amor aos discípulos

Desde a vida pública de Jesus, Maria dedicava um grande


afeto aos discípulos; antes mesmo que fôsse designada como mãe
dêles, amava-os com o amor materno que votava a Cristo, porque
participavam de sua vida e tornavam-se inseparáveis dêle. Ser­
lhe-ia impossível amar Jesus sem amar aquêles que constituíam
doravante uma só coisa com êle. A Virgem tinha com os discí­
pulos uma comunhão de fé, de afeto ao Senhor, que estabelecia
entre ela e seus novos filhos uma harmonia cuja fonte era o
Senhor.
Depois da Ascensão, o amor materno da Virgem pelos dis­
cípulos de seu filho revelou-se em plena luz. Cristo, com efeito,
havia partido definitivamente, e nesse vazio a presença de sua
mãe parecia extremamente preciosa à j ovem comunidade ! Em
Maria, os discípulos reencontravam algo do mistério de Jesus,
uma surpreendente semelhança com o seu Mestre. Tudo nela
lembrava, de um modo silencioso e discreto, a personalidade de
Cristo. Maria sentiu pois que no Cenáculo ela representava o
seu filho; e o que procurava acima de tudo representar, era o
coração amante de Jesus. Tentava, por sua universal bondade,
prolongar a atmosfera que o Mestre havia criado. E dava a isso
uma nota especificamente maternal.
A sua tarefa era no entanto diferente da de Jesus. Cristo
tivera por fim, ao reunir os discípulos, formar-lhes a fé e incul­
car-lhes a sua doutrina a fim de constituir a Igreja. Atual­
mente, · após o grande acontecimento da ressurreição, essa fé estava
plenamente formada e só lhe faltava, para adquirir a sua plena

:ZIJ
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

irradiação apostólica, a vinda do Espírito Santo. Mas se o funda­


mento da v1da cristã estava assegurado, era preciso ainda desen­
volver, educar e impulsionar essa vida; era mister pôr em marcha
a ascese e a mística cristã. É nessa cultura e nessa educação da
alma cristã que Maria, na qualidade de mãe, se sentia com o dever
de colaborar.
Pôs nesse trabalho todo o ardor de sua caridade. É a carac­
terística que São Lucas realçou ao falar da assembléia do Cenáculo:
todos os apóstolos "perseveravam unânimes na oração com as
mulheres, com a mãe de Jesus e os seus irmãos" (Atos 1, 1 4) .
Havia unanimidade de sentimento. :tsse acôrdo torna-se digno
de nota, se se lembra de que tantas vêzes no passado os apóstolos
haviam disputado por miseráveis questões de amor-próprio e de
ambição. A disputa final ocorrera na última Ceia, e lançara a
perturbação numa reunião que devia ser impregnada da paz de
uma emoção comum. Até àquele momento sublime, as dissen­
ções haviam prolongado o seu eco.
Ora, nesse mesmo Cenáculo que fôra testemunho da disputa,
reinava agora uma admirável concórdia. A presença maternal de
Maria desempenhava ali certamente um papel. A mãe de Jesus
impunha-se ao respeito de todos; ofendê-la no que quer que fôsse,
seria insultar a memória de Cristo. Por sua maneira amável parecia
personificar de tal modo a caridade que qualquer um se enver­
gonharia de pronunciar diante dela uma palavra grosseira ou
exprimir um sentimento de inveja ou de egoísmo. Espontânea­
mente, fazia reinar em tôrno de si a paciência e a mansidão. A
sua humildade, igualmente, encorajava a de todos e impunha si­
lêncio a tôdas as reivindicações da ambição.
A breve alusão dos Atos dos Apóstolos é a única indicação
que a Escritura nos dá sôbre a Virgem após a morte do Salvador.
Nesse comêço de um livro em que se narra o desenvolvimento
da Igreja, a indicação parece um símbolo da missão especial con­
fiada a Maria na comunidade cristã. A Virgem é constituída
guardiã da unidade dos cristãos, penhor de sua boa harmonia.
No Cenáculo, Maria não comunicava à assembléia a sua própria
paz, mas a de Cristo: "Deixo-vos a paz; dou-vos a minha paz",
declarara o Salvador (lo. 14, 27). Ausente da comunidade que se

214
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O desenvolvimento

preparava para o Pentecostes, encarregava a sua mãe de derramar


essa paz.
Mãe na caridade, é normal que Maria tenha querido desen­
volver antes de tudo nos discípulos a ascese e a mística da caridade.
É a missão educadora que ela conserva e desempenha incansàvel­
mente na Igreja, esforçando-se por elevar sempre mais no decorrer
dos séculos o nível do amor. Trabalha por dilatar os horizontes,
por suprimir as barreiras e conciliar as diversas mentalidades. A
sua função de medianeira exerce-se em vista de realizar a unidade
sempre mais profunda dos cristãos. Como o seu coração materno
os envolve no mesmo afeto, todo o desacôrdo o fere; o seu ideal é
ver os seus filhos unânimes como outrora no Cenáculo. É certo
que a sua presença na religião cristã é um apêlo à paz, um convite
à doçura compreensiva; em contraposição, os cristãos que deser­
tam da devoção a Maria caem fàcilmente num moralismo frio,
donde está ausente a verdadeira caridade. A mística da caridade
está ligada à mística da Virgem; a ascese da caridade triunfa no
clima de sua educação materna.

A divina invenção

Tudo o que se pode dizer legitimamente do papel maternal


de Maria na vida dos cristãos e da Igreja não lança a mínima
sombra sôbre a glória da bondade divina. O que é atribuído a
Maria não é subtraído a Deus. Aquêles que persistem em colocar
a Mãe de misericórdia junto de um Juiz temível, para servir-lhe
de contrapêso, não compreendem o sentido profundo da mater­
nidade espiritual de Maria. Foi o próprio Deus quem a predes­
tinou a se tornar mãe dos homens, e foi êle quem lhe encheu a
alma de uma caridade universal. Como poderia confiar a Maria
aquilo que êle próprio não possuísse ? Como poderia tornar a
Virgem tão misericordiosa e indulgente se não tivesse derramado
os tesouros dessa misericórdia em seu coração materno? Tôdas
as atenções e delicadezas do coração maternal de Maria são na.
realidade as atenções e delicadezas do coração paternal de Deus .

215
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Se Deus quis dar aos homens uma mãe na ordem da graça,


é que pretendia aproximar-se o mais possível de sua condição,
tocá-los em suas aspirações mais profundas. Como devia superar
o obstáculo do temor que a majestade divina inspira à criatura,
inventou Maria para tornar o seu amor perfeitamente acessível aos
homens. Esperava atrair pelo afeto maternal da Virgem aq_uêles
que a grandeza de seu coração paterno não chegasse a comover.
Na realidade, através da Vir� em, é ainda a bondade divina que se
manifesta, mas sob uma fisiOnomia mais familiar. A invenção
divina obteve um grande triunfo, como prova o atrativo cres­
cente que a pessoa de sua mãe exerce sôbre as gerações cristãs.

216
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
TERCEIRA PARTE

' ,

DO SOFRI MENTO A GLORIA

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
'
CAPITULO VI

CORAÇÃO DOLOROSO

Coração destinado por Deus à dor

A Virgem é imaculada, jamais conheceu a desordem íntima


e o desequilíbrio que a concupiscência e o pecado introduziram
no homem. Poder-se-ia portanto imaginar que ela devia escapar
à conseqüência do pecado que é o sofrimento. Dotada por Deus
de um privilégio único, possuindo em grau excepcional a amizade
divina, não devia a sua existência transcorrer numa alegria sem
sombras ? De fato, é o inverso o que aconteceu. Na predestinação
divina que fazia de Maria a imaculada, achava-se já inscrita uma
predestinação a terríveis sofrimentos. O seu coração seria tanto
mais doloroso quanto mais puro e mais cheio de caridade êle
fôsse. O Pai do céu queria conduzir até ao fim da provação, até
ao limite dos tormentos humanos, aquela que ocupava o lugar
de sua filha bem-amada.
Em nome de sua maternidade, Maria poderia igualmente ser
eximida da dor. Porque a sua maternidade era virginal, inteira­
mente independente das servitudes das paixões humanas: não era
uma sujeição às leis da carne, mas uma libertação em face de tudo
o que é carnal. Poder-se-ia pensar que semelhante libertação
colocaria Maria ao abrigo dos sofrimentos maternos, e isso tanto
mais espontâneamente quanto mais de perto se aproximava de Deus
por sua maternidade. De fato, jamais criatura alguma se aproximou
tanto de Deus como Maria, que mantinha com o Criador uma
maravilhosa intimidade. Ora, se um ser humano possuía um laço
tão estreito com Deus, a ponto de exercer sôbre a pessoa do
Verbo uma influência materna, como não se beneficiaria êle, numa

219
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

extraordinária medida, da felicidade irradiante da divindade ?


Como não haveria a beatitude divina de j orrar sôbre Maria em
alegria transbordante ? Parecia portanto que o fato de ser mãe do
Verbo devia arrebatar Maria para uma atmosfera superior donde
seria excluído o sofrimento.
Foi precisamente a maternidade divina que arrastou a Virgem
a um destino doloroso. Maria, com efeito, não devia somente
dar ao mundo o Filho de Deus encarnado. Com êle, devia dar
nascimento a uma nova humanidade. Devia receber o Redentor
em seu seio, e em virtude de sua maternidade, seria associada,
mais que nenhum outro ser humano, ao sacrifício da redenção.
Iria contribuir para procurar aos homens a salvação messiânica.
A êsse título ela devia experimentar as dores do parto de um
mundo nôvo, aquelas dores de q_ue Cristo se servirá para designar
a paixão: "No momento de dar a luz, a Mulher fica triste, porque
é chegada a sua hora" (]o. 16, 2 1 ) .
O Verbo encarnou-se em vista dessa hora de sofrimento; veio
a êste mundo para se oferecer em holocausto: "É para isso que
vim, em vista desta hora" (lo. 12, 2 7 ) . Maria também tornou-se
mãe em vista dêsse momento supremo, para o penoso parto da
comunidade dos remidos. O seu coração materno só podia ser
doloroso. Com Cristo, a Virgem testemunha que Deus envia
as mais terríveis dores àqueles · que mais ternamente ama. E dá
testemunho ao mesmo tempo dos frutos magníficos do sofrimento
oferecido pela salvação do mundo.

A formação para o sofrimento


Bem cedo em sua vida, Maria encontrou o sofrimento . É
na infância, que devia preparar-se a mulher de amanhã; era preciso
que essa· mulher fôsse capaz de suportar as mais duras provações.
Era mister portanto que a alma de Maria começasse desde os seus
mais tenros anos a adquirir fôrça e paciência. A Providência não
deixou de lhe preparar numerosas ocasiões de afirmar a sua capa­
cidade de resistir aos choques, de perseverar na adversidade.
Nada conhecemos da juventude de Maria, mas podemos adi­
vinhar de que gênero foram certas provações de sua alma. Maria

220
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

vivia pura numa sociedade que não o era. Sua alma era um reino
em que Deus dominava como senhor absoluto; o seu comporta­
mento tinha como único objetivo agradar ao Senhor. Ora, a sua
delicadeza em nada fazer que pudesse contrariar o beneplácito
divino avizinhava-se com o comportamento de outras pessoas, que
não tinham escrúpulos em cometer o pecado. A perfeição .de
Maria contrastava fatalmente com os costumes do seu meio.
�sse estado de coisas fazia sofrer Maria. Ela desejaria que a
vontade divina reinasse nos outros como em sua alma. O que
jamais toleraria em si-mesma, a ofensa ao Senhor, era-lhe doloroso
ver e suportar nos outros. Nem mesmo as ? essoas de boa vontade
tinham uma fineza de alma comparável a sua, e Maria sentia
inevitàvelmente essa diferença. Em sua santidade imaculada, sofria
por causa dos pecados e imperfeições do próximo. Ela que não
podia conhecer o arrependimento pessoal, pois não cometia a
menor falta, experimentava intensamente a dor de ver Deus inju­
riado, esquecido, tratado com indiferença. Simpatizava-se de tal
modo com a bondade divina que ressentia profundamente a inwa­
tidão e a revolta dos homens. Especialmente unida ao Esptrito
Santo, partilhava da tristeza que lhe era infligida pelos pecadores
(Ef. 4,3 0 ) . O espetáculo do pecado fazia-a sofrer, e do mesm o mo­
do que Deus, jamais pôde habituar-se a êle ou se tornar sua
cúmplice.
A pureza integral colocou a menina, depois a j ovem num
isolamento moral que constituía um verdadeiro sacrifício. A
solidão é penosa ao ser humano. Ora, apesar de ter bom número
de relações sociais, Maria não tinha nenhuma que pudesse s�tis­
fazer a sua necessidade de desabafo, porque vivia espiritualmente
num nível muito mais elevado que o seu ambiente. Essa supe­
rioridade não significa que Maria não tenha conseguido entrar
em contato com outrem; ao contrário, a jovem era simples e
acessível, e participava de bom grado da vida social da aldeia.
Não obstante não manifestava nenhuma singularidade; ainda menos
quereria tomar ares altivos ou condescendentes. Colocava-se bem
no nív�l do seu meio, como fará Cristo mais tarde. M1s sofria por
não poder levar os outros a uma vida mais santa, por não encontrar

221
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

quem pudesse estabelecer com ela uma profunda comunhão de


pensamento. Êsse suplício do isolamento devia aliás dispor Maria
para reservar unicamente a Deus a abertura de seu coração.
A qualidade excepcional da alma de Maria foi a origem de
outras dificuldades. Apesar de seu aniquilamento e de sua humil­
dade, essa qualidade não podia passar inteiramente despercebida.
Ora, a descoberta de uma nobreza particular pode suscitar pm
sentimento de admiração, mas também, da parte do amor-próprio,
uma reação de suspeita e de hostilidade, nutrida por uma inveja
secreta. O homem não aceita fàcilmente a superioridade de outro,
sobretudo se se trata de um vizinho, de um próximo, de um ser
que em sua opinião deve ser bem ordinário. Cristo fará a expe­
nência disso quando falar na sinagoga de Nazaré: suscitará pri­
meiramente a admiração, mas em seguida prevalecerão no audi­
tório os sentimentos de incredulidade e de oposição. Os homens
que o haviam conhecido sob traços familiares não tolerarão que
êle se eleve a seus olhos e o acusarão imediatamente de pretensão
e sacrilégio. Maria, que jamais precisou apresentar-se em público
para afirmar os seus privilégios, não provocou em tôrno de si rea­
ções tão violentas. Mas é certo que desde os seus primeiros anos
a excelência de seu comportamento foi julgada insuportável por
companheiras ou conhecidas, e lhe atraiu hostilidades. Algumas
pessoas não lhe perdoavam o seu procedimento irrepreensível, e
sentiram-se humilhados por êle. Talvez mesmo a perseguiram
com ódio tenaz, decididas a fazê-la expiar a sua pureza inatacável,
tentando perfidamente lançar suspeitas sôbre ela. Ao depois,
quando teve o seu filho, não seria de estranhar que a tenham inve­
jado por ter um filho modelar. Não é temerário pensar que a
Virgem tenha experimentado na sombra de uma vida oculta, de
uma existência modesta, o que Jesus experimentará tão fortemente
em sua vida pública: uma oposição secretamente dirigida por
Satanás contra uma santidade que êle não conseguia derrubar nem
atingir. Alma muito sensível, Maria ressentia profundamente a
dor de se ver por vêzes injustamente acusada ou repelida sem
motivo. Embora as palavras ou gestos que a depreciavam não
tivessem conseqüências, manifestavam contudo uma intenção mal­
dosa, e era essa intenção que desolava Maria.

222
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

Houve nela desolação, tristeza, mas nunca cólera nem suscep­


tibilidade ferida. O sofrimento de Maria foi sempre um sofri­
mento absolutamente puro, isento de todo o egoísmo. Era o
sofrimento do amor. Maria sofria por se ver atacada ou suspeitada
por pessoas a quem amava sinceramente. Continuava a amá-las;
o seu coração jamais conhecia a mínima sombra de rancor.
Possuía ao mesmo tempo uma faculdade finíssima de emoção,
que avivava as suas dores, e um hábito de domínio de si, que lhe
permitia dominar as suas reações. Conservava também um julga­
mento sadio, que apreciava os pequenos incidentes da vida social
segundo o seu justo valor, sem nunca exagerá-los. Por isso, apesar
de sua delicada sensibilidade, Maria mantinha-se num equilíbrio
vigoroso; ignorava a melancolia. Pensando no bem dos outros,
julgava-se feliz de poder sofrer por êles, e no impulso dessa
oferenda das dificuldades cotidianas, vivia numa alegria firme e
inalterável. O próprio sofrimento colaborava para o desabrochar
de sua alma.
fuse espetáculo do coração doloroso de Maria era conhecido
unicamente de Deus. A Virgem tinha a coragem de ocultar as
suas impressões penosas, de dissimular as suas dores para não
entristecer nem acabrunhar o próximo. Desde a sua juventude,
fôra habituada pela Providência a sofrer sozinha, sem descarregar
sôbre os outros o seu fardo. No Calvário, com efeito, deverá
levar sozinha o seu sofrimento materno.
Para que Maria chegasse, em sua solidão moral, a uma atitude
perfeita em face do sofrimento, devia ser esclarecida de modo
especial pelo Espírito Santo, porque o Antigo Testamento não
podia ditar-lhe a disposição de alma cristã diante da dor. Não
podia mostrar-lhe o acôrdo misterioso da caridade e do sofrimento,
porque não possuía ainda a noção de uma caridade levada ao
extremo. Na provação, os justos do Antigo Testamento haviam
clamado para o céu e esperado de Javé a sua libertação. �sse
impulso magnífico de sua prece não impedia entretanto que hou­
vessem muitas imperfeições na maneira de considerar a dor. O
sofrimento era tido por um mal, do qual se procurava desemba­
raçar a .todo o custo. Maria deve ter-se apercebido dos benefícios
e da fecundidade da dor, e considerava as suas privações não

22J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

como um sinal de descontentamento divino, mas como um dom


do amor paternal de Deus. Nos Salmos, o justo aparece muitas
vêzes numa situação bem miserável, vítima das perseguições, des­
pojado de seus bens e ameaçado em sua vida. Quando reclama o
socorro divino para sair de seu estado, acusa os inimigos e pede
para êles um severo castigo. Encara o dia de sua libertação como
um dia de vingança, e a alegria que experimentar naquele mo­
mento deverá ter como contrapêso a pena e o aniquilamento dos
adversários. Compraz-se mesmo em contemplar por vêzes, de
antemão, o espetáculo de sua ruína, com o desejo fremente de um
rancor que saboreia a sua cruel satisfação. Essa mentalidade que
Maria aprendera a conhecer enquadrada nos sentimentos sublimes
do salmista, era-lhe absolutamente estranha. O Espírito Santo
desviou-a dessas disposições vingadoras como de uma lamentável
concessão às paixões humanas nas almas que não haviam ainda
compreendido a imensidade do amor divino. Maria acostumou-se
a replicar por um amor mais vigoroso e mais obstinado aos ataques
ou críticas da malevolência dos homens. Não queria, em seus
sofrimentos, voltar-se contra o próximo: a sua alma magnânima
não se fechava em si-mesma, antes alargava-se numa simpatia mais
generosa.
A Virgem, porém, não tirava disso aquêle complexo de supe­
rioridade que se observa nas pessoas que sofreram ou foram per­
seguidas. Isso equivaleria a uma desforra da dor na satisfação do
amor-próprio. Maria jamais se prevalecia de sua inocência para
escapar ao sofrimento, como muitas vêzes fêz o salmista; não
comparava a sua sorte, mais carregada de provações, com a de
pessoas de mau comportamento, aparentemente mais favorecidas
com as alegrias da vida; e jamais se considerava injustamente tra­
tada por Deus. Do mesmo modo, após a provação, não reivin­
dicava um lugar de maior estima, nem reclamava novos direitos.
Evitando cuidadosamente atrair a atenção, não queria que a admi­
rassem nem a lamentassem. O seu ideal consistia em se apagar
na dor como em tudo o mais.
Durante longos anos Maria suportou silenciosa e alegremente
as provações que lhe enviava a Providência. Pela primeira vez,
Deus obtinha de uma criatura uma atitude de plena caridade no

224
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

sofrimento. Maria acolhia as suas dores como um dom divino


e como uma oferenda a apresentar ao Senhor pela salvação dos
homens. Via nelas primeiramente uma manifestação do amor
divino, e em seguida uma ocasião de manifestar a Deus o seu
próprio amor, de fazer com que êsse amor fôsse proveitoso aos
seus semelhantes. Em seu coração, caridade e sofrimentos, se uni­
am. Seu amor era-lhe causa de sofrimentos e os seus sofrimentos
aumentavam o fervor de seu amor.
Para a Virgem, a subida ao Gól�ota não começou com a
viagem a Jerusalém por ocasião da Pascoa; havia começado nos
primeiros passos da infância . Tôda a existência de Maria foi
tecida de sacrifícios, sacrifícios proporcionados às fôrças da
criança, da j ovem e depois da mãe. A sua existência confundia-se
com qualquer existência humana, pois em tôda a parte a dor
começa bem cedo e as pequeninas provações cotidianas podem
tornar-se bem penosas. Mas em Maria, apesar da intensidade
mais viva dos sofrimentos, por causa da a&"udeza de sua sensi­
bilidade e de sua alma, o ardor em oferece-los, no amor e na
algria, era mais entusiasta e mais fiel.

O silêncio em face de José

Após a Anunciação e a partida do anjo Gabriel, Maria re­


fletiu no acontecimento surpreendente que acabava de se produzir.
Considerou a situação inteiramente nova que a sua maternidade
criava em face de José. No fundo de si-mesma, acreditava que_
José teria aceitado com alegria manter a sua união se tivesse tido
conhecimento da mensagem do anjo. Entretanto, devia respeitar
a sua liberdade e deixar-lhe a faculdade de rompê-la se porven­
tura desejasse. Mais ainda, devia respeitar a liberdade do plano
divino: era a Deus que pertencia decidir do futuro de seu lar,
inspirar ou revelar a José o comportamento a seguir. Maria
não se arrogava o direito de comunicar ao seu espôso a conversação
que tivera com o anjo: o anjo tinha-se dirigido exclusivamente
a ela, e · ela não devia divulgar a mensagem. Manifestamente, o que
era pedido à Virgem, era deixar-se conduzir. Tratava-se de um

225
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

empreendimento divino, cuja direção devia ser abandonada ao


Senhor. Nessas condições, só restava a Maria calar-se e esperar.
A viagem à casa de Isabel teve por feliz resultado fazer passar
o problema para o último plano das preocupações de Maria.
Lá, a Virgem já não teria encontros com o seu espôso: ora,
semelhantes encontros teriam sido penosos para ela, visto o mis­
tério que trazia e que devia ocultar absolutamente, se bem que
interessasse José no mais alto grau. Enquanto José estivesse na
ignorância do acontecimento, não poderia ter com êle familiari­
dade fácil.
Após a sua volta a Nazaré, o problema devia apresentar-se em
tôda a sua acuidade. Maria interrogava-se sôbre o que faria José
quando verificasse a sua gravidez. De seu lado, guardou silêncio.
Custava-lhe enormemente ter de infligir ao espôso essa brutal
averiguação, sem poder explicar-lhe a realidade do seu estado.
Não p ensava antes de tudo em sua reputação, mas na dor que
expenmentaria José. Em seu amor mútuo, tudo fôra até ao pre­
sente serenidade e confiança. Maria via-se constrangida a lançá-lo
numa grande perturbação. Sentia o quanto José lhe era afeiçoado
e a que ponto iria magoar-se. Estava condenada a perder diante
dêle a sua reputação, e sabia que o dever de suspeitar da honesti­
dade daquela que sempre lhe aparecera como a criatura ideal
não seria dos menores tormentos de seu espôso.
Quando José averiguou o fato, esperou alguma explicação
que pudesse salvar a honra da espôsa. Esforçou-se sem dúvida
por oferecer a Maria uma ocasião de falar. Mas ela persistiu em
seu silêncio. Silêncio verdadeiramente heróico, porque devia
provocar, segundo as leis humanas, a ruptura do casal, e devia con­
firmar José naquilo que dificilmente se resignava a admitir a
culpabilidade de Maria. No entanto, teria sido fácil à Virgem
evitar tôda essa perturbação ! Uma só palavra bastaria, dando
a entender que era inocente, que as aparência enganavam. Maria
foi decerto tentada a dizer essa palavra que iria tranqüilizar o
espôso, vendo a tristeza e as angústias de sua consciência. Pos­
suía o segrêdo que acalmaria imediatamente as inquietudes e trans­
formaria em fisionomia radiante um rosto atormentado. Mas era
uma tentação; não podia ceder, nada devia dizer. Nem sequer

226
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

fêz algum sinal que deixasse supor a existência de um segrêdo.


O seu sacrifício prefigurava o de todos aquêles a quem Deus
haveria de pedir a guarda de um segrêdo, com o risco mesmo de
sofrer os mais graves prejuízos; pressagiava igualmente o sacrifício
daqueles a quem o Providência haveria de impor, pelo jôgo das
circunstâncias, o risco de perder a própria reputação, de sofrer
por seu amor essa humilhante dor. O suplício da cruz não fará
passar Jesus, aos olhos de espectadores de boa fé ou aos olhos
de um judeu convicto do tipo de Saulo, como um criminoso
condenado com tôda a justiça ? Calando-se, Maria anunciava o
silêncio de Cristo em face de seus acusadores. Expunha-se a um
repúdio da parte de José, que atrairia a infância sôbre ela.
A decisão que José pensava tomar prova que semelhante
infâmia lhe parecia imerecida. Era "justo", diz-nos o Evangelho,
e não queria denunciar a espôsa, despedindo-a publicamente (Mt.
1, 19). Suspeitava, portanto, não que se tivesse produzido um
milagre, mas que causas imperiosas haviam agido sôbre Maria,
tirando-lhe a responsabilidade daquela gravidez. Não podia supor
que a sua espôsa, com aquêle seu ar tão puro e tão simples, fosse
culpada, e refletia se o seu silêncio não tinha a intenção de
ocultar a falta de outrem. Contudo, mesmo que Maria não fôsse
culpada, não podia tomá-la em sua casa com um filho que não
era dêle. Acabou por tomar a resolução que a Virgem temia, a
de uma ruptura, de uma despedida secreta.
O heroísmo do silêncio da Virgem fundava-se num abandono
total à Providência: pela Anunciação, Deus havia tomado nas
mãos o �eu destino de maneira extraordinária. Cabia-lhe agora
fazê-lo triunfar. Aqui, interveio no derradeiro instante, quando
tudo parecia perdido. A aparição de um anjo a José restabeleceu
inteiramente a situação. Quando Maria reviu o espôso, adivinhou
imediatamente que êle sabia. Por sua alegria, compreendeu que
a sua união continuaria, e por seu respeito sagrado, notou que
fôra advertido do milagre operado nela pelo Espírito Santo.
A crise resolveu-se da maneira mais feliz. Refletindo nisso
e repassando na memória os acontecimentos, Maria percebeu mais
claramente a intenção divina de colocar o sofrimento como funda­
mento de sua vida em comum com José. Antes de habitarem

227
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

juntos, tiveram de sofrer juntos. Ordinàriamente, o tempo que


precede o matrimônio é uma época de despreocupação e de
felicidade para os futuros esposos; depois do casamento começam
as primeiras provações, porque a vida em comum impõe sacrifícios
e concessões mútuas. Cada cônjuge deve suportar os defeitos do
outro, e ambos devem enfrentar as mesmas dificuldades. O amor
recíproco deve tornar-se com isso mais autêntico e mais profundo.
Maria e José não conheceram as dificuldades provenientes do
choque de temperamentos. Mas desde antes de sua vida em comum,
o seu amor fôra torturado por uma terrível provação. E dela
saiu mais fervoroso. A Virgem, cada vez mais clarividente quanto
ao sentido do comportamento divino, reconhecia nêle UII! sinal de
que o seu matrimônio alimentava-se de um amor lntimamente
mesclado de sacrifício.
Em sua união com José, Maria não descobria uma medida
excepcional da Providência. O seu casamento, ideal de todos OS'
matnmônios, estava submetido a uma lei geral: o amor conjugal,
como todo o amor terrestre, forma-se plenamente e aprofunda-se
no sacrifício. Maria fôra afligida com uma grande provação,
porque devia colaborar na redenção e porque o seu casamento
fôra querido por Deus a fim de proporcionar ao Redentor ajuda
e proteção. Ora, essa perspectiva encontra-se do mesmo modo em
todo o casamento, porque a união dos esposos implica a sua asso­
ciação na grande obra da salvação dos homens. O seu amor deve
contribuir para adquirir os frutos da redenção para a humanidade:
a paz, a unidade e a felicidade; por isso é destinado a merecer-lhe
êsses benefícios por meio de sacrifícios. Está unido essencialmente,
como amor conjugal de cristãos, ao amor redentor de Jesus. Já o
casamento da Virgem fôra marcado por um sofrimento inicial que
o fazia participar de antemão da provação do Calvário.

O anúncio da espada de dor

Do futuro de Jesus, Maria só soube, pela Anunciação, do


aspecto glorioso e triunfante. Todavia, o período que se seguiu
à vinda do anjo foi marcado, como acabamos de ver, por uma
crise extremamente penosa. O nascimento de Jesus realizou-se

228
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

igualmente em circunstâncias imprevistas, que impuseram não


poucos sacrifícios à Virgem. Mas até então Maria só via o destino
de Jesus enquadrado na promessa de um maravilhoso triunfo.
Por isso a perspectiva dêsse longínquo futuro trazia-lhe grande
reconfôrto nas dificuldades da hora presente.
Ora, êsse horizonte longínquo ia também tornar-se doloroso.
Quando Maria se dirigiu ao templo para apresentar ali o seu filho
ao Senhor, não tinha consciência do alcance imenso de seu gesto,
e não adivinhava que o seu valor lhe iria ser revelado sem demora.
Queria simplesmente cumprir com tôda a sinceridade de sua alma
um ato que outras mães judias executavam com tanto formalismo. O
seu filho pertencia a Deus, como tôda a criança; pertencia-lhe a um
título úruco porque, conforme a palavra do anjo, era o próprio
Filho do Alt1ssimo. Pela apresentação de Jesus no Templo, Maria
Vinha devolver a Deus a sua posse. Queria fazê-lo de todo o cora­
ção, para testemunhar ao Senhor que não reteria em seu proveito o
filho que havia recebido: o que viera do Pai devia retornar
ao Pai.
A apresentação significava uma oferenda em sacrifício. Maria
conhecia o sentido que a Escritura atribuía a êsse gesto. Outrora,
na terra do Egito, todos os primogênitos foram votados ao exter­
mínio; só os dos judeus foram poupados. Mas foram poupados
por Deus para que lhe fôssem oferecidos e consagrados. Em todo
o rigor, Javé podia requerer a imolação dêsses primogênitos, que­
rendo dar a entender com isso que êsses meninos lhe pertenciam
de modo absoluto. Os pais deviam apresentar o primogênito de
seus filhos e resgatá-lo. Deus reivindicava assim, simbolicamente,
a posse de um povo que êle havia libertado.- "Com mão poderosa,
Javé tirou-nos do Epto, da casa da servidão . . . Eis porque ofereço
em sacrifício a Jave todo o primogênito masculino e resgato todo
o primogênito de meus filhos" (Ex. 1 3 , 14- 1 5 ) .
A Virgem fêz portanto a sua oferenda nesse espírito: apre­
sentando o seu filho, entregou-o nas mãos do Pai. Aceitou de ante­
mão tôdas as condições do resgate; oferecia, com efeito, em sacrifí­
cio o seu amor maternal. Era urna disposição perfeita de abandono,
adotada · aliás com alegria. Maria queria mostrar-se tanto mais
generosa para com Deus quanto mais havia recebido dêle; foi

229
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

com o seu entusiasmo de jovem mãe que levou o seu filho a o


templo.
A resposta divina foi imediata e esclarecedora. Ao que pa­
rece, antes mesmo que o gesto da apresentação fôsse efetuado
leçalmente, e para que Maria pudesse completá-lo com uma cons­
ciencia mais viva de sua verdadeira significação, o velho Simeão
veio ao encontro da criança e profetizou o seu destino : Jesus seria
a salvação de Israel e de todos os povos. Depois dirigiu-se· espe­
cialmente a Maria, ainda penetrada de admiração pela glória que
era prometida à criança, e fêz uma declaração mais impressionante:
"Eis que êste menino está pôsto para a queda e para o soerguimento
de grande número em Israel, e para ser um sinal de contradição.
E tu mesma terás a alma traspassada por uma espada. Isso acon:..
tecerá para que se manifestem os pensamentos de muitos corações"
(Lc 2, 34-3 5 ) -
Normalmente, é a o pai e à mãe que o ancião deveria fazer
à predição, porque ambos pareciam interessados no futuro do filho.
Mas sob a inspiração do Esprito Santo, Simeão só olha neste mo­
mento para a mãe. É sôbre a mãe que quer descarregar o pêso
dessa perspectiva dolorosa. Por isso quando Maria, alguns instantes
depois, oferecer em sacrifício rôlas ou pombinhos para a purifi­
cação, saberá que êsse pequeno sacrifício é símbolo de outro,
muito terrível. Apresentar o seu filho, era oferecê-lo em vista
das contradições que terá de sofrer; e para o coração de Maria,
isso equivalia a expor-se deliberadamente ao gládio de dor.
Antes que Jesus fôsse capaz de se oferecer em sacrifício,
Maria teve de fazer o gesto por êle. A mãe foi a primeira a apre­
sentar ao Pai o holocausto do Calvário. A oferenda maternal de
Maria precedeu a oferenda propriamente sacerdotal de Jesus. Por
seu gesto, a Virgem tinha consciência de que comprometeria todo o
seu futuro ao mesmo tempo que o de seu filho. O "fiat" que
pronunciou interiormente ao ouvir as palavras de Simeão custa­
va-lhe mais do que o "Fiat" dito ao anjo Gabriel. Era a aceitação
de uma missão maternal votada ao sofrimento.
D oravante, a ameaça do gládio de dor pesará sôbre a existên­
cia de Maria. Bastou a Simeão um breve momento para anun­
ciá-lo; o anúncio gravou-se indelevelmente no espírito da Virgem,

230
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

e voltava-lhe constantemente ao pensamento. Maria já não podia


ver Jesus sem pensar nas contradições que o esperavam. As pro­
vações de seu futuro pareciam tão inseparáveis de sua pessoa
quanto a qualidade de Messias. Eis porque no olhar afetuoso que
Maria punha em seu filho, havia sempre uma angústia secreta.
Um dia, êsse rosto tão belo e tão pacífico seria transfigurado
pela adversidade que iria cair sôbre êle. A sombra de uma catás­
trofe seguir-lhe-ia os passos.
Por que Deus havia revelado à Virgem o destino de seu
filho ? Poderia, decerto, ter-se limitado a revelar-lhe o seu papel
messiânico, deixando Maria na simples visão do triunfo futuro.
Ter-lhe-ia poupado bastante preocupações e ansiedades. Ordinà­
riamente, êle esconde às mães os desgostos que lhes hão de causar
futuramente os filhos, e em geral não revela aos homens as prova­
ções que os esperam. Se o fêz com Maria, é que lhe destinava
uma colaboração excepcional na obra redentora. Desejava que
a Virgem vivesse na perspectiva do sacrifício final, para 9ue tôda
a sua existência participasse dêsse sacrifício. Cristo tambem teria
incessantemente diante dos olhos o suplício do Calvário, e mar­
charia para êle com plena consciência. Sem conhecer a natureza
exata dêsse suplício, Maria não cessaria de olhar para êle e de se
oferecer para sofrê-lo.
Pelo anúncio de Simeão, sabia que devia educar Jesus para o
sacrifício. Deus pedia-lhe o desinterêsse maternal mais absoluto:
educar o seu filho para que fôsse capaz de sofrer, e de fazê-la
sofrer. O seu devotamento seria assim uma perpétua imolação.

A perda de 1esus

Deus fizera ouvir a Maria uma profecia que devia ser a origem
de muitas angústias. Ora, o que o Pai celeste havia feito, Jesus
fêz também. Por sua vez, infligiu expressamente à mãe ansie­
dades e dores. Não se limitou a repetir a predição; antecipou-a
por um gesto concreto: fêz com que a sua mãe experimentasse
antecipadamente o terrível sabor da provação anunciada.

231
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Nada tena feito prever que um filho tão submisso como Jesus
se furtasse à vigilância de seus pais. Decerto, Maria respeitava nêle
um mistério que podia ser rico de surprêsas; mas durante todo o
período da infância, êsse mistério permanecera oculto, e o temeo
de sua manifestação não parecia ter chegado. Com efeito, a época
da revelação pública estava ainda longe. Mas as coisas passaram-se
como se Jesus estivesse apressado em mostrar a Maria o seu têrmo .
Desde a idade de doze anos, fê-la provar o drama do Calvário,
onde perderia o seu filho e o reencontraria. Manifestava com isso
a sua consciência messiânica, e a sua vontade de associar estreita­
mente a sua mãe ao sacrifício redentor.
Quando Maria verificou a ausência do menino no grupo em
que devia encontrar-se, perturbou-se. Não foi simplesmente a
inquietude de uma mãe que se põe em busca de seu filho, temerosa
de um acidente; foi o temor de que as palavras do velho Simeão
começassem já a se verificar. A ausência de um filho em quem
se podia confiar plenamente, parecia explicar-se por motivos supe­
riores; não foi por prazer nem por distração que a perda se
verificou, porque não era essa a maneira de agir de Jesus. A Vir­
gem apercebia-se de que o incidente devia explicar-se por uma
disposição especial da Providência divina; mas a sua ansiedade
não se tranqüilizou com isso, porque sabia que a Providência a
conduzia para uma grande . dor.
Quando reencontrou o seu filho no templo, depois de dois
dias de angustiosa procura, a explicação que lhe foi dada continha
o germe de novas ansiedades. Longe de testemunhar sentimento
pela aflição causada aos pais, Jesus j ustificou-a por uma razão
de princípio. O incidente, portanto, fôra deliberadamente querido
por êle. Maria compreendeu-o perfeitamente quando o viu no
meio dos doutôres. Admirou a precocidade de sua inteligência e
regozijou-se de contemplá-lo por alguns instantes naquele círculo
de sábios; Jesus achava-se ali perfeitamente à vontade. Por isso
a resposta que deu a sua mãe devia ter o sentido profundo que lhe
teria dado um doutor: "Não sabíeis que devo ocupar-me da casa
de meu Pai ? " (Lc. 2, 49) .
Maria não compreendeu o sentido da frase, mas adivinhou que
essas palavras esclareCiam a necessidade de seu sacrifício. Jesus

232
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

revelava por elas o motivo por que se havia subtraído à sua auto­
ridade maternal. Meditando-as, a Virgem colocou-as em relação
com a apresentação do menino no templo. Notou que no mesmo
lugar onde fizera outrora a sua oferenda, o seu filho a cumpria.
Não havia ela levado Jesus à casa de seu Pai e não havia reconhe­
cido o direito soberano do Pai sôbre a pessoa de seu filho ?
Instruída por Simeão, aceitara as do:res que o seu gesto lhe atrairia.
Aceitara portanto de antemão o penoso incidente da perda de
Jesus no templo.
O incidente era principalmente rico de lições para o futuro.
Maria apercebeu-se bem depressa de que se tratava de um episódio
simbólico, que anunciava outro bem mais importante: significava
que Jesus certamente se separaria de sua mãe, infligindo-lhe uma
profunda tristeza, a fim de voltar para o Pai. Sem discernir com
precisão o alcance dêsse retôrno à casa do Pai, Maria compreendia
de maneira agudíssima o quanto a sua união com Jesus, selada pela
intimidade da vida cotidiana em comum, tinha um caráter provi­
sório. O filho, segundo a sua própria declaração, não habitava
lá como em sua verdadeira casa; tinha outra habitação, mais autên­
tica, definitiva. A Virgem devia pois olhar para o seu próprio
filho como para um hóspede, um estrangeiro. As outras mães
experimentam sofrimento análogo quando seus filhos, uma vez
crescidos, cessam de considerar o lar familiar como o seu meio
favorito, desprendem-se progressivamente dêle e pensam em fundar
o seu próprio lar. No caso do lar de Nazaré, a intenção de
Jesus era mais decidida e mais conscientemente querida, manifes­
tada também de maneira mais impiedosa, apesar do afeto que
continuava a uni-lo à sua mãe. A desagregação do ninho familiar
começara e iria prosseguir até o desfêcho trágico.
Do mesmo modo, sob a obediência que continuava a praticar
o jovem para com os pais, Maria sabia doravante que existia outro
sentimento mais fundamental, pelo qual Jesus se submetia antes
de tudo ao Pai celeste; sabia que um dia se subtrairia radicalmente
à sua mãe para cumprir a vontade divina. Por isso tôda a alegria
que Maria experimentava ao ver a submissão exemplar de Jesus
para com ela, acompanhava-se da ansiedade de vê-lo escapar-lhe
completamente.

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Na paz de Nazaré, que parecia serena e ideal, escondia-se


pois a dor de um drama. Maria tinha a impressão de já have.t
perdido o seu filho. Em sua união preparava-se para a separação.
A fôrça da Virgem em suportar calmamente essa angústia crescente
resultava de sua confiança em Deus. No gesto de Jesus, que lhe
havia infligido cientemente a dor de perdê-lo por três dias, reco­
nhecia o plano de Deus. Não teve ela mesma de infligir ciente­
mente outrora a José uma dura provação por seu silêncio abso­
luto? Fizera-o para se conformar com os desígnios da Providência.
Jesus agia do mesmo modo com ela. Por isso só lhe restava
abandonar-se ao beneplácito divino, levando corajosamente a
sua pena.

A provação suprema

A vida pública impôs à Virgem um transtôrno em sua exis­


tência. Os trinta anos que havia passado na companhia de seu
filho haviam-na acostumado à sua presença contínua. A sua vida
organizara-se em função dessa presença, e o seu afeto concentrava-se
nela. A partida de Cristo para a sua missão apostólica criou um
vazio repentino na vida de Maria: de um dia para o outro ela
foi privada do que constituía: o seu sustentáculo, o clima de sua
existência.
Sem dúvida em várias ocasiões reviu Jesus. Mas êle não
deixou de acentuar a sua separação. "Mulher", disse-lhe em Caná,
para sublinhar a distância que o seu ministério público metia entre
ela e êle. A alegria de se reencontrar perto de seu filho turvava-se
com a pena de verificar que a antiga intimidade havia desaparecido.
Eis porque a Virgem sentiu cruelmente a solidão a que foi
reduzida. Estava cercada de parentes, e habitava talvez com os
primos de Jesus. Mas nenhum dêles podia encher o vazio deixado
por seu filho. Tinha mesmo, sobretudo no comêço da vida pú­
blica, alguma dificuldade em acreditar na sua ausência. Acreditava
vê-lo a cada instante, tão grande era a fôrça do hábito; e a cada
vez sofria a decepção dolorosa de j á não vê-lo perto de si.

2J4
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

Antigamente, havia conhecido a solidão, o isolamento moral.


Por sua resolução de virgindade, condenara-se a viver num abso­
luto retiro interior. E o fizera com todo o fervor de sua juven­
tude. Agora à solidão virginal sucedia uma solidão maternal, mais
penosa porque supunha uma amputação. Maria havia saboreado a
doçura de viver com Jesus; a sociedade dessa criança, dêsse j ovem
único, havia constituído as delícias de sua existência. Como pode­
ria esquecer um só instante a sua maneira tão encantadora de
falar e de agir, os seus testemunhos de comovedora afeição ?
Longas horas haviam escoado no silêncio de um profundo acôrdo
entre suas almas ! As suas relações haviam sido um ideal de bom
entendimento, sem que jamais pudesse surgir nelas o menor dissen­
timento. Maria não podia imaginar existência mais bela: a sua
união com Jesus havia ultrapassado realmente tudo o que uma
mãe humana poderia sonhar. Eis que êsse belo regime de vida
tinha-se acabado; a Virgem sofria tanto mais o afastamento de
Jesus na situação presente, quanto mais profunda e perfeita havia
sido a sua intimidade com êle.
A separação inaugurada pela vida pública levava Maria à pro­
vação suprema. A Virgem teve uma consciência sempre mais
nítida disso, porque observando o crescimento da oposição ao
Salvador, pensava que devia temer o pior. Só nos últimos dias da
vida de Jesus os discípulos notaram o perigo imediato que corria
o seu Mestre. Além disso tinham uma confiança tão grande em
seu poder e em seu triunfo que não se resignavam a admitir as
predtções de sua morte. Bem antes dêles, Maria havia percebido
o perigo, e desde as primeiras manifestações de hostilidade, pres­
sentira a possibilidade de um fim trágico. Seguia, com efeito, a
marcha dos acontecimentos na perspectiva do gládio de dor anun­
ciado por Simeão. Ao contrário dos discípulos, não foi coduzida
ao Calvário sem ter consciência disso . Via aproximar-se a crise
final. As profecias do Mestre sôbre a sua morte, das quais ouviu
alguma coisa, dissipava as últimas dúvidas que podiam restar-lhe
no coração sôbre a possibilidade de o Senhor escapar à vingança
dos inimigos . Dentre o grupo daqueles que aderiram a Cristo
pela fé, Maria foi a única a perceber claramente a grande provação
que ia cair sôbre o Salvador. A sua clarividência aumentava-lhe

235
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

o sofrimento: nos progressos da inimizade para com Jesus, pres­


sentia uma morte que se tornava inevitável.
Quando Jesus quis voltar da Galiléia para a Judéia a fim de
ressuscitar Lázaro, seus discípulos quiseram dissuadi-lo de fazer
essa viagem, em razão das ameaças de morte proferidas pelos adver­
sários. Se Maria se encontrou em Jerusalém para a festa da
Páscoa, não foi simplesmente por desejo de vir à cidade santa,
mas também para encontrar o filho, que sabia em perigo. Via
que nada poderia fazer para protegê-lo, mas o seu instinto ma­
terno impelia-a a ir para junto de seu filho no momento da crise.
E havia mais do que um instinto: havia uma vontade de solida­
riedade total com Jesus nos sofrimentos que pudessem atingi-lo.
Foi essa vontade que levou Maria ao pé da cruz. Talvez
alguns parentes ou conhecidos tenham tentado desviar a Virgem
do cruel espetáculo, porque por simpatia para com ela gostariam de
lhe poupar essa dor. Mas nada poderia impedir a mãe de seguir
o filho até o fim. Mais do que nunca ela compreendia que se
tornara mãe para essa hora terrível. , Tôda a sua fôrça de alma
concentrou-se para enfrentar o acontecimento. Pouco lhe impor­
tava enfrentar os inimi�os, expor-se aos seus olhares zombeteiros,
tomar sôbre si a ignommia do suplício. Mas custava-lhe enorme­
mente ver o seu filho sofrer, ficar ao lado dêle para ouvir-lhe
os suspiros e assistir-lhe a agonia. Tôdas as dores físicas de Jesus
repercutiam no coração da Virgem como outros tantos sofrimentos
morais. Ela que conhecia a fundo o seu filho percebia a inten­
sidade de sua pena. Só ela podia medir o abismo de sua dor e
sofrer em diapasão com êle. Era precisamente isso o que queria:
fazer eco a tôdas as torturas dêsse corpo martirizado e dessa
alma desolada, recolhê-las no coração e compartilhar delas.
Longe de fugir ao gládio de dor, Maria expunha-se a êle
plenamente. Sem dúvida pôde, na véspera, orar da mesma maneira
que Jesus, rogar ao Pai celeste que afastasse, se fôsse possível,
aquêle cálice, afirmando-lhe ao mesmo tempo uma submissão total
aos seus desígnios. Mas hoje -que Cristo estava mergulhado no
sofrimento, não queria que o gládio poupasse a sua alma maternal.
Desej ava associar-se o mais completamente -ryossível ao sacrifício
do filho.

236
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrtmento à gl6ria

Essa vontade unia a Virgem ao Salvador de modo todo espe­


cial. Até então, o sofrimento fôra predito a Maria pela vontade
do Pai; ela fôra introduzida mais ativamente em sua vida pela
vontade de Jesus no momento do episódio simbólico ocorrido
vinte anos antes, e depois no instante de sua partida para a vida
pública. No Calvário, a vontade de Maria vinha juntar-se espon­
tâneamente à de Cristo e à do Pai eterno. A Virgem, que
poderia conservar-se longe da cruz, e esconder-se para não ser
testemunha do suplício do filho, oferecia-se voluntàriamente à
dor, aproximando-se do sacrificado. Por isso o gládio de dor que
transpassava a alma de Maria unia-a intimamtnte à alma de Jesus.
Cristo quis êsse sacrifício final para se conformar com a vontade
paterna; só êle, com efeito, era senhor de sua vida, e não os seus
carrascos (]o. OI 1 8 ) . Maria punha-se inteiramente de acôrdo
com essa vontade e aceitava deliberadamente a tortura de seu
coração materno.
Poder-se-ia objetar que se tratava de um sofrimento inútil.
Por que ficar ao lado de Jesus já que a sua presença não podia
salvá-lo da morte ? Por que tomar sôbre si uma dor que não
podia aliviar a de seu filho ? Não era provocar dois suplícios
em lugar de um ? Mas a Virgem acreditava na utilidade de sua
oferenda dolorosa. Sabia que Cristo sofria para obter a redenção
da humanidade, e esperava que o seu holocausto haveria de ter
uma maravilhosa eficácia. Por isso unia-se à intenção redentora
de Jesus, dedicando o seu próprio sacrifício maternal à felicidade
dos homens. Essa sêde de atrair os homens à fonte da vida, que
o Salvador experimentava no mais alto grau em seus tormentos,
Maria partilhava-a com êle. De bom grado teria clamado também
que tinha sêde, porque ardia no desejo de levar almas ao seu filho.
Para atingir êsse fim, estava pronta a todos os sacrifícios; oferecia
generosamente a sua dor para que produzisse êsse fruto.
A vista dos inimigos do Salvador reforçava essa aspiração de
Maria. Revelavam tudo o que havia de funesto na influência do
pecado sôbre suas almas; estavam no Gól$.ota como vítimas de
suas ambições e más paixões. O exemplo deles mostrava o quanto
era necessário a obra da salvação; a face dolorosa de Jesus dava
testemunho do preço que era preciso pagar para salvá-los de sua

2J7
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

miséria. A Virgem nada queria retirar do sacrifício que Deus


lhe pedia para colaborar na libertação das almas escravizadas a
Satanás. Por essas infelizes, consumava de boa mente o seu
sacrifício.

O fim

O sofrimento da Virgem não cessou com o de Cristo. Dep ois


que Jesus declarou: "tudo está consumado ! " (lo. 1 9, 30) e
expirou, o sacrifício de Maria não terminou. Junto ao
corpo exangue de seu filho, sua dor teve livre curso. Já não
era retida pelo cuidado do ocultar a sua pena.
A morte de seu filho provocou uma recrudescência de sua
tristeza maternal. Maria não podia despregar os olhos daquela
fisionomia que tantas vêzes e durante tantos anos havia contem­
plado embevecida. Quantas recordações felizes e serenas evocava
aquêle rosto! Mas a face de Jesus estava imóvel e desfigurada.
Não é necessário descrever a mãe das dores assistindo ao golpe
da lança, e em seguida recebendo nos braços o seu filho inani­
mado. A imagem, ilustrada por tantos artistas, fala por si-mesma.
Põe em relêvo a beleza incomparável da alma da Virgem e cons­
titui para os cristãos um objeto de inesgotável contemplação.
Entretanto, não convém ver simplesmente nessa imagem o símbolo
comovente da dor suprema; a Virgem continua a ser, antes de
tudo, aquela que oferece o seu sofrimento, que apresenta o seu
filho morto ao Pai do céu com uma alma desejosa da salvação
da humanidade. É o símbolo da oferenda generosa, heróica
e fecunda.
No momento em que a pedra foi colocada para fechar o
sepulcro, Maria viu-se sozinha. Todavia, na imensidade de seu
sofrimento brilhava um raio de alegria: a alegria de sua nova
maternidade conquistada ao pé da cruz. O seu coração doloroso
sentia-se penetrado de uma afeição inteiramente nova por São
João, assim como pelos discípulos inumeráveis que haveriam de
ser atraídos a Cristo e se tornariam filhos seus. E êsse afeto
era uma felicidade. Antes da hora da ressurreição, quando res-

2!18
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

surgiria o entusiasmo, a dor começava a transformar-se em alegria


de amor desmesuradamente vasto.
Mãe das dores, Maria não cessaria de sê-lo aos olhos dos
cristãos que a veneram e gostam de recordar tudo o que ela
sofreu por êles. A silhueta da Virgem permanecia inseparavel da
cruz de Cristo. E a sua presença seria assim unida a cruz de
cada cristão. Maria continuaria a representar o ideal da união
mais íntima com o Crucificado, e animaria os discípulos de Jesus
no caminho dessa união, inspirar-lhes-ia o desejo de oferecer de
tôda a sua alma as provações e sacrifícios de sua existência pela
salvação dos homens. Àqueles que fôssem tentados de se lastimar,
de acusar de crueldade a Deus, mostraria para sempre o exemplo
da serenidade confiante em meio ao tormento, pela aceitação total
da divina vontade. Seria para todos um estimulante a permanecer
de pé até ao fim. Estabelecida no Calvário mãe do sofrimento
dos cristãos, Maria se tornaria igualmente, ao receber Cristo res­
suscitado, mãe de sua alegria.

2J9
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
'
CAPITULO VII

CORAÇÃO G
LORIOS O

O acolhimento da nova aleg1'ia

Acolher a ale$ria não é coisa fácil. Dir-se-ia, à primeira


vista, que é mais facil do que acolher a dor. Não parece evidente
que o homem, que oferece uma resistência instintiva ao sofrimento,
nada tem a opor à felicidade que lhe apresentam, nem faz esfôrço
algum para recebê-la ? O acolhimento da alegria far-se-ia, ,Pois,
muito mais espontâneamente. Na realidade, o problema não e tão
simples como parece. Se se tratasse unicamente do prazer, de uma
emoção agradavel e passageira, poder-se-ia dizer que o homem o
aceita muito mais fàcilmente do que a dor. Mas queremos falar
da alegria verdadeira e profunda, que abrange todo o ser e satis­
faz as suas aspirações mais íntimas; queremos falar daquela alegria
que eleva a alma acima dos horizontes terrenos e a orienta para
o �lém. Esta alegria é colocada por Deus à disposição dos
homens, mas não penetra tão fàcilmente nêles.
Prova-o a experiência. Muitas pessoas não chegam a acolher
o sofrimento, porque tremem diante do sacrifício, ou porque s6
aceitam a dor passivamente, à maneira de uma fatalidade impos­
sível de evitar; só um pequeno número consegue recebê-lo ple­
namente como um dom divino, e colaborar com êle, transfor­
mando-o numa oferenda de si. Mas muitas pessoas não con­
seguem do mesmo modo acolher a alegria que lhes transformaria
a alma; preferem saciar-se de alguns prazeres terrestres, que os
fecham a desejos mais nobres, e quando experimentam o vazio ou
o desgôsto dessas satisfações, deixam-se arrastar pelo pêso de uma

241
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

tristeza excessiva. As decepções sofridas e o fracasso de suas


ambições fazem-nas professar um pessimismo, que se julga aliás
realista, porque se prende a dados visíveis e sensíveis. Quem
dirá das desilusões daqueles que vivem superficialmente, e dos
desesperos secretos dos que vivem em profundeza? Por isso, ao
mesmo tempo que se nota na humanidade uma sêde insaciável
de felicidade, observa-se nela uma desconfiança com respeito a
uma felicidade julgada impossível,' uma timidez que teme acolher
o que poderia ser uma nova decepção.
Quando a alegria divina é proposta aos homens, deve vencer
primeiramente essa timidez ou repugnância. Vivendo entre nós,
Cristo quis familiarizar-nos com essa alegria. Mas no momento
solene em que ressuscitou dentre os mortos e trouxe essa alegria
ao mundo, onde se encontravam as ahnas capazes de acolher
plenamente êsse dom ? Da parte do Salvador, o dom era sem
limites, uma alegria superabundante que bastaria para encher todos
os destinos humanos. Mas essa alegria arriscava provocar tanto
maior ceticismo quanto mais surpreendente e magnífica se mos­
trava. Ela não teve ação sôbre os inimigos de Jesus; e mais tarde,
quando São Paulo, em seu discurso aos sábios de Atenas, falou
da ressurreição de Cristo, os seus ouvintes puseram têrmo a essa
mensagem com zombarias (Atos 1 7, 3 1-3 3 ) . Nem mesmo os
discípulos puderam convencer-se fàcilmente: quando o Senhor
lhes aparecia mostrando-lhes as suas mãos e pés, hesitavam em
acreditar, tão belo lhes parecia êsse milagre: "Permaneciam incré­
dulos, transportados como estavam de alegria" (Lc. 24, 41 ) : A
alegria era demasiado forte e repentina para que a admitissem
sem oposição.
Compreende-se desde logo que antes de difundir a alegria
da salvação num universo em que ela haveria de provocar dúvidas
e resistências, Deus tenha querido assegurar-lhe um acolhimento
inicial num coração humano que representasse a humanidade em
seu estado ideal, um acolhimento que fôsse integral e perfeito.
Foi esta a missão do coração de Maria. Só a Virgem era capaz
de receber a imensa alegria de que Cristo ressuscitado era porta­
dor, e de nada perder dessa alegria. Ela vivera, na mais estreita
solidariedade com Jesus, o drama redentor; preparada de longa

242
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à gl6ria

data para a provação, abrira largamente a alma ao sofrimento, e


oferecera o seu coração materno ao gládio de dor. Tendo aco­
lhido plenamente o sacrifício, estava disposta para acolher ple­
namente a alegria que seria o seu fruto. Pela Íntima renúncia
que aceitara, consentindo na separação de seu filho, cavara no
fundo de si-mesma um vazio que ansiava por ser cumulado e
que lhe dilatara as capacidades da alma. O apêlo de todo o
seu ser a Cristo, tornara-se mais vivo e mais radical. A dor
engrandecera-lhe o coração, e o havia preparado para urna efusão
tanto mais entusiasta quanto mais rigorosa fôra a desolação.
É mister precisar que o sofrimento conduziu Maria à alegria,
porque êsse sofrimento fôra acolhido na confiança e no amor.
A Virgem jamais consentiu em ver um fracasso no suplício do
Calvário; se se tivesse resignado a tirar do acontecimento urna
desilusão ou urna decepção, teria fechado o coração ao invés de
abri-lo e teria de reparar a sua atitude no momento do triunfo
de Jesus. Ao contrário, conservara e aumentara a sua fé, aban­
donando-se mais radicalmente ao mistério de seu filho, e dando-lhe
tanto maior confiança quanto mais incompreensível parecia.
Tinha-se preparado com isso para participar da consumação glo­
riosa do mistério.
A fidelidade de seu amor esperava ser satisfeita. Unindo-se
a Cristo sofredor e agonizante, Maria fundava a sua existência
unicamente sôbre essa união, e aceitava perder tudo para partilhar
de sua sorte. Proclamava dêsse modo que nisso e so nisso estaria
a sua alegria. Ora, Deus não se esconde no domínio da fidelidade.
Vemos pelas narrações evangélicas que o Salvador ressuscitado
aparece primeiramente às mulheres e a Maria Madelena, querendo
recompensar com isso a fidelidade tocante que lhe haviam teste­
munhado ao pé da cruz. Com maior razão devia aparecer em
primeiro lugar à sua mãe, que dera a todos o exemplo da soli­
dariedade no sacrifício . Já que Maria, com maior fervor do que
as outras, pusera tôdas as suas esperanças na união com êle, devia
Jesu� reformar o quanto antes essa união na alegria.
Enfim, a Virgem estava destinada a receber em primeiro lugar
o Salvador triunfante, não somente porque se achava em dispo-

24J
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

stçoes ideais para êsse acolhimento, como também a função que


desempenhara até ao presente na economia da salvação designa­
va-a para essa tarefa. O papel único que havia desempenhado na
Encarnação, recebendo em seu seio o Filho de Deus, e depois
na Redenção, recolhendo plenamente no coração o eco dos sofri­
mentos de Cristo para acrescentar-lhes o seu próprio sacrifício,
devia ser retomado no momento da Ressurreição, ao receber o
Messias para uma nova vinda mais gloriosa. Como outrora em
Nazaré, devia acolher o Salvador em nome da humanidade. A
aparição de Jesus à sua mãe seria portanto mais do que um
testemunho de afeto filial; revestiria uma significação oficial: por
Maria os homens, ou antes a Igreja, receberiam aquêle que lhes
trazia a alegria da salvação. O coração da Virgem tinha capaci­
dade para acolher em nome de todos essa plenitude de alegria, e
ao mesmo tempo aquêle que a dava.

Misteriosa e gloriosa reunião

A reunião de Cristo ressuscitado com a sua mãe, que simbo­


lizava e consagrava o acolhimento da humanidade ao Salvador,
fêz-se todavia de uma maneira íntima, sem nenhuma testemunha.
É uma das razões pelas quais os evangelistas não dizem uma
só palavra a respeito. Deixam-nos supor, pela ausência de Maria
entre as mulheres que se dirigiam ao túmulo ao romper da aurora,
que a Virgem já não tinha necessidade de procurar o corpo
de seu filho no sepulcro, mas não nos contam como Jesus se
apresentou a ela. É que a aparição a Maria foi de um gênero a
parte, fora da série das diversas aparições dêsse primeiro dia.
Foi um acontecimento ao mesmo tempo simples e demasiado
profundo para constituir objeto de · uma descrição. Tratava-se
de um verdadeiro mistério que, como antigamente na Anunciação,
teve por únicos espectadores Deus e seus anjos. Caberia à contem­
plação cristã, mais tarde, redescobri-lo pelas intuições do coração
mais ainda do que pelos dados da inteligência.
Como no decorrer de suas aparições triunfantes deu prova de
grande delicadeza no modo de revelar a sua presença, não nos

244
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
· Do sofrimento à glória

enganar�mos afirmando que o Salvador só se aproximou de sua mãe


com infinitas precauções. Evitou sacudir, por uma aparição
repentina, a alma dolorida que fôra esmagada por tão dura pro­
vação. Queria que a sua alegria penetrasse naquele coração ferido,
fazendo-se preceder por uma atmosfera de serenidade e de paz.
Sem dúvida inspirou a Maria uma lembrança mais viva da pre­
dição que havia feito, segundo a qual o Filho do Homem devia
ressuscitar ao terceiro dia. A Virgem havia conservado esta
palavra no coração; não podia compreender exatamente em que
consistia essa ressurreição, mas devia ser indubitàvelmente uma
vitória sôbre a morte. Ao descobrir os primeiros clarões da aurora,
ela pensou que essa vitória devia realizar-se naquele mesmo dia,
e renovou então o entusiasmo de sua fé, daquela fé que lhe fôra
pedida antes da Encarnação, em seguida antes do primeiro milagre,
e agora, antes dessa misteriosa ressurreição. A profecia de Crtsto
ia realizar-se, e essa certeza encheu pouco a pouco a alma de
Maria de um feliz pressentimento. A sua fé era tão forte que via
por assim dizer, com os olhos da imaginação, o que poderia
significar esta predição de Jesus: "O Filho do Homem ressusci­
tará ao terceiro dia" ( 1 ) . Viu-o erguer-se diante dela, como
antigamente na obscuridade da casa de Nazaré. Não passava
de um sonho, mas de um sonho dulcíssimo; esquecia já a face
ferida do Crucificado para imaginar o seu rosto intato. Depois,
num instante, essa representação produzida por sua fé tornou-se
realidade. Jesus estava ali, diante de seus olhos.
A expectativa de Maria, fundada na palavra do Mestre, amor­
teceu o choque do encontro. Mas a surprêsa não foi menos
maravilhosa, e a Virgem extasiava-se de poder ver e tocar o seu
filho. Reencontrava aquêle que havia perdido, e o reencontrava
revestido de um esplendor desconhecido. A realidade ultrapassava
todos os sonhos. Nessa face que fôra descolorida por uma palidez
mortal, transparecia agora uma vida superior, que lhe animava
todos os traços com a luz de um outro mundo. A fisionomia, embo­
ra pc:rmanecesse familiar, tinha-se tornado celeste, e Maria, em seu
arroubamento, sentia que para possuir plenamente o seu filho,

(1) Me. 8,81 ; 9,81 ; 10,U; Lc. 18,88.

245
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

ser-lhe-ia preciso atravessar o limiar da morte após êle. Era já o


céu que lhe entrava no coração.
Na efusão dêsses dois sêres tão intimamente unidos um ao
outro, tudo foi silêncio e discrição. Não era necessário que
Cristo pronunciasse o nome de sua mãe, nem a saudasse anun­
ciando-lhe a felicidade que lhe trazia. Para que declarar-lhe que
então, mais ainda do que no momento da Anunciação, ela era çheia
de graça? Era êle-mesmo, a graça em pessoa, que vinha cumular
Maria, fazer dela uma mãe e uma rainha gloriosa. Tudo se passava
em ato antes que em palavras. Cristo abandonou-se sem reserva
ao amplexo de sua mãe, e ela se deixou invadir completamente
por sua presença e sua irradiação. Ela se transformava em alegria
ao contato de seu filho.
Em seu amor a Jesus, Maria jamais cedera à tentação de
querer impor-se a êle, nem de dominar a sua personalidade. Neste
instante tampouco procurou apoderar-se dêle para assegurar-se de
que não mais lhe escaparia, O impulso de seu afeto acompanha­
va-se, mais vivamente do que outrora, de um movimento profundo
de adoração, porque reconhecia nêle a majestade soberana do
Senhor. Sentia-se tão pequena no amplexo do Messias triunfante !
E comprazia-se em se abismar diante dessa grandeza. Na embria­
guez do encontro, não quis reter o Salvador, como tentara fazê-lo
Maria Madalena: desejava simplesmente recebê-lo. Fêz-se tôda
acolhimento, modêlo de docilidade, porque sendo a mãe, não ces­
sava : de se comportar como serva e discípula do Mestre. Longe
de se exaltar na alegria do triunfo, apagou-se ainda mais diante do
seu filho e abandonou-se ao seu poder. Eis porque a glória da
ressurreição podia penetrar-lhe até ao fundo da alma.
Para Maria, essa aparição significava uma nova era. Com
êsse retôrno de Cristo à vida, o universo mudara de face. A
Virgem compreendia que a missão do Salvador estava cumprida,
e que a causa pela qual tanto combatera estava ganha. Era tam­
bém por essa causa que ela sacrificara, e regozijava-se agora com o
resultado obtido, isto é, com a salvação de tôda a humanidade.
Mais ainda que o seu filho, ela contemplava o Redentor que dava
a salvação aos homens. Contemplava nesse rosto irradiante a tarefa
plenamente realizada. Era antes de tudo o triunfo de uma obra.

246
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

Por isso, antes de se comprazer simplesmente em sua alegria de


mãe, Maria tomava em seu coração a alegria de todos os homens,
cujo destino estava doravante assegurado. Queria partilhar a sua
felicidade com a imensa família humana. Não se limitava por­
tanto a olhar para Cristo, mas, com êle, dirigia o seu olhar para
horizontes mais vastos, para um reino sem fim.
Enfrentava ousadamente o futuro. Sentia-se na posse da
alegria definitiva, que nada poderia arrancar-lhe. Tôdas as an­
gústias do passado haviam desaparecido, e, já que o Senhor havia
vencido a morte, que obstáculo poderia ainda entravar a marcha
de seus triunfos ? Os poderes do mal, que pareciam tão temíveis
no drama do Calvário, achavam-se dominados por aquêle que
julgavam haver derrotado. O que restava dos ódios e maquina­
ções dos adversários de Jesus, senão uma impotência claramente
manifestada ? A soberania do Salvador já não podia ser contes­
tada; a tristeza e o temor, cuja tirania fôra tão pesada nestes
últimos dias, deviam ceder o lugar a uma paz e a uma alegria
que não teriam fim. A Virgem sabia que a alegria da Páscoa
já não a deixaria, nem abandonaria jamais o mundo.
Quando Cristo desapareceu, Maria ficou com essa alegria.
Não recebeu nenhuma missão particular de anunciar a grande
nova, e viu nisso um sinal de que -O Salvador queria mostrar-se
imediatamente a outros. Mas meditando nesse acontecimento, e
apreciando o privilégio de ter sido a primeira a receber a visita
do Senhor ressuscitado, percebia que fôra no entanto investida
de urna nova missão; como todos os demais privilégios, êste com­
portava uma honra e um encargo. A Virgem deveria doravante
espalhar em tôrno de si aquela alegria que havia acolhido em
nome de todos. Compreendeu melhor a importância dessa missão
quando verificou que a comunidade cristã nascente, apesar do
ideal contagiante que a animava, achava-se ainda impregnada de
sentimentos demasiadamente humanos, sacudida pelo temor ou
pela pusilanimidade. Viver de maneira permanente na alegria,
mesmo quando sobrevêm as dificuldades e provações, requer uma
energia superior. Foi essa ener�a, fornecida pela graça, que
Maria pr:ocurou infundir nos disctpulos. Para ela que revia sem
cessar a face de Cristo ressuscitado tal corno lhe aparecera na

247
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

manhã da Páscoa, urna atmosfera de inquietude ou de desconten­


tamento parecia um ilogisrno, um insulto ao seu filho vitorioso;
a tristeza parecia um fracasso que refletiria sôbre o Salvador,
um desmentido ao seu triunfo. Só a alegria podia constituir o
testemunho da obra libertadora realizada por Cristo e atestar o seu
triunfo. A Vir�ern seria até ao fim a apóstola dessa felicidade.
Corno Moises, que ao descer do Sinai -trazia no rosto a luz
da visão do Todo-Poderoso, Maria levava doravante em sua alma
e em seu rosto o reflexo da aparição do Salvador glorioso. De
seus olhos e de seu sorriso, corno de todo o seu comportamento,
emanava urna alegria irresistível que se comunicava a todos os
que a freqüentavam. Por ela, a fôrça e o entusiasmo da ressur­
reição transmitiam-se aos homens.

O encontro supremo

A apari�ão de Cristo ressuscitado foi o prelúdio de outro


encontro mais extasiante. O que se passou na sombra e no segrêdo
ia renovar-se na luz do esplendor celeste. Jesus, que associara
a sua mãe ao seu triunfo, desejava fazê-la participar dessa alegria,
não mais na obscuridade da vida terrestre, mas na glória da visão
face a face.
Maria não tinha rnêdo da· morte, e não procurava evitar o
pensamento de seu derradeiro instante. Não sabia ela em que
consistiria a sua partida dêste mundo ? Nessa partida, não lhe
seria preciso sequer o esfôrço de se pôr a caminho, de ir para
o Senhor. O seu filho viria a ela; apareceria repentinamente a
seus olhos, corno fizera na aurora da Páscoa . Ela se encontraria
diante dêle de urna maneira ao mesmo tempo surpreendente e
fácil; bastar-lhe-ia deixar-se levar e contemplar. Corno poderia
temer semelhante encontro ? Aspirava a êle corno ao coroamento
de sua vida. A sua morte aparecia-lhe não corno urna descida
fatal ao túmulo, mas como o cimo de sua subida para Deus. Até
ao presente, nunca se detivera nessa subida; em breve o seu filho
a conduziria ao Pai. Atingiria dêsse modo o fim de sua existência.
Entretanto, a morte não seria isenta de sacrifícios. Porque
embora vivesse em sentimentos muito elevados, a Virgem não

248
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

havia renegado a terra, e dedicava um imenso amor a todos os


que a rodeavam. Desde a Ascensão, afeiçoara-se a êles mais do
que nunca; consagrava a sua humilde atividade em colaborar
no estabelecimento do reino de Cristo nas almas, e apaixonava-se
por tudo o que pudesse fazer conhecer e amar o seu filho.
A sua suprema consolação estava em fazer reinar o espírito de
Cristo na comunidade cristã, e atrair a ela as pessoas de fora.
A morte poria ponto final a essa atividade, separá-la-ia dos após­
tolos e de todos os sêres que lhe eram caros. Seria penoso a
Maria ter de renunciar a essa solicitude maternal, tão profunda­
mente inscrita em seu coração, e de dizer adeus àqueles que
amava. Mas abandonou-se à vontade divina, e quando teve de
consentir nessa dolorosa renúncia, fê-lo com a esperança de que
no além continuaria a sua missão de afetuosa vigilância sôbre
a Igreja. O seu coração sobreviveria, alargado e transformado,
possuindo enfim as dimensões ilimitadas de um amor que poderia
dedicar-se universalmente.
Como foi essa morte ? Muitas narrações lendárias no-la
apresentam num quadro solene, acompanhada de uma série de
prodígios. Comprazem-se em descrever uma reunião miraculosa
de todos os apóstolos, vindo dos quatro cantos do universo para
assistir aos últimos momentos da Virgem; mostram Cristo des­
cendo com os anjos a fim de levar sua mãe em cortejo para os
céus. Na realidade, nem a Escritura nem a tradição primitiva
nos conservaram algo a êsse respeito. Tal silêncio parece indicar
que Maria teve uma morte aparentemente comum, tão seme­
lhante exteriormente a qualquer outra morte que não despertava
interêsse especial em narrá-la. Não convinha que os últimos
instantes de Maria neste mundo fôssem semelhantes aos de tôda a
sua vida, impregnada da maior simplicidade ? O valor dessa morte
residia nas disposições íntimas da alma da Virgem, na oferenda
que fêz de si-mesma para o bem da Igreja, e no fervor com que
ia ao encontro de seu filho. O exemplo da Mãe de Deus teste­
munha que uma morte muito comum pode ser um ato de grande
generosidade, heróico mesmo no sacrifício de todos os afetos ter­
restres, e um impulso de puro amor para o Senhor.

249
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

Nada nos obriga a pensar que todos os apóstolos se tenham


reunido em tôrno de Maria para a despedida; talvez a sua dis­
persão tornasse semelhante reunião impossível. Mas imaginando
essa reunião, os textos apócrifos queriam exprimir urna verdade
importante: a morre da Virgem foi um acontecimento que inte­
ressava tôda a Igreja. Era a mãe de todos fiéis que passava da
terra para o céu; todos perdiam portanto urna mãe visível para
reavê-la, aliás, mais amante ainda, no invisível. Era também a
criatura ideal que terminava urna vida ideal: a oferenda perfeita
de sua morte, que imitava a oferenda de Cristo no Calvário, era
o símbolo da oferenda que a humanidade resgatada é chamada a
fazer para receber a sua parte no triunfo do Salvador. Os homens
devem com efeito unir-se ao sacrifício redentor no conjunto de
sua vida e finalmente pelo sacrifício completo da morte, que lhes
permite entregar a Deus tudo o que possuem. Foi assim que
Maria se associou por seu último ato à morte de Jesus, abando­
nando corno êle o seu espírito nas mãos do Pai.
Entretanto, a morte de Maria ocorreu numa atmosfera bem
diferente da de seu filho: o fim de Jesus fôra trágico, enquanto
que a Virgem adormeceu tranqüilamente, num doce silêncio.
Maria não apresentava um rosto lívido e desfeito, corno o Cruci­
ficado; a sua face irradiava felicidade. Era urna morte alegre.
Embora experimentassem urna· viva dor, o apóstolo João e os
demais que estiveram presentes devem ter-se impressionado com
aquela alegria que emanava dos traços de Maria, e que se mos­
trava ardente em seu último olhar iluminado já pelo céu. A dor
de seus corações era assim aliviada, e vendo Maria que parecia
desmaiar numa felicidade superior, sentiam-se arrastados nessa mis­
teriosa alegria. O dom final de Maria aos que a cercavam, foi,
ainda um dom de alegria.
A diferença de tonalidade que se pode discernir entre a
morte de Cristo e a de Maria explica-se por urna razão profunda.
A expiração de Jesus no Calvário teve um aspecto trágico porque
o drama redent9r não havia ainda terminado. Era preciso que
a tragédia terminasse pelo triunfo de Cristo, cuja glória se ma­
nifestaria na ressurreição e na ascensão. A morte de Maria
desenrolou-se numa atmosfera de alegria, porque se beneficiava

250
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

dêsse triunfo de Cristo glorioso. Só imitava a morte de Jesus par­


ticipando de sua passagem à glória. A morte dos discípulos de
Cristo deve ser uma morte alegre, porque recebe do Salvador ao
mesmo tempo a generosidade no sacrifício e a felicidade de sua
vitória. A Virgem representava o modêlo perfeito da alma cristã,
que, possuindo j á a alegria da salvação, abre-se à plena expansão
dessa alegria.
O céu em festa acolheu essa morte, aparentemente tão pobre
e simples. Tôda a Igreja triunfante tomou parte no aconteci­
mento. Na terra, êsse esplendor não apareceu; porque não se dirá,
como os apócrifos, que Jesus, cercado de anjos, tenha aparecido
visivelmente a Maria. Mas no invisível, como Cristo não teria
ido buscar sua mãe, e como o céu inteiro não se teria associado
a êle ? Não houve, como na Anunciação, o papel intermediário
de um anjo para pedir à Virgem o seu consentimento; o apêlo
veio do Salvador em pessoa, que fêz ouvir à sua mãe uma voz
familiar e recolheu o seu último "fiat". Jesus abriu o seu coração
divino para fazer repousar aí aquela que o havia acolhido outrora
no tempo de sua Encarnação. Deu-lhe centuplicadamente o re­
pouso e a hospitalidade que ela havia recebido. Maria sentiu-se
mergulhada no abismo infinito do amor daquele que se procla­
mava para sempre seu filho. Nessa intimidade, reconheceu com
arroubamento o Espírito Santo, que lhe oferecera a sua aliança
e fôra o hóspede de sua alma; e encontrou-se em face do Pai,
para o qual sentia-se atraído o seu coração filial. Tôdas as suas
aspirações eram satisfeitas. Logo depois, o Senhor tomou-lhe o
corpo e o reuniu à alma, para que Maria fôsse totalmente pro­
priedade da Santíssima Trindade, e pudesse comungar de todo o
seu ser na felicidade de Deus.

O último Magnificat

Em sua entrada na glória celeste, a primeira reação da Virgem


foi um impulso de gratidão. Inundada de felicidade, Maria entoou
à bondade divina o seu último Magnificat. A visão beatífica
permitiu-lhe agradecer a Deus com uma lucidez maior, na qual

251
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

discernia todos os benefícios recebidos dêle, nos pormenores como


no conjunto. Em Deus, com efeito, Maria descobria o plano
secreto de tôda a sua existência, e via como a sabedoria divina
havia imaginado tudo, disposto tudo e tudo realizado com infa­
lível segurança. Na terra, a Virgem achava-se freqüentemente
em face de acontecimentos que ultrapassavam a sua compreensão .
Pela oração e pela meditação, esforçava-se por decifrar êsses enig­
mas, e o curso das coisas a havia ajudado a compreender o sig­
nificado de certas frases de sua vida: na maternidade miraculosa
que lhe fôra conferida pelo Todo-Poderoso, reconhecera o sen­
tido e o têrmo de sua oferenda virginal; na vida pública qe
Jesus vira justificada a vida oculta de Nazaré com tudo Q que
comportava de surprêsas; pela ressurreição do Salvador, compre­
endera a terrível aventura da Paixão, que a havia provado tão
cruelmente. Penetrara portanto sempre melhor o desenrolamento
providencial do drama redentor. Todavia, muitos aspectos de
sua existência haviam-lhe permanecido impenetráveis. Impotente
para explicar a sua razão de ser, ela se abandonava simplesmente,
com uma confiança cega, ao Senhor de tôdas as coisas.
Ora, no céu, a contemplação de Deus mostrava-lhe os mo­
tivos ocultos de todos os acontecimentos. Maria ficou impres­
sionada ao verificar a perfeita . unidade de sua vida, conduzida
pelo Senhor até em suas menores particularidades. Nada havja
ficado ao azar das circunstâncias. Podia acompanhar a solicitude
do Pai celeste, presente a cada instante de sua vida, dispondo
tudo para o melhor. Tôdas as circunstâncias, mesmo aquelas que
poderiam parecer mais estranhos e mais indiferentes, haviam con­
corrido para um só fim: favorecer o cumprimento da missão
confiada à mãe do Messias. Os acontecimentos mais diversos,
aquêles que haviam causado embaraço ou sofrimento, tinham-se
verificado sob a conduta divina numa impressionante harmonia.
Apesar dessa lógica inflexível e admirável, não houve sequer som­
bra de mecanização em sua existência, porque Deus cuidara sempre
de respeitar a liberdade humana, adaptando cada vez às decisões
espontâneas de Maria o conjunto das condições em que ela evoluía.
Era uma obra de fidelidade no plano geral, e de elasticidade na
realização concreta.

252
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

Mais ainda do que essa sabedoria estupenda, que conseguira


conciliar as exigências da graça com as aspirações pessoais e com
tôda a trama mutável do real, Maria admirou aquêle que havia pre­
sidido a todo êsse trabalho. Enquanto que parl! olhares terrestres
uma vida parece tecida de muitas desventuras, e muitos es_eetª_c_p.Jos
suscitam horror ou desgôsto, para o olhar que a Virgem dirigia
agora à sua existência, tudo o que a havia cercado, ferido ou per­
turbado, devia interpretar-se como atenções do amor divino. De­
certo, ela fôra cercada também pelos malefícios do pecado, male­
fícios cuja responsabilidade não podia de modo algum ser atri­
buída a Deus; mas a Providência havia agido de tal maneira que
êsses malefícios se tornaram para Maria ocasiões de maior amor.
Foi assim que aos gritos de ódio proferidos contra o filho, ela
reagira por uma fidelidade mais estrita. As maldades de que
fôra vítima haviam-lhe tornado mais heróico o perdão e mais
generosa a vontade de consentir em todos os sacrifícios pela
salvação dos homens. Do mal cometido em tôrno dela, Deus
soubera tirar o melhor proveito. Tudo o que se havia apresentado
em seu caminho, fôra preparado pela bondade divina. Tudo,
mesmo a luta com as fôrças do mal e as provações da dor. Tudo
fôra um doin. O Pai celeste havia encerrado em cada um dêsses
dons a imensidade de seu amor; a Virgem via retrospectivamente
como tôda a marcha de sua vida fôra traçada por essas mãos
paternais, tão pródigas de afeição.
O que Maria notou igualmente com surprêsa reconhecida, foi
a fecundidade de sua existência. Havia acreditado nessa fecun­
didade, porque confiava no poder e na generosidade do Pai dos
céus. Mas nunca pôde descobrir na terra a verdadeira utilidade
de tudo o que fazia. A sua vida transcorrera longe dos olhares, e
a Virgem em sua humildade julgava que tudo em sua existência
fôra muito ordinário. Ficou maravilhada ao ver os resultados a
que Deus fizera chegar uma existência tão obscura. Tôdas as
orações que Maria havia dirigido ao Senhor no segrêdo de seu
coração, e que pareciam nada ter mudado no mundo, tinham sido
na realidade atendidas pelas graças invisíveis concedidas às almas.
Todos os sacrifícios oferecidos pela extensão do reino de Deus
haviam contribuído manifestamente para essa extensão . Os me-

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

nores atos tiveram o seu valor e influenciaram na marcha dos


acontecimentos da salvação, porque eram inspirados pela caridade
divina. Nada fôra inútil. Deus havia dado um prolongamento
misterioso a cada ação humana, e a vida de Maria fôra muito
mais vasta e mais eficaz do que o deixava entrever o seu quadro
aparente. A Virgem admirou-se de ter obtido tão grandes frutos
por tão modestos esforços,
Por isso o último Magnificat nasceu do entusiasmo com que
Maria admirava para sempre a sabedoria divina, infinitamente
superior a tôda a estimativa humana. �le louvava a Deus pelo
fato de que as ousadias de sua fé e de sua esperança, longe de
ser frustradas, foram largamente ultrapassadas, é de que a sua
vida fôra muito mais bela do que julgara, porque o amor do
Todo-Poderoso a trabalhara sem cessar. -Dava graças ao mesmo
tempo por todos os favores concedidos por Deus à humanidade,
e pela totalidade da obra criadora e redentora, cujo desdobrar
maravilhoso compreendia.

A glória no amor

A glória celeste, que consumou na posse o amor que Maria


votava a Deus, dilatou ao máximo o que ela dedicava aos homens.
Assim como ela abraça agora na visão o Pai, o Filho e o Espírito
Santo, a Virgem enlaça numa afeição universal todos os eleitos,
dos quais se reconhece mãe. Possui também os seus corações
como êles possuem o dela, nessa pertença mútua que constitui a
comunidade do céu.
Mas essa comunidade não é ainda completa. Muitos se acham
a caminho; Maria aspira a vê-los atingir o fim e a poder par­
tilhar com êles da felicidade para que foram criados. Foi mesmo
para lhes facilitar o caminho que ela recebeu o privilégio da
Assunção. Encontra-se no céu para ajudar os que habitam na
terra; com Cristo, ocupa-se lá no alto em lhes preparar um lugar
(lo. 1 4, 2 ) . É tanto mais desejosa de comunicar a sua alegria
quanto mais a aprecia em sua plenitude. Por isso não descuida
nenhum esfôrço para assegurar o têrmo feliz de cada destino.

254
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
Do sofrimento à glória

A sua permanência ao lado de seu filho não é portanto um


simples repouso, um agradável repouso; é também um ardente
trabalho, um trabalho que já não tem os aspectos penosos das
tarefas terrestres, mas que nem por isso é menos ativo. Maria
vive conosco a nossa vida atual para guiá-la para Deus; Ela que
participou de tôda a sua alma e de tôdas as suas fôrças na reali­
zação da obra salvadora. Como poderia relaxar a sua dedi­
cação, quando tantos homens permanecem mergulhados na miséria
de sua condição de pecadores e o Reino de Deus se encontra
ainda tão afastado de seu estádio final ?. Quantos combates marcam
a existência e os progressos da Igreja, e quantos obstáculos a
ser vencidos ! Tantas almas parecem desamparadas ou ameaçadas
de perdição ! Como mãe e rainha da humanidade, Maria sente-se
responsável por todos, uma responsabilidade penetrada de sim­
patia. E age em conseqüência.
O seu estado glorioso permite-lhe cumprir mais completa­
mente a sua missão maternal. Do céu, pode fazer por todos o
que neste mundo só poderia realizar por um pequeno número:
pode consagrar a cada um em particular uma solicitude de todos
os instantes. A sua Assunção multiplicou-lhe de certo modo o
coração, tornando-o presente em tôda a parte. Na luz divina,
conhece tôdas as necessidades e vê tôdas as situações dos
homens; está informada de seus desejos e ouve as suas menores
orações. Não há um sofrimento humano que não encontre nela
o seu eco, que nãQ obtenha dela socorro e consolação. Apresenta
incessantemente a Deus o quadro das misérias do mundo para
atrair sôbre êle a divina misericórdia, e oferece-lhe as súplicas
e pedidos dos homens para obter mais pronto deferimento. A
intimidade de que goza junto à Santíssima Trindade, põe-na a
serviço de todos aquêles que devem ainda lutar e sofrer. Mais
próximo de Deus, o seu coração glorioso tornou-se por isso mesmo
mais próximo dos homens.
Nesse coração materno infinitamente alargado, proporcionado
às dimensões do universo, tôdas as tarefas da humanidade des­
per-tam o mais vivo interêsse e todas as dificuldades pessoais
encontram uma compassiva atenção. Com soberana benevolência
Maria intervém no govêmo do mundo, aplicando nisso a con�

255
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
O Coração de Maria

tribuição que Deus reservou à sua função de mãe. Procura pro­


vocar a maior extensão da caridade, a fim de que seus filhos
formem uma comunidade profundamente unida. Impele a Igreja
a progredir sem cessar na unidade e a realizar cada dia melhor
as exigências do amor fraterno. Acima de tudo, ela se esforça
por fazer triunfar a influência do Salvador sôbre as almas;
Todo o seu esfôrço se resume em estender a soberania de Cristo.
Se se pode dizer que tôdas as dores do mundo vêm ressoar no seu
coração e que por êle se difunde a alegria entre os homens, é
preciso acrescentar que essa função do coração de Maria tem o
seu princípio e o seu têrmo em Cristo. A Virgem toma os sofri­
mentos do mundo e de cada cristão para oferecê-los ao Pai,
incorporando-os no sacrifício do Calvário: é finalmente a face
torturada do Senhor que ela apresenta cada vez no céu. E
quando recolhe das mãos divinas os benefícios e as alegrias para
derramá-los sôbre a terra, é ainda a face de Cristo, amante e glo­
rioso, que deseja apresentar aos homens através de cada uma dessas
graças. Nos inumeráveis favores que comunica a cada um, só
tem um objetivo: dar sempre mais Cristo, dom no qual estão
contidos todos os outros. �te dom, é a razão de ser: inventado
pelo Criador para dar ao mundo como Salvador o Filho de Deus,
Maria consa�ra todo o seu amor e tôda a sua glória celeste em
nos abrir a esse dom e em nos. unir a Cristo.

256
http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
í N D I C E

INTRODUçÃO 7

PRIMEIRA PARTE

A C O N S A GR A Ç Ã O

Capítulo I

CoRAçÃO IMACULADO 11

Capítulo 11
CoRAçÃO VIRGINAL 33

SEGUNDA PARTE

O DESEN V O L V I M EN T O

Capitulo III
CoRAçÃO ANIMADO PELA FÉ • • • . • . . . . . . • . • . • • • . . . • . • • • • . . • • • 61

Capítulo IV
CoRAçÃO CHEIO DE ESPERANÇA . . • • • . . • . . • • . . • • . • • . . • • • . • • • • • 109

Capítulo V
CoRAçÃO ESTABELECIDO NA CARIDADE . . . . . • . • • • , • • • • • • • . • • • • • 133

I. Filha do Pai celeste . .. .... . ... .... .... ... .... .... . ... 133

11 . Espôsa do Espírito Santo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 153

D;l. Mãt do Verbo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . • . • 17S

IV. Mãe dos homens . ................. ....... ............ 196

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br
TERCEIRA PARTE

DO SOFRIMENTO A GLóRIA

Capítulo VI
CoRAçÃO DOLOROSO 219

Capítulo VII
CoRAçÃO GLORIOSO 241

http://alexandriacatolica.blogspot.com.br

Você também pode gostar