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O movimento literário cabo-verdiano surgiu com a revista 

Claridade, em 1936, e vai-se firmando,


lenta e subterraneamente, alastrando-se para fora dessa revista, envolvendo uma geração inteira.

Claridade surgiu sem o
habitual Manifesto, que
andava na moda por essa
altura, sem uma explicação
prévia, sem um programa
expresso. O principal projeto
da Geração da Claridade era o
de fincar os pés na terra -
falar da terra, do homem em
todo o seu envolvimento, da
cultura mais própria, criando,
assim, raízes com o chão, por
forma a proporcionar uma
íntima e profunda ligação de
amor firme do homem à terra
que o sustém.
Para realizar o desejo de levar
o povo a fincar os pés na terra,
os homens da Geração da
Claridade tinham,
forçosamente, que dedicar
grande parte do seu interesse
ao movimento contrário a esta
vontade - a emigração. De
facto, o tema da emigração foi
amplamente retratado na
literatura que marcou a
Geração da Claridade. Há
mesmo quem acuse os homens
desta Geração de dar
demasiada importância e
atenção a esta temática,
tornando (ao olhar exterior) a
literatura cabo-verdiana da
década de 30 quase
exclusivamente baseada na
temática do "Evasionismo".
De par com esta temática, e
talvez motivada por ela,
Claridade prende-se a temas
recorrentes como os do
terralongismo geográfico - a
terra longe, o local de fuga
para onde emigravam os
homens de Cabo
Verde: América,
principalmente; o tratamento
duplo do elemento Mar - mar
como prisão, que impede o
homem de alargar os seus
horizontes, e o mar como
evasão, que permite ao
homem novos conhecimentos,
novas experiências e,
sobretudo, possibilidades de
sobrevivência numa terra, pelo
menos, mais fértil; as
montanhas e planícies áridas e
secas - que impediam o
homem de subsistir naquela
terra tão infértil; a dimensão
telúrica da terra - onde se
revela um incomensurável
amor àquela terra, amor esse
que tanto faz sofrer na hora da
partida; a tragédia das eternas
secas das ilhas - que fustigam
a terra e a alma cabo-
verdianas, levando ao
desespero de querer partir.
A envolver todas estas
temáticas que giram à volta do
grande e marcante tema da
emigração temos, espelhadas
em todos os textos, mensagens
e condutas destes homens da
Claridade, a indesmentível e
claramente declarada fé
desmedida, religiosidade pura
deste povo que, mesmo
marcado pelas agruras daquela
terra, não deixam de esperar
que um dia tudo mude e eles
possam fincar os pés numa
terra que os sustente
plenamente.
JORGE BARBOSA

(1902-1971)

Jorge Vera-Cruz Barbosa


nasceu na Ilha de Santiago,
Cabo Verde, em 1902. Faleceu
em Cova da Piedade, Portugal,
em 1971. Foi funcionário
público. Um dos membros
mais importantes do
movimento Claridade.

Publicou: Arquipélago. São


Vicente: Cabo Verde, 1936;
Ambiente. Praia: Cabo Verde,
1941. Caderno de um Ilhéu.
Lisboa: 1956.
PRELÚDIO

Quando o descobridor chegou


à primeira ilha

Nem homens nus

Nem mulheres nuas


Espreitando

Inocentes e medrosos

Detrás da vegetação.

Nem setas venenosas vindas


do ar
Nem gritos de alarme e de
guerra

Ecoando pelos montes.

Havia somente

As aves de rapina

De garras afiadas
As aves marítimas

De vôo largo

As aves canoras

Assobiando inéditas
melodias.
E a vegetação

Cujas sementes vieram presas

Nas asas dos pássaros

Ao serem arrastados para cá

Pelas fúrias dos temporais.


Quando o descobridor chegou

E saltou da proa do escaler


varado na praia

Enterrando

O pé direito na areia molhada

E se persignou
Receoso ainda e surpreso

Pensa n´El-Rei

Nessa hora então

Nessa hora inicial

Começou a cumprir-se
Este destino ainda de todos
nós.

VOCÊ: BRASIL

Eu gosto de você, Brasil,


Porque você é parecido com a
minha terra.

Eu bem sei que você é um


mundão

E que a minha terra são

Dez ilhas perdidas no


Atlântico,
Sem nenhuma importância no
mapa.

Eu já ouvi falar de suas


cidades:

A maravilha do Rio de Janeiro,

São Paulo dinâmico,


Pernambuco, Bahia de Todos-
os-Santos.

Ao passo que as daqui


Não passam de três pequenas
cidades.

Eu sei tudo isso perfeitamente


bem,

Mas Você é parecido com a


minha terra.
E o seu povo que se parece
com o meu,

Que todos eles vieram de


escravos

Com o cruzamento depois de


lusitanos e estrangeiros.

E o seu falar português que se


parece com o nosso falar,
Ambos cheiros de um sotaque
vagaroso,

De sílabas pisadas na ponta da


língua,

De alongamentos timbrados
nos lábios

E de expressões terníssimas e
desconcertantes.
É a alma da nossa gente
humilde que reflete

A alma das sua gente simples,

Ambas cristãs e supersticiosas,

Sortindo ainda saudades


antigas

Dos sertões africanos,


Compreendendo uma poesia
natural,

Que ninguém lhes disse,

E sabendo uma filosofia sem


erudição,

Que ninguém lhes ensinou.


E gosto dos seus sambas,
Brasil, das suas batucadas.

Dos seus cateretês, das suas


todas de negros,

Caiu também no gosto da


gente de cá,

Que os canta dança e sente,

Com o mesmo entusiasmo


E com o mesmo desalinho
também…

As nossas mornas, as nossas


polcas, os nossos cantares,

Fazem lembrar as suas


músicas,

Com igual simplicidade e igual


emoção.
Você, Brasil, é parecido com a
minha terra,

As secas do Ceará são as


nossas estiagens,

Com a mesma intensidade de


dramas e renúncias.

Mas há no entanto uma


diferença:
É que os seus retirantes

Têm léguas sem conta para


fugir dos flagelos,

Ao passo que aqui nem chega


a haver os que fogem

Porque seria para se afogarem


no mar…
Nós também temos a nossa
cachaça,

O grog de cana que é bebida


rija.

Temos também os nossos


tocadores de violão

E sem eles não havia bailes de


jeito.
Conhecem na perfeição todos
os tons

E causam sucesso nas


serenatas,

Feitas de propósito para


despertar as moças

Que ficam na cama a dormir


nas noites de lua cheia.
Temos também o nosso café
da ilha do Fogo

Que é pena ser pouco,

Mas — você não fica zangado


É melhor do que o seu.

Eu gosto, de Você, Brasil.


Você é parecido com a minha
terra.

O que é é tudo e à grande

E tudo aqui é em ponto mais


pequeno…

Eu desejava ir-lhe fazer uma


visita

Mas isso é coisa impossível.


Eu gostava de ver de perto as
coisas

Espantosas que todos me


contam

De Você,

De assistir aos sambas nos


morros,
De esta cidadezinha do
interior

Que Ribeiro Couto descobriu


num dia de muita ternura,

De me deixar arrastar na Praça


Onze

Na terça-feira de Carnaval.

Eu gostava de ver de perto um


lugar no Sertão,
D de apertar a cintura de uma
cabocla — Você deixa? —

E rolar com ela um maxixe


requebrado.

Eu gostava enfim de o
conhecer de mais perto

E você veria como é que eu


sou bom camarada.
Havia então de botar uma fala

Ao poeta Manuel Bandeira

De fazer uma consulta ao Dr.


Jorge de Lima

Para ver como é que a poesia


receitava
Este meu fígado tropical
bastante cansado.

Havia de falar como Você

Com um i no si

— “si faz favor —

De trocar sempre os
pronomes para antes dos
verbos
— “mi dá um cigarro!”.

Mas tudo isso são coisas


impossíveis, — Você sabe?

Impossíveis”.
CASEBRE

Foi a estiagem

E o silêncio depois

Nem sinal de planta


Nem restos de árvore
No cenário ressequido da
planície.
O casebre apenas

De pedra solta

E uma lembrança aflitiva

O teto de palha

Levou-o
A fúria do sueste.

Sem batentes

As portas e as janelas

Ficaram escancaradas

Para aquela desolação.


Foi a estiagem que passou.

Nesses tempos

Não tem descanso

A padiola mortuária da
regedoria.
Levou primeiro

O corpo mirrado da mulher

Com o filho nu ao lado

De barriga inchada

Que se diria
Que foi de fartura que
morreu.

O homem depois

Com os olhos parados

Abertos ainda.
Tão silenciosa a tragédia das
secas nestas ilhas!

Nem gritos nem alarme

— Somente o jeito passivo


de morrer!

No quintal do casebre

Três pedras juntas


Três pedras queimadas

Que há muito não serviram.

E o arco do ferro do menino

Com a vareta ainda presa.


POEMA DO MAR

O drama do Mar,

O desassossego domar,

Sempre
Sempre

Dentro de nós!

O Mar!

Cercando

Prendendo as nossa Ilhas!


Deixando o esmalte do seu
salitre nas faces dos
pescadores,

Roncando nas areias das


nossas praias,

Batendo a sua voz de


encontro aos montes,
Baloiçando os barquinhos de
pau que vão Poe estas
costas…

O Mar!

Pondo rezas nos lábios,

Deixando nos olhos dos que


ficaram
A nostalgia resignada de
países distantes

Que chegam até nós nas


estampas das ilustrações

Nas fitas de cinema

E nesse ar de outros climas


que trazem os passageiros

Quando desembarcam para


ver a pobreza da terra!
O Mar!

A esperança na carta de longe

Que talvez não chegue mais!

O Mar!
Saudades dos velhos
marinheiros contando
histórias de tempos passados,

Histórias da baleia que uma


vez virou canoa…

De bebedeiras, de rixas, de
mulheres,

Nos portos estrangeiros…


O Mar!

Dentro de nós todos,

No canto da Morna,*

No corpo das raparigas


morenas,

Nas coxas ágeis das pretas,


No desejo da viagem que fica
em sonhos de muita gente!

Este convite de toda a hora

Que o Mar nos faz para a


evasão!

Este desespero de querer


partir
E ter que ficar!

*Morna – música dolente de


Cabo Verde.
Extraídos de

BARBOSA, Rogério Andrade.


No ritmo dos tantãs; antologia
poética dos países africanos
de língua portuguesa; Brasília:
Thesaurus, 1991. 165 p.
Página publicada em maio de
2008, com a autorização da
Thesaurus.

MANUEL LOPES

(1907-2005)
Manuel Antonio dos Santos
Lopes nasceu na Ilha de São
Vicente, Cabo Verde, em
1907. Funcionário aposentado
da Western Telegraph. Poeta,
romancista, contista e
conferencista. Elemento de
proa do movimento Claridade.
Publicou: Poemas de quem
ficou (Açores, 1949); Chuba
Braba, novelas (Lisboa, 1956);
O galo cantou na baía (uma
novela e quatro contos;
Lisboa, 1959); Os flagelados
do vento leste (romance;
Lisboa, 1959); Crioul.o e
outros poemas (Lisboa, 1964).
A GARRAFA

Que importa o caminho

Da garrafa que atirei ao mar?

Que importa o gesto que a


colheu?
Que importa a mão que a
tocou

— Se foi a criança

Ou o ladrão

Ou filósofo

Quem libertou a sua


mensagem
E a leu para si ou para os
outros.

Que se destrua contra os


recifes

Eu role no areal infindável

Ou volte às minhas mãos


Na mesma praia erma donde a
lancei

Ou jamais seja vista por olhos


humanos

Que importa?

… se só de atirá-la às
ondas vagabundas

Libertei meu destino


Da sua prisão?...

Extraídos de

BARBOSA, Rogério Andrade.


No ritmo dos tantãs; antologia
poética dos países africanos
de língua portuguesa; Brasília:
Thesaurus, 1991. 165 p.
Página publicada em maio de
2008, com a autorização da
Thesaurus.

OUTROS POEMAS
CAIS

Nunca parti deste cais

E tenho o mundo na mão!

Para mim nunca é demais


Responder sim

Cinquenta vezes a cada não.

Por cada barco que me negou

Cinquenta partem por mim

E o mar é plano e o céu azul


sempre que vou!
Mundo pequeno para quem
ficou…

SONETO À LIBERDADE
Primeiro tu virás, depois
a tarde

Com terras, mares, algas,


vento, peixes.

Trarás, no ventre, a
marca das idades

E a inquietude dos
pássaros libertos.
Virás para o enorme do
silêncio

— Flor boiando na órbita


das águas —

Tu não verás o fúnebre


das horas
Nem o canto final do sol
poente.

Primeiro tu virás, depois


a tarde

Sem desejos e amor.


Virás sozinha

Como o nome saudade.


Virás única.
Eu não terei a posse do
teu corpo

Nem me batizarei na tua


essência,

Mas tu virás primeiro e


eu morro livre.
POSTAL

Deste lado da ilha

O cais e a cidade velha

Datam de muito tempo,


Mas a cidade é um
poema

Não cresceu. É sempre a


mesma.

Todos os dias igual:


O mesmo outeiro da cruz

Desterro, fontes e fortes

Igrejas, lendas, sobrados

Estreitas ruas, mirantes

Portões, sacadas de ferro

Poetas, becos, telhados


Serestas, maledicência

Saveiros, pregões de rua

Cantaria, mal-amados

Rios (chão, templo e


canteiros)

De peixe e palafitados)

Ladeiras, moças bonitas


Recato e amor nas
janelas

Casarões azulejados.

Cidade em traje a rigor

Vestida à colonial
Meu mundo, meu porta-
jóias

Meu bem, meu cartão


postal.

Brisa de maré vazante

Sem similar no país.


Quietude pousada na
água

Caminhos feitos de
história.

Gente vem ver São Luís!


A PALAVRA

Te lavo e lavro

Palavra / pão

Polida pedra

De construção
Do quanto faço

Deste edifício

Em que elaboro

Fé e ofício,
Te esculpo e bruno

Verbo/canção

No diário labor

De artesão.

Te louvo lume
E pedra d’ara

Com que ergo o templo

Da flor mais cara

E clara: poesia

Com que reparto


Os sóis do meu dia

O suor do meu dia

O fel do meu dia

As mazelas do homem

As amargas vidas
O pão subtraído

As pagas devidas

A paz relativa

A justiça rara

A fome de todos
A morte na cara

Da criança. O aço

Que o corpo nos cava,

A fé o cansaço

Desta luta brava


A fartura a poucos

De muitos tomada

O chão proibido

A água negada
O amor que rareia e

A festa sonhada

……………………………….
Palavra larva

Semente pura

Que em mim explodes

De sons madura,

Te lavo e lavro
Verbo / canção

Te louvo lume

Poema / pão

Manhã sonhada
Meu sim/meu não.

OSVALDO ALCÂNTARA
(1907-1989)

Osvaldo Alcântara,
pseudônimo poético de
Baltazar Lopes da Silva, nasceu
na Ilha de São Nicolau, Cabo
Verde, em 1907. Advogado e
filósofo. Professor, Doutor
Honoris Causa pela
Universidade de Lisboa. Um
dos fundadores da revista
Claridade, marco da literatura
cabo-verdiana.

Publicou: Chiquinho
(romance), São Vicente, 1947;
O Dialeto crioulo de Cabo
Verde, Lisboa, 1957; Cabo
Verde visto por Gilberto
Freire, Praia, Cabo Verde,
1956; Antologia da ficção
cabo-verdiana
contemporânea, Praia, Cabo
Vrde, 1960.

A SERENATA

Vestida de gemidos de
bordão,
Lancinâncias de violino,

Na noite parada

Vem descendo a seresta.

Sumiu-se a cidade barulhenta

Inimiga das crianças e dos


poetas.
Uma voz canta
sentimentalmente um samba.

Aquele aperto de
mão
Não foi adeus!

Os cavaquinhos desmaiam de
puro sentimento,
A cidade morreu lá longe,
E a lua vem surgindo cor de
prata.

Nessa história de
amor todos são iguais,
Até o rei volta sua
palavra atrás…

O meio tom brasileiro deixa


interrogativamente a sua
nostalgia.
É hora que os
poetas escolheram
Para a procura dos
seus mundos perdidos…

Amanhã a cidade virá


novamente
Inimiga dos poetas.
Mas agora ela dorme,
Ela não sabe que os poetas
falam com Nossenhor,
Com a lua e as estrelas,
Nesta hora tão lírica…
Menina romântica, irmã
Das crianças e dos poetas…
A tua janela, florida de
esperanças,
É um mistério que a cidade
não entende.

Passa a serenata.
Mas no coração dos que
temem a primeira luz do dia
que vai chegar
Ficam os gemidos do violão e
do cavaquinho,
Vozes crioulas neste noturno
brasileiro
De Cabo Verde.

Extraídos de

BARBOSA, Rogério Andrade.


No ritmo dos tantãs; antologia
poética dos países africanos
de língua portuguesa; Brasília:
Thesaurus, 1991. 165 p.

Página publicada em maio de


2008, com a autorização da
Thesaurus.

OUTROS POEMAS
RESSACA
Venham todas as vozes, todos
os ruídos e todos os gritos
Venham os silêncios
compadecidos e também os
silêncios satisfeitos; venham
todas as coisas que não
consigo ver na superfície da
sociedade dos
homens;venham todas as
areias, lodos, fragmentos de
rocha
Que a sonda recolhe nos
oceanos navegáveis;
Venham os sermões daqueles
que não têm medo do destino
das suas palavras venha a
resposta captada por aqueles
que dispõem de aparelhos
detetores
apropriados;
Volte tudo ao ponto de
partida,
E venham as odes dos poetas,
Casem-se os poetas com a
respiração do mundo;
Venham todos de braço dado
na ronda dos pecadores,
Que as criaturas se façam
criadores
Venha tudo o que sinto que é
verdade
Além do círculo embaciado da
vidraça…
Eu estarei de mãos postas, à
espera do tesouro que me
vem na onda do mar…
A minha principal certeza é o
chão em que se amachucam
os meus joelhos doloridos,
Mas todos os que vierem me
encontrarão agitando a minha
lanterna de todas as cores
Na linha de todas as batalhas.

FILHO

Nicolau, menino, entra.


Onde estiveste, Nicolau,
Que trazes a arrastar
O teu brinquedo morto?
Nicolau, menino, entra.
Vem dizer-me onde foi que tu
estiveste
E a estrela fugiu das tuas
mãos.

Tens comigo o teu catre de


lona velha.
Deita-te, Nicolau, o fantasma
ficou lá’ longe.

Dorme sem medo


Porão, roça, medos imediatos,
Tudo ficou lá longe.

Quando acordares a jornada


será’ mais longa.
Nicolau, menino,
Onde foi que deixaste
O corpo que te conheci?
Deus há-de querer que o sono
te venha depressa
No meu catre.
MANUEL LOPES

(1907-2005)

Manuel Antonio dos Santos


Lopes nasceu na Ilha de São
Vicente, Cabo Verde, em
1907. Funcionário aposentado
da Western Telegraph. Poeta,
romancista, contista e
conferencista. Elemento de
proa do movimento Claridade.

Publicou: Poemas de quem


ficou (Açores, 1949); Chuba
Braba, novelas (Lisboa, 1956);
O galo cantou na baía (uma
novela e quatro contos;
Lisboa, 1959); Os flagelados
do vento leste (romance;
Lisboa, 1959); Crioul.o e
outros poemas (Lisboa, 1964).

A GARRAFA

Que importa o caminho


Da garrafa que atirei ao mar?

Que importa o gesto que a


colheu?

Que importa a mão que a


tocou

— Se foi a criança

Ou o ladrão
Ou filósofo

Quem libertou a sua


mensagem

E a leu para si ou para os


outros.

Que se destrua contra os


recifes
Eu role no areal infindável

Ou volte às minhas mãos

Na mesma praia erma donde a


lancei

Ou jamais seja vista por olhos


humanos

Que importa?
… se só de atirá-la às
ondas vagabundas

Libertei meu destino

Da sua prisão?...

Extraídos de
BARBOSA, Rogério Andrade.
No ritmo dos tantãs; antologia
poética dos países africanos
de língua portuguesa; Brasília:
Thesaurus, 1991. 165 p.

Página publicada em maio de


2008, com a autorização da
Thesaurus.
OUTROS POEMAS

CAIS
Nunca parti deste cais

E tenho o mundo na mão!

Para mim nunca é demais

Responder sim

Cinquenta vezes a cada não.


Por cada barco que me negou

Cinquenta partem por mim

E o mar é plano e o céu azul


sempre que vou!

Mundo pequeno para quem


ficou…
SONETO À LIBERDADE

Primeiro tu virás, depois


a tarde

Com terras, mares, algas,


vento, peixes.
Trarás, no ventre, a
marca das idades

E a inquietude dos
pássaros libertos.

Virás para o enorme do


silêncio

— Flor boiando na órbita


das águas —
Tu não verás o fúnebre
das horas

Nem o canto final do sol


poente.

Primeiro tu virás, depois


a tarde
Sem desejos e amor.
Virás sozinha

Como o nome saudade.


Virás única.

Eu não terei a posse do


teu corpo

Nem me batizarei na tua


essência,
Mas tu virás primeiro e
eu morro livre.

POSTAL
Deste lado da ilha

O cais e a cidade velha

Datam de muito tempo,

Mas a cidade é um
poema

Não cresceu. É sempre a


mesma.
Todos os dias igual:

O mesmo outeiro da cruz

Desterro, fontes e fortes

Igrejas, lendas, sobrados

Estreitas ruas, mirantes


Portões, sacadas de ferro

Poetas, becos, telhados

Serestas, maledicência

Saveiros, pregões de rua

Cantaria, mal-amados
Rios (chão, templo e
canteiros)

De peixe e palafitados)

Ladeiras, moças bonitas

Recato e amor nas


janelas

Casarões azulejados.
Cidade em traje a rigor

Vestida à colonial

Meu mundo, meu porta-


jóias

Meu bem, meu cartão


postal.
Brisa de maré vazante

Sem similar no país.

Quietude pousada na
água

Caminhos feitos de
história.

Gente vem ver São Luís!


A PALAVRA

Te lavo e lavro

Palavra / pão
Polida pedra

De construção

Do quanto faço

Deste edifício

Em que elaboro
Fé e ofício,

Te esculpo e bruno

Verbo/canção

No diário labor

De artesão.
Te louvo lume

E pedra d’ara

Com que ergo o templo

Da flor mais cara


E clara: poesia

Com que reparto

Os sóis do meu dia

O suor do meu dia

O fel do meu dia


As mazelas do homem

As amargas vidas

O pão subtraído

As pagas devidas

A paz relativa
A justiça rara

A fome de todos

A morte na cara

Da criança. O aço

Que o corpo nos cava,


A fé o cansaço

Desta luta brava

A fartura a poucos

De muitos tomada
O chão proibido

A água negada

O amor que rareia e

A festa sonhada
……………………………….

Palavra larva

Semente pura

Que em mim explodes

De sons madura,
Te lavo e lavro

Verbo / canção

Te louvo lume

Poema / pão
Manhã sonhada

Meu sim/meu não.

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