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Claridade surgiu sem o
habitual Manifesto, que
andava na moda por essa
altura, sem uma explicação
prévia, sem um programa
expresso. O principal projeto
da Geração da Claridade era o
de fincar os pés na terra -
falar da terra, do homem em
todo o seu envolvimento, da
cultura mais própria, criando,
assim, raízes com o chão, por
forma a proporcionar uma
íntima e profunda ligação de
amor firme do homem à terra
que o sustém.
Para realizar o desejo de levar
o povo a fincar os pés na terra,
os homens da Geração da
Claridade tinham,
forçosamente, que dedicar
grande parte do seu interesse
ao movimento contrário a esta
vontade - a emigração. De
facto, o tema da emigração foi
amplamente retratado na
literatura que marcou a
Geração da Claridade. Há
mesmo quem acuse os homens
desta Geração de dar
demasiada importância e
atenção a esta temática,
tornando (ao olhar exterior) a
literatura cabo-verdiana da
década de 30 quase
exclusivamente baseada na
temática do "Evasionismo".
De par com esta temática, e
talvez motivada por ela,
Claridade prende-se a temas
recorrentes como os do
terralongismo geográfico - a
terra longe, o local de fuga
para onde emigravam os
homens de Cabo
Verde: América,
principalmente; o tratamento
duplo do elemento Mar - mar
como prisão, que impede o
homem de alargar os seus
horizontes, e o mar como
evasão, que permite ao
homem novos conhecimentos,
novas experiências e,
sobretudo, possibilidades de
sobrevivência numa terra, pelo
menos, mais fértil; as
montanhas e planícies áridas e
secas - que impediam o
homem de subsistir naquela
terra tão infértil; a dimensão
telúrica da terra - onde se
revela um incomensurável
amor àquela terra, amor esse
que tanto faz sofrer na hora da
partida; a tragédia das eternas
secas das ilhas - que fustigam
a terra e a alma cabo-
verdianas, levando ao
desespero de querer partir.
A envolver todas estas
temáticas que giram à volta do
grande e marcante tema da
emigração temos, espelhadas
em todos os textos, mensagens
e condutas destes homens da
Claridade, a indesmentível e
claramente declarada fé
desmedida, religiosidade pura
deste povo que, mesmo
marcado pelas agruras daquela
terra, não deixam de esperar
que um dia tudo mude e eles
possam fincar os pés numa
terra que os sustente
plenamente.
JORGE BARBOSA
(1902-1971)
Inocentes e medrosos
Detrás da vegetação.
Havia somente
As aves de rapina
De garras afiadas
As aves marítimas
De vôo largo
As aves canoras
Assobiando inéditas
melodias.
E a vegetação
Enterrando
E se persignou
Receoso ainda e surpreso
Pensa n´El-Rei
Começou a cumprir-se
Este destino ainda de todos
nós.
VOCÊ: BRASIL
De alongamentos timbrados
nos lábios
E de expressões terníssimas e
desconcertantes.
É a alma da nossa gente
humilde que reflete
De Você,
Na terça-feira de Carnaval.
Eu gostava enfim de o
conhecer de mais perto
Com um i no si
De trocar sempre os
pronomes para antes dos
verbos
— “mi dá um cigarro!”.
Impossíveis”.
CASEBRE
Foi a estiagem
E o silêncio depois
De pedra solta
O teto de palha
Levou-o
A fúria do sueste.
Sem batentes
As portas e as janelas
Ficaram escancaradas
Nesses tempos
A padiola mortuária da
regedoria.
Levou primeiro
De barriga inchada
Que se diria
Que foi de fartura que
morreu.
O homem depois
Abertos ainda.
Tão silenciosa a tragédia das
secas nestas ilhas!
No quintal do casebre
O drama do Mar,
O desassossego domar,
Sempre
Sempre
Dentro de nós!
O Mar!
Cercando
O Mar!
O Mar!
Saudades dos velhos
marinheiros contando
histórias de tempos passados,
De bebedeiras, de rixas, de
mulheres,
No canto da Morna,*
MANUEL LOPES
(1907-2005)
Manuel Antonio dos Santos
Lopes nasceu na Ilha de São
Vicente, Cabo Verde, em
1907. Funcionário aposentado
da Western Telegraph. Poeta,
romancista, contista e
conferencista. Elemento de
proa do movimento Claridade.
Publicou: Poemas de quem
ficou (Açores, 1949); Chuba
Braba, novelas (Lisboa, 1956);
O galo cantou na baía (uma
novela e quatro contos;
Lisboa, 1959); Os flagelados
do vento leste (romance;
Lisboa, 1959); Crioul.o e
outros poemas (Lisboa, 1964).
A GARRAFA
— Se foi a criança
Ou o ladrão
Ou filósofo
Que importa?
… se só de atirá-la às
ondas vagabundas
Extraídos de
OUTROS POEMAS
CAIS
SONETO À LIBERDADE
Primeiro tu virás, depois
a tarde
Trarás, no ventre, a
marca das idades
E a inquietude dos
pássaros libertos.
Virás para o enorme do
silêncio
Cantaria, mal-amados
De peixe e palafitados)
Casarões azulejados.
Vestida à colonial
Meu mundo, meu porta-
jóias
Caminhos feitos de
história.
Te lavo e lavro
Palavra / pão
Polida pedra
De construção
Do quanto faço
Deste edifício
Em que elaboro
Fé e ofício,
Te esculpo e bruno
Verbo/canção
No diário labor
De artesão.
Te louvo lume
E pedra d’ara
E clara: poesia
As mazelas do homem
As amargas vidas
O pão subtraído
As pagas devidas
A paz relativa
A justiça rara
A fome de todos
A morte na cara
Da criança. O aço
A fé o cansaço
De muitos tomada
O chão proibido
A água negada
O amor que rareia e
A festa sonhada
……………………………….
Palavra larva
Semente pura
De sons madura,
Te lavo e lavro
Verbo / canção
Te louvo lume
Poema / pão
Manhã sonhada
Meu sim/meu não.
OSVALDO ALCÂNTARA
(1907-1989)
Osvaldo Alcântara,
pseudônimo poético de
Baltazar Lopes da Silva, nasceu
na Ilha de São Nicolau, Cabo
Verde, em 1907. Advogado e
filósofo. Professor, Doutor
Honoris Causa pela
Universidade de Lisboa. Um
dos fundadores da revista
Claridade, marco da literatura
cabo-verdiana.
Publicou: Chiquinho
(romance), São Vicente, 1947;
O Dialeto crioulo de Cabo
Verde, Lisboa, 1957; Cabo
Verde visto por Gilberto
Freire, Praia, Cabo Verde,
1956; Antologia da ficção
cabo-verdiana
contemporânea, Praia, Cabo
Vrde, 1960.
A SERENATA
Vestida de gemidos de
bordão,
Lancinâncias de violino,
Na noite parada
Aquele aperto de
mão
Não foi adeus!
Os cavaquinhos desmaiam de
puro sentimento,
A cidade morreu lá longe,
E a lua vem surgindo cor de
prata.
Nessa história de
amor todos são iguais,
Até o rei volta sua
palavra atrás…
Passa a serenata.
Mas no coração dos que
temem a primeira luz do dia
que vai chegar
Ficam os gemidos do violão e
do cavaquinho,
Vozes crioulas neste noturno
brasileiro
De Cabo Verde.
Extraídos de
OUTROS POEMAS
RESSACA
Venham todas as vozes, todos
os ruídos e todos os gritos
Venham os silêncios
compadecidos e também os
silêncios satisfeitos; venham
todas as coisas que não
consigo ver na superfície da
sociedade dos
homens;venham todas as
areias, lodos, fragmentos de
rocha
Que a sonda recolhe nos
oceanos navegáveis;
Venham os sermões daqueles
que não têm medo do destino
das suas palavras venha a
resposta captada por aqueles
que dispõem de aparelhos
detetores
apropriados;
Volte tudo ao ponto de
partida,
E venham as odes dos poetas,
Casem-se os poetas com a
respiração do mundo;
Venham todos de braço dado
na ronda dos pecadores,
Que as criaturas se façam
criadores
Venha tudo o que sinto que é
verdade
Além do círculo embaciado da
vidraça…
Eu estarei de mãos postas, à
espera do tesouro que me
vem na onda do mar…
A minha principal certeza é o
chão em que se amachucam
os meus joelhos doloridos,
Mas todos os que vierem me
encontrarão agitando a minha
lanterna de todas as cores
Na linha de todas as batalhas.
FILHO
(1907-2005)
A GARRAFA
— Se foi a criança
Ou o ladrão
Ou filósofo
Que importa?
… se só de atirá-la às
ondas vagabundas
Da sua prisão?...
Extraídos de
BARBOSA, Rogério Andrade.
No ritmo dos tantãs; antologia
poética dos países africanos
de língua portuguesa; Brasília:
Thesaurus, 1991. 165 p.
CAIS
Nunca parti deste cais
Responder sim
E a inquietude dos
pássaros libertos.
POSTAL
Deste lado da ilha
Mas a cidade é um
poema
Serestas, maledicência
Cantaria, mal-amados
Rios (chão, templo e
canteiros)
De peixe e palafitados)
Casarões azulejados.
Cidade em traje a rigor
Vestida à colonial
Quietude pousada na
água
Caminhos feitos de
história.
Te lavo e lavro
Palavra / pão
Polida pedra
De construção
Do quanto faço
Deste edifício
Em que elaboro
Fé e ofício,
Te esculpo e bruno
Verbo/canção
No diário labor
De artesão.
Te louvo lume
E pedra d’ara
As amargas vidas
O pão subtraído
As pagas devidas
A paz relativa
A justiça rara
A fome de todos
A morte na cara
Da criança. O aço
A fartura a poucos
De muitos tomada
O chão proibido
A água negada
A festa sonhada
……………………………….
Palavra larva
Semente pura
De sons madura,
Te lavo e lavro
Verbo / canção
Te louvo lume
Poema / pão
Manhã sonhada