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elaborada por
Mestre em Letras
COMISSÃO EXAMINADORA
Membro Suplente
3
AGRADECIMENTOS
Agradeço também aos colegas Jaci Seidel, Girvani Seitel, Denise Meneses e
em especial a Letícia Sangaletti e Larissa Paula Tirloni pela contribuição no
processo de formação.
sobrinhos Hamza e Ryad e ainda aos meus afilhados, pelas constantes palavras de
apoio e pelo amor.
RESUMO
ABSTRACT
This paper analyzes Caio Fernando Abreu’s chronicles, published in Folha de São
Paulo, in 1980’s and 1990’s and combined in the book Life Crying on Corners, from
2012. The suggestion of the study is to identify the formal and thematic elements
present in his narrative, in order to analyze them, connecting them to the dialogues
that they weave with the society and with the reader and investigating how his
narratives build a memory of his time and how the writer’s chronicles talk to the
production context in which he is inserted. The reading of Caio’s chronicle, in this
work, receive, as a methodological procedure, the articulation of form and content of
the narratives in the critical perspective of sociology of literature. In the development
of this investigation, the study considers, at a first moment, the characteristics of
chronicle, according to the methodological apparatus of authors who think about the
genre in relation to its concept and way of conception in different historical periods.
At the second moment, the singular traits about Caio’s narrative and evident aspects
in his chronicles, such as the colloquial language, humor and irony, subjectivity and
citation work, and, finally, the search for the dialogue with the reader, are discussed,
showing that Caio’s texts don’t fit as proposed by the theory of chronicle. In the third
part, relations among literature, society and memory contemplate the reflections
about the writer’s chronicles, explaining the constant and relevant relation of Caio’s
text with the sociological aspects, what identifies the presence of individual, social
and cultural memories in the author’s narratives. When we analyze Caio’s chronicles,
we observed that his narratives permit to question the theory of chronicle and his
texts show different aesthetic resources that valorize the search for a dialogue with
the reader and with the historical context, building a memory of his time.
SUMÁRIO
REFERÊNCIAS 132
9
letras: diálogo com leitor, alusão a elementos externos ao texto, contato com
subsídios culturais e tudo isso falando do cotidiano, tornando-se, desse modo, o
contexto perfeito a uma jornalista em formação1.
O entusiasmo pelo escritor só aumentou a minha paixão pela pesquisa. É
muito gratificante estar inserida em contextos acadêmicos que possibilitam refletir
acerca do meio em que vivemos, pois acredito que, através das reflexões e com
leituras como as de Caio, podemos nos tornar mais humanos e aptos para mudar a
realidade. Então, após esse relato pessoal de como o escritor chegou até mim,
passo a utilizar uma redação mais acadêmica e objetiva para que os meus
julgamentos pessoais não modifiquem o teor e a importância da pesquisa. Assim
como comecei construindo um histórico de como fui apresentada ao escritor, passo
a apresentá-lo.
Caio escreveu prosa e poesia e, nas narrativas, construiu textos ora com uma
linguagem simples, ora com linguagem mais complexa. Seus textos ainda são
marcados pela referência constante a elementos culturais, tais como os da cultura
de massa e os da cultura também mais erudita, o que demonstra sua inteligência e
sensibilidade frente ao contexto do qual fez parte, mostrando que Caio era um leitor
do mundo, um leitor da vida. Além disso, uma de suas principais peculiaridades é a
capacidade de reflexão sobre os mais variados temas, e suas crônicas, mesmo
sendo escritas na década de 1990, com temáticas específicas, parecem atemporais,
cujos significados se aplicam ao contexto atual.
Considerando isso, este trabalho aborda a crônica do escritor, procurando
identificar os elementos formais e temáticos recorrentes na sua narrativa para
examiná-las, relacionando-as aos diálogos que tecem com a sociedade e com o
leitor e procurando investigar em que medida as suas narrativas constroem uma
memória de seu tempo e em que medida as crônicas do autor dialogam com o
contexto de produção em que está inserido. Para abordar esse tema, o trabalho
examina crônicas de Caio publicadas no jornal Folha de São Paulo nas décadas de
1980 e 1990 e reunidas no livro A Vida Gritando nos Cantos, de 2012.
A escolha das crônicas como objeto central deste estudo justifica-se tanto por
ser um gênero que aborda aspectos da realidade, contribuindo assim para a
1Jornalista em formação, pois essa a atuação como jornalista requer constante aperfeiçoamento e
construção de saberes. Os fatos do dia a dia fazem com que somente a experiência traga a carga
necessária para conduzir a mídia.
12
2
De acordo com a mitologia grega, Deus Cronos, filho de Urano (Céu) e de Gaia (Terra), destronou o
pai e casou com a irmã, Reia. Urano e Gaia predisseram-lhe então, que ele também seria destronado
por um de seus filhos. Para evitar que se cumprisse a profecia, Cronos devorou todos os filhos
nascidos de sua união com Reia. Até que ela conseguiu enganar o marido, e deu-lhe uma pedra para
comer, ao invés da criança. Dessa forma, a profecia se cumpriu, Zeus deu ao pai uma droga e o fez
vomitar todos os filhos que havia devorado, liderando juntamente com seus irmãos, uma guerra
contra o pai, que acabou sendo derrotado por todos. (OLIVEIRA, 2008)
16
eram as chamadas “crônicas”, que, para elucidá-las, Costa (2010) cita como
exemplo as obras do século XIV de Fernão Lopes3. Em sentido oposto, aquelas que
tratavam os acontecimentos com maior superficialidade, segundo Moisés (2004),
eram determinadas como “cronições”. Então, um mesmo vocábulo que, em seu
sentido primeiro, restringe-se a estar relacionado ao tempo começa a se delinear em
especificidades que lhe abrangem outras significações e contextos. Contudo, Costa
(2010) alerta para o fato de esta distinção atingir somente alguns países: “Tal
discriminação só foi possível em Português e Espanhol, não atingiu o Inglês, que
englobam os dois tipos sob um rótulo comum (chronique, chronicle).” (2010, p. 110).
Para os ingleses, a atribuição de dois vocábulos para um mesmo conceito não foi
bem aceita, ficando os ingleses com a significação primeira, ligada à perspectiva
histórica.
Ainda no que tange ao sentido histórico que o termo começa a carregar,
Roncari (2002) entende que o vocábulo “cronista”, no início de sua significação, está
relacionado a relatos dos escrivães que acabaram transformando esses escritos em
um gênero bastante lido e difundido na Europa: as narrativas das viagens marítimas
ou as literaturas de viagem. A associação entre cronista e relato de escrivães deve-
se ao fato de que, em 1500, os escrivães de que o autor chama atenção precisavam
descrever as novas terras para aqueles que estavam, por vezes, em outros
continentes. Ao fazer a descrição em pormenores de uma terra desconhecida, essa
narrativa transforma-se em um gênero já com as características mais opinativas,
uma vez que o cronista (neste caso o escritor) emitia o seu ponto de vista acerca do
lugar até então desconhecido.
Ao apresentar traços da crônica e seu surgimento, Roncari (2002) ressalta a
importância que os relatos que surgiram a partir das crônicas ofereceram para a
história da humanidade: “o início dessa prática acabou criando um conjunto
3 Gianez (2009) estuda as crônicas oficiais de Fernão Lopes, já que, através destes materiais, o
estudioso constatou a gênese do discurso oficial em Portugal, e, de acordo com o autor, “as obras
despontam num período de abalo e rearranjo decisivo do pensamento histórico e político no reino, os
quais marcaram a ascensão da Dinastia de Avis.” (p. 05). As crônicas de Fernão Lopes relatavam os
acontecimentos históricos que o país estava passando, relacionando-se, assim, à descrição dos
fatos. Nesse âmbito Paraense (1998) corrobora com a afirmação de Gianez (2009) atribuindo a
Fernão Lopes a aproximação do historiador. “Fernão Lopes também supera o ponto de vista do
cronista e aproxima-se do historiador ao declarar-se consciente das limitações impostas à
compreensão dos acontecimentos por fatores afetivos – especialmente o amor à terra dos ancestrais
– e pela diversas opiniões existentes acerca dos fatos. Seu objetivo é narrar servindo-se de
documentos fidedignos, especialmente documentos escritos e confrontados em suas versões
distintas.” (p. 14)
17
4 Dentre as diferentes formas da crônica, está a de viagem. É chamada assim por ser uma espécie de
diário dos escritores, que chegavam às terras até então desconhecidas e relatavam o que estavam
observando daquela realidade.
5 O termo “cronistas”, nesse sentido, está sento utilizado com relação à conotação histórica que
associada o cronista àquele responsável por relatar o que estava observando ao seu redor,
constituindo uma espécie de diário das viagens.
6 Para registrar a história de seu povo, Costa (2010) ressalta que foi a mando de D. Duarte que
Fernão Lopes iniciou as Crônicas de D. Pedro I, D. Fernando e D. João I. Nesses escritos, a autora
cita Silveira (1992): “a matéria não ficcional transforma-se em ficção, se aceite o princípio de que a
18
século XII. De acordo com Costa (2010), a crônica nos anos 891 a 1154 era
denominada como Anglo-saxon chronicle. Era assim designada por ser uma obra
composta por um conjunto de nove manuscritos que tinha como intuito mostrar a
forma como o povo anglo-saxão se estabeleceu nas Ilhas Britânicas. No que tange a
Anglo-saxon chronicle, Paraense (1998) afirma que também pode ser chamada de
Old English chronicle, intitula como sendo esta a primeira história contínua da nação
ocidental em sua própria língua, além de ser o primeiro livro em prosa, com a
narrativa em inglês. (PARAENSE, 1998).
Quanto à origem da crônica, cabem algumas observações. Um primeiro ponto
diz respeito à interpretação, ao subjetivismo e à ideologia que estão incorporados ao
escritor. Este, inevitavelmente, passa por três processos em sua escrita: ver,
interpretar (nesse caso de acordo com o seu ponto vista, isto é, suas ideologias) e
transpor sua percepção sobre o mundo através da escrita para os seus leitores que
usufruirão através das ideologias e interpretações de cada cronista: o que acarreta o
subjetivismo. Nesse sentido, Schneider (2008) pondera que a crônica é vista como
“uma expressão de diferentes vozes, mesmo que contraditórias – de um
determinado tempo social.” (2008, p. 02) A ideia de a crônica estar ligada aos
processos ideológicos e inserida em um tempo social pode ser melhor
compreendida com Bosi (1994). Isso porque o autor defende que a história do
homem brasileiro está ligada a um determinado tempo social, isto é, aos viajantes
missionários europeus. Nas palavras do autor:
História – pela interpretação, pelo subjetivismo, pela comunicação, pela ideologia – é também uma
ficcionalização do real.” (COSTA apud SILVEIRA, 2010, p. 27)
19
Tendo como marco histórico o ano de 1418, a palavra crônica, ainda que
posteriormente, viesse abranger outros sentidos, permaneceu na língua
portuguesa com o sentido antigo de narrativa vinculada ao registro de
acontecimentos históricos.” (1993, p. 12)
assinala que eles tinham uma finalidade única: o entretenimento. Nas palavras do
autor: “Era um espaço onde se contavam piadas, falava-se de eventos do dia,
apresentavam-se charadas, ofereciam-se receitas de cozinha ou beleza, e
comentavam-se as últimas novidades: peças teatrais, livros, etc.” (COUTINHO,
2006, p. 46)
Quanto à procedência, Castello (2004) comenta que os folhetins foram
introduzidos no Brasil com o Romantismo ao serem importados da França. Eles
surgem nos jornais, tendo um espaço específico, que era localizado nos rodapés
(rez-de-chaussée7) da página de destaque dos periódicos. A sua divulgação envolvia
a produção literária da época, uma vez que as narrativas ficcionais eram colocadas
dia a dia nos folhetins. O autor ressalta a importância deste gênero para a época:
Nesse sentido, as pessoas se reuniam para ler o que estava escrito nos
folhetins. O escritor, que pode ser confundido com o cronista em um primeiro
momento, trabalhava em seus textos a criação literária ligada à escrita jornalística.
Sob essa ótica, outro aspecto do folhetim envolve a criação literária atrelada à
atividade jornalística. Candido (1989) cita como exemplo a seção escrita por José de
Alencar – um dos primeiros e principais cultores deste gênero – “Ao correr da pena”,
que era publicada semanalmente para o Correio MercantiI (1854 a 1855). De acordo
com Castello (2004), Alencar traduziu os folhetins para os leitores: “o folhetinista
inventou ao invés de contar, o que, por conseguinte, excedeu os limites da crônica.”
(p. 253).
Dessa forma, como é possível observar, a crônica tem impulso a partir dos
folhetins no século XIX e aos poucos vai se redefinindo. As diferenças nos dois
gêneros consistem na forma com que são publicados: o folhetim desse século
ocupava quase meia página de um jornal, já a crônica moderna é mais curta e nela
leve.” Já em outro cronista, França Júnior, o que ocorre é uma redução na escala de
temas, ligada, ao que afirma o estudioso, no incremento de humor. Além desses,
Candido (1989) cita outros autores que se enquadram no rol de modificações da
crônica:
maior aproximação dos escritores com os fatos que se inserem no meio social. Sob
esse aspecto, Arnt (2002) propõe:
outras.” (COSTA, 2010, p. 189) Entretanto, além desses aspectos que o autor cita, a
busca pela subjetividade e o uso de linguagem mais livre e descompromissada
teriam sido as peculiaridades que levaram à constatação de que a crônica, ao
mesmo tempo, possui um tom de jornalismo e literatura. A aproximação deste
gênero aos textos literários incorre devido às suas qualidades estéticas e à
literariedade8, que pode, muitas vezes, relacionar-se ainda ao gênero épico ou até
mesmo lírico, mas com histórias expressivas que se constituem no conjunto da
produção literária. No tocante à literariedade, Simon (2008) manifesta a ideia acerca
da polêmica que este termo vem sofrendo desde 1958, quando foi a primeira vez
que um crítico observou o caráter heterogêneo da produção dos cronistas:
tempo em que está voltada para as experiências de quem está escrevendo, isto é, a
relação com o meio social que é peculiar do jornalista. Além disso, há outras
particularidades que distinguem os dois gêneros, tal como a linguagem:
9Costa (2002) ressalta que o Lead está relacionado ao jornalismo com a pirâmide invertida. Nas
palavras do autor: “Ao contrário da narrativa denominada “nariz de cera”, que pressupõe a descrição
28
do fato jornalístico seguindo a linearidade do tempo e das circunstâncias, a pirâmide invertida, uma
apropriação do jornalismo americano, prescreve que, no primeiro parágrafo da notícia, chamado lead,
deve ser concentrada toda informação que permita uma rápida compreensão do enunciado – quem, o
que, como, quando, onde, por quê. Assim sendo, o lead racionaliza os procedimentos e permite maior
rapidez na assimilação do conteúdo, inclusive facultando eventuais cortes da matéria caso haja
restrição de espaço editorial, como por exemplo, a inclusão de inserção publicitária, supostamente
sem prejuízos para a compreensão do fato noticioso.” (p. 137)
10 A imparcialidade é dos princípios básicos a que os jornalistas devem ser submetidos. Mesmo que
os repórteres saibam que ela não existe, é preciso demonstrar esse aspecto ao leitor.
29
(2006) destaca que desse diálogo da crônica com o jornalismo, a crônica abarcou
alguns traços básicos, tais como:
suas crônicas para fins jornalísticos. Para que todos possam captar as informações
que um jornal possui, é necessário que a linguagem também seja familiar ao público
receptor. Em tal perspectiva, a oralidade é presença constante nas páginas dos
jornais, e, consequentemente, nas crônicas. Sobre essa característica, Sá (1999)
pondera que:
Por isso sua sintaxe lembra alguma coisa desestruturada, solta, mais
próxima da conversa entre dois amigos, do que propriamente do texto
escrito. Dessa forma, há uma proximidade maior entre as normas da língua
escrita e da oralidade, sem que o narrador caia no equívoco de compor
frases frouxas, sem a magicidade da elaboração, pois ele não perde de
vista o fato de que o real não é meramente copiado, mas recriado. O
coloquialismo, portanto, deixa de ser a transcrição exata de uma frase
ouvida na rua, para ser a elaboração de um diálogo entre o cronista e o
leitor, a partir do qual a aparência simplória ganha sua dimensão exata. (p.
11)
E que, nesse primeiro esboço, o que se torna claro, a partir dos folhetinistas
do século XIX é que uma das maiores dificuldades do gênero parece residir
31
Mesmo que a crônica não possua a densidade dos contos, existe a liberdade
por parte dos cronistas, que podem transmitir a aparência da superficialidade para
desenvolver seu tema, a partir da simplicidade. Contudo, essa simplicidade – já que
a linguagem utilizada nos veículos de comunicação, por abranger muitos públicos,
tem como característica a presença de elementos mais informais – não significa,
“desconhecimento das artimanhas artísticas.” (SÁ, 1999, p. 10). Pelo contrário,
“nesse contexto, a crônica também assume essa transitoriedade, dirigindo-se
32
inicialmente a leitores apressados, que leem nos pequenos intervalos da luta diária.”
(SÁ, 1999, p. 10)
Além disso, os contos e as crônicas diferem-se, já que os primeiros, mesmo
com temáticas específicas da época em que são construídos, denotam um caráter
de atemporalidade, tornando-se, assim, como parte constitutiva para a memória do
período em que estão inseridas. De maneira análoga, Costa (2010) reforça a
diferença do gênero que se volta para a literatura – o conto para a crônica que está
no limiar entre o jornalismo e a literatura -, na medida em que a primeira possui
maior transitoriedade temporal do que o conto, justamente pelo cronista retirar seus
assuntos da vida cotidiana. Com vistas à melhor compreensão da crônica, Marques
(2009) auxilia na conceituação:
O assunto cotidiano e simples sobre o dia a dia faz com que o escritor
mantenha um diálogo em que pode não ser correspondido em seus
questionamentos. A década de 1990 no Brasil não possuía ainda as ferramentas
tecnológicas atuais, em que os escritores podem ver as respostas quase que
instantaneamente ao publicar seus textos. No entanto, mesmo sem obter respostas
deste que Caio chama de você, o que inclui a qualquer um que ler seus textos, o
autor mantém a linguagem dialógica com seus leitores.
33
11
Termo utilizado por Sá (1999) para denominar os cronistas.
35
os cronistas brasileiros. Sobre Rubem Braga, Sá (1999) assegura que ele ocupa
lugar de destaque na literatura:
Sua opção é ainda mais corajosa porque, vivendo num país de frases
bombásticas, ele cumpre a principal característica do escritor: o
despojamento verbal, que implica uma construção ágil, direta, sem
adjetivações. Novamente a pressa de viver confere ao narrador-repórter
uma característica que se transfere para a narrativa curta por ele produzida,
que é a simultaneidade do ato de escrever com o ato de eliminar os
excessos. (SÁ, 1999, p. 13)
A caminho de casa, entro num botequim da Gávea para tomar um café junto
ao balcão. Na realidade estou adiando o momento de escrever. A
perspectiva me assusta. Gostaria de estar inspirado, de coroar com êxito
mais um ano nesta busca do pitoresco ou do irrisório no cotidiano de cada
um. Eu pretendia apenas recolher da vida diária algo de seu disperso
conteúdo humano, fruto da convivência, que a faz mais digna de ser vivida.
Visava ao circunstancial, ao episódico. Nesta perseguição do acidental,
quer num flagrante de esquina, quer nas palavras de uma criança ou num
acidente doméstico, torno-me simples espectador e perco a noção do
essencial. Sem mais nada para contar, curvo a cabeça e tomo meu café,
enquanto o verso do poeta se repete na lembrança: "assim eu quereria o
meu último poema". Não sou poeta e estou sem assunto. Lanço então um
último olhar fora de mim, onde vivem os assuntos que merecem uma
crônica. (SABINO, 1965, p. 174)
pais se juntam, discretos: "parabéns pra você, parabéns pra você..." Depois
a mãe recolhe as velas, torna a guardá-las na bolsa. A negrinha agarra
finalmente o bolo com as duas mãos sôfregas e põe-se a comê-lo. A mulher
está olhando para ela com ternura -- ajeita-lhe a fitinha no cabelo crespo,
limpa o farelo de bolo que lhe cai ao colo. O pai corre os olhos pelo
botequim, satisfeito, como a se convencer intimamente do sucesso da
celebração. Dá comigo de súbito, a observá-lo, nossos olhos se encontram,
ele se perturba, constrangido -- vacila, ameaça abaixar a cabeça, mas
acaba sustentando o olhar e enfim se abre num sorriso. Assim eu quereria
minha última crônica: que fosse pura como esse sorriso. (SABINO, 1965, p.
174)13
Sérgio Porto traz a luz o Stanislaw Ponte Preta para retomar a linhagem dos
cronistas mundanos que sabem registrar a vida cotidiana, e, acima de tudo,
para criticar aquele tipo inculto que inventava “palavras e expressões como
‘piu-piu’, ‘champanhota’, ‘fúria louca’, ‘bola branca’, ‘flor azul’ e outras
baboseiras.” Infelizmente Stanislaw não conseguiu eliminar esse tipo – ele
ainda existe -, mas soube analisá-lo através do riso popular, caricaturando
(se é possível fazer caricatura de uma caricatura) o mais conhecido cronista
Pelo talento que demonstra para tecer os fios invisíveis da sociedade (uma
sociedade que parece querer se ocultar), por fazer evidentes as tensões
histórico-sociais, pelo sentido crítico ante a construção das informações, por
fazer uso de um espírito lúdico, por ter desmistificado a burguesia nacional
e por haver anulado alguns vícios do jornalismo do século XIX (como a
manipulação por meio da retórica ou o emprego de falsos recursos
poéticos), Afrânio Coutinho, José Marques de Melo, Cristiane Costa,
Eduardo Portella e Wellington Pereira coincidem ao colocar o texto
42
Hão de reconhecer que sou bem criado. Podia entrar aqui, chapéu à banda,
e ir logo dizendo o que me parecesse; depois ia-me embora, para voltar na
outra semana. Mas, não senhor; chego à porta, e o meu primeiro cuidado é
dar-lhe os bons dias. Agora, se o leitor não me disser a mesma coisa, em
resposta, é porque é um grande malcriado, um grosseirão de borla e capelo;
ficando, todavia, entendido que há leitor e leitor, e que eu, explicando-me
com tão nobre franqueza, não me refiro ao leitor, que está agora com este
papel na mão, mas ao seu vizinho. Ora bem! (ASSIS, 1983)
Feito esse cumprimento, que não é do estilo, mas é honesto, declaro que
não apresento programa. Depois de um recente discurso proferido no
Beethoven, acho perigoso que uma pessoa diga claramente o que é que vai
fazer; o melhor é fazer calado. Nisto pareço-me com o príncipe (sempre é
bom parecer-se a gente com príncipes, em alguma coisa, dá certa
dignidade, e faz lembrar um sujeito muito alto e louro, parecidíssimo com o
Imperador, que há cerca de trinta anos ia a todas as festas da Capela
Imperial, pour étonner de bourgeois; os fiéis levavam a olhar para um e para
outro, e a compará-los, admirados, e ele teso, grave, movendo a cabeça à
maneira de Sua Majestade. São gostos) de Bismark. O príncipe de Bismark
tem feito tudo sem programa público; a única orelha que o ouviu, foi a do
finado Imperador, — e talvez só a direita, com ordem de o não repetir à
esquerda. O Parlamento e o país viram só o resto. (ASSIS, 1983)
Portanto, bico calado. No mais é o que se está vendo; cá virei uma vez por
semana, com o meu chapéu na mão, e os bons dias na boca. Se lhes disser
desde já, que não tenho papas na língua, não me tomem por homem
despachado, que vem dizer coisas amargas aos outros. Não, senhor; não
tenho papas na língua, e é para vir a tê-las que escrevo. Se as tivesse,
engolia-as e estava acabado. Mas aqui está o que é; eu sou um pobre
relojoeiro, que, cansado de ver que os relógios deste mundo não marcam a
mesma hora, descri do ofício. A única explicação dos relógios era serem
iguaizinhos, sem discrepância; desde que discrepam, fica-se sem saber
nada, porque tão certo pode ser o meu relógio, como o do meu barbeiro.
(ASSIS, 1983)
com o meio impresso e que, por ser a primeira crônica, ele ainda não sabe o quanto
escrever:
Talvez o que aí fica, saia muito curtinho depois de impresso. Como eu não
tenho hábito de periódicos, não posso calcular entre a letra de mão e a letra
de forma. Se aqui estivesse o meu amigo Fulano (não ponho o nome, para
que cada um tome para si esta lembrança delicada), diria logo que ele só
pode calcular com letras de câmbio — trocadilho que fede como o Diabo. Já
falei três vezes no Diabo em tão poucas linhas; e mais esta, quatro; é
demais. (ASSIS, 1983, s.p.)
Parece que foi ontem: ele era alto, magro, pernas longas, pés descalços e
caminhava pelos corredores da Editora Abril, num ritmo quase baiano, não
fosse gaúcho. Jeans, camiseta, óculos redondinhos, lembrava John Lennon.
Fumava sem parar, roia as unhas e passava a mão nos cabelos
semilongos, um misto de príncipe Valente com cantor de rock. Tinha voz
grave e lânguida, articulava as palavras, saboreando-as lentamente. Sua
risada era solta e cheia de notas agudas, resquício dos tempos em que
tinha voz fina e muita vergonha de falar. Diz a lenda que Caio demorou a
engrossar a voz, bem mais tarde que os meninos de sua idade, a maior saia
justa. Mas no auge dos 30 anos, quando nos encontramos, ele havia
superado isso. (DIP, 2009, p. 19)
Paula Dip ainda relata em sua obra que Caio chegou até centro do país em
busca do jornalismo. A amizade da escritora com Caio ocorre justamente pela
proximidade que eles tinham através das redações dos jornais, eles se conheceram
na redação da editora Abril (DIP, 2009). Além de integrar a primeira parte da revista
Veja, Caio foi também editor da revista Leia Livros e colaborou em diversos jornais,
tais como Correio do Povo, Zero Hora, O Estado de São Paulo e Folha de São
14 Limite Branco foi o primeiro livro de Caio Fernando Abreu, no entanto, só foi publicado após
Inventário do Irremediável.
48
15 Inventário do Irremediável é o livro que mais deixa exposta a influência que Clarice Lispector tem
em Caio, por ser uma obra em que as narrativas voltadas a autoinvestigação e o conhecimento
interior do escritor, ficam mais expostas, tal como ocorre com as narrativas de Clarice. (PEREIRA,
2008)
16 Outros textos foram reunidos por autores para publicar as obras de Caio, tais como a antologia
“Mel & Girassóis” e os livros A Vida Gritando nos Cantos e Pequenas Epifanias, essas últimas obras
recolhendo suas crônicas.
17 Dentre os diversos prêmios recebidos pelo autor podem-se citar a menção honrosa do Prêmio
Nacional de Ficção pela obra O Ovo Apunhalado, que também foi reconhecido pela Revista Veja
como um dos melhores livros do ano, prêmio status de literatura pelo conto “Sargento Garcia”.
49
18A Indústria Cultural é parte integrante das sociedades contemporâneas. É difícil refletir a respeito
deste contexto sem vinculá-la ao papel e ao poder que o consumo representa neste cenário. É
praticamente impossível, neste âmbito, encontrar um indivíduo que não seja consumidor da Indústria
Cultural, mesmo indiretamente.
50
Outro aspecto relevante é a forma como Caio Fernando Abreu utiliza a sua
perspectiva de narrador. Mesmo sendo em primeira pessoa, a narrativa do autor
51
Costa (2008) afirma que o vetor dominante destas obras literárias é a reflexão
sobre o programa dos mecanismos de poder, domínio e a consequente
desigualdade social. Com base nessas premissas, é possível reconhecer a
importância desse contexto por ser recorrente na literatura de Caio Fernando Abreu.
Em análise convergente, Pereira (2008), compartilhando reflexões de Hohfeldt,
ressalta a forma com que o escritor gaúcho cria personagens marginais que estão
em consonância com o contexto dos anos 1970:
Sob o viés apresentado pela autora, é possível considerar que, neste contexto
de indivíduos que apresentam uma identidade oposta aos esquemas tradicionais,
Caio integra o conjunto de escritores que produzem ficção urbana, de vertente
intimista. A literatura urbana é concedida por representar personagens e temáticas
ligadas aos grandes centros. Costa (2008) atribui à evolução tecnológica e industrial
um caráter capitalista, ocasionando, assim, uma sociedade com indivíduos
desequilibrados, isolados e voltados somente para si. Nessa perspectiva, ela afirma
que a literatura intimista reflete acerca desse processo, apresentando uma ótica
centrada na interioridade dos personagens e na psicologia individual, cujo
procedimento narrativo principal é a introspecção. Nas palavras de Costa (2008):
“Esse recurso é explorado nos textos de Caio, onde muitas vezes ocorre o monólogo
54
cosmos paradisíaco desejado.” (2010, p. 25) E por fim em “Dodecaedro” ocorre uma
síntese das trajetórias de personagens esboçados em outras obras.
Na década de 1980, Caio publica o livro de contos Os Dragões não conhecem
o Paraíso, em que são apresentados personagens excluídos como nas obras
anteriores, entretanto, em especial, nessa ocorre a predominância em grupos como
de marginais, homossexuais, alienados, solitários, e todos estes giram em torno de
um mundo que está em transformação. De acordo com Cardoso (2007), a obra gira
basicamente em torno das relações afetivas: “A obra, segunda prefácio do escritor,
funciona como um romance-móbile, em que uma peça esclarece, amplia, contempla
a outra para que, no todo, constituam uma unidade.” (2007, p. 74)
Na sequência cronológica, o escritor gaúcho publica o romance Onde Andará
Dulce Veiga? O pesquisador Anselmo Peres Alós (2007), em sua tese de
Doutorado, A letra, o corpo e o desejo: uma leitura comparada de Puig, Abreu e
Bayly, serve-se de pressupostos de teorias feministas, estudos narratológicos e a
perspectiva queer para a realização de uma leitura crítica acerca de três romances,
um argentino de 1976, um peruano de 1994 e Onde andará Dulce Veiga?, publicado
em 1990. A perspectiva de Alós é importante nesse estudo, pois analisa o romance.
O estudioso cita Caio como sendo reconhecido pela crítica literária por seus contos,
romances e demais produções textuais.
Mesmo não subvertendo as convenções formais da narrativa, o olhar singular
de Caio sobre a existência sexual ocorre no sentido de desestabilizar as categorias
identitárias polarizadas em torno da homossexualidade e heterossexualidade. Nas
palavras de Alós (2007): “negando uma ‘gênese’ ou ‘origem’ para o comportamento
homossexual.” (p. 19) Os personagens que Caio constrói em suas narrativas
exemplificam a afirmação de Alós, uma vez que não estão calcados na origem
biológica de sua sexualidade, mas, sim, no encontro de almas, isto é, independente
de ser mulher ou homem, o que Caio enfatiza em seus textos é que o amor não está
relacionado ao sexo. Desse modo, as relações afetivas podem ocorrer entre dois
homens, ou duas mulheres, pois o que interessa é o encontro de almas entre duas
pessoas.
A perspectiva de Alós (2007) sobre o romance de Caio também pode ser
estendida aos contos do escritor. Em “Terça-Feira Gorda”, conto do livro Morangos
mofados, em linhas gerais, a temática homoerótica é o eixo central dessa narrativa,
em que os personagens mantêm abertamente relações, opção que é condenada por
56
Além dos conflitos entre os indivíduos e as ordens sociais, Caio pode ser
considerado como um escritor mergulhado nos dramas do século XX, e, nesse
59
aspectos formais de narrador/autor, poeta/sujeito lírico, mas sim, tenha maior riqueza com a intenção
em outros aspectos.
61
A cidade de
Meu Deus, são estrelas As estrelas: as dos céu e Linguagem coloquail e Estrutura Artistas que são estrelas Gramado-RS, o céu Diálogo com leitor, citação,
Presente
demais! artistas culta. fragmentada em suas vidas do Rio Grande do humor
Sul, a praia
Metrópole, parece
Mescla de linguagem culta A representação da vida do
Ah, bossa-nova, new- Música, em especial do LP ser São Paulo, que é Citação, intertextualidade,
com coloquial. Estrutura linear narrador através das Presente
bossa... de Elisete Negreiros. onde vive o subjetivismo
Subjetivismo. músicas e cantores.
narrador.
As representações centram-
Mescla de linguagem culta Diálogo com leitor, humor,
Estrutura se nos são paulinos que
Bye-bye, 10ª mostra 10ª mostra do cinema com coloquial. São Paulo Presente ironia, subjetivismo,
fragmentada participaram da Mostra de
Subjetivismo. citação, intertextualidade
Cinema
As pessoas em geral, já
Mescla de linguagem culta que o narrador está Diálogo com leitor, humor,
Estrutura
O movimento do tempo O velho/antigo, novo/jovem com coloquial. remetendo a todos que irão São Paulo Presente ironia, subjetivismo,
fragmentada
Subjetivismo. ficar velhos e o que são citação, intertextualidade
jovens
Temáticas que podem ser Mescla de linguagem culta Diálogo com leitor, humor,
Estrutura Descrição do próprio
Palavras ao vento escritas em uma crônica de com coloquial. São Paulo Presente ironia, subjetivismo,
fragmentada. . narrador
domingo Subjetivismo. citação, intertextualidade
A crônica é autobiográfica,
Mescla de linguagem culta narrador descreve a sua Diálogo com leitor, humor,
Dezenas de obrigados Os melhores do ano com coloquial. Estrutura linear vida e daqueles (os São Paulo Presente ironia, subjetivismo,
Subjetivismo. melhores) que fizeram parte citação, intertextualidade
dela, ao longo do ano
As férias do narrador e
Mescla de linguagem culta Diversas representações, já
algumas crônicas (anti) Estrutura Diálogo com leitor, humor,
com coloquial. que são ao total de quinze São Paulo Presente
sociais que ele deixa aos fragmentada ironia, subjetivismo, citação
Subjetivismo. lides
Pílulas calientes leitores
Mescla de linguagem culta
Cenas na beira de um Estrutura Rio de Janeiro/São Diálogo com leitor, ironia,
A representação do Brasil com coloquial. Os brasileiros de 1987 Presente
abismo fragmentada Paulo subjetivismo, citação
Subjetivismo.
Mescla de linguagem culta
Diálogo com leitor, humor,
Me leva pro céu, Luni! Música com coloquial. Estrutura linear A banda Luni São Paulo Presente
ironia, subjetivismo, citação
Subjetivismo.
A representação da vida Mescla de linguagem
Diálogo com leitor, humor,
Verão de julho com os verões no meio do coloquial e culta. Estrutura linear Os paulistanos São Paulo Presente
ironia, subjetivismo, citação
ano Subjetivismo
Crônica autobiográfica, a
Mescla de linguagem
representação é o narrador Diálogo com leitor, humor,
A novela da novela Telenovela coloquial e culta. Estrutura linear São Paulo Presente
que se intitula como ironia, subjetivismo, citação
Subjetivismo
"desempregado"
Mescla de linguagem
Para embalar John Descrição do próprio Diálogo com leitor, humor,
Livros, músicas coloquial e culta. Estrutura linear São Paulo Presente
Cheever narrador ironia, subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem
Temas que poderiam ser Diálogo com leitor, humor,
Que depois de me ler coloquial e culta. Estrutura linear Representação de temas São Paulo Presente
recorrentes a uma crônica ironia, subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem
Diálogo com leitor, humor,
Caleidoscópio Rita Rita Lee coloquial e culta. Estrutura linear Rita Lee São Paulo Presente
ironia, subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem
Adeus, agosto. Alô, O mês de Agosto e Compositores, cantores e Diálogo com leitor, humor,
coloquial e culta. Estrutura linear São Paulo Presente
setembro Setembro escritores ironia, subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mistura de assuntos: o
Mescla de linguagem Brasil que possui como
Ninguém merece Jânio então presidente Jânio Estrutura Diálogo com leitor, humor,
coloquial e culta. Presidente Jânio Quadros, São Paulo Presente
Quadros Quadros, cultura, as cartas fragmentada ironia, subjetivismo, citação
Subjetivismo os leitores de suas crônicas
dos leitores, suas obras
Crônica autobiográfica,
Mescla de linguagem novamente os sentimentos
Estrutura Diálogo com leitor, humor,
Sem via de acesso Sentimentos do narrador coloquial e culta. melancólicos de São Paulo Presente
fragmentada ironia, subjetivismo, citação
Subjetivismo introspecção do narrador
estão representados
Mescla de linguagem
Sugestão para cair na real...e Descrição do próprio Diálogo com leitor, ironia,
Teatro coloquial e culta. Estrutura linear São Paulo Ausente
depois sair narrador subjetivismo, citação
Subjetivismo
Subjetividade, citação
(cita elementos
culturais),
intertextualidade
Coloquial, culta. São Paulo, também (reproduz fragmento de
1994: um ano para a literatura Literatura Estrutura linear Os escritores brasileiros Ausente
Subjetivismo cita outros países música), humor, ironia,
diálogo com leitor,
memória acerca de seu
tempo, elementos
sociais.
Subjetividade, citação
(cita elementos
culturais),
intertextualidade
Marina Lima enfrenta o Brasil- Coloquial, culta. (reproduz fragmento de
Música Estrutura linear Marina Lima São Paulo Ausente
Barbie Subjetivismo música), humor, ironia,
diálogo com leitor,
memória acerca de seu
tempo, elementos
sociais.
Mescla de linguagem
Para Dulcineia, que nunca foi Diálogo com leitor, ironia,
Travestis coloquial e culta. Estrutura linear Os travestis São Paulo Ausente
del Toboso subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem
Pra cima com a câmera, Diálogo com leitor, ironia,
Filmes coloquial e culta. Estrutura linear Os filmes e o Brasil São Paulo Ausente
moçada! subjetivismo, citação
Subjetivismo
Estrutura
fragmentada. O Brasil, através do
Mistura de temas,
Mescla de linguagem Quando narrador canibalismo em Olinda,
De laços, seis, sábados e cotidiano em Paris, Diálogo com leitor, ironia,
coloquial e culta. está melancolico, a saudade dessa terra e Olinda, Paris Ausente
tormentas canibalismo em subjetivismo, citação
Subjetivismo as frases são o cotidiano do narrador
Olinda, saudades
curtas, assuntos em Paris
variados.
Mescla de linguagem
Apresentando Álvaro Caldas, Diálogo com leitor, ironia,
Livro coloquial e culta. Estrutura linear Escritores brasileiros São Paulo Ausente
escritor subjetivismo, citação
Subjetivismo
66
Mescla de linguagem
Lolita, Lisboa y otras cositas Respostas a cartas Diálogo com leitor, ironia,
coloquial e culta. Estrutura linear Leitores das crônicas São Paulo Ausente
más dos leitores subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem
Delírio eleitoral à beira do Os brasileiros que irão Diálogo com leitor, ironia,
Eleições coloquial e culta. Estrutura linear Porto Alegre Ausente
ridículo votar subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem
Para Rita Lee, com amor e Diálogo com leitor, ironia,
Rita Lee coloquial e culta. Estrutura linear Rita Lee São Paulo Presente
irritação subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem
Ney Matogrosso, muito além do Música: Ney Diálogo com leitor, ironia,
coloquial e culta. Estrutura linear Ney Matogrosso São Paulo Presente
bustiê Matogrosso subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem Natália e os filhos do
Diálogo com leitor, ironia,
Feliz em conhecê-la, Natália coloquial e culta. Estrutura linear narrador que poderiam
subjetivismo, citação
Lage Teatro e filhos Subjetivismo estar vivos Rio de Janeiro Ausente
Mescla de linguagem A fã que não lhe deixa
Diálogo com leitor, ironia,
Reza forte para um egum Uma fã que coloquial e culta. Estrutura linear em paz, nem quando
subjetivismo, citação
maldespachado assombra o escritor Subjetivismo estava no hospital Porto Alegre Ausente
Mescla de linguagem
Diálogo com leitor, ironia,
coloquial e culta. Estrutura linear As três obras literárias e
subjetivismo, citação
Vamos voltar a falar em poesia? Livros Subjetivismo seus autores São Paulo Ausente
Mescla de linguagem
Mudança de nome Diálogo com leitor, ironia,
coloquial e culta. Estrutura linear
Betty Crawford, Ph.D. em Najice de Caio F, e a Primeira Dama, Ruth subjetivismo, citação
Subjetivismo
Comparada primeira dama Cardoso Porto Alegre Ausente
Mescla de linguagem
Diálogo com leitor, ironia,
De volta ao avesso do avesso coloquial e culta. Estrutura linear A cidade de São Paulo e
subjetivismo, citação
do avesso São Paulo Subjetivismo suas lembranças São Paulo Ausente
Mescla de linguagem
Diálogo com leitor, ironia,
Cidade de Santa coloquial e culta. Estrutura linear As lembranças acerca
subjetivismo, citação
Inútil pranto por Santa Tereza Tereza Subjetivismo de Santa Tereza Rio de Janeiro Presente
Mescla de linguagem
Descrição do próprio Diálogo com leitor, ironia,
Tentativa de sitiar uma Os sentimentos do coloquial e culta. Estrutura linear
narrador subjetivismo, citação
esquisitice narrador Subjetivismo Porto Alegre Presente
Mescla de linguagem
Diálogo com leitor, ironia,
Picadinho para aquecer o coloquial e culta. Estrutura Representação dos
subjetivismo, citação
inverno Diversos assuntos Subjetivismo fragmentada assuntos Porto Alegre Ausente
Representação da atriz
Mescla de linguagem
Denise Stoklos e outros Diálogo com leitor, ironia,
coloquial e culta. Estrutura linear
A vaia consagradora de Denis artistas que já foram subjetivismo, citação
Subjetivismo
Stoklos Peça de Teatro vaiados Porto Alegre Ausente
Mescla de linguagem
Descrição do próprio Diálogo com leitor, ironia,
Duas mães do coloquial e culta. Estrutura linear
narrador subjetivismo, citação
Para mãe Sonia de Oxum Apará narrador Subjetivismo Rio de Janeiro Ausente
Mescla de linguagem
Diálogo com leitor, ironia,
Entrevisão do trem que deve Anoitecer/amanhec coloquial e culta. Estrutura O jogo de luzes que se
subjetivismo, citação
passar er Subjetivismo fragmentada formam no céu Porto Alegre Ausente
Mescla de linguagem A representação
Diálogo com leitor, ironia,
A cara do Brasil em Terra coloquial e culta. Estrutura linear recorrente é a de filmes,
subjetivismo, citação
Estrangeira Filmes Subjetivismo cineastas Porto Alegre Ausente
Mescla de linguagem
Diálogo com leitor, ironia,
coloquial e culta. Estrutura Representação dos
subjetivismo, citação
Tirando o pó do velho 1995 Diversos assuntos Subjetivismo fragmentada assuntos Porto Alegre Ausente
67
Mescla de linguagem
Estrutura Diálogo com leitor, ironia,
Muito além do bordô Porto Alegre coloquial e culta. ________ Porto Alegre Ausente
linear subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem
Estrutura Diálogo com leitor, ironia,
Clarice Lispector ress... Clarice Lispector coloquial e culta. Clarice Lispector São Paulo Presente
linear subjetivismo, citação
Subjetivismo
Mescla de linguagem
Por aquelas escadas subiu feito uma A morte de uma Estrutura Ana C e sua amizade com São Paulo/Rio de Diálogo com leitor, ironia,
coloquial e culta. Ausente
diva amiga linear o narrador Janeiro subjetivismo, citação
Subjetivismo
identificação com a sua narrativa. É oportuno observar que a transcrição das falas
do dia a dia, garantem também a oralidade e as marcas da linguagem simples20.
A perspectiva da linguagem familiar aos seus leitores, juntamente com o
conceito de coloquialismo elaborado, está calcada neste estudo sob o viés de Costa
(2010). A linguagem familiar “tem a ver com o caráter da dicção aparentemente
desestruturada, que se assemelha a uma conversa cúmplice entre narrador e leitor,
sem transformar a linguagem em simples reprodução da fala.” (COSTA, 2010, p.
190). Para elucidar a forma como Caio utiliza esses aspectos em suas narrativas, a
crônica “Meus amigos são um barato” é tomada como exemplo. Nesta narrativa,
publicada no dia oito de abril de 1986, o narrador conta a história de quatro de seus
amigos, apontando as particularidades de cada um. Para verificar o traço do
coloquialismo elaborado proposto por Costa (2010), analisamos o seguinte
fragmento:
A verdade que não conheço ninguém mais moderno (ou pós, nos dois
sentidos: o do depois e o das carreiras) que minha amiga Kate. Coberta de
negro, cabelo raspado para o lado, vezenquando uma peruca rosa de
náilon. Naturalmente é performática. E faz cursos sen-sa-cio-nais: o último
foi de vídeo-performance – um arraso. Minha amiga Kate acha tudo meio
antigo, mas concede ir ao Satã, ao Rose Bom-Bom, dá umas bandas pelo
Ritz e não pisa nem morta no Pirandello. Acha que tudo é uma questão de
pique-e-pá-e-crã, sabe como? Fico numas que só... (ABREU, 2012, p. 20)
(grifos da autora deste trabalho)
20A simplicidade com relação às crônicas incorrem no sentido como o autor aborda os assuntos, já
com relação aos temas, e a inserção de elementos externos ao texto, estes denotam a subjetividade
e a sensibilidade de Caio, tornando-as assim, com o caráter de complexidade.
71
Se Nara Leão, naquele velho disco, também achava – por que não poderia
eu também achá-lo? E se o Nirlando Beirão, tão chique, tem um vizinho
yuppie – por que não posso ter coisas semelhantes em minha vida de
72
As expressões “tão chique”, “coisa”, “baratão” explicitam outra ideia que está
inerente às crônicas de Caio: a informalidade. Sobre esse signo, Laurito (1993)
afirma que não transforma em fator negativo para que a crônica perca sua essência,
que é estar permeada com o comprometimento social, pelo contrário: “é o talento do
autor que vai dar a estrutura maior a um gênero comumente considerado um modo
menor de ficção.” (p. 27-28). São sob esses aspectos que as crônicas de Caio
podem ser analisadas, através de sua aparente simplicidade, no entanto, seu
engajamento com o social, exatamente como ocorre com a narrativa de “Meus
amigos são um barato”.
No tocante ao engajamento social, é preciso observar alguns aspectos. À
primeira vista, na crônica supracitada, é possível entender que o narrador está
somente nomeando quatro de seus amigos, entretanto, ao expor características
peculiares deles, não somente descreve quem são essas pessoas próximas, mas
sim os atribui outra particularidade da crônica – que também acontece com distintos
gêneros literários: a representação. O primeiro amigo descrito na narrativa é Pedro,
ele é “superfeliz”, mora com seus pais, apesar de ter trinta anos, em um apartamento
de andar inteiro de frente para a praia no Rio de Janeiro. Além disso, Pedro é rico,
mas, como relata o narrador da crônica, “anda sempre de camisetinha zurrapa e
sandália havaiana.” (ABREU, 2012, p. 19) Pedro tem certeza de que um dia todos
irão viver em paz e ser felizes. Já a Kate despreza Pedro, ela é do estilo
supermoderna. Betinho, o terceiro amigo a ser nominado, é “radicalmente o oposto.”
(ABREU, 2012, p. 20) Ele acha que para ascender socialmente é preciso muito
esforço e dedicação, e, por fim, a Joana é a ex, “ex-atriz, ex-cantora, ex-traficante”
(ABREU, 2012, p. 20), está em Florianópolis, vivendo através de meditações.
Com o relato acerca das feições dos quatro amigos, percebemos que existem
diversos segmentos sociais, entre eles: o rico, a supermoderna, o esforçado e
aquela que busca seu arrependimento por suas atitudes na vida através da religião.
No início da crônica, o narrador ainda alerta aos leitores: “qualquer semelhança com
a realidade não é mera coincidência.” (ABREU, 2012, p. 19) Tais referências
permitem inferir a ideia de que Caio, assim como outros cronistas, possui habilidade
que Sá (1999) ressalta, que é de captar com intensidade os sinais da vida, isto é,
73
a Irma é aquela que todos acham que ela é (dá a maior pinta), menos ela
mesma. Frequentemente Irmas são casadas, ou têm noivas e namoradas,
às vezes até filhos. Gente maldosa costuma chamá-las de “bichas com
álibi”, mas a verdade é que, em se tratando de uma Irma, ninguém poderá
provar jamais absolutamente nada.... (ABREU, 2012, p. 165)
A terceira, intitulada como Telma é parecida com Irma, nega de pés juntos a
sua opção sexual. Mas, ao contrário da primeira, Telma não “dá pinta.” (ABREU,
2012, p. 165) O problema, segundo Caio, “é que, depois do terceiro uísque, Telmas
fazem coisas que deixariam até uma Jacira ruborizada. E na manhã seguinte, lógico,
não lembram de nada.” (ABREU, 2012, p. 165) Telma ainda possui outra
característica, leva a vida duplamente: “uma, contidíssima, como Telma
propriamente dita; outra quando sai fora de si, como a mais louca das Jaciras.”
(ABREU, 2012, p. 165) Ao contrário das três, a última, Irene, faz o estilo mais
equilibrada, sensata: “Como não esconde nada, também não precisa se preocupar
em ser ou não descoberta. Em geral é culta, viajada, analisada. De todas as formas,
procura o equilíbrio, aceita seus desejos e até milita pela causa.” (ABREU, 2012, p.
166)
De acordo com a construção de raciocínio proposta por Caio acerca dos
quatro “tipos” de gays que a sociedade brasileira possui, é possível afirmar que, de
forma totalmente irônica, isto é, deixando uma distância entre aquilo que realmente
existe e o que se pensa ser verdade, a reflexão do autor pauta-se em uma exclusão
social deste grupo. Todas elas se relacionam a “dar pinta”, a observar o que os
79
outros pensam, tentar fingir em ser o que não são. Mesmo a Irene, que é a mais
equilibrada, está preocupada com a posição social que a sua opção sexual irá lhe
trazer e milita pela causa. E, se isso ocorre, é porque ela está ciente dos tipos de
exclusões que a sua opção lhe traz. Camargo (2010) explicita uma reflexão sobre o
preconceito, de acordo com o autor, este é geralmente expresso por meio de
ofensas que ferem os outros, “como, por exemplo, classificar, nomear um
homossexual de ‘bicha’, de ‘viado’, de ‘gay’ ou de ‘mulherzinha’, entre outros
adjetivos pejorativos, que denigrem a imagem e a identidade sociocultural de um
determinado grupo ou indivíduo.” (CAMARGO, 2010, p. 04)
Se fossem aceitas as premissas de que o narrador não estaria sendo irônico
nesta crônica, a narrativa pautar-se-ia numa imagem de que ser gay é estar
afrontando uma sociedade que é sedimentada em valores arcaicos, uma cultura
conservadora e calcada na heteronormatividade. No entanto, Dip (2009) explica qual
foi a intenção do narrador ao criar estes gêneros:
Não contente com essa quantidade de gírias, Caio ainda inventava outras,
hilárias, no seu típico humor gay, ou queer, que vinha com a liberação
sexual em todos os cantos do mundo. (...) assim ele cria uma lenda de que
quatro irmãs seriam os protótipos definitivos do gay masculino. (p. 70)
com o tempo essas criações caíram na boca de toda uma geração, tais
como: saia justa, para definir uma situação difícil; lasanha para homem
gostoso; rodenir, que significa aborrecido; naja, que é pessoa venenosa; a
Betty Faria e o Reginaldo (Farias) para se referir a um homem bonito e que
ele adoraria transar; laika, a cadela russa que foi para o espaço, que
significava pobrezinha, coitada; bambi, que queria dizer suave, aviadado;
bagaceira, gíria gaúcha que ele trouxe para São Paulo e que significava de
baixo nível; bolacha; nome meio para sapatão; do bem, para definir uma
pessoa ou coisa legal (antônimo: do mal)... (DIP, 2009, p. 71)
que têm interesses sexuais por outras do mesmo sexo. Sobre a Irma, Caio
menciona que todos acham que ela é, mas “não dá pinta”, e ainda chama-a de
“bicha álibi”, a relação entre não dar pinta e os gritinhos afeminados é direta. Não
dar pinta significa que a Irma não tem esses gritinhos (no sentido diminutivo para
indicar que se assemelham a um tom fino, mais aproximado com a voz feminina). Já
“bicha álibi” é um termo ofensivo para chamar os homossexuais, e, de acordo com o
Dicionário Aurélio, há vinte e duas significações para este termo, dentre elas,
“relativo à homossexualidade masculina, que tem determinadas características que
se atribuem à homossexualidade masculina.” (FERREIRA, 1988, p. 214)
Com relação a Telma e Irene, a primeira nega sua opção sexual, entretanto,
após estar sob efeito de bebidas com teor alcoólico, “ela se revela”, e, por fim, a
Irene não se preocupa em ser descoberta, pois até mesmo ela milita em favor dos
homossexuais. Mesmo que de forma indireta, as duas últimas apresentam
conotações pejorativas, haja vista que a primeira precisa de bebidas alcoólicas para
se revelar e a segunda participa de manifestações, o que nos permite inferir que elas
“obedecem” à sociedade que não aceita pessoas que fogem da regra quanto à
sexualidade.
Outra reflexão acerca da crônica são os nomes que o autor escolheu para
intitular os quatros tipos de gays. Jacira, Irma, Telma e Irene se relacionam ao
gênero feminino, mas por que, se o substantivo “gay” está relacionado ao
masculino? No que tange ao assunto em questão, Alós (2010) acentua o fato de
poder haver a separação entre gênero e sexualidade:
que os gays são sujeitos “guetificados”, excluídos socialmente e cujos rótulos são
percebidos através Jacyras, Telmas, Irmas e Irenes.
Esse traço, ao mesmo tempo cômico e crítico de “Tese de mestrado à
holandesa”, permite compreender que a crônica de Caio serve-se do humor segundo
a perspectiva de Barbosa (2010). Além deste, a crônica do autor apresenta outros
traços, como, a subjetividade e a alusão a elementos externos ao texto. Sobre essas
prerrogativas que a próxima seção irá tratar.
O tom íntimo e coloquial utilizado por Caio nas crônicas é uma de suas
marcas na escrita desse gênero. Contudo, há também várias referências a autores e
obras que sinalizam um intenso trabalho de citação nas crônicas do escritor. Nesse
contexto, o leitor possui uma importante tarefa: estar preparado para a compreensão
dos elementos externos ao texto que são citados pelo autor. Acerca destes
elementos externos, entendemos que Caio utiliza em suas narrativas o que Antoine
Compagnon, na obra O trabalho da citação, compreende como citação.
Para o estudioso, a citação pode ser comparada ao processo arcaico e lúdico
de recortar e colar, do mesmo modo que essa brincadeira é feita, o escritor utiliza os
elementos que “recorta” em seus textos. É nesse sentido que o autor afirma: “a
citação trabalha o texto, o texto trabalha a citação.” (COMPAGNON, 2007, p. 46)
Além disso, o contexto também deve ser analisado nesse processo: “A citação não
tem sentido em si, porque ela só se realiza em um trabalho, que a desloca e que a
faz agir.” (COMPAGNON, 2007, p. 47) Com vistas à perspectiva segundo a qual
ocorre um cruzamento de vozes na construção literária, o diálogo incorre na medida
em que a obra e a sociedade fazem parte dessa ótica, justamente o que pode ser
verificado em Caio. O autor utiliza elementos de citação em seu texto que estão
inseridos sob o viés de um contexto externo, que precisa ser compreendido pelo
leitor.
Por esse processo de compreensão, Compagnon (2007) entende que há
quatro figuras distintas para o processo de leitura: ablação, grifo, acomodação e
solicitação. A primeira estaria relacionada a extrair uma parte importante do texto, o
83
Todavia, há entre elas uma degradação latente, uma ordem teórica, inversa
daquela em que foram descritas e que, partindo da mutilação, penetrava até
o intratável da paixão pela leitura, onde se perdia. Elas partem do objeto
total em que é para mim o texto que me encanta na solicitação, passam
pela acomodação num lugar reconhecido de satisfação, pelo grifo que
aprisiona esse lugar, e alcançam o objeto parcial que destaco do texto na
ablação. Trata-se através desses quatro momentos, de uma aproximação
cada vez mais fina, de um quadriculado estratégico. Mas esse não tem
nada a ver com a significação. (COMPAGNON, 2007, p. 27)
leitor quem deverá fazer um recorte sobre as estratégias textuais que o autor coloca
em seus textos. Assim, o leitor, chamado de ideal/modelo, vê a necessidade do
reconhecimento de sua interpretação como elemento importante para fazer uma boa
leitura.
Tais perspectivas estão atreladas nas crônicas de Caio em diferentes formas:
em “Beta, beta, Bethânia”, por exemplo, sem o conhecimento prévio das citações,
não é possível compreender a mensagem do narrador. Nesta crônica, que foi
publicada em 11 de fevereiro de 1987, o narrador explicita a sua afinidade com
relação às músicas de Maria Bethânia. Podemos apontar a presença dos elementos
externos ao texto através do fragmento:
Assim como uma cidade (mais urbana que celeste: uma pessoal moral), o
texto é cercado por todos os lados. Ao pé da muralha, um fosso reduplica e
acentua a fronteira; ele é sinalizado com postes e marcos; barreiras policiais
vigiam as entradas: são as referências exibidas, as notas de rodapé – foot-
notes, em inglês. A todo instante elas trazem à lembrança aquilo sobre o
que o texto se apoia, muletas ou estacas, aduelas: o texto é uma ponte
lançada no vazio, do que tem horror; ele teme a queda. Entre seus pilares,
[estão] a epígrafe e a bibliografia. (COMPAGNON, 2007, p. 124)
utilizam dos entulhos que se formam nos rios para construir seu habitat. Outros
elementos externos ao texto são citados através da presença de Dalton Trevisan e
Woody Allen. Sobre o primeiro, Soerense et al (2012), afirmam:
O que seria, então? Bom, se a astrologia fosse pura idiotice, você acha que
Fernando Pessoa teria sido astrólogo? Aliás, a chave – ou uma das – para a
compreensão de seus heterônimos está justamente nos mapas astrais que
o danado levantou dos próprios. Para quem entende do negócio, faz muito
sentido saber que Ricardo Reis tinha Mercúrio, Urano, Lua e Júpiter na casa
8 – a casa das transformações, da transcendência. Ainda nessa linha: Anais
Nin, escritora brilhante, também era astróloga (e psicóloga). E Milan
Kundera, veja só, é outro. (ABREU, 2012, p. 39)
89
E para quem quiser ficar atento, deixo de saideira este trecho (citado de
memória) de Doris Lessing, em Shikasta: “Todos nós fazemos parte das
estrelas. Elas nos fazem, nós as fazemos. Somos parte de uma estranha
coreografia da qual nunca, de maneira alguma, podemos pensar em nos
separar.” (ABREU, 2012, p. 40)
21Expressão que foi idealizada por Umberto Eco. O estudioso, em sua obra, “Lector de uma Fábula”
admite que ao produzir um texto, o autor imagina como o leitor irá definir suas prerrogativas, contudo,
ele não sabe ao certo como será interpretado, de como será esse leitor. E é neste contexto de
produção e recepção que Eco cria a concepção de Leitor-Modelo.
91
Por interpretação, Eco (1979) entende que a sua noção, “sempre envolve
uma dialética entre estratégia do autor e resposta do Leitor-Modelo.” (p. 43) O autor
advoga ainda que a interpretação pressupõe um recorte, que são determinadas
pelas estratégias textuais entre autor, texto e Leitor-Modelo, assim, a interpretação
deve ser vista como um processo aberto e cooperativo pela tríade autor-texto-leitor.
É com base nas inter-relações formadas por autor e leitor que os diálogos nas
crônicas de Caio estão pautadas, haja vista também o intenso trabalho de citação
que é perceptível nas crônicas do autor e que mobilizam o conhecimento prévio do
leitor na construção de sentido para as crônicas. É sobre a busca pelo diálogo com o
leitor que a próxima seção trata.
22 Para melhor avaliar as condições de mercado em que o jornal estará inserido, uma estratégia que é
utilizada, principalmente em grandes jornais, é a pesquisa de opinião pública. Esta apresenta
resultados importantes, no que tange ao público-alvo, desde idade, classe social, dentre outros.
Desse modo os jornalistas têm maior conhecimento a quem estão escrevendo.
92
23 Linha de apoio é uma expressão com cunho jornalístico. Representa, como o nome propõe, a linha
colocada abaixo do título, para explicar o que o título deixou implícito. A linha de apoio pode também
ser entendida como uma sucessora do lide, isto é, do primeiro parágrafo em que as principais
informações da notícia/reportagem devem ser expostas.
93
marcação para o leitor da mudança de quem fala. Essa observação pode ser
exemplificada através do fragmento:
Agora acabou. O que leio nos jornais e vejo na TV nas últimas semanas me
deixa doente. Ainda mais doente. Santa Tereza sangra, transformada em
Sarayejo tropical, em Chechênia invadida, estuprada. As pessoas
abandonam as casas e fogem para qualquer lugar, escondendo o rosto.
Balas perdidas cruzam o ar. Não, não sei se é suficiente chorar o que se
perdeu e rezar pelo que ficou. Sei que, por conta disso, acabei achando um
pouco ridículo FHC todo sorridente ao lado da rainha da Inglaterra e todas
essas comemorações do fim da Segunda Guerra, enquanto Santa Tereza
agoniza, desamparada e bela, no alto daquele morro. Quem pode fazer
alguma coisa, que faça. E quem pode? (ABREU, 2012, p. 218)
Hugo Mann, que aspira a isso, que convive com essa gente, mas na
verdade não está nessa posição. (ARRIGUCCI, 1999, p. 86)24
24 Fragmento retirado do livro Outros Achados e Perdidos, de uma seção de debates com Davi
Arrigucci Jr., Carlos Vogt, Flávio Aguiar, Lúcia Teixeira Wisnik e João Luiz Lafetá.
97
prefácios das primeiras obras de Lukács, em que o elemento social da literatura era
dotado como a forma:
A forma faz com que a experiência vivida pelo poeta se comunique aos
outros, ao público; e só através desta comunicação “formada” e daí, através
da possibilidade de exercer influência e a influência efetiva que realiza essa
possibilidade, a arte assume um significado social. (LIMA, apud G. LUKÁS,
1912, p. 76)
Com base nas prerrogativas propostas pelos autores sobre a estrutura interna
e externa das obras, Candido cita, como exemplo, o livro Senhora, de José de
Alencar. As indicações do social estão presentes em referências a lugares,
manifestações de atitudes de grupos ou classes, modas, usos e expressões de um
conceito de vida burguês e patriarcal. No entanto, para o autor, somente essas
peculiaridades não bastam para denotar a definição do seu caráter sociológico. Nas
palavras do autor:
Mas acontece que, além disso, o próprio assunto repousa sobre condições
sociais que é preciso compreender e indicar, a fim de penetrar no
significado. Trata-se da compra de um marido; e teremos dado um passo
adiante se refletirmos que essa compra tem um sentido social simbólico,
pois é ao mesmo tempo representação e desmascaramento de costumes
vigentes na época, como o casamento por dinheiro. Ao inventar a situação
crua do esposo que se vende em contrato, mediante pagamento estipulado,
o romancista desnuda as raízes da relação, isto é, faz uma análise
100
Quando fazemos uma análise deste tipo, podemos dizer que levamos em
conta o elemento social, não exteriormente, como referência que permite
identificar, na matéria do livro, a expressão de uma certa época ou de uma
sociedade determinada; nem como enquadramento, que permite situá-lo
historicamente; mas como fator da própria construção artística, estudado no
nível explicativo e não ilustrativo. (p. 08)
arquitetados separados, mas sim, em uma ligação, visto que, são as forças sociais
que condicionam os artistas, determinando a ocasião em que a obra é produzida,
julgando a sua necessidade e se será um bem coletivo.
Em relação à coletividade de uma obra, esta será definida a partir então, dos
elementos individuais. Em termos gerais, entendemos que, em primeiro lugar, o
agente individual cria a obra, após, a sociedade (o coletivo, nesse caso) precisa
reconhecer essa obra e o seu criador; já a forma com que será recepcionada
também depende de quem a produz, de qual é o seu reconhecimento com o social e
em que circunstâncias foi criada; por fim, a obra passa a ser marcada pela sociedade
como veículo individual do artista, mas que obteve o reconhecimento do coletivo.
Nessa esteira, Candido (2000), complementa: “Se a obra é fruto da iniciativa
individual ou de condições sociais, quando na verdade ela surge da confluência de
ambas, indissoluvelmente ligadas”. (p. 23-24)
Além da implicação do individual e coletivo, no que concerne à forma com que
as obras são executadas pelo artista, passamos a configuração desta. Candido
(2000) abarca a proposição que a obra depende do artista e das condições sociais
que irão determinar a sua posição. Ademais, o autor cita outras peculiaridades que
conferem a inserção do social às obras:
sentido e realidade à obra, e sem ele o autor não se realiza, pois ele é de
certo modo o espelho que reflete a sua imagem enquanto criador. Os
artistas incompreendidos, ou desconhecidos em seu tempo, passam
realmente a viver quando a posteridade define afinal o seu valor. Deste
modo, o público é fator de ligação entre o autor e a sua própria obra. A obra,
por sua vez, vincula o autor ao público, pois o interesse deste é inicialmente
por ela, só se estendendo à personalidade que a produziu depois de
estabelecido aquele contacto indispensável. Assim, à série autor-público-
obra, junta-se outra: autor-obra-público. Mas o autor, do seu lado, é
intermediário entre a obra, que criou, e o público, a que se dirige; é o agente
que desencadeia o processo, definindo uma terceira série interativa: obra-
autor-público. (p. 33-34)
Por outra vertente, além da influência a que Candido ressalta entre autor-obra-
público e após, obra-autor-público, Ianni (1999) ressalta que o diálogo entre a
sociologia e a literatura envolve vários enigmas: texto e contexto, sociologia e ficção,
literatura e conhecimento, estilos de pensamento e visões de mundo. Esses são
enigmas que implicam o que podemos entender entre “sociologia” e “literatura”, que
“permitem desenvolver a reflexão sobre essas formas narrativas, como expressões
do mundo da cultura.” (p. 38) Narrar, nesse âmbito relaciona-se a todos os
processos, ou seja, é uma dimensão geral tanto do processo de elaboração e
produção, quanto aos indivíduos que compõe a sociedade. É sob essa perspectiva,
que na próxima seção abordamos como o ato de narrar de Caio sofreu as influências
da conexão entre a literatura e a sociedade, à medida que o autor propiciou aos
leitores a reflexão de temas pertinentes ao social.
25 Sobre a titulação de quarto poder a que a mídia possui, Alexandre e Fernandes (2006),
consideram: “A imprensa passou a ser um instrumento nas mãos do poder e ganhou muito com isso,
tanto que hoje, nas democracias liberais, ostenta o título de quarto poder – autônomo, logo após do
Executivo, Judiciário e do Legislativo, exercido em favor do povo, que através dos anos elegeu a
imprensa como seus olhos para fiscalizar aqueles que comandam a sociedade.” (p. 24)
108
repercussão da pauta dos jornais”. (p. 29) Para melhor exemplificar como a mídia
influência os aspectos sociais, e a sua atuação nas agendas, Azevedo (2006) cita as
eleições de 1989 e a de 1994:
Semana passada fui ao Rio. Estava exausto, sem energia. Tempos atrás,
quando você andava assim (exausto; sem energia), ia ao Rio. Costumava
dar certo. Desta vez, não deu. Chovia, não tinha sol. Pior, e mais insidioso
que isso, havia pelo ar esse mesmo tipo de medo e desemparo que deixam
ainda mais cinza o ar de São Paulo. O que está havendo com esse país? –
continuei a perguntar lá, como pergunto aqui. E todos respondiam, lá, o
mesmo que respondem aqui: dengue, meningite, aids, caos econômico, falta
de amor, falta de esperança, falta de futuro. (ABREU, 2012, p. 82)
109
Com essa citação, o autor entende que há uma relação mútua com as duas
áreas, pois, ao mesmo tempo que a literatura se utiliza das representações, a
sociedade faz uso também de dramas. O autor cita ainda como exemplo a presença
da política e a revelação dos tempos modernos em O Pequeno Príncipe, de
Maquiavel. De maneira análoga, a crônica de Caio utiliza esses mesmos temas para
demostrar ao leitor aspectos da sociedade e, ao citar a política, como nas duas
110
Hoje quero escrever qualquer coisa tão iluminada e otimista que, logo depois
de ler, você sinta como uma descarga de adrenalina por todo o corpo, uma
urgência inadiável de ser feliz. Ser feliz agora, já, imediatamente. E saia
correndo para dar aquele telefonema, marcar um encontro, armar um jantar,
quem sabe um beijo; para comprar aquela passagem de avião, embarcar
hoje mesmo para Nova York, Paris, Hononulu. Tão revigorado e seguro –
depois de me ler – que nada, absolutamente nada, dará errado: ela (ou ele)
atenderá com prazer (em todos os sentidos) ao seu chamado, haverá saldo
no banco para a passagem e muitos dólares. (ABREU, 2012, p. 109)
Por falar em “destinos do País”, posso tentar, quem sabe, uma coisa mais
111
social, tão social quanto comício com a Lucélia Santos. Descrever com
minúcias odiosas famílias inteiras morando embaixo das marquises do
Conjunto Nacional. Falar naquele mendigo com que cruzei ontem na cidade
e, sem querer, vi remexendo nos sacos de lixo da calçada, enfiando as
mãos de unhas imundas em restos de arroz azedo. Seria esse um texto
cheio de piedade e ira, de náusea e revolta. Que depois de ler, você ficasse
tanto com os olhos marejados de lágrimas quanto com o coração fervilhante
de ódio. E saísse correndo para fazer alguma coisa (tão abstrato “fazer
alguma coisa”). Pegar em armas, por exemplo. Dar seu dinheiro (você tem
algum? Parabéns) para A Causa do Povo. (ABREU, 2012, p. 109-110)
Flores (2005), cita os problemas a que o governo Sarney (presidente desta época)
sofreu:
sentido literal da palavra, mas sim um fato pode ser (re)contado por um grupo de
pessoas. Nas palavras do autor:
Com vistas às reflexões propostas por Bosi (2001) acerca de a memória estar
atrelada a grupos sociais, para Halbwachs, esse aspecto é determinante na
elaboração de uma teoria proposta acerca da influência com meio social. Além
destas formas, Janet (1928) cita ainda a linguagem como forma de integrar a
memória ao meio social. Sobre a linguagem, Le Goff (2003) a entende como uma
das possibilidades de armazenamento da memória:
De uma maneira geral, as análises dos dados mostraram que vários fatores
que influenciaram os sujeitos eram sociais em origem e natureza. Muitas
transformações que ocorreram na recordação dos sujeitos eram marcadas
pela influência das convenções sociais e crenças correntes nos grupos aos
117
Neste estudo, a memória está sendo concebida através do seu caráter sócio-
cultural. Assim, erigindo referenciais da seção anterior, vamos observar como ocorre
a construção da memória nas crônicas de Caio. Para melhor exemplificar essas
relações, a narrativa “Ninguém merece Jânio Quadros”, de vinte e oito de outubro de
mil novecentos e oitenta e sete, sinaliza a interação de como ocorre essa
construção.
Com essa narrativa, observamos a presença da memória individual de um tempo
histórico, marcado pela prática de governos autoritários que não estão preocupados
em resolver os problemas do povo:
Semana passada, me deu uma vergonha tão grande de morar numa cidade
que tem como prefeito essa figura lamentável do sr. Jânio Quadros, que até
pensei: bom, no domingo sento e escrevo sobre isso. Uma crônica/carta
irada, reclamando da sujeira das ruas, da violência solta, do barulho, da
poluição, do lixo. Uma carta raivosa, cheia de cobranças. Lamentando a
burrice deste povo que elegeu o sr. Jânio como prefeito e é bem capaz de,
nas próximas (cadê?) eleições diretas para presidente, votar naquele outro
senhor — o João Baptista Figueiredo. Uma carta sugerindo o internamento
imediato do sr. Jânio (como ele fez com a própria filha) para uma boa —
digamos — faxina mental. Com muito detergente. (ABREU, 2012, p. 127)
Além dos romanos instituírem a agosto este nome, foi com esse povo que o
mês ficou conhecido como negativo, pois eles acreditavam que era nesse período
que uma criatura horripilante cruzava os céus da cidade, expelindo fogo. As lendas
que abarcam esse mês vão além das que o povo romano acreditava, pois Lacerda
(2004) associou agosto ao mês do desgosto, e, por esse prisma, Pinto (2000) afirma
que, além de agosto ser o mês do desgosto, é também o mês do cachorro louco.
Nessa esteira, outra consideração acerca desse mês deve ser ressaltada, dia 24 de
agosto é comemorado o dia de São Bartolomeu, este santo promoveu muitas
conversões ao Cristianismo, o que provocou inveja, então, ele foi executado em 51
d.C, anos depois, no mesmo dia, aconteceu um massacre na França, além disso, 24
de agosto é datado como o dia do Diabo. Newton Junior (1999) afirma que na crença
popular nordestina, o dia 24 é o dia em que o diabo anda solto pelo mundo:
Agosto, todo mundo sabe, nunca foi fácil. Este que nos deixou à meia-noite
de ontem e pareceu durar uns seis meses, cumpriu a tradição. Levou
Drummond, levou John Huston, Gilberto Freyre. O mais patético: levou
Pixote. Ao saber do assassinato (é as-sas-si-na-to mesmo que eu quero
122
dizer) dele, além de sentir uma vergonha viscosa de ser brasileiro, fiquei
pensando assim – Deus, o que é que está acontecendo com este país?
Imagino a praça de guerra (Líbano perde) em que se transformou o Rio de
Janeiro e, na trilha sonora, ficou ouvindo Lobão berrar “vida, vida, vida
bandida”. Em 1987, Lobão tornou-se a mais perfeita tradução de Brasil. Um
país invadido pela corrupção, pela barbárie, pela violência policial, pela
bandidagem. Você vai até a esquina comprar cigarros e não sabe se volta
vivo. (ABREU, 2012, p. 113) (grifos nossos)
Piada? Espero mesmo que não passe disso. Seria perigoso demais, por trás
da imbecilidade aparente, Enéas parece tão fascista quanto o porco
Berlusconi. Sei o que digo. Eu o conheci no final de 1990, no Aeroanta,
quando Grace Giannoukas, Angela Dip e Marcelo Mansfield (na época o
grupo Harpias & Ogros) ofereceram a ele um dos troféus “Créme de la
Créme”. Encarregado por Martha Góes de fazer a cobertura para esse
mesmo Caderno 2, dividi uma mesa com a poeta Ledusha, a atriz Maria de
Moraes e, voilá, o tal Enéas. Este, levando a sério o puro deboche.
Constrangedor. E me pergunto, seria tão patética assim a desilusão do povo
brasileiro a ponto de cometer esse abasurdo? Razões não faltam, sei. Eu
mesmo endureci muito após o affair Ibsen Pinheiro... (ABREU, 2012, p. 200)
26
A expressão “narrador-repórter” é emprega nesta seção final do trabalho no sentido de que Caio contou
histórias, explorando recursos estético-literários diversos, o que o aproxima do mundo da literatura, o que
permite a adoção do termo “narrador” que alude mais diretamente à capacidade criativa. O termo “repórter” é
132
REFERÊNCIAS
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usado para referenciar mais estreitamente o vínculo dos textos cronísticos do autor com o jornalismo. Enfim,
“narrador-repórter” procura sintetizar o diálogo que a crônica de Caio estabelece entre literatura e jornalismo.
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