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Trecho do livro: As três idades da
vida interior", de Reginald Garrigou-
Lagrange. Editora Cultor de Livros.
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O que é o defeito dominante?

Ele é, em nós, aquele que tende a


prevalecer sobre os outros e, assim,
sobre nossa maneira de sentir, de
julgar, de simpatizar, de querer e de
agir. É um defeito que, em cada um de
nós, tem uma relação íntima com
nosso temperamento individual . Há
temperamentos voltados para a
moleza, a indolência, à preguiça, à
gula, à sensualidade. Existem outros
voltados sobre tudo para a cólera e o
orgulho. Nós não subimos todos pela
mesma vertente para o cume da
perfeição; os que são de
temperamento mole devem, pela
oração, pela graça, pela virtude,
tornar-se fortes; aqueles que são
naturalmente
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naturalmente fortes a ponto de serem
facilmente rígidos, trabalhando sobre
si mesmos e pela graça, devem tornar-
se mansos.
Antes dessa transformação
progressiva do temperamento, o
defeito dominante de cada um se
manifesta. Ele é nosso inimigo
doméstico, no interior de nós
mesmos, pois ele pode, caso se
desenvolva, chegar a arruinar por
completo a obra da graça ou a vida
interior. Às vezes, ele é como a fissura
de um muro que parece sólido, mas
não o é, como uma trinca, às vezes
imperceptível, mas profunda, na bela
fachada de um edifício, que um forte
abalo pode demolir. Por exemplo,
uma antipatia, uma repugnância
instintiva contra alguém, se não for
vigiada e corrigida pela reta razão,
pelo espírito de fé e pela caridade,
pode produzir desastres em uma alma
e
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e levá-la a graves injustiças, pelas
quais ela faz maior mal para si mesma
do que para o próximo, pois é mais
prejudicial cometer a injustiça do que
sofrê-la.
O defeito dominante é tanto mais
perigoso porque, frequentemente,
vem comprometer nossa qualidade
principal, que é uma feliz inclinação
de nossa natureza, que deveria
desenvolver-se e ser aperfeiçoada pela
graça. Por exemplo, alguém é
naturalmente inclinado à mansidão,
mas em consequência de seu defeito
dominante, que pode ser a moleza,
sua mansidão degenera em fraqueza,
em excessiva indulgência, e pode
chegar a perder toda a energia.
Outra pessoa, ao contrário, é
naturalmente inclinada à força, mas,
se deixa à vontade seu temperamento
irascível, sua força degenera em
violência irracional, causa de todo
tipo de desordens.
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tipo de desordens.
Em todo homem existe o preto e o
branco, há um defeito dominante e,
também, uma qualidade natural. Se
estamos em estado de graça, existe em
nós uma tração especial da graça, que
geralmente vem primeiro aperfeiçoar
em nossa natureza aquilo que de
melhor existe nela, para irradiar-se,
em seguida, sobre o que é não é tão
bom. Assim, alguns são levados à
contemplação, outros para a ação. É
preciso, pois, vigiar particularmente
para que o defeito dominante não
venha a sufocar nossa principal
qualidade natural, nem nossa atração
especial da graça. De outro modo,
nossa alma se assemelharia a um
campo de trigo invadido pelo joio ou
cizânia, de que se fala no Evangelho.
E nós temos um adversário, o
demônio, que procura exatamente
desenvolver cada vez mais nosso
defeito dominante para nos pôr em
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defeito dominante para nos pôr em
conflito com aqueles que trabalham
conosco no campo do Senhor. O
Salvador nos diz em São Mateus 12,25:
“O reino dos céus é semelhante a um
homem que havia semeado boa
semente em seu campo. Mas
enquanto os homens dormiam, seu
inimigo veio e semeou o joio no meio
do trigo e foi embora”. E Jesus explica
que o inimigo é o demônio (v. 39), que
procura destruir a obra de Deus,
contrapondo uns aos outros aqueles
que deveriam colaborar santamente
para uma mesma obra de eternidade.
Ele é hábil em fazer crescer nossos
olhos para os defeitos de nosso
próximo, para transformar um grão
de areia em montanha, pondo uma
espécie de lupa em nossa imaginação
para que nos irritemos contra nossos
irmãos, em lugar de trabalhar com
eles. Por aí se vê quanto mal pode
provir
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provir, em cada um de nós, de nosso
defeito principal se não estamos
muito atentos a ele. Às vezes, ele é
como um verme que rói um belo
fruto.

Como conhecer nosso defeito dominante?

Primeiramente, é claro que é muito


importante conhecê-lo, e não se
deixar iludir. Isto é tanto mais
necessário porque nosso adversário, o
inimigo de nossa alma, o conhece
muito bem e serve-se dele para causar
a perturbação em nós e em volta de
nós. Na cidadela de nossa vida
interior, defendida pelas diferentes
virtudes, o defeito dominante é como
um ponto fraco, não defendido pelas
virtudes teologais e pelas virtudes
morais. O inimigo das almas busca
precisamente esse ponto fraco em
cada pessoa, facilmente vulnerável, e
o sem
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o encontra sem dificuldade.
Assim, é necessário que nós também
o conheçamos.
Mas como discerni-lo? É bastante fácil
entre os iniciantes, quando eles são
sinceros. Mas, a seguir, o defeito
dominante é menos aparente, pois ele
procura ocultar-se e assumir as
aparências de uma virtude; o orgulho
se veste exteriormente de
magnanimidade, e a covardia procura
cobrir-se de humildade. É preciso,
entretanto, discernir o defeito
dominante, pois se ele não é
conhecido, não se pode combatê-lo, e
se não o combatemos, não existe
verdadeira vida interior.
Para o discernir, é preciso primeiro
pedir a luz a Deus: “Senhor, fazei-me
conhecer os obstáculos que, de modo
mais ou menos consciente, eu ofereço
ao trabalho da graça em mim. Dai-me,
a seguir, a força de afastá-los e, se eu
sou
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sou negligente em fazê-lo, dignai-vos
afastá-los vós mesmo, ainda que eu
deva sofrer muito com isto”.
Assim, depois de ter sinceramente
pedido a luz, é preciso examinar-se
seriamente. Como? Perguntando-se:
para que se inclinam minhas
preocupações mais ordinárias,
quando acordo pela manhã, ou
quando estou sozinho; para onde vão
meus pensamentos e meus desejos?
Aqui, é preciso lembrar que o defeito
dominante, que comanda facilmente
todas as nossas paixões, assume a
aparência de uma virtude e, se não é
combatido, poderia levar à
impenitência; Judas chegou a isso pela
avareza, que ele não tinha conhecido
e querido dominar; ela o conduziu
como um vento violento que
precipita um navio contra os
arrecifes. Igualmente, para discernir o
defeito dominante, é preciso
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perguntar-se: “Geralmente, qual é a
causa ou a fonte de minha tristeza e
de minha alegria? Qual é o motivo
geral de minhas ações, a origem de
meus pecados, sobretudo quando não
se trata de uma falta acidental, mas de
uma consequência de pecados ou de
um estado de resistência à graça,
notadamente quando este dura
muitos dias e nos leva a omitir nossos
exercícios de piedade. Então, é
preciso sinceramente procurar: por
quê minha alma se recusa a voltar ao
bem?
É preciso também dizer: “O que pensa
disso o meu diretor? Segundo ele,
qual é o meu defeito dominante? Ele é
melhor juiz do que eu”. De fato,
ninguém é bom juiz em causa própria;
aqui o amor próprio nos engana.
Muitas vezes, nosso diretor descobriu
em nós esse defeito antes de nós
mesmos. Talvez ele tenha tentado
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muitas vezes nos falar sobre isso. Será
que procuramos nos escusar?
Aqui, a escusa está pronta, pois o
defeito dominante excita facilmente
todas as nossas paixões, domina-as
como patrão, elas lhe obedecem
prontamente. É assim que o amor
próprio ferido excita logo a ironia, a
cólera, a impaciência. Além disso, o
defeito dominante, quando ele
deixou raiz em nós, tem uma
particular repugnância em se deixar
desmascarar e combater, porque quer
reinar em nós.
Às vezes, isto acontece a tal ponto,
que quando o próximo nos acusa
desse defeito, nós lhe respondemos:
“Eu posso ter muitas falhas, mas, na
verdade, não esta”.
Pode-se reconhecer também o defeito
dominante pelas tentações que nosso
inimigo suscita frequentemente em
nós, pois ele nos ataca sobretudo
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nesse ponto fraco de nossa alma.
Enfim, nos momentos de verdadeiro
fervor, as inspirações do Espírito
Santo vêm precisamente pedir-nos
sacrifícios neste exato ponto.
Se nós recorremos sinceramente a
esses diversos meios de discerni-
mento, não nos será muito difícil
reconhecer esse inimigo interior que
trazemos em nós, e que nos faz
escravos dele mesmo: “Aquele que se
entrega ao pecado é escravo do
pecado”, diz Jesus em São João (8,34).
É como uma prisão interior que
trazemos conosco, por onde quer que
vamos. Precisamos aspirar ardente-
mente à libertação. Que graça, se
encontramos um santo que nos diga:
“Eis o teu defeito dominante, e aqui
está tua principal atração da graça que
deves seguir generosamente para
chegar à união com Deus”! Foi assim
que Nosso Senhor chamou de filhos
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do trovão, Boanerges , aos jovens
apóstolos Tiago e João, que queriam
fazer descer fogo do céu sobre uma
aldeia que se recusara a recebê-los.
Lemos em São Lucas (9,56): “Ele os
repreendeu, dizendo: ‘Vós não sabeis
de que espírito estais animados! O
Filho do homem veio não para perder
os homens, mas para os salvar’”. Na
escola do Salvador, os Boanerges
tornaram-se mansos, de modo que,
no fim de sua vida, São João
Evangelista só sabia dizer uma coisa:
“Meus filhinhos, amai-vos uns aos
outros” (1Jo 3,18.23). E como lhe
perguntassem por que repetia sempre
a mesma coisa, ele respondia: “É o
preceito do Senhor, e se vós o
cumprirdes, isso basta”. João nada
perdera de seu ardor, de sua sede de
justiça, mas ela se espiritualizara e
estava acompanhada de grande
mansidão.
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Como combater o defeito dominante?

É muito necessário combatê-lo,


porque ele é o principal inimigo
interior, e quando ele é vencido, as
tentações já não são mais muito
perigosas, mas, ao contrário,
oportunidades de progresso.
Mas esse defeito principal não é
vencido enquanto não há um
verdadeiro progresso na piedade ou
na vida interior, enquanto a alma não
chegou a um verdadeiro e estável
fervor da vontade, isto é, àquela
prontidão da vontade ao serviço de
Deus, que é, segundo São Tomás, a
essência da verdadeira devoção . Para
este combate espiritual, é preciso
recorrer a três meios principais: a
oração, o exame e uma sanção. A
oração sincera: “Senhor, mostrai-me
o principal obstáculo para minha
santificação, aquele que me impede
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de aproveitar as graças e as
dificuldades exteriores que recairiam
para o bem de minha alma, se eu
soubesse recorrer melhor a vós nessas
ocasiões”. Os santos chegavam até a
dizer, como São Louis-Bertrand: “Hic
ure, Domine, hic seca, ut in aeternum
parcas”. “Queimai aqui, Senhor,
cortai em mim tudo o que me impede
de ir a vós, para que me agracieis
eternamente.” O Beato Nicolas de
Flüe dizia também: “Senhor, tira de
mim tudo o que me impede de ir a Ti;
dá-me tudo o que me conduzirá a Ti;
toma-me de mim e dá-me todo a Ti”.
Esta oração não nos dispensa do
exame; ao contrário, leva a ele. E,
como diz Santo Inácio, conviria
sobretudo aos iniciantes escrever
cada semana quantas vezes cederam a
esse defeito dominante, que quer
reinar neles como um tirano. É mais
fácil caçoar, sem frutos, deste método,
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do que pô-lo em prática frutuosa-
mente. Se nós contamos o dinheiro
gasto e o que recebemos, é ainda mais
útil saber aquilo que perdemos e o
que ganhamos, do ponto de vista
espiritual, para a eternidade.
Enfim, é extremamente conveniente
impor-se uma sanção, uma
penitência, a cada vez que recaímos
nesse defeito. Esta penitência pode
ser uma oração, um momento de
silêncio, uma mortificação interior ou
exterior. Existe aí uma reparação da
falta e uma satisfação pela pena que
lhe é devida. Ao mesmo tempo, assim
se adquire mais atenção para o futuro.
Assim muitos foram curados do
hábito de soltar maldições, impondo-
se a cada vez a obrigação de dar uma
esmola como reparação. Antes de
vencer nosso defeito dominante,
nossas virtudes são antes boas
inclinações naturais do que verdadei-
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ras e sólidas virtudes enraizadas em
nós. Antes desta vitória, a fonte das
graças ainda não está aberta sobre
nossa alma, pois ainda procuramos
demais a nós mesmos e não vivemos o
suficiente para Deus.
É preciso, enfim, vencer a
pusilanimidade, que nos leva a pensar
que nosso defeito dominante não
pode ser erradicado. Com a graça,
podemos superá-lo, pois, como diz o
Concílio de Trento (Sessão VI, cap.
II), citando Santo Agostinho, “Deus
jamais ordena o impossível, mas, ao
nos dar seus preceitos, manda fazer o
que podemos e pedir a graça para
cumprir o que não podemos”.
Já foi dito que, aqui, o combate
espiritual é mais necessário que a
vitória, pois se nós nos dispensamos
da luta, abandonamos a vida interior
e não tendemos mais para a perfeição.
Não se pode fazer a paz com nossos
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defeitos.
Enfim, não se deve acreditar em nosso
adversário quando ele procura nos
persuadir de que essa luta só convém
aos santos para chegar às mais altas
regiões da espiritualidade. A verdade
é que, sem essa luta perseverante e
eficaz, nossa alma não pode aspirar
sinceramente à perfeição cristã, para a
qual o preceito supremo nos faz
tender como um dever de todos. Este
preceito é, de fato, sem limites:
“Amarás o Senhor teu Deus de todo o
teu coração, de toda a tua alma, de
todas as tuas forças, de todo o teu
espírito, e a teu próximo como a ti
mesmo” (Lc 10,27).
Sem essa luta, não se tem a alegria
interior, nem a paz, pois a
tranquilidade da ordem ou da paz
provém do espírito de sacrifício;
somente ele nos estabelece
interiormente na ordem, fazendo
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morrer tudo o que há de desregrado
em nós.
Então, finalmente, a caridade, o amor
a Deus e às almas em Deus, acaba por
prevalecer realmente sobre o defeito
dominante; então ela ocupa
verdadeiramente o primeiro lugar em
nossa alma e ali reina eficazmente. A
mortificação, que faz desaparecer
nosso defeito principal, liberta-nos,
assegura a predominância em nós de
nossas verdadeiras qualidades
naturais e de nossa especial atração
pela graça. Chegamos, assim, pouco a
pouco, a ser nós mesmos, no sentido
amplo da palavra, isto é, a ser nós
mesmos sem nossos defeitos. Não se
trata de copiar mais ou menos
servilmente as qualidades de outrem,
nem de entrar em um molde
uniforme, o mesmo para todos; há
uma grande variedade nas
personalidades humanas, assim como
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não se encontram duas folhas ou duas
flores perfeitamente semelhantes.
Mas não se deve apenas tolerar seu
temperamento, é preciso transformá-
lo, conservando o que ele tem de
bom, e é preciso que o caráter seja, em
nosso temperamento, a marca das
virtudes adquiridas e infusas,
sobretudo das virtudes teologais.
Então, em lugar de dirigir tudo para si
mesmo, como quando o defeito
dominante reina em nós, somos
levados a dirigir tudo para Deus, a
pensar nele quase constantemente e a
viver somente para ele, levando de
algum modo para ele todos aqueles
que vêm a nós."

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Páginas 383 a 391, do livro As três
idades da vida interior", de Reginald
Garrigou-Lagrange. Para adquirir a
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