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ENTREVISTA

A função da advocacia pública é fundamental à


superação da crise democrática
Uma conversa com o professor Marcelo Neves sobre o papel dos advogados públicos na defesa do Estado
Democrático de Direito

DOUGLAS ZAIDAN

26/07/2021 10:56

Reprodução/Twitter

Marcelo Neves, jurista, professor titular de direito público da Universidade de Brasília


e ex-advogado público, foi entrevistado pelo Observatório da Advocacia Pública.
Autor de diversas obras sobre o constitucionalismo e os limites do Estado
Democrático de Direito, Neves trabalha na finalização do seu novo livro, sobre a
Transdemocracia,
Você e, nesta
leu 5 de 10 matérias a que entrevista, aponta
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acesso desafios
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da advocacia pública no Brasil para a superação de conhecidos problemas
constitucionais do país.

Entre as principais formas de contribuição dos advogados públicos para a


recondução democrática da atuação estatal, o autor destaca a sensibilidade da
advocacia pública aos limites do sistema jurídico, de modo que, nos casos difíceis,
não se criem limitações ao debate público e à democracia.

Prof. Marcelo Neves, poderia contar um pouco da sua experiência como advogado
público?

Eu iniciei a carreira como advogado público muito jovem. Fiz o concurso com 23
anosleu
Você e entrei
5 de 10na Procuradoria
matérias a que temda Cidade
direito do Recife,
no mês. ainda
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Às vezes havia pressões políticas, principalmente, porque ainda havia prefeitos


vinculados aos militares, mas procurei sempre zelar pela independência no exercício
das atividades de consultoria. Sempre mantive muito rigor, aplicando com todo
cuidado os parâmetros jurídicos, sem aceitar essas pressões. Acho que o
fundamental na advocacia pública, seja como advocacia de estado ou advocacia de
governo, tem que ser uma advocacia vinculada às instituições, não subordinada ao
arbítrio concreto do eventual detentor de poder.

Como foi trabalhar numa Procuradoria Municipal de uma capital como Recife? Que
questões poderia destacar sobre a relação entre a Procuradoria e a Prefeitura?

Como atuei na consultoria, houve momentos, evidentemente, de tensão entre a


própria chefia do Executivo e os nossos pareceres. Eu me lembro de um projeto de
interesse de vereadores governistas sobre nomes de lojas em que afirmei uma
posição contrária ao que esperavam o Secretário e o Prefeito. Apesar de uma reação
grande, prevaleceu a minha posição. Nós tínhamos esse papel de convencer, de
persuadir o Poder Público de que era necessário seguir os parâmetros legais. Muitas
vezes nossos pareceres eram bem aceitos. Então, num determinado momento,
criou-se uma assessoria especial para emitir pareceres sob encomenda e, dessa
forma, esvaziou-se um pouco a autonomia técnica do nosso trabalho.

Como era o desafio de conciliar a vida acadêmica com as atividades de


procurador?

Foi muito difícil, embora tanto na prefeitura quanto na universidade, à época, eu


atuasse em regime de tempo parcial. Entrei na Prefeitura em 1981 e na universidade
em 1983. Eu tinha uma tendência acadêmica muito forte e o trabalho na prefeitura
limitava o tempo e dificultava o meu trabalho acadêmico. Algumas vezes ajudou,
porque certos estudos que fiz no plano municipal me ajudaram a compreender
certas questões acadêmicas, mas no geral foi muito difícil para mim. Foi por isso
que em 1996, já depois do doutorado, deixei definitivamente a Procuradoria
Municipal do Recife para me dedicar exclusivamente à vida acadêmica. Minha
experiência foi muito boa, aprendi muito. Mas houve um certo esvaziamento dos
temas mais relevantes depois que se criou uma assessoria especial, que ficava com
as questões mais sensíveis, enquanto nós, justamente os integrantes da consultoria
vinculada à advocacia de estado, ficávamos com os temas rotineiros. Esse
esvaziamento me deixou sem motivação, porque havia muita quantidade e pouca
qualidade nas discussões dos casos. Assim, resolvi me afastar para me dedicar
exclusivamente à vida acadêmica.

Como você enxerga as atividades dos advogados públicos no atual contexto


Você leu 5 de 10 matérias a que tem direito no mês. Quer acesso ilimitado?
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institucional do Brasil?
É fundamental que a advocacia pública assuma o seu papel institucional,
principalmente neste momento difícil, em que temos um governo com fortes traços
autoritários, com uma postura de concentração de poder. Seja enquanto advocacia
de estado ou de governo, a advocacia pública não pode se subordinar ao arbítrio, às
vontades políticas do eventual detentor de poder. Atualmente é relevante que a
Advocacia-Geral da União e a advocacia pública em geral assumam esse papel difícil
de atuar em defesa do Estado Democrático de Direito no Brasil.

Poderia exemplificar como o desempenho de determinadas atividades dos


advogados públicos pode contribuir para a superação desse estado de crise
democrática, de crise do Estado de Direito hoje no Brasil?

Em todos aqueles casos em que não for adequada a posição do detentor de poder
eventual (seja o Presidente da República, sejam os governadores, sejam os ministros
ou secretários de estados e municípios, ou seja, em todos esses níveis), é
fundamental que a advocacia pública, por meio da consultoria, atue de forma
esclarecedora com base na Constituição e na lei. No contexto da atuação
contenciosa, é preciso que o advogado público esclareça aos detentores do poder
que, em muitos casos, certas ações judiciais são incabíveis em um formato
puramente político, vinculado aos interesses pessoais do detentor do poder. Antes
de qualquer ação que seja ajuizada contra alguém, ou contra uma entidade qualquer,
cabe à advocacia do Estado esclarecer ao eventual detentor do poder se aquela ação
tem algum sentido jurídico ou se é um mero ato de intimidação, de assédio judicial
contra alguém. Principalmente nessa área do assédio judicial, a Advocacia-Geral da
União tem um papel fundamental de evitar a sua utilização pelo poder dominante do
momento para fins escusos, contra jornalistas, contra professores, contra
funcionários públicos, contra integrantes diversos de movimentos sociais.

No livro Entre Hidra e Hércules: princípios e regras constitucionais, você aponta


para problemas da falta de consistência no processo de interpretação jurídica e
constitucional com o advento do neoconstitucionalismo e o abuso do uso de
princípios pelos juristas. De que forma a atuação da advocacia pública poderia
minimizar esses problemas?

A questão dos princípios em determinado momento se tornou apenas um elemento


retórico para facilitar o uso livre do direito, a instrumentalização do direito pelos
juristas. É claro que os princípios são importantes, mas deve ficar claro que os
princípios servem para abrir o sistema jurídico e fortificar a sua capacidade de
aprendizado. O fechamento dos casos precisa de uma regra clara que estabeleça
precedentes. Com o principialismo dominante a partir da década de 1990, houve um
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abuso e, dessa maneira, a inconsistência passou a ser um problema cada vez mais
grave. A inconsistência jurídica no Judiciário e na prática do Ministério Público
apontava para soluções ad hoc. Um caso típico é o caso da prisão em segunda
instância, em que os próprios ministros do Supremo mudavam de posição a cada
circunstância política determinada. A advocacia pública, ao atuar nessa área, precisa
deixar claro que os princípios constitucionais e legais têm que estar vinculados a
regras que levem à consistência jurídica e, nesse particular, esclarecer que o modelo
de inconsistência jurídica leva a uma insegurança para os cidadãos e uma
insegurança para o próprio Poder Público. Nesse sentido, a advocacia pública tem
um papel de lutar por consistência. Consistência implica na continuidade do sistema,
de forma que as transformações que venham a ocorrer vão exigir uma carga
argumentativa altíssima, para que haja um overruling, como se diz na tradição
americana. É preciso que haja argumentos novos, elementos também do caso que
possibilitem essa transformação. Então, a advocacia pública tem um papel
esclarecedor para o Judiciário e para os detentores eventuais de poder.

No contexto da interpretação de regras e princípios em casos difíceis na área da


consultoria, como deveria o advogado público expressar sua preocupação com a
democracia?

Nos casos difíceis o caminho mais correto da advocacia pública é aquele que não
crie limitações ao debate público, que não crie limites à democracia. A postura em
casos difíceis tem que ser aquela que reconheça os limites do sistema jurídico e
procure atuar com sensibilidade para o sistema político. Dessa maneira, aliando a
consistência com essa sensibilidade para o ambiente político do sistema jurídico,
criam-se condições propícias para oferecer respostas politicamente adequadas, ou
seja, respostas democraticamente adequadas. Essa é a minha perspectiva para a
atuação da advocacia pública dentro de um Estado Democrático de Direito, que é
Estado de Direito, mas é democrático. A dimensão jurídica é primária em um Estado
de Direito. A dimensão política é a democracia. Se o Judiciário se expande
excessivamente, em casos difíceis principalmente, para limitar a representatividade
democrática e as lutas políticas democráticas, ele acaba fragilizando a democracia.

Na sua tese de doutorado você considerou que a operatividade do sistema jurídico


do Brasil sofreria as consequências da insuficiência de diferenciação do direito,
que estaria sujeito às constantes interferências dos códigos do poder e do
dinheiro. Esse diagnóstico permanece atual?

Acho que hoje esse diagnóstico se fortificou. Teve um momento em que estava
havendo um avanço no sentido da consolidação do Estado de Direito. E o que é o
Estado de Direito? O Estado de Direito, de certa maneira, é marcado pela autonomia
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operacional do direito, que se reproduz com seus próprios critérios, seus próprios
códigos de diferença, licitude/ilicitude. Além disso, o Direito é também um segundo
código para o sistema político (para o poder) no Estado de Direito. No momento em
que não há esses elementos, o que ocorre é uma subordinação difusa do direito a
pactos e pressões diretas do poder, do dinheiro. Isso vai minando a capacidade do
direito de se reproduzir consistentemente e, portanto, de dar respostas adequadas.
Nesse sentido, ter consistência é um pressuposto para que a resposta seja
socialmente adequada. Então, mantenho esse diagnóstico, em especial diante da
situação mais recente de degradação constitucional pela qual estamos passando,
principalmente a partir do Governo Bolsonaro, mas ainda antes, a partir do
impeachment, um golpe parlamentar com apoio do Judiciário, que não tinha base
jurídicas consistentes. A partir desse momento o jogo do poder passou a prevalecer
destrutivamente em relação à linguagem do direito. Assim, estamos nessa situação
muito mais grave do que aquela anterior, que eu dizia que era de
constitucionalização simbólica. Na constitucionalização simbólica a referência
constitucional, de certa maneira, podia ser um ponto de partida para a construção do
Estado de Direito e da democracia.

Como poderiam os advogados públicos, no exercício do controle da legalidade dos


atos da administração, colaborar com a mudança desse cenário?

O ponto fundamental é uma formação jurídica tecnicamente rigorosa, mas que,


nessa construção da legalidade, não perde a compreensão da resposta que o direito
tem que dar para uma sociedade amplamente desigualitária, amplamente
excludente. A legalidade tem que ser interpretada a partir da Constituição e a
Constituição tem um conjunto de normas e de direitos fundamentais, individuais,
coletivos, mas também sociais, que possibilitam, dentro de um desenvolvimento
constitucional, uma transformação da ordem social. É claro que isso é difícil, mas eu
diria que, no caso brasileiro, se há uma legalidade constitucionalmente fundada
avançando, desenvolvendo-se com o apoio da advocacia pública e outras
instituições públicas, isso pode levar a uma transformação profunda, podendo até
ser revolucionário, no sentido de que o modelo de sociedade se modifica. O contexto
social brasileiro adequar-se à Constituição implicaria realmente em uma outra
formação social, diversa da que temos agora. Portanto, a legalidade nesse sentido
não é conservadora, no contexto de uma legalidade constitucional. Defendo a tese
de que ela pode ser altamente transformadora. Não que a legalidade não possa
converter-se no legalismo formalista e inconsequente, levando a retrocessos
políticos e à manutenção do status quo. Estou falando de legalidade e não de um
legalismo, ou seja, defendo uma legalidade fundada no caráter includente de nosso
modelo constitucional. Essa legalidade a advocacia pública pode fortificar e, dessa
maneira, contribuir não só para a transformação do sistema jurídico, mas para a
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transformação de todos os sistemas sociais no caso brasileiro.
Chegamos à nossa última pergunta: outro ponto muito presente nas suas obras e
palestras é o conceito de corrupção sistêmica. Poderia esclarecê-lo e apresentar a
sua visão sobre como o modo de funcionamento das nossas instituições reforça a
sua tese?

O conceito de corrupção sistêmica é muito perigoso, pois pode ser deturpado e me


vincular, por exemplo, a esse combate à corrupção irresponsável que vimos
recentemente no Brasil. Não tem nada a ver com isso. Não é um conceito moralista,
nem é um conceito jurídico penal. O termo “corrupção” poderia até ser evitado, nesse
caso, para não criar maiores dificuldades de compreensão. O conceito trata de uma
superposição de códigos de conduta de uma esfera, ou seja, de um sistema social
sobre outro. Nesse contexto, temos que ter um código mais fraco de conduta e
códigos mais fortes. Então, quando esse código fraco, no nosso caso o direito, não
tem condições de reagir às pressões, aos bloqueios do poder e do dinheiro (e
também de outras variáveis sociais), é evidente que se fala de uma corrupção
sistêmica do direito. Não é necessário que haja um crime ou que haja algo que seja
moralmente absurdo, mas sim que a estrutura social impeça que o campo dos
direitos (do direito ou dos direitos) tenha força suficiente em face da lógica
econômica, da lógica do poder. A racionalidade jurídica é super explorada pela
racionalidade política e econômica, ficando subordinada não de forma estrutural
como uma estrutura totalitária ou autoritária, mas de forma difusa dentro da própria
estrutura social. É isso que é a concepção de corrupção sistêmica. E, nesse sentido,
corrupção sistêmica ocorreu com a Operação Lava Jato. Houve ali uma corrupção
sistêmica clara: o próprio direito atuando subordinado primariamente (não
secundariamente) pelo código do poder. E aí temos realmente uma noção mais
abrangente do que seja corrupção sistêmica. Não tem nada a ver com essa
linguagem utilizada contra a corrupção penal, que também é grave no Brasil, mas
isso é um aspecto secundário no conceito de corrupção sistêmica.

Estamos chegando ao final da nossa entrevista. Além de agradecer a sua atenção


e disponibilidade, gostaria de saber se quer acrescentar algo sobre o que não foi
perguntado.

Foi um prazer ter participado dessa entrevista. A Associação das Advogadas e


Advogados Públicos para a Democracia – APD tem um papel muito importante
nesse momento difícil pelo qual passa o Brasil. Vocês da Associação tiveram, têm e
terão um papel importante para que superemos esse estado de coisas com fortes
características autoritárias no qual nos encontramos atualmente.

Os artigos publicados pelo Observatório da Advocacia Pública representam a


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DOUGLAS ZAIDAN – Advogado público federal, doutor em Direito pela FD/UnB.

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