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O Carpeaux dos
Correspondência, vida intelectual
O que pode revelar
o epistolário de José
Guilherme Merquior
| por joão cezar de castro rocha
A história de um arquivo
O
trabalho pioneiro de Marcos Antonio
de Moraes com a correspondência de
Mário de Andrade esclareceu definitiva-
mente a centralidade da epistolografia na
reconstrução tanto de um sistema literário quanto
do percurso individual de um criador. O esboço
que apresento de uma análise inicial do acervo de
José Guilherme Merquior não seria possível sem a
metodologia desenvolvida pelo autor de Orgulho de
jamais aconselhar1.
Nesse sentido, vale a pena recordar o processo
de montagem do “Arquivo José Guilherme Mer-
quior/É Realizações”. Graças à exemplar generosi-
dade de Julia Merquior, o editor Edson Manoel de
Oliveira Filho teve acesso a aproximadamente 50
caixas, fechadas, contendo toda a documentação
reunida pelo autor de A natureza do processo. De
imediato, mencione-se que os papéis de Merquior
já seencontravam em “estado de arquivo”, por assim
dizer. A ordenação dos documentos, definida pelo
próprio Merquior, foi respeitada, servindo de orien-
tação para a primeira classificação do acervo2.
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outros
e pensamento
(Cuidado, porém: em alguma medida, é
mister enriquecer a leitura da obra do au-
tor de O estruturalismo dos pobres, distan-
ciando-a, ainda que estrategicamente, das
polaridades e, ainda pior, dos binarismos
definidores dessas três décadas.)
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fotos: arquivo josé guilherme merquior/é realizações dossiê merquior
Recupere-se o contexto.
O poeta fora encarregado da organização de uma antologia,
Poesia do Brasil, lançada em 1963. Tarefa feita sob medida para o
autor de O ritmo dissoluto; afinal, conhecedor mais completo e so-
fisticado da tradição literária seria difícil de encontrar.
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Dois pontos chamam imediatamente a atenção. Vejamos.
Eis a caracterização fornecida por Merquior de si mesmo: “um Um fragmento de sua reflexão originou o artigo publicado na
jovem crítico literário brasileiro”. Em missiva posterior, escrita em Revue d’Esthéthique (vol. 23, nº 3-4, 1970, p. 365-382), “Analyse
Londres para Ernest Gellner, apresentou-se como “sociólogo di- structurale des mythes et analyses des œuvres d’art”. O trabalho, na
letante”, numa indicação eloquente da ampliação progressiva de íntegra, foi traduzido por Juvenal Hahne Jr. e publicado em 1975
seu horizonte de preocupações. Além disso, ao mencionar seu co- (Editora Tempo Brasileiro e Editora da Universidade de Brasília).
nhecimento da obra do antropólogo francês, não hesitou: “que eu Em 2013, saiu uma segunda edição (É Realizações).5 Por fim, em
conheço, por assim dizer, toda”. 1977, o ensaio saiu em sua língua original, numa edição da PUF.
Nada menos do que isso: toda a obra de Claude Lévi-Strauss! O mais importante, porém, foi a reação de Lévi-Strauss, conhe-
Se o antropólogo ficou surpreso, não se sabe. Contudo, a leitu- cido por seu temperamento reservado. Em 22 de janeiro de 1969,
ra de ácidas páginas de Tristes tropiques, dedicadas justamente à ele escreveu uma carta que, certamente, foi lida, relida e treslida
atualização vertiginosa do repertório bibliográfico dos alunos da com grande emoção intelectual:
recém-fundada Universidade de São Paulo, autoriza imaginar
aquele sorriso no canto dos lábios que o pai de Janjão recomendava
evitar a todo custo. No entanto, em breve, a argúcia e sobretudo a
disciplina do brasileiro seriam devidamente reconhecidas.
Explique-se o caso.
Dois dias depois do envio da missiva, o jovem diplomata de 25
anos recebeu uma resposta que deve ter sido celebrada com uma
bela garrafa de vinho:
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dossiê merquior
(Nos dias narcíseos que correm, penso no teórico que, sem lhe notas ínfimas, ridículas até. E o mais inquietante, porém sin-
constrangimento aparente, publica em jornal de grande circulação tomático: sem vergonha alguma! Eis a respiração artificial dos que
mensagem (bissexta) de correio eletrônico (!) recebida imagine- medram à sombra de patotas.)
mos, de Wolfgang Iser. É sempre assim: a dupla dinâmica teórico-
crítica, tão implacável com o alheio, nunca se dá conta do ridículo Os aspectos intelectual e afetivo são evidentes na carta que Gell-
de seu comportamento.) ner escreveu em 15 de novembro de 1990:
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A missiva do autor de Two concepts of liberty recorda a de Lévi taneamente as duas posições. Eis o modelo teórico que almeja ser
-Strauss, já que, além de salientar o mérito do trabalho de Merquior, dinâmico, a fim de dar conta da complexidade do contemporâneo,
aprofundamento da interlocução por meio do envio de textos. mas sem deixar de assinalar a permanência de assimetrias decisivas
nas trocas simbólicas — entre outras.)
(Fórmula sutil, sem dúvida, encontrada por Sir Berlin; aliás,
também empregada por Lévi-Strauss na carta de 22 de janeiro Inversão radical, dizia.
de 1969. Como se desejassem corrigir a famosa frase atribuída a Pois é.
Raymond Aron — Ce jeune homme a tout lu. Não, devagar com o José Guilherme Merquior assumiu o inesperado papel de um
andor, ninguém pode ter lido tudo!) Otto Maria Carpeaux dos outros.
Mais uma vez, o ponto decisivo: Berlin propunha um diálogo O Carpeaux deles
entre pares; claro, no sentido de fellows, não na acepção de iguais,
pois Merquior nunca considerou que seus livros fossem compará- Merquior: o Carpeaux dos outros.
veis às obras de Claude Lévi-Strauss, Ernest Gellner e Isaiah Ber- Isto é: europeus e norte-americanos.
lin. Ressalve-se, porém, que seu precoce falecimento o impediu de Explico.
aprofundar seu grande tema: a crise da cultura e suas consequên- Melhor: arrisco uma hipótese, e assim concluo.
cias nas mais diversas esferas do fazer humano. Contudo, como A vida intelectual na América Latina, grosso modo, principiou
vida intelectual nada tem a ver com corrida de cavalos, o que conta sob a chancela de algum europeu perdido do outro lado do Atlânti-
é correr no mesmo páreo. co. Ora, a mera expressão do outro lado do Atlântico esclarece como
Disse que o elogio de Gellner — “um esplêndido resumo do uma simples península — a Europa, geograficamente considerada
tema” — não foi mero sinal de cortesia, — tornou-se o continente-motriz dos primórdios
aparentado ao reconhecimento polido “José Guilherme da globalização contemporânea. Nem preciso
que, por exemplo, Ernest Renan oferecia aduzir exemplos, basta um exercício despreten-
a todo aspirante a poeta que batia em sua Merquior virou pelo sioso de memória para identificar inúmeras “Mis-
porta, como relata Joaquim Nabuco em
Minha formação.
avesso a dinâmica sões Artísticas Francesas” nos países do continen-
te. Basta consultar os repertórios bibliográficos e
Ernest Gellner era de outra cepa. Em da vida cultural descobrir Paul Groussac na Argentina, José Gaos
1996 organizou, com César Cantino Or- no México, Otto Maria Carpeaux no Brasil, entre
tiz, o livro-tributo Liberalism in dodern em contextos não uma miríade de casos similares.
times – Essays in honour of José Guilher- hegemônicos”
me Merquior.7 E, no prefácio à coletânea (Um exemplo definitivo para abalar o orgu-
de ensaios publicada por Merquior em lho pátrio? O técnico de futebol húngaro Béla
inglês, The veil and the mask, levantou a Guttmann foi fundamental na modernização do
lebre que me permite concluir este longo esboço. Nas suas palavras: esporte no Brasil, e isso justamente um pouco antes da Copa de
“J. G. Merquior é um brasileiro que tem escrito e obtido distinções 1958. Técnico do São Paulo, em 1957, Guttmann introduziu no país
acadêmicas tanto em francês quanto em português. Com este tra- o então revolucionário sistema tático 4-2-4, valorizando um jogo
balho, ele demonstra dominar uma nova subcultura linguística do agressivo, sempre em busca do gol. Vicente Feola, técnico da sele-
mundo ocidental, além de sua intimidade com o conteúdo de n ção brasileira campeã do mundo na Suécia, fazia parte da comissão
subculturas intelectuais”.8 técnica do São Paulo. Preciso acrescentar algo?)
Intelectual em trânsito, portanto.
Um “anarquista cultural”,9 Merquior virou pelo avesso a dinâ- Eis a inversão do modelo: Merquior: Carpeaux dos outros.
mica da vida cultural em contextos não hegemônicos. A associação não é gratuita. Em carta de 26 de janeiro de 1978,
escrita praticamente na véspera da morte do austríaco, Francisco
(Anote aí: deixemos de lado o vocabulário que gravita em torno Costa Rodrigues relatou a Merquior: “Outro dia, quando estive lhe
das noções de centro e periferia, pois as relações atuais num mun- fazendo uma visita, falamos de você. Ele aprecia o seu trabalho e
do globalizado são muito mais complexas, e não se compreendem lembro-me quando afirmou: o Merquior é um crítico sério”.
bem por meio de metáforas espaciais, que tendem a sugerir pontos A ironia corta fundo.
fixos. Precisamos, pelo contrário, privilegiar a dimensão temporal A seriedade de Merquior, isto é, sua sólida formação, possibi-
e o fluxo contínuo de ideias, mercadorias e pessoas. No entanto, as litada pelo acesso direto à bibliografia internacional recente, e, em
assimetrias culturais, linguísticas, políticas e econômicas somente sentido mais amplo, o fortalecimento do sistema nacional de pós-
se afinam e afirmam hoje em dia. Daí, por que não pensar em ter- graduação, ocorrida exatamente na década de 1960, foram fatores
mos de circunstâncias hegemônicas e não hegemônicas? Tais cir- decisivos para a superação progressiva, porém inexorável, do papel
cunstâncias são cambiáveis, e, muitas vezes, podem ocupar simul- de Carpeaux como arauto da civilização europeia, organizador do
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dossiê merquior
(Ainda bem.)
NOTAS
1 Recomendo o indispensável livro de Marcos Antonio de Moraes,
Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade
(São Paulo: EDUSP, 2007).
2 O historiador Maurício G. Righi deu uma colaboração fundamental na
montagem do “Arquivo José Guilherme Merquior/ É Realizações”.
3 Claro, trata-se de homenagem ao ensaio de Antonio Candido, O
método crítico de Sílvio Romero. Idealmente, gostaria de escrever
uma série de livros similares, palmilhando a crítica literária e cultural
latino-americana. Mas talvez já não disponha de tempo para o projeto.
Publicado pela primeira vez em 1945, por ocasião do concurso de
Literatura Brasileira da USP, a reedição mais recente é de 2006 (Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul).
4 José Guilherme Merquior. Razão do poema. Ensaios de crítica e de
estética. 3ª edição. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 241-286.
5 José Guilherme Merquior. A estética de Lévi-Strauss. 2ª edição.
O
São Paulo: É Realizações, 2013. Edição enriquecida por posfácios de
Christopher Domínguez Michael e Eduardo Cesar Maia. intelectual verdadeiramente independente e autônomo — como bem
6 O primeiro doutorado de José Guilherme Merquior foi defendido, alertou Alfonso Reyes — quase sempre angaria impopularidade, sobre-
e aprovado com louvor, na Sorbonne, sob a orientação de
Raymond Cantel. A correspondência com o orientador encontra-se tudo entre seus coetâneos. De fato, a recusa, por parte de um pensador,
devidamente preservada no “Arquivo José Guilherme Merquior / É a filiações dogmáticas, seja a uma escola, doutrina ou abordagem teórica, acaba,
Realizações”. O trabalho de conclusão, escrito em francês e traduzido
por Marly de Oliveira, resultou no livro Verso universo em Drummond invariavelmente, fazendo com que ele receba ataques não somente por um, mas
(São Paulo: É Realizações, 2012, 3ª edição). por todos os lados, já que não conta com “proteção” corporativa de qualquer
7 Ernest Gellner & César Cansino (orgs.). Liberalism in modern times
– Essays in honour of José Guilherme Merquior. New York: Central
grupo. A trajetória intelectual de José Guilherme Merquior (1941-1991) — pare-
European University Press, 1996. O livro conta com uma preciosa ce-me — pode ser encaixada nessa caracterização. Poucos pensadores brasileiros
“Annotated bibliography of José G. Merquior”, preparada por César
souberam compreender e cotejar, com tanta argúcia e independência de juízo, as
Cansino & Victor Alarcón (p. 219-228).
8 Ernest Gellner. “Foreword”. In: José Guilherme Merquior, The veil principais correntes teóricas — e muitas houve — desenvolvidas no século 20 no
and the mask: Essays on culture and ideology. Londres: Routledge, campo das ciências humanas, em geral, e no da teoria da literatura, em particular.
1979, p. X.
9 Assim, Merquior se caracterizou em entrevista concedida a Caio Esse período — a “Era da Teoria”, como a denomina Terry Eagleton — caracteri-
Túlio Costa: “Se eu tivesse que me definir (...) diria o seguinte: sou zou-se justamente pela profusão de tendências no campo das ciências humanas
positivamente liberal em economia, social-democrata em política
e anarquista em cultura”. Caio Túlio Costa. “Merquior, o ‘anarquista e pela reformulação radical da orientação filosófica e do vocabulário empregado
cultural’”. Folhetim, 12 de dezembro de 1986, nº 514, p. 4. nesse mesmo âmbito. Merquior soube guiar seu pensamento em franco diálogo
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