Você está na página 1de 7

dossiê merquior

O Carpeaux dos
Correspondência, vida intelectual
O que pode revelar
o epistolário de José
Guilherme Merquior
| por joão cezar de castro rocha
A história de um arquivo

O
trabalho pioneiro de Marcos Antonio
de Moraes com a correspondência de
Mário de Andrade esclareceu definitiva-
mente a centralidade da epistolografia na
reconstrução tanto de um sistema literário quanto
do percurso individual de um criador. O esboço
que apresento de uma análise inicial do acervo de
José Guilherme Merquior não seria possível sem a
metodologia desenvolvida pelo autor de Orgulho de
jamais aconselhar1.
Nesse sentido, vale a pena recordar o processo
de montagem do “Arquivo José Guilherme Mer-
quior/É Realizações”. Graças à exemplar generosi-
dade de Julia Merquior, o editor Edson Manoel de
Oliveira Filho teve acesso a aproximadamente 50
caixas, fechadas, contendo toda a documentação
reunida pelo autor de A natureza do processo. De
imediato, mencione-se que os papéis de Merquior
já seencontravam em “estado de arquivo”, por assim
dizer. A ordenação dos documentos, definida pelo
próprio Merquior, foi respeitada, servindo de orien-
tação para a primeira classificação do acervo2.

(Se levarmos adiante o paralelo com Mário de


Andrade, recorde-se que o autor de Macunaíma or-
ganizou seu vasto material com rigor que não deve-
ria nada ao método propriamente germânico de um
Theodor Koch-Grünberg, por exemplo.)

Curiosamente o setor que mais exigiu trabalho


foi o da correspondência.
Compreende-se bem a dificuldade.
Nesse caso, um autêntico embarras de choix.
Pois há de tudo nas missivas de Merquior; aliás,
o acervo contém sobretudo a correspondência pas-
siva do pensador.

8
outros
e pensamento
(Cuidado, porém: em alguma medida, é
mister enriquecer a leitura da obra do au-
tor de O estruturalismo dos pobres, distan-
ciando-a, ainda que estrategicamente, das
polaridades e, ainda pior, dos binarismos
definidores dessas três décadas.)

Outra observação importante para ca-


Cartas, cartas, cartas racterizar a complexidade da correspon-
dência aqui discutida: a primeira carta de
A precocidade foi a marca-d’água da tra- José Guilherme Merquior a Claude Lévi
jetória de Merquior. Antes de completar -Strauss data de 1966. Em outras palavras,
20 anos, o jovem crítico já havia con- embora o volume maior das missivas diga
quistado notoriedade através de artigos respeito à troca com brasileiros, deve-se re-
publicados no Suplemento Dominical gistrar o número igualmente considerável
do Jornal do Brasil. Seu carteio, por isso de mensagens com pensadores e escritores
mesmo, atravessa três décadas, aproxi- de vários países, aí incluídos os nomes, en-
madamente de 1961 a 1991. tre outros, de Ernest Gellner, Norberto Bo-
E que décadas! bbio, Claude Lévi-Strauss, Raymond Aron,
Não apenas no Brasil. Isaiah Berlin. Isso para não mencionar o
No plano internacional, o período nutrido carteio com editores de seus últi-
abrange o auge da Guerra Fria, com a cri- mos livros, escritos em inglês.
se dos mísseis em Cuba, ocorrida em ou- Não é tudo.
tubro de 1962, assim como seu término, Leitor onívoro, dono de uma curiosida-
pelo menos formal, com a queda do Muro de renascentista — no primeiro momento,
de Berlim, sucedida em novembro de 1989. especialmente estética e filosófica; em se-
Um tempo, portanto, traduzido à perfei- guida, sobretudo política e social —, sua
ção pelos versos de Carlos Drummond correspondência envolve poetas, romancis-
de Andrade: “Esse é um tempo de parti- tas, jornalistas, críticos literários, cientistas
do,/ tempo de homens partidos”. Não será políticos, sociólogos, filósofos, diplomatas
casual, portanto, que discussões acerca do e mesmo políticos, compondo um arco de
marxismo e do liberalismo sempre retor- interesses e um horizonte de preocupações
nem aqui e ali na correspondência. de um alcance pouco comum – e isso em
No plano brasileiro, esses foram trinta qualquer latitude.
anos dramáticos: passamos pela eleição e
renúncia de Jânio Quadros; a posse de João Uma ou outra carta, apenas
Goulart, incialmente sob o parlamentaris-
mo, depois sob o presidencialismo, cujo Você entendeu: começo a esboçar um fu-
retorno foi decidido em plebiscito; che- turo livro, dedicado ao método crítico de
gamos ao golpe militar de abril de 1964 José Guilherme Merquior,3 a ser elaborado
e os longos anos de chumbo da ditadura; em íntima conexão com sua correspon-
o processo lento de redemocratização e a dência, em particular, e com a totalida-
promulgação da anistia; e, por fim, a rea- de de seu acervo, em geral. Neste artigo,
lização das primeiras eleições diretas para portanto, apenas discutirei umas poucas
presidente da república. cartas, assinalando tão-só dois ou três
Essa simples lista de eventos escla- elementos e, acima de tudo, sublinhan-
rece o alcance da correspondência de do certo gesto intelectual que importa, e
Merquior, pois, em mais de uma ocasião, muito, resgatar.
para além de dados próprios do dia a dia Ao trabalho, pois.
dos missivistas, as questões ideológicas e Começo com uma carta do jovem Mer-
políticas do calor da hora dominavam a quior, enviada ao consagrado Manuel Ban-
conversa. deira em 27 de janeiro de 1962:

9
fotos: arquivo josé guilherme merquior/é realizações dossiê merquior

Recupere-se o contexto.
O poeta fora encarregado da organização de uma antologia,
Poesia do Brasil, lançada em 1963. Tarefa feita sob medida para o
autor de O ritmo dissoluto; afinal, conhecedor mais completo e so-
fisticado da tradição literária seria difícil de encontrar.

(Mais uma vez — e isso em qualquer latitude.)

Missão, sem embargo, delicada. Bandeira iniciou seus exercí-


cios poéticos com dicção parnasiana, e, se não compareceu à Sema-
na de Arte Moderna, autorizou a leitura de “Os sapos” no festival. A
partir de então foi um dos criadores decisivos da poesia brasileira,
e um de seus marcos no século 20. Nesse caso, como superar um
dilema ético elementar, isto é, como incluir poemas seus na coletâ-
nea? Autêntico homem-ponte entre o passado recente, o presente
vanguardista de 1922 e o futuro possível da poesia pós-1945, o au-
tor de A cinza das horas lançou novo elo entre tempos, convidando,
em suas palavras, “algum rapaz menor de trint’anos: ele represen-
taria para os da geração de 22 uma espécie de posteridade”. Desse
modo, coube a Merquior o encargo de selecionar os poetas moder-
nos e seus poemas mais representativos.
Impressiona que o jovem crítico tenha sido escolhido pois, no
fundo, ele estava em plena formação. Na recordação de Bandeira,
“José Guilherme Merquior, a quem eu não conhecia ainda pessoal-
mente, senão por alguns artigos de crítica de poesia publicados no
suplemento literário do Jornal do Brasil”. Nesse contexto, a carta
de Merquior adquire cor própria. O respeito, reverência mesmo, é
evidente. No entanto, sobressai sua independência, traço que per-
manecerá o motivo definidor de um gesto intelectual de grande
alcance no mundo contemporâneo.

(Calma! Espere o final deste breve artigo.)

Veja-se, então, a carta enviada ao autor de La pensée sauvage no


dia 14 de novembro de 1966:

10
Dois pontos chamam imediatamente a atenção. Vejamos.
Eis a caracterização fornecida por Merquior de si mesmo: “um Um fragmento de sua reflexão originou o artigo publicado na
jovem crítico literário brasileiro”. Em missiva posterior, escrita em Revue d’Esthéthique (vol. 23, nº 3-4, 1970, p. 365-382), “Analyse
Londres para Ernest Gellner, apresentou-se como “sociólogo di- structurale des mythes et analyses des œuvres d’art”. O trabalho, na
letante”, numa indicação eloquente da ampliação progressiva de íntegra, foi traduzido por Juvenal Hahne Jr. e publicado em 1975
seu horizonte de preocupações. Além disso, ao mencionar seu co- (Editora Tempo Brasileiro e Editora da Universidade de Brasília).
nhecimento da obra do antropólogo francês, não hesitou: “que eu Em 2013, saiu uma segunda edição (É Realizações).5 Por fim, em
conheço, por assim dizer, toda”. 1977, o ensaio saiu em sua língua original, numa edição da PUF.
Nada menos do que isso: toda a obra de Claude Lévi-Strauss! O mais importante, porém, foi a reação de Lévi-Strauss, conhe-
Se o antropólogo ficou surpreso, não se sabe. Contudo, a leitu- cido por seu temperamento reservado. Em 22 de janeiro de 1969,
ra de ácidas páginas de Tristes tropiques, dedicadas justamente à ele escreveu uma carta que, certamente, foi lida, relida e treslida
atualização vertiginosa do repertório bibliográfico dos alunos da com grande emoção intelectual:
recém-fundada Universidade de São Paulo, autoriza imaginar
aquele sorriso no canto dos lábios que o pai de Janjão recomendava
evitar a todo custo. No entanto, em breve, a argúcia e sobretudo a
disciplina do brasileiro seriam devidamente reconhecidas.
Explique-se o caso.
Dois dias depois do envio da missiva, o jovem diplomata de 25
anos recebeu uma resposta que deve ter sido celebrada com uma
bela garrafa de vinho:

O início da carta é grandiloquente: na acepção de Racine, o gê-


Inscrito como aluno regular no Collège de France, Merquior nio, de um nada, faz um tudo.
tinha a obrigação de desenvolver um trabalho, a ser exposto oral- Traduzindo: Merquior fez um tudo — ensaio de fôlego, futuro
mente numa das sessões do seminário de Lévi-Strauss. Ambicioso, livro — de um nada — ou, sejamos mais precisos, um quase nada;
e, ao mesmo tempo, fiel às suas origens, o autor de Razão do poe- ou, sejamos ainda mais exatos, uma preocupação que à época não
ma expandiu o ensaio de maior fôlego do livro de estreia, no qual ocupava a centralidade dos esforços do antropólogo: a estética.
discutiu um tema que nunca abandonou, “Estética e antropologia Há mais nesta carta.
– Esquema para uma fundamentação antropológica da universali- Muito mais.
dade da arte”.4 A sequência dos parágrafos significa o reconhecimento pleno,
Pois bem: L’Esthétique de Lévi-Strauss: o tema da exposição oral por parte de Lévi-Strauss, do “jovem crítico literário” como um
do “jovem crítico literário brasileiro”. O desafio implicava a releitu- possível interlocutor — e o ponto é decisivo. Não se trata, porém,
ra de “toda a obra”, isolando frases, identificando parágrafos e ques- de provincianismo às avessas, típico do teórico ou do escritor tu-
tões atinentes à reflexão estética. O resultado da ousadia foi mais do piniquim que divulga na imprensa cartas eventualmente trocadas
que recompensador. com nomes estrangeiros de ponta.

11
dossiê merquior

(Nos dias narcíseos que correm, penso no teórico que, sem lhe notas ínfimas, ridículas até. E o mais inquietante, porém sin-
constrangimento aparente, publica em jornal de grande circulação tomático: sem vergonha alguma! Eis a respiração artificial dos que
mensagem (bissexta) de correio eletrônico (!) recebida imagine- medram à sombra de patotas.)
mos, de Wolfgang Iser. É sempre assim: a dupla dinâmica teórico-
crítica, tão implacável com o alheio, nunca se dá conta do ridículo Os aspectos intelectual e afetivo são evidentes na carta que Gell-
de seu comportamento.) ner escreveu em 15 de novembro de 1990:

fotos: arquivo josé guilherme merquior/é realizações


Na verdade, quero assinalar o gesto intelectual subjacente à
trajetória de Merquior.
Alguns anos depois, agora em Londres, o autor de Formalismo
& tradição moderna escreveu a Ernest Gellner mensagem similar
à enviada a Lévi-Strauss. Idêntico resultado: recebe prontamente
uma resposta, principiando um mestrado na prestigiosa London
School of Economics and Political Sciences.
Mestrado, eu escrevi, e você leu corretamente.
Eis uma das descobertas propiciadas pela organização do acer-
vo de Merquior: foi do próprio Gellner a decisão de transformar o
que seria uma dissertação de mestrado numa tese de doutorado.
Entenda-se.
Melhor: menciono uma longa carta, de 9 páginas, na qual Gell-
ner avaliava o texto que originaria a futura dissertação. Impressio-
nado com a qualidade e o escopo do que terminara de ler, o mestre
inglês sugeriu a mudança de nível.
“Not bad at all”, deve ter pensado o “sociólogo diletante”. Mer-
quior obteve o segundo título de doutor.6
Às anotações minuciosas de Gellner, o brasileiro acrescentou
seus comentários à margem da carta. Em geral, acatou os conselhos
do orientador; aqui e ali, porém, insistiu em seus pontos de vista.
Afinal, não se tratava de um reverente aluno latino-americano em O elogio de Gellner não foi protocolar e muito menos
busca da aprovação do mestre europeu, porém da criação de um determinado pelas lentes generosas da amizade; afinal, Isaiah Ber-
diálogo entre pares. lin também se interessou pela síntese da história da ideia liberal.
É o que se depreende de carta escrita em 2 de janeiro de 1991:
(Em 2016, quantos arriscamos o mesmo salto?)

Ora, a solicitação mais enfática de Gellner dizia respeito ao


estilo de Merquior! Não poderia temperar o traço ensaístico, a
fim de corresponder com maior exatidão ao figurino usual de
uma tese acadêmica?
Você sabe que o autor de Saudades do carnaval não abriu mão
do ensaísmo, que, muito jovem, aprendeu a admirar, especialmente
na obra de Walter Benjamin.
Gellner entendeu a resistência do “orientando” e não levantou ob-
jeções ao texto final apresentado por Merquior. Pelo contrário, manti-
veram uma fecunda amizade intelectual, favorecida por laços de afeto.

(Por favor, não confunda tudo. Esse cenário em nada recorda a


cordialidade à brasileira, pois o cimento da amizade foi a afinida-
de intelectual. Trata-se, antes, do modelo, bem inglês, das “literary
friendships”. Aqui, consagra-se o afeto, jogando-se a reflexão para
escanteio. Apenas nessa terra da ética devastada um teórico de re-
nome e uma crítica reconhecida podem unir forças e, em concurso
de abrangência nacional, na melhor tradição da Cosa nostra, des-
classificar o título de desafeto comum, simplesmente atribuindo-

12
A missiva do autor de Two concepts of liberty recorda a de Lévi taneamente as duas posições. Eis o modelo teórico que almeja ser
-Strauss, já que, além de salientar o mérito do trabalho de Merquior, dinâmico, a fim de dar conta da complexidade do contemporâneo,
aprofundamento da interlocução por meio do envio de textos. mas sem deixar de assinalar a permanência de assimetrias decisivas
nas trocas simbólicas — entre outras.)
(Fórmula sutil, sem dúvida, encontrada por Sir Berlin; aliás,
também empregada por Lévi-Strauss na carta de 22 de janeiro Inversão radical, dizia.
de 1969. Como se desejassem corrigir a famosa frase atribuída a Pois é.
Raymond Aron — Ce jeune homme a tout lu. Não, devagar com o José Guilherme Merquior assumiu o inesperado papel de um
andor, ninguém pode ter lido tudo!) Otto Maria Carpeaux dos outros.

Mais uma vez, o ponto decisivo: Berlin propunha um diálogo O Carpeaux deles
entre pares; claro, no sentido de fellows, não na acepção de iguais,
pois Merquior nunca considerou que seus livros fossem compará- Merquior: o Carpeaux dos outros.
veis às obras de Claude Lévi-Strauss, Ernest Gellner e Isaiah Ber- Isto é: europeus e norte-americanos.
lin. Ressalve-se, porém, que seu precoce falecimento o impediu de Explico.
aprofundar seu grande tema: a crise da cultura e suas consequên- Melhor: arrisco uma hipótese, e assim concluo.
cias nas mais diversas esferas do fazer humano. Contudo, como A vida intelectual na América Latina, grosso modo, principiou
vida intelectual nada tem a ver com corrida de cavalos, o que conta sob a chancela de algum europeu perdido do outro lado do Atlânti-
é correr no mesmo páreo. co. Ora, a mera expressão do outro lado do Atlântico esclarece como
Disse que o elogio de Gellner — “um esplêndido resumo do uma simples península — a Europa, geograficamente considerada
tema” — não foi mero sinal de cortesia, — tornou-se o continente-motriz dos primórdios
aparentado ao reconhecimento polido “José Guilherme da globalização contemporânea. Nem preciso
que, por exemplo, Ernest Renan oferecia aduzir exemplos, basta um exercício despreten-
a todo aspirante a poeta que batia em sua Merquior virou pelo sioso de memória para identificar inúmeras “Mis-
porta, como relata Joaquim Nabuco em
Minha formação.
avesso a dinâmica sões Artísticas Francesas” nos países do continen-
te. Basta consultar os repertórios bibliográficos e
Ernest Gellner era de outra cepa. Em da vida cultural descobrir Paul Groussac na Argentina, José Gaos
1996 organizou, com César Cantino Or- no México, Otto Maria Carpeaux no Brasil, entre
tiz, o livro-tributo Liberalism in dodern em contextos não uma miríade de casos similares.
times – Essays in honour of José Guilher- hegemônicos”
me Merquior.7 E, no prefácio à coletânea (Um exemplo definitivo para abalar o orgu-
de ensaios publicada por Merquior em lho pátrio? O técnico de futebol húngaro Béla
inglês, The veil and the mask, levantou a Guttmann foi fundamental na modernização do
lebre que me permite concluir este longo esboço. Nas suas palavras: esporte no Brasil, e isso justamente um pouco antes da Copa de
“J. G. Merquior é um brasileiro que tem escrito e obtido distinções 1958. Técnico do São Paulo, em 1957, Guttmann introduziu no país
acadêmicas tanto em francês quanto em português. Com este tra- o então revolucionário sistema tático 4-2-4, valorizando um jogo
balho, ele demonstra dominar uma nova subcultura linguística do agressivo, sempre em busca do gol. Vicente Feola, técnico da sele-
mundo ocidental, além de sua intimidade com o conteúdo de n ção brasileira campeã do mundo na Suécia, fazia parte da comissão
subculturas intelectuais”.8 técnica do São Paulo. Preciso acrescentar algo?)
Intelectual em trânsito, portanto.
Um “anarquista cultural”,9 Merquior virou pelo avesso a dinâ- Eis a inversão do modelo: Merquior: Carpeaux dos outros.
mica da vida cultural em contextos não hegemônicos. A associação não é gratuita. Em carta de 26 de janeiro de 1978,
escrita praticamente na véspera da morte do austríaco, Francisco
(Anote aí: deixemos de lado o vocabulário que gravita em torno Costa Rodrigues relatou a Merquior: “Outro dia, quando estive lhe
das noções de centro e periferia, pois as relações atuais num mun- fazendo uma visita, falamos de você. Ele aprecia o seu trabalho e
do globalizado são muito mais complexas, e não se compreendem lembro-me quando afirmou: o Merquior é um crítico sério”.
bem por meio de metáforas espaciais, que tendem a sugerir pontos A ironia corta fundo.
fixos. Precisamos, pelo contrário, privilegiar a dimensão temporal A seriedade de Merquior, isto é, sua sólida formação, possibi-
e o fluxo contínuo de ideias, mercadorias e pessoas. No entanto, as litada pelo acesso direto à bibliografia internacional recente, e, em
assimetrias culturais, linguísticas, políticas e econômicas somente sentido mais amplo, o fortalecimento do sistema nacional de pós-
se afinam e afirmam hoje em dia. Daí, por que não pensar em ter- graduação, ocorrida exatamente na década de 1960, foram fatores
mos de circunstâncias hegemônicas e não hegemônicas? Tais cir- decisivos para a superação progressiva, porém inexorável, do papel
cunstâncias são cambiáveis, e, muitas vezes, podem ocupar simul- de Carpeaux como arauto da civilização europeia, organizador do

13
dossiê merquior

pensamento alheio, classificador de suas cole-


ções. Também por essa nova constelação, o autor
O humanismo crítico em A
de História da literatura ocidental e, título sinto-
mático (!), Pequena bibliografia crítica da litera-
estética de Lévi-Strauss
tura brasileira, passou a dedicar-se mais e mais a A arte como forma de conhecimento
temas políticos, especialmente a partir do golpe e de acesso privilegiado ao real
militar de 1964.
A ironia talvez seja ainda mais surpreendente. | por eduardo cesar maia
E se ousássemos imaginar que, em seus últi-
mos livros, Merquior assumiu o inesperado pa-
pel de um Carpeaux dos europeus, e, em alguma
medida, dos norte-americanos? Ora, livros como
Foucault (1985), From Prague to Paris: a criti-
que of structuralist and post-structuralist thought
(1986), Western marxism (1986) e Liberalism, old
and new (1991) realizam uma síntese, crítica e
ambiciosa, seja de um autor determinado, seja da
tradição ocidental em certos campos do conhe-
cimento.
Claro, você tem razão: trata-se de hipótese
inicial; portanto, este artigo deve ser lido como
um primeiro passo — apenas isso.
Há muito trabalho pela frente.

(Ainda bem.)

NOTAS
1 Recomendo o indispensável livro de Marcos Antonio de Moraes,
Orgulho de jamais aconselhar: a epistolografia de Mário de Andrade
(São Paulo: EDUSP, 2007).
2 O historiador Maurício G. Righi deu uma colaboração fundamental na
montagem do “Arquivo José Guilherme Merquior/ É Realizações”.
3 Claro, trata-se de homenagem ao ensaio de Antonio Candido, O
método crítico de Sílvio Romero. Idealmente, gostaria de escrever
uma série de livros similares, palmilhando a crítica literária e cultural
latino-americana. Mas talvez já não disponha de tempo para o projeto.
Publicado pela primeira vez em 1945, por ocasião do concurso de
Literatura Brasileira da USP, a reedição mais recente é de 2006 (Rio de
Janeiro: Ouro sobre Azul).
4 José Guilherme Merquior. Razão do poema. Ensaios de crítica e de
estética. 3ª edição. São Paulo: É Realizações, 2013, p. 241-286.
5 José Guilherme Merquior. A estética de Lévi-Strauss. 2ª edição.

O
São Paulo: É Realizações, 2013. Edição enriquecida por posfácios de
Christopher Domínguez Michael e Eduardo Cesar Maia. intelectual verdadeiramente independente e autônomo — como bem
6 O primeiro doutorado de José Guilherme Merquior foi defendido, alertou Alfonso Reyes — quase sempre angaria impopularidade, sobre-
e aprovado com louvor, na Sorbonne, sob a orientação de
Raymond Cantel. A correspondência com o orientador encontra-se tudo entre seus coetâneos. De fato, a recusa, por parte de um pensador,
devidamente preservada no “Arquivo José Guilherme Merquior / É a filiações dogmáticas, seja a uma escola, doutrina ou abordagem teórica, acaba,
Realizações”. O trabalho de conclusão, escrito em francês e traduzido
por Marly de Oliveira, resultou no livro Verso universo em Drummond invariavelmente, fazendo com que ele receba ataques não somente por um, mas
(São Paulo: É Realizações, 2012, 3ª edição). por todos os lados, já que não conta com “proteção” corporativa de qualquer
7 Ernest Gellner & César Cansino (orgs.). Liberalism in modern times
– Essays in honour of José Guilherme Merquior. New York: Central
grupo. A trajetória intelectual de José Guilherme Merquior (1941-1991) — pare-
European University Press, 1996. O livro conta com uma preciosa ce-me — pode ser encaixada nessa caracterização. Poucos pensadores brasileiros
“Annotated bibliography of José G. Merquior”, preparada por César
souberam compreender e cotejar, com tanta argúcia e independência de juízo, as
Cansino & Victor Alarcón (p. 219-228).
8 Ernest Gellner. “Foreword”. In: José Guilherme Merquior, The veil principais correntes teóricas — e muitas houve — desenvolvidas no século 20 no
and the mask: Essays on culture and ideology. Londres: Routledge, campo das ciências humanas, em geral, e no da teoria da literatura, em particular.
1979, p. X.
9 Assim, Merquior se caracterizou em entrevista concedida a Caio Esse período — a “Era da Teoria”, como a denomina Terry Eagleton — caracteri-
Túlio Costa: “Se eu tivesse que me definir (...) diria o seguinte: sou zou-se justamente pela profusão de tendências no campo das ciências humanas
positivamente liberal em economia, social-democrata em política
e anarquista em cultura”. Caio Túlio Costa. “Merquior, o ‘anarquista e pela reformulação radical da orientação filosófica e do vocabulário empregado
cultural’”. Folhetim, 12 de dezembro de 1986, nº 514, p. 4. nesse mesmo âmbito. Merquior soube guiar seu pensamento em franco diálogo

14

Você também pode gostar