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Estado Social e Políticas Públicas

Aula 10
A arena de disputas na garantia dos direitos sociais: entre a
proteção social e sua judicialização

Objetivos Específicos
• Analisar o cenário atual de interferência e demandas do Poder Judiciário no
sistema de proteção social brasileiro, em nome dos direitos da população.

Temas

Introdução
1 Proteção social e judicialização
2 As respostas do Judiciário às demandas
Considerações finais
Referencias bibliográficas

Professora
Regina Celia de Souza Beretta
Estado Social e Políticas Públicas

Introdução
O presente texto, em sua primeira seção, discutirá o importante papel do Judiciário na
proteção e defesa dos direitos fundamentais dos cidadãos pós-constituinte.

A discussão versa sobre a tensão crescente entre expectativa da população na obtenção


de serviços, benefícios e outros direitos sociais, e a reforma do Estado, com a redução de
serviços públicos e os parcos investimentos em políticas sociais que precarizaram a proteção
social brasileira.

A segunda seção mostra os avanços na atuação do Judiciário com interferências no


planejamento estatal, por meio de ação civil, termos de ajuste de conduta ou acordos judiciais
na defesa da proteção social.

Em contrapartida, o texto aponta para as contradições do próprio Judiciário, que ainda


se pauta em paradigmas liberais e entende a questão social como individual, culpabilizando
indivíduos e famílias pela sua condição de pobreza e exclusão social.

O texto nos convida para repensar nossa atuação e os desafios diante da nova realidade
social, nas palavras de Yazbek (2010), pela via da mediação e de mecanismos de resistência,
para não perder e garantir os direitos sociais tão duramente conquistados.

1 Proteção social e judicialização


O conceito de cidadania na perspectiva liberal tornou-se ultrapassado e descomprometido,
pois cidadania era entendida como mero exercício de direitos políticos e/ou civis. Para
Esteves (2006, p. 41), a Constituição Federal aprovada em 1988 incluiu direitos e garantias
sociais e disponibilizou instrumentos de forte conteúdo social, adquirindo uma função mais
abrangente e reguladora da cidadania social.

A Constituição atribuiu aos juízes a função do controle de constitucionalidade das leis.


Assim, os juízes tornaram-se os “guardiões dos direitos individuais e de minorias” e atores
importantes do processo político (SIERRA, 2014, p. 31).

Na visão de Esteves (2006), na medida em que se ampliaram os direitos sociais, o Estado


tornou-se interventor destes, por meio do Legislativo, do Executivo e do Judiciário. A luta
agora é pela efetivação dos direitos sociais que não encontram efetividade em decorrência
dos muitos acordos econômicos e políticos do próprio Estado.

Em relação aos conflitos, Esteves (2006) argumenta que o Judiciário pode responder às
demandas por razões de eficácia das decisões, eficiência e acessibilidade e pode também
impedir uma discussão, um confronto. Tate e Vallinder (1995) apontam que atualmente a
decisão do Poder Judiciário sobre conflitos de ordem política vão muito além do social. O

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Poder Judiciário vem assumindo um papel único na defesa dos direitos sociais, a despeito
das críticas de sua formalidade e engessamento, especialmente aos relacionados à proteção
social, tais como a saúde, a educação e a assistência social.

Ao retomarmos aspectos da história do Brasil, vamos recordar que no Período Colonial e


Imperial, de acordo com Viana (1973, p. 140), “[...] o poder se constituía dos paradigmas do
latifúndio, da monocultura e da escravidão. Quem resolvia os conflitos, era o senhor dono da
terra, legislador e executor da justiça local”.

Viana (1973, p. 146) afirma ainda que o sistema de justiça não apoiou “[...] os cidadãos
sem fortuna, as classes inferiores, as camadas proletárias contra a violência, o arbítrio e a
ilegalidade”. Sua intervenção reforçou a ideia que os pobres eram “perigosos e vagabundos”,
reafirmando uma relação de estigma e repressão da sociedade da época.

O poder do Sistema Judiciário iniciou-se por volta de 1930 e 1940, no equacionamento


de problemas relativos à ordem e aos conflitos coletivos (SIERRA, 2014).

Em 1970, ao Ministério Público é atribuída a responsabilidade principal da defesa dos


interesses difusos e coletivos. A partir de 1980, vão atuar também da abertura do processo
judicial à representação desses direitos. De 1964 a 1988, “[...] a repressão se intensifica, e a
violência é mais uma vez atribuída aos pobres não integrados ao sistema produtivo” (SERRA,
2009, p. 221).

Figura 1 – Responsabilidades do Poder Judiciário/Ministério Público com o passar dos anos

O poder do Sistema Judiciário Atuação também da


iniciou-se por volta de 1930 e 1940, abertura do processo
no equacionamento de problemas judicial à representação
relativos à ordem e aos conflitos. desses direitos.

1930 1964 1980

1940 1970 1988

Defesa dos interesses difusos e coletivos


como responsabilidade principal

Há intensificação da repressão e a violência é


novamente atribuída aos pobres não
integrados ao sistema produtivo

Fonte: Adaptada de Serra (2009, 2014).

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Pós-constituição, houve a ampliação da intervenção do Poder Judiciário, fazendo com


que se reafirmasse a judicialização da política e da questão social.

Tate e Vallinder (1995) também destacam que a judicialização pode, ocasionalmente,


ocorrer em decorrência da omissão das instituições majoritárias, quando o Estado se retrai,
abdica da sua função, muitas vezes comprometendo a proteção social dos brasileiros.

Com a crise do capital, o Estado se desresponsabiliza sobre a “questão social”, com


redução de investimentos e serviços estatais, com a privatização, desemprego estrutural e
o subemprego. Nesse momento, os cidadãos buscam a sua proteção no sistema de justiça.

Devemos considerar ainda as diferentes condições de acesso aos serviços públicos.


Devido às desigualdades e disparidades regionais do território brasileiro, o acesso à justiça é
muito menor nas regiões mais vulneráveis e em situação de risco social.

Segundo Vianna, Burgos e Salles (2007, p. 41), o juiz tem se tornado protagonista direto
da questão social, em um processo claro de substituição do Estado e dos recursos.

Todavia, a judicialização pode representar uma alternativa para a efetivação de direitos


ou reforçar a ideia de poder de forma coercitiva ou repressiva, voltado para a normalização
de condutas (FÁVERO; MELÃO; JORGE, 2005).

Se de um lado a judicialização da política pode representar algo de positivo na proteção e


defesa dos direitos de cidadania, por outro, a judicialização da questão social pode significar o
aumento do poder de coerção e controle sobre as classes sociais mais vulneráveis, objetivando
à punição dos comportamentos antissociais.

2 As respostas do Judiciário às demandas


A democracia conquistada por meio dos movimentos sociais e estabelecida na
Constituição esclarece que o poder emana do povo e é exercido por ele, devendo ser
implementados mecanismos e formas mais participativas possíveis na formulação de
políticas públicas e na tomada de decisões, respeitando as diferentes formas de organização
e interesses distintos na sociedade.

Nos dias atuais de crise do capital e de perda de direitos, o Judiciário tomou proporções
tão relevantes que tem adentrado muitas vezes nos demais poderes constituídos, tornando-
se responsável, muitas vezes, até pela interferência no planejamento estatal.

É muito comum o Ministério Público ser provocado pelas demandas sociais dos cidadãos,
em casos de violação de direitos ou de não acesso aos direitos fundamentais. Nesses casos,
o Ministério Público pode notificar os estados e municípios para sua observância, por meio
de ação civil pública, termos de ajuste de condutas (TACs) ou ainda acordos judiciais. Esses
instrumentos são utilizados em diversas situações para o funcionamento adequado de

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serviços públicos, para obtenção de remédios de alto custo, concessão de órteses e próteses,
para a concessão de benefícios negados, como o Benefícios de Prestação Continuada (BPC) e
outros previstos pela Seguridade Social, respeito às cotas da educação, deterioração do meio
ambiente, entre outros.

Supremo Tribunal Federal...

“No Brasil, o problema talvez não seja de judicialização ou, em termos


mais simples, de interferência do Poder Judiciário na criação e implementação
de políticas públicas em matéria de saúde, pois o que ocorre, na quase
totalidade dos casos, é apenas a determinação judicial do efetivo cumprimento
de políticas públicas já existentes. [...] O primeiro dado a ser considerado é a
existência, ou não, de política estatal que abranja a prestação de saúde pleiteada
pela parte” (GILMAR MENDES – STF - 16-3-2010).

A ação civil pública é um instrumento processual, de ordem constitucional, destinado à


defesa de interesses difusos e coletivos (artigo 129, inciso III, da Constituição Federal).

Segundo o Ministério Público Federal (2015), os termos de ajustamento de conduta


(TACs) são documentos assinados pelas partes (Executivo e Judiciário), de forma a resolver o
problema que está causando ou a compensar danos e prejuízos já causados. Os TACs ou o
acordo judicial visam à agilização do processo. Os TACs antecipam a resolução dos problemas
de uma forma muito mais rápida e eficaz, do que se o caso fosse a juízo. São utilizados quando
a natureza dos problemas ou conflitos necessita de soluções rápidas, sob pena de o prejuízo
tornar-se definitivo e irreparável. Caso não se cumpram os TACS, o MP poderá aplicar multas
e levar o caso à Justiça.

Em que medida conquistamos a efetividade dos direitos sociais?

Os direitos sociais devem ser defendidos e garantidos pelo Sistema de Justiça,


especialmente quando são negados ou desrespeitados. Assim, a redução de investimentos

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públicos em serviços aumenta as expectativas por parte da população excluída, na esperança


que o Judiciário resolva os conflitos decorrentes, do não acesso às políticas sociais, aos
benefícios e aos direitos sociais constitucionais. Entretanto, muitas vezes, o próprio Judiciário
não consegue responder às necessidades dos cidadãos na sociedade capitalista em crise.

Podemos considerar que essas garantias legais de proteção dos direitos dos cidadãos
representam um grande avanço democrático. Em contrapartida, muitas vezes a visão do
Judiciário ainda trata a questão social na ótica individual, não adentrando na compreensão
da “questão social”. Focam suas decisões a partir da concepção de que os problemas sociais
são problemas individuais, não atuando no entendimento das suas reais causas.

Submersos numa ordem social que os desqualifica, marcados por clichês:


“inadaptados”, “marginais”, “problematizados”, portadores de altos riscos e
vulnerabilidades, os pobres representam a herança histórica da estruturação
econômica, política e social da sociedade brasileira. Fazem parte dessa história,
a tradição oligárquica e autoritária de uma sociedade de extremas desigualdades
e assimetrias, caracterizada por sempre insuficientes recursos e serviços voltados
para atender às necessidades dos segmentos das classes subalternas. (YAZBEK,
2010, p. 153-154).

Righetti e Alapanian (2014) desenvolveram pesquisas no interior da área da infância e


juventude, para entender o poder de Estado do Judiciário, observando, por meio do estudo
documental dos processos judiciais, que os atendimentos e encaminhamentos se caracterizam
basicamente pela natureza social.

Observaram, por exemplo, a existência de muitos processos iniciados a


partir de solicitações dos Conselhos Tutelares, com “pedidos de providências”
ao Ministério Público, para que provocasse o Poder Judiciário a dar uma
resposta aos conflitos ocorridos, em especial entre o conselho e as políticas
públicas e suas unidades de atendimento, como a escola, o sistema de saúde,
entre outros.

Os pesquisadores perceberam que mesmo após a promulgação do Estatuto da Criança


e do Adolescente, as crianças e os adolescentes de famílias vulneráveis continuam sendo
vítimas do sistema social, caracterizadas como incapazes no sustento, guarda e proteção de
sua prole, conceito do século passado imposto pela doutrina de situação irregular do Código
de Menores.

Evidentemente, os interesses dos cidadãos estão em jogo. A conquista da democracia

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e de instrumentos democráticos de participação popular não conseguiu superar a ordem


econômica do capitalismo, que processa desigualdades e pobreza, não superando também
os paradigmas da lógica liberal.

Considerações finais
Nesta aula pudemos perceber o importante papel do Judiciário na conquista dos direitos
sociais e na defesa e proteção social destes, para o alcance da cidadania.

A judicialização política, entretanto, faz que com a questão social seja tratada no âmbito
pessoal e individual, culpabilizando indivíduos e famílias pela exclusão social.

Enquanto avançamos do ponto de vista normativo de instrumentos de participação


e de defesa de direitos fundamentais, convivemos com a lógica liberal e as mudanças no
mundo do trabalho, que resultam em perda de direitos sociais, desemprego, ampliação das
desigualdades, redução da oferta de serviços públicos, entre outros.

Nesse sentido, Yazbek (2010, p. 154) nos fala da “[...] construção de resistências,
enfrentando as sombras que mergulham a imensa parcela de humanidade explorada,
enganada, iludida, massacrada, gente que fica à espera em longas filas para receber os
benefícios”.

Referências
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SIERRA, Vânia Morales. O poder judiciário e o serviço social na judicialização da política e da


questão social. SER Social, Brasília, v. 16, n. 34, p. 30-45, jan./jun. 2014.
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TATE, C. Neal; VALLINDER, Torbjorn. The global expansion os judicial power. New York: New
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154 jul./dez. 2010.

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