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Introdução
A importância atribuída por Max Weber ao fenômeno religioso está bem
registrada no seu extenso estudo realizado sobre as diferentes formas de conduta
humana orientadas por crenças e visões de mundo religiosas em diferentes sociedades
situadas e analisadas dentro de contextos históricos específicos. Neste sentido, o
conhecimento histórico e sociológico sobre as diferentes religiões mundiais produzido
por Weber é parte central de seu amplo projeto intelectual de compreensão da vida
social moderna, isto é, do advento da modernidade, tendo sua origem localizada no
desenvolvimento e expansão de uma cultura capitalista representado pela hegemonia de
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Mestre em ciências da religião pela Universidade Estadual do Pará (UEPA) e mestrando em sociologia
pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
uma conduta de vida orientada por uma racionalidade instrumental em todas as esferas
da existência social.
Este “espírito” do capitalismo, no Ocidente, se une a um estilo de vida religioso
– “ética protestante”, estabelecendo uma “afinidade eletiva” entre as duas esferas –
econômica e religiosa – fundante da modernidade, dominada por uma racionalidade
prática e calculista que passa a orientar de forma prevalente a subjetividade dos agentes
individuais, ou seja, dos sentidos dados a suas ações individuais.
Com o avanço do processo de racionalização universal, iniciado no Ocidente, o
“espírito” do capitalismo se distancia e se autonomiza de sua originária relação com
uma conduta de vida religiosa, e aprofunda o processo gradual de “desencantamento do
mundo”, ou seja, a “eliminação” do pensamento mágico-religioso como móvel e sentido
dominante das ações humanas, prevalente no mundo ocidental pré-capitalista e,
concomitante a este processo, a secularização da vida social, isto é, a perda de
centralidade e poder da religião – de suas instituições e visões de mundo – na
modernidade onde o “espírito”, pragmático, calculista e instrumental engendrado pelo
império da cultura capitalista, confinaria a religião a sua própria esfera de influência, ou,
para usar uma expressão weberiana, a sua “legalidade própria”.
Esta breve introdução da teoria weberiana sobre a sociedade moderna capitalista
faz-se necessária para se estabelecer uma ligação com o pano de fundo histórico-cultural
e o background teórico que orienta o tema deste estudo: a “pós-modernidade religiosa
brasileira interpretada segundo o conjunto de conceitos, teorias e categorias sociológicas
weberianas - tanto as consideradas como fundamentais (ação social, esferas de
existência social, tipos de dominação e tipo ideal) quanto as derivadas de sua produção
sociológica das religiões (modelos típico-ideais de instituições religiosas e especialistas
religiosos).
Neste sentido, a questão que se impõe, quase que de forma obrigatória, é como
se servir de um conjunto teórico-conceitual elaborado para se explicar e compreender
uma paisagem religiosa e um contexto histórico no qual esta paisagem se desenvolveu -
a Europa, no início de sua formação enquanto sociedade capitalista e das éticas
religiosas (seitas protestantes) as quais, segundo Weber, estabeleceram uma afinidade
com a esfera de ação econômica em formação – tão dispare, tanto de uma perspectiva
sincrônica quanto diacrônica, da sociedade brasileira contemporânea e a sua típica
paisagem religiosa.
Como ponto de partida preliminar para a resolução desta problemática, propõe-
se uma aproximação entre as teorias sobre a pós-modernidade religiosa que dão ênfase
ao crescente individualismo como uma de suas características seminais (Berger, 1985;
Taylor, 2010; Hervieu-Légger, 2015) -, e a complexa religiosidade brasileira na
contemporaneidade (início do século XXI).
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O “problema da teodiceia” em Weber, refere-se a um sentido de valor teológico que busca explicar e
justificar o sofrimento terreno dos homens, a existência do mal e da morte (WEBER, 1991).
de fatores responsável pelo encolhimento da religião católica no Brasil. Desde a crítica e
rejeição ao hermetismo dos dogmas da Igreja por um lado, bem como um próprio
movimento institucionalizado de crescente intelectualização (crescente uso de
linguagem metafórica e simbólica nas prédicas sacerdotais) de concepções centrais da
cultura cristã como as imagens do paraíso, inferno, purgatório ou da figura do diabo,
afastariam religiosos tanto os de baixa renda e baixo nível educacional pois são
“camadas negativamente privilegiadas às quais o intelectualismo é econômica e
socialmente inacessível (Weber, 1991, p. 332) quanto aqueles portadores de maior
capital cultural à procura de teodiceias mais racionais. Esta “crise na transmissão de
uma memória tradicional” católica em processo avançado na pós-modernidade é a fonte
de um processo de desgaste cada vez mais acentuado do carisma institucionalizado dos
especialistas da igreja. (HERVIEU-LÉGGER, 2015).
Assim, tanto no plano simbólico quanto na dimensão das práticas, o
individualismo católico dos mais escolarizados orientados em suas ações por suas
crenças mais sistemáticas e racionalizadas, se distanciam cada vez mais quantitativa e
qualitativamente do modelo ideal de Igreja, do qual a grande maioria teve sua
socialização religiosa primária e do qual se afastam pela rejeição aos dogmas
inacessíveis aos leigos, substituídos por crenças “mais racionais”; pela crítica e negação
à hierarquia sacerdotal considerada anacrônica e pouco carismática e pela
deslegitimação do monopólio institucional de administração e concessão dos dons da
graça, ao rejeitarem a prática da maioria dos sacramentos da igreja, vistos como
“mágicos”, sem sentido e pouco racionais (NEGRÃO, 2008).
Nesse sentido, a religiosidade deste segmento social dos católicos nominais é
moldada a partir da necessidade íntima de construção de suas próprias teodiceias
constituídas pela força de seu intelectualismo leigo no interior das quais as explicações
para a dor, o sofrimento e a salvação não sejam motivadas pela urgência da escassez
material. Assim, Weber explica que “A salvação que o intelectual busca sempre é uma
salvação de "aflição íntima" [...] de caráter mais profundo e sistemático do que a
salvação da miséria concreta que é própria das camadas não-privilegiadas. [...] [É um]
tipo filosófico de intelectualismo, cujos portadores são, em regra, as classes social e
economicamente asseguradas (1991, p. 343-344).
É de se considerar, no entanto, que na pesquisa de Negrão (2008), os católicos
nominais que apresentaram maiores níveis de instrução reproduziam efetivamente
crenças espíritas e do universo simbólico de filosofias religiosas de origem oriental ou
europeia, refletindo em sua pesquisa, com isso, os indicadores socioeconômicos em
escala nacional dos grupos religiosos – especialmente os espíritas – situados no topo da
pirâmide educacional e de renda, apresentando, segundo o censo (IBGE, 2010) as
maiores proporções de indivíduos com nível superior completo (31,5%) e os menores
índices de pessoas não alfabetizadas (1,8%) ou com nível fundamental incompleto
(15%) e no plano da renda, os grupos citados são aqueles que apresentam os maiores
rendimentos (acima de 5 salários mínimos) comparáveis aos demais grupos religiosos.
Estes números não refletem, necessariamente, a realidade socioeconômica e
cultural da maioria dos alto declarados católicos - que efetivamente não a praticam ou
reproduzem unilateralmente crenças católicas - no Brasil,
Portanto, levando-se em consideração a ainda liderança numérica dos católicos
no plano nacional (IBGE, 2010) pode-se inferir que esta religiosidade movida por um
racionalismo religioso mais sofisticado é típico das camadas sociais de renda e
escolaridade mais altas, e não de estratos mais pobres e menos instruídos do contingente
de católicos alto-declarados. Estes seriam possivelmente movidos, assim como
É possível entender que estes católicos nominais manifestam suas religiosidades
sob a égide de um cristianismo difuso e hibridizado – talvez o substrato religioso que
move o individualismo religioso brasileiro e condiciona sua complexa diversidade – e
que cada vez mais se afastam do catolicismo enquanto igreja8, ou seja, de sua forma
institucional. Mariz percebe a tensão entre os diversos “catolicismos” e a sua “versão”
institucional, ao postular que “Na verdade, o catolicismo é uma igreja dentro de uma
religião mais ampla e diversa que é o cristianismo” (2014, p. 57).
Novaes (2002) e Souza (2002) concordam ao associar o aumento progressivo do
número de fiéis que debandam da Igreja Católica aos ditos “católicos não-praticantes”.
Por outro lado, esta fuga de católicos nominais seria proporcional a uma definição cada
vez mais acentuada da identidade católica dos que permanecem nela (SOUZA, 2002).
Esta resistência identitária católica (CAMURÇA, 2014) seria ainda
preponderantemente motivada pela tradição, ou seja, pelo carisma tradicional e
institucionalizado da Igreja, ou pelas crenças nos santos populares (Padre Cícero) -
muito forte na Região Nordeste, com 80% da população autodeclarada católica
(CENSO 2000) e caracterizada por apresentar o maior contingente de pobres do país
(NOVAES, 2002).
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De acordo com o sentido típico-ideal empregado por Weber (1991).
No entanto, é preciso relativizar a força desta tradição, tanto no campo das
práticas quanto no das crenças. A preocupação com o grau de objetividade na
constituição dos dados obtidos por autodeclarações dos censos e institutos está
diretamente relacionado ao impacto que a tradição exerce no momento da entrevista,
quando o declarante afirma seu pertencimento. Sabendo-se que a religiosidade católica
está na base da socialização primária da maioria dos declarantes no Brasil, fica difícil
identificar, a não ser por análises mais qualitativas, se sua declaração corresponde a sua
religiosidade efetivamente praticada.