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O INDIVIDUALISMO METODOLÓGICO DE WEBER NA COMPREENSÃO

DO INDIVIDUALISMO RELIGIOSO BRASILEIRO NA


CONTEMPORANEIDADE
Daniel Silva Pinto1
Resumo
O presente artigo busca desenvolver uma proposta de construção de um modelo
analítico empregado na compreensão do fenômeno do individualismo religioso e seu
crescimento no campo religioso brasileiro contemporâneo (início do século XXI),
organizado em torno de teorias e conceitos fundamentais da sociologia weberiana, em
especial, aqueles aplicados em seu estudo sociológico das religiões. Na dimensão
macrossociológica, este modelo se propõe analisar os efeitos demográficos do
individualismo religioso na transformação do campo religioso brasileiro, auxiliado pelo
conjunto de dados extraídos de tradicionais institutos de pesquisa sociodemográfica
(IBGE) e instituições especializadas no estudo das religiões brasileiras (ISER) e de
estudiosos da religiosidade brasileira. No plano teórico, os modelos típicos-ideais de
instituições religiosas (igreja e seita) serão relacionados ao livre movimento dos agentes
leigos (individualismo religioso) em uma dinâmica de oposição e afastamento, no
interior de subcampos religiosos, dando ênfase aos efeitos do fenômeno do
individualismo no interior do majoritário campo cristão (católico e evangélico) além de
identificar o grupo dos “sem religião” (aqui tidos como religiosos, classificado como o
“tipo puro” de manifestação do individualismo). Estes três grupos (os que mais crescem
no Brasil, segundo dados dos institutos já citados) geram seus próprios tipos de
individualismo de acordo com a legalidade religiosa de cada subcampo ou esfera. Ao
final, propõe-se a aplicação deste modelo - construído em torno de dados
macrossociológicos – como adaptável a níveis de estudo em campos populacionais mais
restritos, como bairros e comunidades.

Palavras-chave: individualismo religioso. Pós-modernidade religiosa. Individualismo


metodológico.

Introdução
A importância atribuída por Max Weber ao fenômeno religioso está bem
registrada no seu extenso estudo realizado sobre as diferentes formas de conduta
humana orientadas por crenças e visões de mundo religiosas em diferentes sociedades
situadas e analisadas dentro de contextos históricos específicos. Neste sentido, o
conhecimento histórico e sociológico sobre as diferentes religiões mundiais produzido
por Weber é parte central de seu amplo projeto intelectual de compreensão da vida
social moderna, isto é, do advento da modernidade, tendo sua origem localizada no
desenvolvimento e expansão de uma cultura capitalista representado pela hegemonia de

1
Mestre em ciências da religião pela Universidade Estadual do Pará (UEPA) e mestrando em sociologia
pela Universidade Federal do Pará (UFPA).
uma conduta de vida orientada por uma racionalidade instrumental em todas as esferas
da existência social.
Este “espírito” do capitalismo, no Ocidente, se une a um estilo de vida religioso
– “ética protestante”, estabelecendo uma “afinidade eletiva” entre as duas esferas –
econômica e religiosa – fundante da modernidade, dominada por uma racionalidade
prática e calculista que passa a orientar de forma prevalente a subjetividade dos agentes
individuais, ou seja, dos sentidos dados a suas ações individuais.
Com o avanço do processo de racionalização universal, iniciado no Ocidente, o
“espírito” do capitalismo se distancia e se autonomiza de sua originária relação com
uma conduta de vida religiosa, e aprofunda o processo gradual de “desencantamento do
mundo”, ou seja, a “eliminação” do pensamento mágico-religioso como móvel e sentido
dominante das ações humanas, prevalente no mundo ocidental pré-capitalista e,
concomitante a este processo, a secularização da vida social, isto é, a perda de
centralidade e poder da religião – de suas instituições e visões de mundo – na
modernidade onde o “espírito”, pragmático, calculista e instrumental engendrado pelo
império da cultura capitalista, confinaria a religião a sua própria esfera de influência, ou,
para usar uma expressão weberiana, a sua “legalidade própria”.
Esta breve introdução da teoria weberiana sobre a sociedade moderna capitalista
faz-se necessária para se estabelecer uma ligação com o pano de fundo histórico-cultural
e o background teórico que orienta o tema deste estudo: a “pós-modernidade religiosa
brasileira interpretada segundo o conjunto de conceitos, teorias e categorias sociológicas
weberianas - tanto as consideradas como fundamentais (ação social, esferas de
existência social, tipos de dominação e tipo ideal) quanto as derivadas de sua produção
sociológica das religiões (modelos típico-ideais de instituições religiosas e especialistas
religiosos).
Neste sentido, a questão que se impõe, quase que de forma obrigatória, é como
se servir de um conjunto teórico-conceitual elaborado para se explicar e compreender
uma paisagem religiosa e um contexto histórico no qual esta paisagem se desenvolveu -
a Europa, no início de sua formação enquanto sociedade capitalista e das éticas
religiosas (seitas protestantes) as quais, segundo Weber, estabeleceram uma afinidade
com a esfera de ação econômica em formação – tão dispare, tanto de uma perspectiva
sincrônica quanto diacrônica, da sociedade brasileira contemporânea e a sua típica
paisagem religiosa.
Como ponto de partida preliminar para a resolução desta problemática, propõe-
se uma aproximação entre as teorias sobre a pós-modernidade religiosa que dão ênfase
ao crescente individualismo como uma de suas características seminais (Berger, 1985;
Taylor, 2010; Hervieu-Légger, 2015) -, e a complexa religiosidade brasileira na
contemporaneidade (início do século XXI).

Pós-modernidade religiosa e individualismo religioso pós-moderno


Como apontado acima, a modernidade em Weber está na gênese da cultura
capitalista, ou de seu “espírito”, que orienta e determina como ação dominante em todas
as esferas de vida àquelas motivadas pelo cálculo racional, desprovida de emoções e da
influência do pensamento mágico-religioso antes dominante nas sociedades pré-
capitalistas, processo este descrito por Weber como um lento e gradual movimento
universal em direção a um “desencantamento do mundo”. No bojo deste processo, um
igualmente universalizante movimento de secularização das diversas esferas e suas
legalidades próprias livres da influência e dominação religiosa. (Giddens, 2014).
Por sua vez, a pós-modernidade, iniciada a partir dos anos 1970 (Giddens,
2014), é interpretada pela ótica de Lyotard (1984) ao identificar o pós-moderno à perda
de legitimidade e centralidade da ciência e sua típica racionalidade e a crescente
demanda por conhecimentos não orientados pela lógica cientificista, dentre eles, aqueles
produzidos pelas crenças religiosas e espiritualistas.
Já na década de 1960, Peter Berger enfatiza o progressivo avanço do processo de
secularização e a consequente perda do monopólio das instituições religiosas sobre a
religiosidade individual. A destruição deste monopólio traz em seu bojo o pluralismo
religioso e a sua crescente oferta de novos sentidos e visões de mundo, estimulando a
individualidade em sua liberdade de escolha, cada vez mais livre das pertenças e crenças
tradicionalmente instituídas. (BERGER, 1985).
Taylor (2010), por sua vez, faz a ligação entre a crescente individualização e
subjetivação das pertenças e crenças religiosas ao aparecimento de um “individualismo
expressivo”, ou seja, uma crescente autonomia do indivíduo perante as limitações e
condicionamentos das instituições (Igrejas, famílias, etc.) engendrado pela revolução
cultural da década de 1960. Esta revolução, segundo Taylor, colocando o indivíduo no
centro dos processos de tomada de decisão, ou seja, provocando uma “virada subjetiva”
na sociedade, debilita a autoridade religiosa em seu controle e monopólio das crenças e
práticas e fortalece a subjetividade e a experiência social como imperantes na formação
da própria religiosidade.
Autores mais recentes, estudiosos da religiosidade pós-moderna, como Danièlle
Hervieu-Léger (2015), destaca como seu marco ou atributo distintivo, a crescente
autonomia do sujeito moderno expressa em sua livre capacidade de criar sistemas de
significados próprios sem a necessidade da mediação institucional ou tradicional.
O indivíduo religioso contemporâneo, não mais submetido ao controle
ideológico da instituição, tende a construir, de forma livre e pessoal, as suas próprias
maneiras ou formas de crer, afastando-se de uma imposição doutrinal instituída,
ressignifica por conta própria suas crenças, mesclando-as a ideias de diferentes
correntes religiosas, por meio de processos de recomposição das crenças individuais
(Bricolage religiosa). (HERVIEU-LÉGER, 2015).
Tomando como ponto de partida a ação do indivíduo religioso, como premissa
metodológica básica para uma análise sociológica weberiana, ou seja, buscando
compreender os sentidos das ações individuais, poderemos identificar, como uma das
forças atuantes na conformação das relações sociais predominantes na esfera de
existência religiosa pós-moderna, o crescimento deste individualismo em tensão com a
legalidade própria das instituições religiosas tradicionais como a igreja e a seita
(entendidas aqui como tipos-ideais constituídos por feixes de relações sociais
estabelecidas entre agentes especializados detentores do monopólio de produção e
controle dos bens religiosos – transmissão das crenças e legitimação das práticas).
Desta forma, a autonomia dos agentes leigos, criando sua própria religiosidade,
livre das amarras institucionais ou da influência e dominação dos especialistas aponta
para a hipótese central deste texto – o contínuo e crescente processo de subjetivação das
crenças e práticas religiosas ou o desenvolvimento acelerado de autonomia de agentes
leigos em processo de autovalidação e legitimação de sua religiosidade, cada vez mais
independentes das ordens legitimadoras dos conteúdos e expressões religiosas. É neste
sentido que o campo religioso contemporâneo se configura e gera sua dinâmica: no
embate ou choque da tradição ou crise da transmissão da memória religiosa
“verdadeira” ou “autorizada” com as novas formas de crer, individualistas em essência
(HERVIEU-LÉGGER, 2015).

O individualismo no campo religioso brasileiro contemporâneo


No Brasil, o crescimento do individualismo religioso se expressa por diversos
fenômenos, como os duplos e múltiplos pertencimentos e identidades fragmentadas, os
sincretismos, hibridismos ou bricolagens e o livre trânsito entre diferentes matrizes
religiosas ou no interior de subcampos como o evangélico-pentecostal.
Os modelos estatísticos produzidos na tentativa de compreensão deste panorama
religioso em intenso processo de deslocamento e movimentação, por meio da coleta e
tratamento de dados censitários baseados na simples afirmação pública das filiações
religiosas, deixam escapar aquilo que está por detrás das informações objetivas: a
subjetividade dos agentes religiosos e a produção de uma cultura relativamente
autônoma e desgarrada das amarras e imposições institucionais. A conduta pouco
ortodoxa dos que reproduzem em seu cotidiano tal capital religioso com a marca de sua
própria individualidade, é revelada pelo constante fluxo de fiéis pelo amplo e dinâmico
circuito de bens religiosos à sua disposição. (ALMEIDA; MONTEIRO, 2001)
No entanto, apesar da amplitude do mercado religioso brasileiro e da
diversificação de sua produção simbólica – das religiões de “Nova Era” aos
sincretismos e hibridismos surgidos das combinações das mais diferentes matrizes
religiosas, desde as mais tradicionais afro-católicas, até as mais paradoxais fusões
realizadas pelo “neopentecostalismo macumbeiro” (Oro, 2006) – a mesma produção
científica que se vale de modelos estatístico-censitários (IBGE; ISER2) e que pela
própria natureza objetiva dos dados que produz, pode esconder ou simplificar em
demasia um campo religioso em constante mutação - por não poder captar o
imponderável representado pelo comportamento fluido e livre do agente leigo – revela
uma concentração de identidades religiosas autodeclaradas em religiões cristãs
(evangélicos e católicos e suas subdivisões3) o que contradiz inicialmente a visão de um
campo religioso plural e multifacetado.
Assim, apesar da rigidez analítica dos modelos quantitativos de aferição do
religioso organizado em torno de identidades autodeclaradas, estes nos trazem um
indício de que, mesmo com uma aparente profusão de sentidos religiosos ofertado por
uma rica e diversa religiosidade manifestada de norte a sul do país, o eixo de construção
das identidades fixas, temporárias ou em constante mutação (o individualismo de que
nós tratamos aqui) permanece hegemonicamente cristão. Esta hegemonia cristã está na
raiz da crítica de autores como Pierucci (2006) que, com base no Censo demográfico de
2
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística; Instituto Superior de Estudos da Religião.
3
Teixeira (2014, p. 37) informa que, “Os católico-romanos somam hoje no Brasil, segundo os dados do
censo (2010), 123,2 milhões de adeptos declarados numa população de 190,7 milhões de habitantes.
2000, coloca em cheque a tão propalada pluralidade religiosa brasileira 4. A manutenção
dos postos dos grupos religiosos com mais adeptos autodeclarados permanece no Censo
de 2010 (TEIXEIRA, 2014).
Desta forma, apesar de dever-se considerar a complexidade por detrás da
simples e objetiva autodeclaração religiosa (SANCHIS, 2013; TEIXEIRA, 2014), –
podendo envolver duplas ou múltiplas pertenças não declaradas na composição
identitária do declarante – uma das hipóteses aqui aventadas é identificar um
background cristão como eixo estrutural de formação, reprodução e diversificação das
formas em que se manifesta o fenômeno do individualismo religioso no Brasil. As
crenças e práticas tradicionais do cristianismo seriam a base originária e predominante
dos itinerários identitários individualistas, sob a qual outras matrizes de crenças não-
cristãs se agregariam, por bricolagens ou hibridismos.
Assim, mesmo com a crescente presença de outras tradições religiosas no campo
religioso brasileiro, a tradição cristã mantem sua posição como eixo articulador das
dinâmicas e tendencias deste campo, mantendo sua tradicional superioridade numérica
representada pela massa de católicos e evangélicos autodeclarados, apesar do terceiro
posto de autodeclarações ser ocupado pela categoria dos que se declaram “sem religião”
(ISER, 2014), mas que, segundo a perspectiva teórica aqui levantada (hegemonia da
religiosidade cristã) e de acordo com a percepção de autores especializados no estudo da
religiosidade brasileira contemporânea (CAMURÇA, 2017; SANTOS, 2014), o termo
não revela a real condição deste grupo, questão que trataremos mais adiante.
Portanto, a análise do individualismo como um dos vetores das dinâmicas de
transformação estrutural do campo religioso brasileiro se fará a partir de sua
identificação e influência no interior das três categorias mais numericamente
representativas da paisagem religiosa nacional – os católicos, os evangélicos e os “sem
religião”5. E, seguindo os propósitos deste artigo, terá como marco teórico, os conceitos
e teorias sociológicas de Max Weber, em especial às categorias e instrumentos
analíticos voltados para os seus estudos sobre a religião.

O ecumenismo religioso dos católicos nominais


4
[...] As duas grandes religiões representadas no pódio [catolicismo e religiões de matriz evangélica]
englobam mais de 150 milhões! Dá para comparar com os... “outros”? Vivemos na verdade num país
noventa por cento cristão (89, 2%). (PIERUCCI, 2006).
5
os padrões de mobilidade religiosa seriam de crescimento (evangélicos e sem religião) e declínio
(católicos) (SANTOS, 2014). Teixeira por sua vez, (2014, p. 37) informa que, “Os católico-romanos
somam hoje no Brasil, segundo os dados do censo, 123,2 milhões de adeptos declarados numa população
de 190,7 milhões de habitantes. Mesmo assim, como mostrou Antônio Flávio Pierucci, apesar desse
“declínio moderado, mas constante”, a presença católico-romana é ainda muito grande [...]”.
O catolicismo ainda se afirma como a religião de maior número de adeptos no
Brasil (IBGE, 2010) mas essa sua liderança histórica talvez não reflita a religiosidade
praticada pelos que se dizem pertencer a ela.
A esfera de ação dos que se dizem adeptos do catolicismo é marcada por uma
orientação da conduta de suas vidas religiosas pautada pela liberdade, plasticidade e
fluidez na composição de suas crenças e valores religiosos e em suas práticas
sincréticas. Portanto, a esfera de ação religiosa dos católicos nominais, considerando
estes como o grupo numericamente mais expressivo dos que praticam uma religiosidade
com fracos vínculos institucionais e doutrinários, pode ser vista como a base mais
representativa de diversos fenômenos que exprimem o individualismo religioso
brasileiro, entre eles, os duplos ou múltiplos sentidos de pertencimento e as crenças
híbridas ou sincretizadas, sendo este o tipo religioso tido como o símbolo ou figura
emblemática da tão celebrada pluralidade religiosa brasileira.
Esta diversidade de crenças e práticas dos católicos nominais é uma das fontes
dos fluxos ou trânsitos inter-religiosos mais significativos, revelando a complexidade
das diversas esferas religiosas e seus imbricamentos e hibridismos não captados na
simples objetivação dos dados censitários. (TEIXEIRA, 2014).
Portanto, pela expressão dos números, a subjetividade ou os sentidos da ação
religiosa dos leigos católicos nominais se manifesta ou se afirma talvez, como a
religiosidade exemplar da pós-modernidade religiosa brasileira, ou em uma ótica
weberiana, como o tipo ideal desta religiosidade, orientada pela crescente subjetividade
da experiência religiosa e o aprofundamento da crise das instituições e de sua
legitimidade e monopólio na produção dos sentidos religiosos.
Este tensionamento crescente entre a religiosidade individual dos que se
autodenominam católicos e a tradição instituída pode ser representado, no plano das
crenças pela rejeição ao dogmatismo da igreja expresso na igualmente rejeitada prédica
dos padres (sacerdotes) levando-os à procura dos serviços de outros especialistas
religiosos atuantes em outras esferas de sentido religiosas, em que o carisma mágico de
magos (pais e mães de santo) ou em menor proporção, dos pregadores-profetas
evangélicos são requisitados ou mesmo os levam à buscar em filosofias espiritualistas
(neo-esotéricos) os significados e sentidos para suas aflições ou inquietações
intelectuais ou morais, não encontrados nos obscuros dogmas da igreja (NEGRÃO,
2008).
O racionalismo dos leigos católicos nominais, seja do tipo instrumental (ação
motivada pelo cálculo pragmático dos meios e fins visando objetivos práticos) ou
filosófico-existencial pode ser sociologicamente diferenciado de acordo com as
camadas sociais que o reproduzem.
Sendo o catolicismo a religião ainda hegemônica em todos os segmentos sociais,
mesmo com o avanço dos evangélicos entre as camadas populares (IBGE, 2010)
podemos percebê-la como o celeiro primordial de grande parte dos fusionamentos ou
hibridismos dos quais suas crenças e práticas servem como a matéria-prima simbólica
que se amolda ou se transforma sob o influxo de outras cosmologias e religiosidades.
Na pesquisa de Lísias Negrão (2008) realizada em um bairro da região metropolitana de
São Paulo (Cambuci) identificou entre os católicos que praticam tanto a duplicidade
quanto a multiplicidade de crenças e práticas, a predominância de indivíduos com nível
superior de ensino e de renda mais elevada que buscavam mesclar suas crenças católico-
cristãs com filosofias espiritualistas – do budismo a todas as religiões e filosofias
orientais da chamada nebulosa neo-esotérica – e também com o espiritismo kardecista,
religião praticada por adeptos com os maiores índices de desenvolvimento
socioeconômico comparados aos praticantes de outras religiões no Brasil (IBGE, 2010;
ISER, 2014).
Diferente dos católicos nominais que frequentam igrejas pentecostais e
compartilham crenças típicas dos evangélicos de baixa renda, visto na pesquisa de
Negrão, como uma novidade entre os tipos sincréticos identificados no campo religioso
nacional, estes católicos mais escolarizados e com diploma, desenvolvem um
racionalismo leigo mais intelectualizado6. Em outras palavras, são produtores de uma
religiosidade imanente fundamentada em ideias de iluminação interior, progresso e
evolução espiritual, carma, nirvana, etc., dificilmente reproduzida por católicos de baixa
renda e escolaridade. São religiosos que adotam teodiceias 7 mais racionalizadas, como
os católicos kardecistas, budistas e hinduístas, ou mesmo adeptos das diversas filosofias
espiritualistas esotéricas, que procuram estabelecer determinas ligações de suas crenças
e práticas a conhecimentos produzidos na esfera científica (NEGRÃO, 2008).
No campo das crenças, este forte subjetivismo religioso impulsionado pelo ideal
da livre experiência e derivado de uma cultura letrada e intelectualizada manifestada por
católicos nominais das camadas mais altas, faria parte, talvez, de um complexo conjunto
6

7
O “problema da teodiceia” em Weber, refere-se a um sentido de valor teológico que busca explicar e
justificar o sofrimento terreno dos homens, a existência do mal e da morte (WEBER, 1991).
de fatores responsável pelo encolhimento da religião católica no Brasil. Desde a crítica e
rejeição ao hermetismo dos dogmas da Igreja por um lado, bem como um próprio
movimento institucionalizado de crescente intelectualização (crescente uso de
linguagem metafórica e simbólica nas prédicas sacerdotais) de concepções centrais da
cultura cristã como as imagens do paraíso, inferno, purgatório ou da figura do diabo,
afastariam religiosos tanto os de baixa renda e baixo nível educacional pois são
“camadas negativamente privilegiadas às quais o intelectualismo é econômica e
socialmente inacessível (Weber, 1991, p. 332) quanto aqueles portadores de maior
capital cultural à procura de teodiceias mais racionais. Esta “crise na transmissão de
uma memória tradicional” católica em processo avançado na pós-modernidade é a fonte
de um processo de desgaste cada vez mais acentuado do carisma institucionalizado dos
especialistas da igreja. (HERVIEU-LÉGGER, 2015).
Assim, tanto no plano simbólico quanto na dimensão das práticas, o
individualismo católico dos mais escolarizados orientados em suas ações por suas
crenças mais sistemáticas e racionalizadas, se distanciam cada vez mais quantitativa e
qualitativamente do modelo ideal de Igreja, do qual a grande maioria teve sua
socialização religiosa primária e do qual se afastam pela rejeição aos dogmas
inacessíveis aos leigos, substituídos por crenças “mais racionais”; pela crítica e negação
à hierarquia sacerdotal considerada anacrônica e pouco carismática e pela
deslegitimação do monopólio institucional de administração e concessão dos dons da
graça, ao rejeitarem a prática da maioria dos sacramentos da igreja, vistos como
“mágicos”, sem sentido e pouco racionais (NEGRÃO, 2008).
Nesse sentido, a religiosidade deste segmento social dos católicos nominais é
moldada a partir da necessidade íntima de construção de suas próprias teodiceias
constituídas pela força de seu intelectualismo leigo no interior das quais as explicações
para a dor, o sofrimento e a salvação não sejam motivadas pela urgência da escassez
material. Assim, Weber explica que “A salvação que o intelectual busca sempre é uma
salvação de "aflição íntima" [...] de caráter mais profundo e sistemático do que a
salvação da miséria concreta que é própria das camadas não-privilegiadas. [...] [É um]
tipo filosófico de intelectualismo, cujos portadores são, em regra, as classes social e
economicamente asseguradas (1991, p. 343-344).
É de se considerar, no entanto, que na pesquisa de Negrão (2008), os católicos
nominais que apresentaram maiores níveis de instrução reproduziam efetivamente
crenças espíritas e do universo simbólico de filosofias religiosas de origem oriental ou
europeia, refletindo em sua pesquisa, com isso, os indicadores socioeconômicos em
escala nacional dos grupos religiosos – especialmente os espíritas – situados no topo da
pirâmide educacional e de renda, apresentando, segundo o censo (IBGE, 2010) as
maiores proporções de indivíduos com nível superior completo (31,5%) e os menores
índices de pessoas não alfabetizadas (1,8%) ou com nível fundamental incompleto
(15%) e no plano da renda, os grupos citados são aqueles que apresentam os maiores
rendimentos (acima de 5 salários mínimos) comparáveis aos demais grupos religiosos.
Estes números não refletem, necessariamente, a realidade socioeconômica e
cultural da maioria dos alto declarados católicos - que efetivamente não a praticam ou
reproduzem unilateralmente crenças católicas - no Brasil,
Portanto, levando-se em consideração a ainda liderança numérica dos católicos
no plano nacional (IBGE, 2010) pode-se inferir que esta religiosidade movida por um
racionalismo religioso mais sofisticado é típico das camadas sociais de renda e
escolaridade mais altas, e não de estratos mais pobres e menos instruídos do contingente
de católicos alto-declarados. Estes seriam possivelmente movidos, assim como
É possível entender que estes católicos nominais manifestam suas religiosidades
sob a égide de um cristianismo difuso e hibridizado – talvez o substrato religioso que
move o individualismo religioso brasileiro e condiciona sua complexa diversidade – e
que cada vez mais se afastam do catolicismo enquanto igreja8, ou seja, de sua forma
institucional. Mariz percebe a tensão entre os diversos “catolicismos” e a sua “versão”
institucional, ao postular que “Na verdade, o catolicismo é uma igreja dentro de uma
religião mais ampla e diversa que é o cristianismo” (2014, p. 57).
Novaes (2002) e Souza (2002) concordam ao associar o aumento progressivo do
número de fiéis que debandam da Igreja Católica aos ditos “católicos não-praticantes”.
Por outro lado, esta fuga de católicos nominais seria proporcional a uma definição cada
vez mais acentuada da identidade católica dos que permanecem nela (SOUZA, 2002).
Esta resistência identitária católica (CAMURÇA, 2014) seria ainda
preponderantemente motivada pela tradição, ou seja, pelo carisma tradicional e
institucionalizado da Igreja, ou pelas crenças nos santos populares (Padre Cícero) -
muito forte na Região Nordeste, com 80% da população autodeclarada católica
(CENSO 2000) e caracterizada por apresentar o maior contingente de pobres do país
(NOVAES, 2002).

8
De acordo com o sentido típico-ideal empregado por Weber (1991).
No entanto, é preciso relativizar a força desta tradição, tanto no campo das
práticas quanto no das crenças. A preocupação com o grau de objetividade na
constituição dos dados obtidos por autodeclarações dos censos e institutos está
diretamente relacionado ao impacto que a tradição exerce no momento da entrevista,
quando o declarante afirma seu pertencimento. Sabendo-se que a religiosidade católica
está na base da socialização primária da maioria dos declarantes no Brasil, fica difícil
identificar, a não ser por análises mais qualitativas, se sua declaração corresponde a sua
religiosidade efetivamente praticada.

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