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SERVIÇO PÚBLICO FEDERAL

UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARÁ


INSTITUTO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
FACULDADE DE HISTÓRIA

DANIEL SOUZA BARROSO

O CASAMENTO, EM BELÉM, NO INÍCIO DO SÉCULO XX

BELÉM
2009
2

DANIEL SOUZA BARROSO (06036000201)

O CASAMENTO, EM BELÉM, NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Monografia de conclusão de curso de


graduação apresentada à Faculdade de
História (FAHIS) da Universidade Federal do
Pará (UFPA), como requisito parcial para a
obtenção do título de graduado em História,
com habilitação em Bacharelado e
Licenciatura Plena.

Orientador: Prof. Dr. Antonio Otaviano Vieira Junior

BELÉM
2009
3

DANIEL SOUZA BARROSO (06036000201)

O CASAMENTO, EM BELÉM, NO INÍCIO DO SÉCULO XX

Monografia de conclusão de curso de


graduação apresentada à Faculdade de
História (FAHIS) da Universidade Federal do
Pará (UFPA), como requisito parcial para a
obtenção do título de graduado em História,
com habilitação em Bacharelado e
Licenciatura Plena.

DATA DA DEFESA: ____ / ____ / ________

BANCA EXAMINADORA:

_____________________________________________
Prof. Dr. Antonio Otaviano Vieira Jr (Orientador – UFPA)

_____________________________________________
Profª. Drª. Cristina Donza Cancela (Membro – UFPA)

BELÉM
2009
4

AGRADECIMENTOS

A parte deste trabalho mais difícil de ser escrita foi, certamente, os


agradecimentos. Somente a possibilidade de incorrer na injustiça de esquecer sequer uma
pessoa que, durante toda a minha graduação, tenha me ajudado mesmo que num ato mais
singelo, atemorizou-me. Portanto, antes mesmo de meus agradecimentos, gostaria de
desculpar-me com aqueles que me ajudaram, mas que minha memória não permitiu
lembrar. Quanto aos que citarei em diante, também me desculpo porque, na maioria dos
casos, as palavras que se seguem não são suficientes para descrever o tamanho de minha
gratidão por estas pessoas.
Em primeiro lugar, gostaria de agradecer a minha família e à Alessandra, por todo
o apoio, companheirismo e amor que poderiam me dar ao longo destes anos. Minha avó
Zoé, minha mãe Rosana, meu pai Jair, minha irmã Rafaela e mesmo aqueles que estão tão
distantes, como o tio Lucas e o vô Didio, ajudaram-me a crescer não apenas como
profissional, mas, em especial, como homem e como pessoa. À Alessandra fica um
agradecimento especial, visto que, sem seu conforto em momentos mais difíceis,
provavelmente não teria conseguido chegar aonde cheguei. Não há como esquecer, por
exemplo, o momento da partida de nossa amiga Lolinha e a seleção para o Mestrado.
Em segundo lugar, o agradecimento a meus amigos, tanto de Universidade quanto
da vida, que tanto me apoiaram, especialmente o Pokémon, o Ricardo e a Paulinha.
Durante a graduação, o apoio do Diego foi imprescindível, tanto pela amizade que
construímos, quanto pela divisão de tarefas. Ao Raimundinho, à Adriana e ao Helder, outro
agradecimento especial, principalmente por todas as tentativas (mesmo que infrutíferas) de
me acalmarem durante o processo seletivo do Mestrado. O que dizer também dos meninos
do Centro de Memória? Desde a primeira geração, quase todos me apoiaram em vários
aspectos, passando-me tranqüilidade. A todos, sem exceção, parabéns por seu trabalho!
Não teria chegado até aqui sem a ajuda de meus professores. Todos eles, sem
exceção, ajudaram-me a pensar a História como um objeto de estudo multifacetado,
instigante e, acima de tudo, apaixonante. A vocês, muito obrigado! Mas, desejo agradecer
especialmente aos professores Rafael Chambouleyron e Franciane Lacerda, que me
acompanharam durante a graduação e me auxiliaram, sobremaneira, na delineação de um
primeiro esboço do que veio a ser este trabalho. Alguns, mesmo que não tenham sido meus
professores do ponto de vista formal, merecem meu agradecimento, a exemplo da
professora Naná, que tão bem me trata.
5

Além dos professores da Faculdade de História da UFPA, é importante agradecer


também aos professores que compõem o GP/CNPq “Demografia e História” e o GT/ABEP
“População e História”. Recebi, tanto para este trabalho quanto para o projeto de Mestrado,
sugestões valorosas dos professores Sergio Nadalin, Carlos Bacellar, Maria Luiza
Andreazza, José Flávio Motta, Maria Silvia Bassanezi, Cacilda Machado e Ana Silvia
Scott. Meus agradecimentos não se resumem, todavia, a estes professores. Não poderia me
esquecer de meus colegas de demografia histórica: Paulinha, Miltinho e Maísa. Sempre me
lembrarei das conversas em Fortaleza e Curitiba, entre cervejas, pargos e churrascos.
Por último, um agradecimento mais do que especial. Ao casal de professores,
Otaviano Vieira e Cristina Cancela, mal sei o que dizer. À professora Cristina, agradeço
por todo (o imprescindível) apoio que me deu durante a seleção do Mestrado, os
ensinamentos sobre como estudar o casamento e pelo prazer de sua convivência quase que
diária. Ao professor Otaviano, pelos ensinamentos acadêmicos e de vida; pelas orientações,
pela paciência, pelo respeito e por acreditar em meu trabalho; pela dignidade com que
encara sua profissão de educador e formador, e, acima de tudo, por sua amizade. Antes
mesmo de um agradecimento acadêmico, há a gratidão pessoal. Obrigado por tudo.
6

RESUMO

No esforço de matizar compreensão sobre o casamento em Belém, no início do século XX,


este trabalho tem por objetivo analisá-lo (o casamento) sob três perspectivas.
Primeiramente, refletindo sobre o momento imediatamente anterior ao casamento, através
de uma discussão sobre o exercício legal do pátrio poder e as estratégias adotadas pelos
nubentes para burlarem-no. Em seguida, delineando o perfil demográfico dos nubentes que
se casaram em Belém, entre 1908 e 1925, a partir da análise serial de 5.792 registros de
casamento civil. E, por último, apreendendo as noções de família, os papéis familiares de
gênero, os valores morais e as tensões sociais associados ao casamento, partindo do estudo
de caso da história de Pedro Cavalcante e Severa Romana. O casamento será apresentado
em suas múltiplas facetas, demonstrando-se os variados aspectos sociais o permeiam.

Palavras-chave: Casamento; Família; Belém; Século XX; Gênero.

ABSTRACT

In an effort to qualify understanding of marriage in Belem, in the early twentieth century,


this paper aims to analyze it (the marriage) from three perspectives. First, reflecting on the
time immediately before the wedding, through a discussion on the lawful exercise of
paternal power and the strategies adopted by the intending spouses to get around it. Next,
outlining the demographic profile of the intending spouses who married in Belem, between
1908 and 1925, from the serial analysis of 5.792 civil marriage records. And finally,
learning the concepts of family, family gender roles, moral values and social tensions
associated with marriage extends from the case study of the history of Pedro Cavalcante
and Severa Romana. The wedding is going to be presented in its multiple facets,
demonstrating the variety social aspects which permeated it.

Keywords: Marriage; Family; Belem; Twentieth century; Gender.


7

LISTA DE ABREVIATURAS

Arquivo Público do Estado do Pará – APEP


Centro de Memória da Amazônia – CMA/UFPA
Cúria Metropolitana de Belém – CMB
Fundação Cultural Tancredo Neves – CENTUR
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística – IBGE
8

LISTA DE QUADROS E GRÁFICOS

Gráfico I: Origem dos nubentes por sexo e nacionalidade (p. 39)


Gráfico II: Origem dos nubentes por sexo e naturalidade (p. 39)
Gráfico III: Distribuição em faixas etárias, por sexo (p. 40)
Quadro I: Ocupações masculinas, em setores de atividade (p. 43)
Quadro I: Ocupações femininas (p. 45)
9

SUMÁRIO

AGRADECIMENTOS p. 04
RESUMO / ABSTRACT p. 06
LISTA DE ABREVIATURAS p. 07
LISTA DE GRÁFICOS E QUADROS p. 08
SUMÁRIO p. 09

INTRODUÇÃO p. 10

CAPÍTULO I – De pais e filhos: a dinâmica do pátrio poder, a criação de um Lar e a


existência de um novo pacto matrimonial p. 21
Primeiras palavras p. 21
Os argumentos de pais e filhos p. 28
Com a palavra, o Juiz de Órfãos p. 33
Considerações quase que finais p. 35

CAPÍTULO II – Dos números ao casamento p. 37


Primeiras considerações p. 37
O perfil demográfico dos nubentes p. 38
Considerações quase que finais p. 50

CAPÍTULO III – Severa Romana: casamento, gênero e representações morais p. 52


A morte de Severa Romana e sua repercussão social p. 52
Tensões morais: a relação conjugal e suas representações p. 55
Entre o masculino e o feminino: representações da honra feminina p. 60
Ferreira agora é Réu: o perfil do assassino e seu julgamento p. 65
Considerações quase que finais p. 68

CONSIDERAÇÕES FINAIS p. 70

BIBLIOGRAFIA p. 76

RELAÇÃO DE FONTES CITADAS p. 81


10

INTRODUÇÃO

Este trabalho tem por objetivo analisar o casamento, em Belém, no início do


século XX, sob três perspectivas. Inicialmente, (1) investigaremos o contexto
imediatamente anterior ao evento do casamento, a partir de uma discussão sobre o
exercício legal pátrio poder e as estratégias adotadas pelos nubentes para burlarem-no. Em
seguida, (2) delinearemos o perfil demográfico dos nubentes que se casaram na cidade,
entre 1908 e 1925, através da análise serial de 5.792 registros de casamento civil. Por
último, (3) partiremos de um caso (o casamento de Pedro Cavalcante e Severa Romana)
para compreendermos os papéis familiares de gênero e os valores morais associados ao
casamento. Refletimos sobre a existência de um novo pacto matrimonial que permeou os
casamentos naquele momento, em que a subsistência dos nubentes passava a depender
muito mais da profissão e dos negócios do marido.
Nossa aproximação com o estudo da História da Família deu-se no âmbito da
participação num projeto de Iniciação Científica1. A pesquisa, financiada pela Fundação de
Amparo à Pesquisa do Estado do Pará (FAPESPA), a quem agradecemos de antemão,
consistia em construir um grande banco de dados com informações advindas de processos
de casamento civil do Cartório Privativo de Casamentos de Belém. Essa documentação,
atualmente sob guarda do Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA), é composta por
uma série completa de casamentos civis, compreendida entre 1891 e 1970. Ainda na
Iniciação Científica, tivemos um primeiro contato com a bibliografia básica sobre o
assunto, concentrando nossas leituras, obviamente, nas obras que tinham o casamento
como objeto de análise principal. Grande parte dos questionamentos e das indagações
oriundas dessa pesquisa está exposta ao longo deste trabalho.
A pesquisa de Iniciação Científica, por mais que possuísse um cunho quantitativo
e estivesse inserida nos domínios da demografia histórica, à qual nos ateremos
especificamente mais adiante, não esteve limitada apenas a essa perspectiva. Ao contrário,
buscamos, ao longo da mesma, travar um diálogo entre qualitativo e quantitativo, micro e
macro. Essa metodologia deu-se pela necessidade que sentimos de compreender as
experiências que permearam o casamento em sua pluralidade. Por mais que os números
advindos de uma abordagem demográfica não sejam somente números, mas indicadores de

1
Projeto de Pesquisa: Centro de Memória da Amazônia: História e Demografia. Plano de Trabalho:
Casamento civil em Belém: perfil demográfico e histórico. Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Pará (FAPESPA). Orientação: Prof. Dr. Antonio Otaviano Vieira Junior (UFPA/CNPq).
11

relações sociais, padrões culturais e comportamentos populacionais, eles não abrangem a


compreensão das múltiplias noções de família e experiências de conjugalidade, e dos
diversos papéis familiares de gênero e valores morais associados ao casamento. Porém,
antes mesmo de indagarmo-nos sobre o casamento, cabe-nos fazer outro questionamento:
afinal, o que é a família e por que estudá-la entre o final do século XIX e o início do XX?
A família, em si, é um tema bastante controvertido, visto que são inúmeras as
formas de organização humana que podem se enquadrar em seus múltiplos conceitos e
definições2. Seu estudo caracteriza-se pela diversidade de formas da família, das funções
da família e das atitudes para com as relações familiares, ao longo do tempo e em
conformidade a especificidades regionais. As perspectivas contemporâneas de análise da
família são bastante variadas. Em síntese, podemos dividi-las em quatro grandes grupos de
abordagem, quais sejam: a psico-histórica, a demográfica, a “dos sentimentos” e a da
economia domésticas3. Dentro dessas abordagens, as discussões foram voltadas para os
significados de ser e pertencer a uma família, ao papel dos antepassados, à política na
família, ao casamento arranjado e ao casamento por amor, à economia familiar, aos grupos
domésticos etc.4.
Nesse bojo, o século XIX, enquanto um contexto histórico específico em que
ocorreram significativas mudanças nas formas de se perceber e normatizar a família, tanto
no Brasil quanto no restante da América Latina e na Europa5, é um período propício para
apreendermos de que forma a família se organizava, era normatizada e se percebia,
inclusive, como tal. As diversas mudanças ocorridas na forma de se perceber a família,
durante o Oitocentos, incidiram também sobre um momento especial: o casamento. Das

2
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998, pp. 39.
3
ANDERSON, Michael. Elementos para a História da Família Ocidental (1500-1914). Lisboa: Editorial
Querco, 1984, pp. 10-11.
4
CASEY, James. A História da Família. São Paulo: Editora Ática, 1992.
5
Cf.: NAZZARI, Muriel. O século XIX (1800-1869). In: O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e
mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das letras, 2001, pp. 149-261;
BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. Os filhos do apocalipse: a família na América Central e nos
Andes. In: BURGUIÈRE, André et alli (Orgs.). História da família. O choque das modernidades: Ásia,
África, América, Europa. Lisboa: Terramar, 1998, pp. 135-182; EHMER, Josef. Marriage. In: KERTZER,
David e BARBAGLI, Marzio (Orgs.). The History of the European Family: Family Life in the Long
Nineteenth Century (1789-1913). New Haven / London: Yale University Press, 2002, pp. 282-321. Em
síntese, estes autores salientam importantes mudanças na forma de se perceber e normatizar a família no
século XIX, no Brasil, na América Latina e na Europa. A evolução do individualismo e uma reconfiguração
do pacto matrimonial na São Paulo oitocentista, a liberalização da família nos Andes e na América Central, e
a mudança significativa da legislação, seja ela civil ou eclesiástica, referente à família, com a laicização do
casamento – Inglaterra (1837), Portugal (1867) e Espanha (1870) – e a instituição do divórcio – Inglaterra
(1857), Prússia (1875) e França (1884) – em várias partes da Europa, evidenciam, certamente, uma “nova
família” no século XIX.
12

mudanças ocorridas em torno do casamento, destacamos duas. Primeiro, a reconfiguração


do pacto matrimonial. Segundo, a laicização do casamento ocorrida inicialmente em 1861
e, definitivamente, em 1890.
O Brasil sofreu significativas mudanças, ao longo do século XIX. A família, nesse
contexto, passou do papel econômico de produtora, para consumidora. Em seu cerne, um
crescente individualismo levou o caráter corporativo da família ao declínio. O casamento,
por sua vez, paulatinamente era encarado mais como um vínculo pessoal entre indivíduos,
do que como uma questão de bens ou estratégia familiar. Doravante, o sustento dos recém-
casados passou a depender cada vez mais da contribuição do marido, quer em bens, quer
por sua profissão6. É importante ressaltarmos, nesse sentido, que o provento ao Lar era um
papel de gênero associado ao masculino. Nas uniões legítimas, a divisão de incumbências
entre os sexos, pelo menos na aparência, colocava o poder de decisão formal nas mãos do
homem como provedor da mulher e dos filhos, por costumes e tradições apoiados nas leis7.
Entretanto, durante século XIX, as mudanças na família não se restringiam a sua
lógica interna. Os registros vitais (nascimento, casamento e óbito), o pátrio poder e o
sistema sucessório sofreram modificações do ponto de vista legal. Todavia, foquemos
nossas reflexões apenas no objeto de análise deste trabalho: o casamento. Até meados dos
Oitocentos, mais especificamente até 1861, a única forma legalizada de casamento no
Brasil era o matrimônio católico. Todos os registros vitais, onde se inclui o casamento,
estavam sob responsabilidade da Igreja. Eram validados, portanto, os effeitos civis dos
casamentos catholicos, para utilizamos um termo empregado à época. A partir 1861, por
conta do grande fluxo migratório direcionado ao Brasil, em especial de migrantes de fé
não-católica8, o casamento religioso, proferido sob outra fé, seria reconhecido no Brasil
para efeitos civis9.
Na realidade, ainda não se tratava da laicização do casamento; afinal, a cerimônia
religiosa permanecia imprescindível, por mais que não necessariamente a católica. Os
casamentos realizados em outras religiões ainda precisariam ser registrados perante o
Estado, diferentemente do matrimônio católico. O registro civil de casamento passou a
vigorar no Brasil somente a partir de 1874, quando todos aqueles que se casassem no
Império, sejam eles católicos ou não, deveriam ser registrados em Cartório, no máximo

6
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit., pp. 149-261.
7
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, pp. 58.
8
BACELLAR, Carlos de A. P. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 74.
9
Cf.: Decreto nº. 1.144, de 11 de setembro de 1861.
13

trinta dias após o casamento10. Em 1890, o casamento civil fora instituído no Brasil como
a única forma legal de casamento, a partir de então11. Entretanto, apesar da diferença de
esferas, o casamento civil não significou, pelo menos num primeiro momento, uma ruptura
completa da lógica anterior12.
As mudanças na lógica interna e na legislação normatizadora da família, ao longo
dos Oitocentos, nos ajudam a problematizar determinadas questões, dentre elas: como
foram os casamentos, em Belém, no início do século XX? Qual era o papel dos pais, dos
maridos e das esposas? Qual era o perfil demográfico dos nubentes? Quais eram os
arranjos familiares mais comuns? De que forma os valores morais da época se faziam
presentes e poderiam influenciar na escolha dos cônjuges? Essas são algumas das
discussões que se seguem nas próximas páginas. Mas, afinal, o que é o casamento?
O casamento, enquanto um evento vital, relaciona um acontecimento específico (o
ato de casar-se) com o sistema simbólico no qual está inserido. Assim sendo, o casamento,
mesmo o civil, é mais que um registro: é um evento imbricado por subjetividades, normas
sociais e valores morais. Além disso, em grande parte dos casos, evidencia um momento
importante na vida familiar: a saída do Lar paterno-materno e a criação de outro, pautado
pela nova unidade conjugal que se forma. Dentro dessa unidade conjugal há papéis
familiares de gênero associados ao marido e à esposa. Ele, na condição de provedor e
mantenedor do Lar, tanto no sentido econômico, quanto moral. Ela, por sua vez, no papel
de boa esposa, mãe e dona-de-casa. Obviamente, isso é somente uma idealização do
casamento, existente dentro de uma multiplicidade de outras experiências.
Para a análise do casamento, a discussão de gênero mostrou-se imprescindível.
Inicialmente, a utilização dessa categoria pela historiografia decorreu da necessidade de
pensar-se na diferença comportamental e social entre homens e mulheres como uma
construção histórica, que definiria as relações entre indivíduos e grupos sociais13. Por sua
vez, as relações de gênero caracterizam-se por serem, antes de qualquer coisa, relações de
poder, que são reescritas e reinterpretadas a cada novo contexto histórico14. A reflexão

10
Cf.: Decreto nº. 5.604, de 25 de março de 1874.
11
Cf.: Decreto nº. 181, de 24 de janeiro de 1890.
12
Não estou me referindo, obviamente, às obrigações religiosas para casar-se catolicamente. Minha
observação é centrada nas características principais de ambos, a exemplo da idade mínima, dos requisitos e
dos impedimentos para o casamento. Para o aprofundamento da discussão sobre a família na passagem dos
casamentos e divórcios católicos para os civis, cf.: SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira, op. cit.,
pp. 68-81.
13
SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas
perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992, pp. 90.
14
SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analysis. In: The American Historical Review,
Vol. 91, n. 5 (Dec. 1986), pp. 1074.
14

sobre a existência de papéis familiares de gênero como parte integrante das próprias
experiências de conjugalidades foi importante principalmente no sentido de ajudar-nos a
mais bem compreender os discursos sobre o casamento e seu perfil demográfico. Os papéis
familiares associados ao masculino e ao feminino, e, portanto, ao marido e à esposa,
constituíram grande parte de nossas análises.
Assim como a família, o casamento também é um tema bastante controvertido,
pois são inúmeros os conceitos e definições relativos a ele. A análise de um corpo
documental vasto, composto por variadas tipologias documentais, certamente evidenciará
muitas dessas experiências de conjugalidade. Para os católicos, o ideal de casamento muito
possivelmente seria aquele sacramentado por sua fé. Para os protestantes, idem. Algumas
pessoas podem pensar que o ideal de casamento é o registro civil, enquanto outras talvez
acreditem que o casamento formal não é necessário. As noções de casamento são inerentes
a cada grupo social e ao contexto histórico no qual estão inseridas. Portanto, é incorreto
dizermos que a noção de casamento presente em determinado período é essa ou aquela; ao
contrário, devemos considerar as noções de conjugalidade em sua multiplicidade. Mas, isso
não significa que não haja uma idealização da relação conjugal.
A historiografia brasileira, ao longo do século XX, produziu muitos trabalhos
sobre a família e o casamento. Em cada momento, ambos foram vistos de formas
diferenciadas pelos historiadores. Se não podemos definir somente uma noção de
casamento associada a determinado período, podemos refletir sobre as formas pelas quais
os historiadores analisavam a família. A idéia de uma família patriarcal, a revisão do papel
social associado às mulheres e os estudos sobre a sexualidade são algumas das questões
que nos ajudam a refletir acerca da produção historiográfica brasileira sobre a família.
Aqui, nosso interesse é, em diálogo com a historiografia, perceber de que forma o estudo
sobre o casamento se modificou ao longo do tempo.
Nos anos 1920, 30 e 40 encontram-se as matrizes ideológicas de um pensamento
que iria vigorar por décadas acerca da natureza, estrutura, importância, função e conceito
de “família brasileira”15. A grande referência desse período foi o clássico Casa-Grande e
Senzala, de Gilberto Freyre. Essa obra, que influenciou marcantemente os trabalhos
subseqüentes, introduziu o conceito de “família patriarcal”: uma organização familiar
formada por um núcleo central (o marido, a esposa e a prole legítima) e por membros
subjacentes (parentes, afilhados, expostos, serviçais, amigos, agregados e escravos) que,

15
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento – São Paulo, século XVII. Bauru/SP: Edusc,
2003, pp. 17.
15

entre si, interagiam sob uma relação centralizadora mediada pelo patriarca da família. A
família extensa e patriarcal e suas múltiplas relações seriam, para Freyre, um dos alicerces
principais da sociedade colonial brasileira16.
Nas décadas de 1950 e 1960, alguns estudos revisionistas, a exemplo do ensaio
clássico de Antonio Candido17, voltaram sua atenção às especificidades regionais e para
uma análise diacrônica da família brasileira, ou seja, considerando mudanças e
permanências em sua estrutura e organização, ao longo do tempo. O papel social da mulher
foi revisitado com a apreensão de sua interação com a família e a sociedade, apesar de a
idéia de patriarcalismo ainda se fazer presente. O revisionismo da idéia de família
brasileira, construído paulatinamente, encorpou-se na década de 1970, quando os
historiadores “redescobriram” a família enquanto objeto de análise, a partir de novos
enfoques, da pesquisa em outros corpos documentais e do auxílio da demografia histórica
como ferramenta metodológica de análise.
Essa tendência revisionista, presente nos anos 1970, revigorou-se na década
posterior. Novas pesquisas, realizadas através de uma perspectiva multidisciplinar18 cada
vez mais presente, ampliaram os objetos de análise a reflexões acerca da mulher, da
criança, da sexualidade, da educação etc. À época, os trabalhos sobre a família brasileira
passaram a ser, pouco a pouco, substituídos por tentativas de visões conjunturais, com a
preocupação de comparar regiões do Brasil entre si e, inclusive, com outras partes da
América Latina19. Desse modo, os estudos realizados nas décadas de 1970 e 1980, no
Brasil, marcaram definitivamente a produção historiográfica mais recente sobre a família
brasileira. Doravante, seria impossível pensarmos, para o Brasil, um sistema familiar uno e
homogêneo, ao longo de nossa história.
Até o momento, nossas discussões serviram para apresentar o problema deste
trabalho e para refletirmos conceitualmente sobre o casamento. Em síntese, verificamos as
mudanças ocorridas na lógica interna e na legislação sobre a família, durante o século XIX.
Demonstramos que nos Oitocentos houve uma reconfiguração do pacto matrimonial, em

16
Cf.: FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.
17
Cf.: CANDIDO, Antônio. The Brazilian family. In: SMITH, T. Lynn; MARCHANT, Alexander (Ed.).
Brazil: portrait of a half continent. New York: Dryden Press, 1951, pp. 291-312.
18
Trabalhos teóricos como os de GOODE (1964), RABB (1973) e MICHEL (1974) associaram os estudos
sobre história da família a demais ciências sociais como, por exemplo, a antropologia, a sociologia, a
demografia e a psicologia. Cf., em especial, HAREVEN, Tamara K. The history of the family as an
interdisciplinary field. In: RABB, Theodore (org.). The family in History. New York: Harper Torchbooks,
1973, p. 211-226.
19
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento, op. cit., pp. 22.
16

que o sustento do casal passou a depender muito mais da profissão e dos negócios do
marido, num contexto em que o casamento adquiria um caráter mais particular e afetivo.
Além disso, salientamos que os casamentos devem ser analisados levando-se em
consideração o universo simbólico no qual estão inseridos, e os papéis familiares de gênero
e os valores morais a eles associados. A partir de agora, cabe-nos apresentar a metodologia
adotada e o contexto histórico no qual se inserem nossas discussões posteriores. Porém,
antes mesmo de discutirmos ma metodologia adotada neste trabalho, é importante tecermos
algumas considerações sobre os corpos documentais utilizados.
Para esta pesquisa, consultamos os acervos do Centro de Memória da Amazônia
(CMA/UFPA), do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) e da Fundação Cultural
Tancredo Neves (CENTUR). Os documentos pesquisados foram processos de casamento
civil, licenças para casamento, suprimentos de consentimento paterno e processos-crime
(CMA/UFPA); ocorrências policiais (APEP), periódicos e obras literárias (CENTUR).
Cada um desses documentos exigiu a utilização de recursos metodológicos apropriados.
Ateremo-nos, mais especificamente, aos registros de casamento civil e aos processos cíveis
de Licença para casamento e Suprimento de consentimento paterno, que foram a
documentação privilegiada neste trabalho. Isso sem esquecermo-nos, obviamente e em
especial, dos jornais.
Os casamentos que pesquisamos constituem parte do acervo do CMA/UFPA. Para
esta pesquisa foi coletada uma série composta por 5.792 registros. De cada um desses
registros, coletamos: o nome, a nacionalidade, a naturalidade, o endereço completo, a
profissão, o estado civil, a idade ao casar, a (i)legitimidade e nome dos pais dos nubentes.
O processo de coleta foi realizado com o auxílio da demografia histórica20 como

20
Segundo Volpi Scott (2004), os avanços teórico-metodológicos de uma historiografia da família, ocorridos
nas últimas décadas, estão ligados ao desenvolvimento dos métodos de análise quantitativa e, principalmente,
da demografia histórica, que forneceram elementos para uma “nova história da família”. A demografia
histórica surgiu na França, na década de 1950, através de uma proposta, por parte de Louis Henry e Michel
Fleury, de coletar e analisar sistematicamente registros paroquiais do país, com vistas a reconstituir a história
de famílias francesas de diversas comunidades. Os recursos da demografia histórica possibilitaram aos
historiadores da família ferramentas que propiciaram análises como: a noção de mudanças no comportamento
populacional de uma sociedade, a mobilidade, a fertilidade, o controle de nascimento, a mortalidade infantil e
a lógica dos arranjos familiares e da organização domiciliar. Para Sheila Faria (1997), o estudo sobre família
tornou-se sistemático com o auxílio da demografia histórica – embora haja críticas sobre o método
essencialmente empírico da demografia. Esta “sistematização” propôs revisões, novas abordagens e
percepções, demonstrando-se que organização familiar varia em função do tempo, do espaço (com destaque
para as especificidades regionais) e, também, dos diferentes grupos sociais analisados, como uma estrutura
social importante para compreendermos a interação entre o indivíduo e a sociedade, influenciando diversas
gerações de historiadores brasileiros a partir de pelo menos a década de 1970 – esses inspirados
essencialmente pelas contribuições de Peter Laslett e do Cambridge Group for the History of Population and
Social Structure. Inclusive, de acordo Michael Anderson (1984), a abordagem demográfica consubstancia-se
17

ferramenta metodológica de análise, o que se justifica pela necessidade de utilizarmos


recursos metodológicos apropriados para a argüição de documentos que não foram
produzidos com fins históricos, nem demográficos21. Ou seja, a pesquisa nos registros de
casamento deu-se sob uma perspectiva quantitativa.
A pesquisa nos processos cíveis e criminais, também constituintes do acervo do
CMA/UFPA, deu-se através de outra metodologia. Buscamos analisar os discursos
presentes nesses documentos (as ocorrências policiais foram pesquisadas com o mesmo
método), com vistas a problematizarmos experiências de conjugalidade, noções de família
e da honra feminina, além dos papéis familiares de gênero e dos valores morais associados
ao casamento. A investigação foi centrada nas falas do(s) réu(s) e da(s) vítima(s) e, em
especial, no depoimento das testemunhas. A estrutura desses processos é bastante
semelhante. Primeiramente, há a petição inicial, onde o requerente expõe o objeto do
julgamento. Posteriormente, as testemunhas são convocadas, seguidas do parecer da
Promotoria e da decisão final do Juiz.
Os processos de Licença para casamento e de Suprimento de consentimento
paterno pesquisados encontravam-se, em grande parte, incompletos. Isso se justifica, como
veremos melhor ao longo do primeiro capítulo, pelo de fato de os pais acabarem
consentindo com o casamento durante a tramitação dos processos. Entretanto, para nossa
pesquisa o principal não é o veredicto em si, sejam os processos cíveis ou criminais, mas as
experiências sociais apreensíveis no decorrer dos mesmos. A perspectiva mais qualitativa
deste trabalho não se limitou, todavia, a ocorrências policiais e fontes judiciais. Mas foi
além, ao utilizar jornais, em especial no terceiro capítulo. Estivemos atentos para não
incorrermos no erro de procurarmos nos jornais exatamente aquilo que quiséssemos
confirmar22. Diferentemente, eles foram utilizados, principalmente, na problematização das
noções de família, das tensões morais e das experiências de conjugalidade associadas à
Severa Romana. Foram pesquisados os jornais Folha do Norte e A Província do Pará.
Os resultados desta pesquisa, como veremos ao longo deste trabalho,
evidenciaram não apenas as transformações que a família sofreu, mas sua relação com seu
contexto histórico e seu entorno social. Partindo de um pressuposto da História Social, não
podemos analisar a família sem levarmos em consideração seus nexos políticos,

numa das principais vertentes de estudos sobre a família no Ocidente, juntamente a uma abordagem “dos
sentimentos” e a outra sobre a família como uma unidade de produção doméstica.
21
NADALIN, Sergio Odilon. História e Demografia: elementos para um diálogo. Campinas/SP: ABEP,
2004, pp. 81-101.
22
Cf.: LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(Org.). Fontes Históricas, op. cit., pp. 111-154.
18

econômicos e (por que não?) afetivos e morais, visto que os aspectos sociais que permeiam
as experiências familiares são analiticamente indissolúveis desses nexos23. Portanto, ao
estudarmos determinadas famílias precisamos conhecer muito bem o contexto histórico no
qual estão inseridas. Agora, cabe-nos indagar: afinal, o que era Belém, entre o final do
século XIX e o início do XX?
A Belém do início do século XX era uma cidade cosmopolita, centro de influência
regional do que hoje chamamos Amazônia. Sua localização estratégica e a importância de
seu porto, aliadas à intensa dinâmica e aos excelentes resultados que a borracha trazia à
economia paraense, mudavam paulatinamente a estrutura e o cotidiano da cidade desde
pelo menos a primeira metade do século XIX. Concomitantemente, Belém se expandia em
variadas direções: estrutura demográfica, delimitação espacial, importância geopolítica,
econômica e cultural para toda a região. Uma cidade, que há um século era cercada por
florestas densas e cortada por igarapés, tornara-se o coração social, político, econômico e
cultural da Amazônia24.
Para este trabalho, dois pontos ganham destaque: o crescimento demográfico e o
processo de modernização da cidade. Ambos marcaram todo o contexto ao qual nos
referimos, acentuando-se, principalmente, a partir da década de 1870. A vinda maciça de
migrantes, em especial de “nordestinos” e europeus (portugueses e espanhóis), e o
processo de modernização da cidade consubstanciam a idéia de Belém como uma capital
regional: “um centro de vida própria, mas interligado aos mercados exteriores e a sua
região com ‘uma animação e progresso’ como não se conhecia pela Amazônia”25. Em
Belém, assim como em outras cidades da nascente República brasileira26, assistia-se à
transformação do espaço público, do modo de vida, à propagação de uma nova moral e à
montagem de uma nova estrutura urbana, cenário de controle das classes pobres e do
aburguesamento de uma classe abastada27.
Na virada do século, a cidade estava no auge de seu desenvolvimento econômico,
contando com mais de trinta fábricas que produziam desde sabão até uma litografia, além
de um movimentado setor de construção civil; o que nos dá noção de sua importância

23
Cf.: HOBSBAWM, Eric. Da história social à história da sociedade. In: Sobre História. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, pp. 83-105.
24
PENTEADO, Antonio Rocha. Belém: estudo de geografia urbana (v. 1). Belém: Editora da UFPA, 1968.
25
Ibidem, pp. 130.
26
Sobre um texto mais aprofundado acerca do nascimento da República no Pará, cf.: FARIAS, William Gaia.
A construção da República no Pará (1886-1897). (Tese) Programa de Pós-Graduação em História.
Niterói/RJ: UFF, 2005.
27
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). Belém/PA: Paka-
Tatu, 2002, pp.13.
19

comercial na região28. Em 1900, Belém já contava com 96.560 moradores, e esses números
cresciam progressivamente, tendo a população da cidade chegado, em 1920, a 236.402
pessoas29. Uma preocupação com uma reordenação do espaço público, já em voga naquele
período, intensificou-se com a vinda destes migrantes “nordestinos”30. A migração, que se
acentuara na segunda metade do século XIX, causou um grande impacto na estrutura
demográfica da cidade. Inclusive, em alguns momentos, a quantidade de casamentos entre
migrantes “nordestinos” chegou a superar as uniões entre paraenses, em regiões de
ocupação mais recente da cidade, a exemplo da Paróquia de Nazaré31. As transformações
na lógica interna e da legislação referente à família, em diálogo com um contexto histórico
específico, incidiram diretamente nos resultados a serem discutidos neste trabalho. Estes
primeiros aspectos, abordados ao longo desta Introdução, serão esmiuçados no decorrer de
nossos três capítulos.
No primeiro capítulo, investigamos o momento imediatamente anterior ao
casamento, através da discussão do exercício legal do pátrio poder e das estratégias
adotadas pelos nubentes para burlarem-no. A partir de uma análise centrada especialmente
nos discursos dos pais, dos nubentes e de eventuais testemunhas, buscamos apreender as
noções de família, as experiências de conjugalidade e os papéis familiares de gênero
associados ao casamento. Foram utilizados processos cíveis de Licença para casamento e
de Suprimento de consentimento paterno. As reflexões evidenciam a preocupação com o
provento ao Lar – o que refletiu a grande preocupação com as profissões exercidas pelos
pretendentes – e com a moralidade do casal.
O segundo capítulo consiste na delineação dos perfis demográficos dos nubentes
que se casaram civilmente em Belém, entre 1908 e 1925, a partir da análise de uma série
completa composta por 5.792 registros. Investigamos as origens (nacionalidade a
naturalidade), as ocupações, as idades ao casar, o caráter de (i)legitimidade e o estado civil
dos noivos, com o auxílio da demografia histórica como ferramenta metodológica de
análise. Em diálogo com a perspectiva quantitativa, utilizamos também processos de
Licença para casamento e obras literárias do período. As discussões desse capítulo

28
SARGES, Maria de Nazaré e LACERDA, Franciane Gama. Uma cidade quase quatrocentona: Belém,
suas histórias e sonhos. In: Rev. Cult. do Pará, v. 17, nº 2, Jul/Dez 2006. p. 149-162.
29
IBGE. Sinopse do recenseamento de 1920. Rio de Janeiro: Tipografia de Estatística, 1926.
30
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque, op. cit.
31
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha (Belém – 1870-
1920). (Tese). Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo. São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.
20

sinalizaram para a existência de uma multiplicidade de arranjos familiares, em que a


origem e o grupo social do pretendente poderiam ser fatores preponderantes.
O terceiro capítulo consubstancia-se num estudo de caso do casamento de Pedro
Cavalcante e Severa Romana. Através da perspectiva metodológica da micro-história,
problematizamos diversas discussões apresentadas ao longo dos capítulos anteriores, a
exemplo da análise dos papéis familiares de gênero, das representações da honra feminina,
masculina e familiar, e dos valores morais associados ao casamento. A história de Pedro e
Severa, muito bem documentada por razões que expomos no capítulo, permite-nos, a partir
de um caso, refletir sobre o casamento em suas múltiplas facetas. De forma semelhante ao
primeiro capítulo, centramos a análise nos discursos presentes no processo-crime aberto
pelo homicídio de Severa, em periódicos e em escritos da época.
Entre discursos e números, experiências pessoais e tendências gerais, o casamento
será apresentado em suas múltiplas facetas. Os embates entre pais e filhos no momento
imediatamente anterior ao casório, o perfil demográfico dos nubentes, e as representações
da honra e os valores morais relacionados ao casamento serão discutidos nas páginas que
seguem. Porém, antes mesmo de iniciarmos nossas reflexões propriamente ditas, cabe-nos
fazer uma última ponderação. A família, o casamento e seus diversos aspectos sociais
devem ser analisados em sua pluralidade. Ou seja, não basta investigarmos quem se casava
se não soubermos o que de fato era o casamento, e vice-versa. Revisitar o casamento em
Belém, no início do séc. XX, sob várias perspectivas, foi o objetivo principal deste
trabalho. Passemos a nossas análises.
21

Capítulo I – De pais e filhos: a dinâmica do pátrio poder, a criação de um Lar e a


existência de um novo pacto matrimonial

Este capítulo tem por objetivo refletir acerca da dinâmica das relações de pátrio
poder, em Belém, durante o início do século XX. Através da análise dos discursos
presentes nos casamentos e em autos de Licença para casamento e Suprimento de
consentimento paterno, almejamos investigar o momento de construção de uma nova
unidade conjugal, em que as mulheres – e seu respectivo sustento – saem da esfera
paterno-materna e ficam sob responsabilidade do marido, e em que os homens passam da
condição de filhos dependentes para provedores do Lar. A partir de agora, adentraremos
num contexto imediatamente anterior ao casamento (entendido, nesse caso, como o evento
de casar-se), analisando as falas de pais, mães, noivos e noivas. Sentimentos, opiniões
pessoais, noções de família e de casamento, discursos de gênero, “moralidade” e
“honestidade”... todos esses elementos compõem o universo de representações em torno do
casamento que os convido a conhecer.

Primeiras palavras...

Convencido de suas intenções, Barnabé Assunção Martins, por intermédio de um


amigo comum, enviara uma carta a Sra. Teresa Santos pedindo a mão de sua filha, a menor
e órfã de pai Hilda de Andrade, em casamento. Barnabé então ansiava por uma resposta...
que acabou não vindo. Mesmo assim, ele insistiu em seu intento, convicto em seu desejo
de se casar com Hilda. O pretendente, que era empregado no corpo de operários do Arsenal
da Marinha, descobriu, porém, que sua amada vivia seqüestrada desde o dia em que sua
mãe recebera a carta com o pedido de casamento, sendo grosseiramente espancada por ela
e maltratada por um irmão, que não consentiam com seu casamento com Barnabé. Sendo
assim, sabedor de que seu amor era correspondido por Hilda, como “provara”
posteriormente, Barnabé entrou com uma ação no Juizado de Órfãos contra Teresa Santos
com o objetivo de conseguir o suprimento de consentimento necessário para a realização
de seu casamento, que, após o desenrolar do processo, acabou ocorrendo em 10 de maio de
191732.

32
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Barnabé Assunção Martins e requerida Teresa Santos. 1917.
22

Para além da história pessoal de Barnabé Martins e Hilda de Andrade, muitos


foram os motivos que levaram os pais a (não) consentirem com o casamento de seus filhos.
Como veremos a seguir, as exigências paternas, que variavam da origem à ocupação dos
pretendentes, denotam a existência de um mercado matrimonial, onde, para além do amor,
variadas foram as motivações que levaram esses pais a autorizarem ou negarem
veementemente que seus filhos se casassem com quem desejassem. Nesse sentido,
poderíamos entender consentimento paterno como um mecanismo legal do qual os pais se
apropriariam para influir diretamente na escolha do cônjuge do filho. Em contrapartida,
seus filhos adotavam diversas estratégias para de alguma forma burlar um não
consentimento. Essas estratégias, a serem mais bem explicadas no desenrolar de nossas
discussões neste capítulo, geralmente enveredam por dois caminhos, ambos perpassando
necessariamente por brechas na Lei que possibilitam aos pretendentes se casaram sem o
consentimento paterno.

O exercício do pátrio poder: o estatuto legal e experiências pessoais

Barnabé Martins e Hilda de Andrade enfim se casaram. Sua união legal, que
anteriormente carecia do consentimento paterno (esse exercido pela mãe, Teresa Santos,
visto que Hilda era órfã de pai), fora realizada em 10 de maio de 1917 no Cartório
Privativo de Casamentos de Belém33. Agora, após termos contado a breve história de
Barnabé e Hilda, que acompanhamos desde o pedido da mão da nubente à consumação do
casamento propriamente dito, cabe-nos destacar e discutir elementos implícitos no
processo judiciário que Barnabé entrou contra Teresa Santos, com vistas a refletirmos
sobre o estatuto legal do pátrio-poder e, nesse caso, as estratégias adotadas por Barnabé e
Hilda para, com amparo da Lei, terem conseguido suprir o não consentimento de Teresa
Santos a seu casamento. Nesse sentido, faremos uma breve exposição do estatuto jurídico
do pátrio-poder (doravante chamado de poder familiar) no Código Civil de 1916, vigente à
época do processo que temos acompanhado inicialmente.
Conforme o Código Civil de 1916, o exercício legal do pátrio-poder, no tocante
ao casamento, seguia uma instrução etária, ou seja, os pais só tinham direito de influir
legalmente na escolha dos cônjuges dos filhos caso esses fossem menores de idade (a
maioridade no período era de 21 anos) e não previamente emancipados. Além disso, caso o

33
CMA/UFPA. Cartório Privativo de Casamentos. Casamento de Barnabé Assunção Martins e Hilda de
Andrade. Maio de 1917.
23

filho fosse legítimo, o pátrio-poder se exerceria preferencialmente pelo pai, sendo dever da
mãe apenas quando o nubente era órfão de pai ou filho natural34. O código civil de 1916
praticamente manteve inalteradas as disposições do decreto 181, de 14 de janeiro de 1890
– que promulgou o casamento civil no Brasil e regulou, pela primeira vez na República, a
questão do poder paterno no tocante ao casamento. O decreto previa a idade mínima de
casamento para homens e mulheres como sendo, respectivamente, 16 e 14 anos. O
casamento antes das idades mínimas era permitido apenas em algumas ocasiões, a exemplo
de “reparar o mal” de um crime de estupro; mas, nesse caso, os nubentes poderiam viver
em separação de corpos até alcançarem a idade mínima permitida, conforme determinação
do Juiz de Órfãos. As poucas alterações que ocorreram entre o decreto 181 e o Código
Civil de 1916 foram relativas ao aumento da idade mínima do casamento (a partir de 1916,
18 e 16 anos para, respectivamente, homens e mulheres) e regulamentação situações e de
mecanismos que elidiriam o exercício do pátrio poder, doravante denominado Poder
Familiar35.
Portanto, pelo fato de Hilda ter se casado com 16 anos de idade, fora necessário
que seu pretendente entrasse no Juizado de Órfãos com uma ação de Suprimento de
consentimento para casamento36, a fim de conseguir a devida autorização para casar-se. O
processo de Barnabé Martins, que começa a poder ser mais bem compreendido do ponto de
vista legal, continuará inicialmente a nos servir de exemplo e ponto de partida para nossas
discussões. Assim sendo, podemos partir para outras reflexões, quais sejam, o exercício
legal do pátrio-poder por parte dos pais e as estratégias adotadas pelos nubentes para
burlarem-no. Para tal, daremos atenção especial aos discursos das testemunhas, justamente

34
Código civil quadro comparativo 1916/2002. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas,
2003. p. 411-460.
35
Delineando a idade mediana de casamento por sexo, encontramos que os homens se casavam pela primeira
vez em média entre os 20 e os 34 anos; enquanto as mulheres, com entre 15 e 30 anos. Esse é dado muito
importante, pois possibilita-nos concluir que o pátrio poder do século XX, ao contrário dos séculos
anteriores, incidia principalmente sobre as mulheres, em especial as filhas mais novas, numa tendência que se
encorpa a partir do final do século XIX (NAZZARI, 2001). Ao todo, apenas 298 homens estavam sujeitos ao
pátrio poder. Quanto às mulheres, este percentual era significativamente maior: em 2.240 casos, as nubentes
estavam sob pátrio poder. O que significa dizer que, em aproximadamente 1/3 dos casamentos, as nubentes
necessitariam ou da autorização paterno-materna, ou do consentimento por via judicial para se casarem.
36
Suprimento para consentimento e Licença para casamento são ações de natureza cível produzidas no
Juizado de Órfãos. Geralmente são solicitados pelos nubentes como forma de possuírem um mecanismo legal
que elida o consentimento paterno e autorize o casamento. Em sua maioria são processos curtos, bastante
sucintos e que se limitam à petição inicial e aos testemunhos dos envolvidos no imbróglio. Ressaltamos,
todavia, que a Licença para casamento era comumente usada em casos de órfãos de ambos os pais, não
sendo uma “afronta” ao poder paterno como o Suprimento de consentimento propriamente dito, que em
alguns casos se desenrolava contrariamente ao desejo de ambos os pais.
24

por serem um rico indicador que nos permite recuperar sociabilidades e pequenos atos
cotidianos do passado37.
Após o depósito de Hilda na casa de seu tutor provisório, Teresa Santos foi
convocada pelo Juiz de Órfãos para esclarecer os motivos que tinha para não consentir com
o casamento de sua filha e Barnabé Martins. Teresa argumentou “que não consente no
casamento de sua filha Hilda com o requerente porque este vive maritalmente, há dez anos,
com uma mulher com a qual tem dois filhos; que sabe disso porque são vizinhos”38. Em
contrapartida, Hilda afirmou que sua mãe estava equivocada. Admitiu que Barnabé
realmente vivera por vários anos com uma mulher com quem teve dois filhos, mas
asseverou que esse relacionamento já havia acabado e que, mesmo sabendo da oposição de
sua mãe, desejava casar-se com Barnabé. Mais adiante, Hilda seria ainda mais enfática, ao
dizer que por sofrer coações morais e físicas não voltaria ao lar de sua mãe no estado de
solteira39.
É interessante percebermos a lógica intrínseca nos depoimentos de Hilda de
Andrade e Teresa Santos. É plausível pensarmos, inclusive, que ambas foram instruídas no
que depor, pois seus argumentos incidem diretamente naquilo que poderia convencer o
Juiz de Órfãos a dar ganho causa a uma ou a outra. Teresa Santos, enquanto mãe e no
direito de exercer o pátrio poder legal, não consentia que sua filha casasse com alguém que
mantinha relações maritais com uma mulher com quem já tinha dois filhos, e afirmara que
essa união persistia e que sabia disso porque era vizinha de Barnabé. Hilda,
diferentemente, seguia outra linha de raciocínio, desmentindo sua mãe quanto à existência
atual de uma união de Barnabé com outra mulher e afirmando que vivia seqüestrada,
sofrendo coações físicas e morais tanto por parte de sua mãe quanto de seu irmão, cujo
nome não foi citado. Há de destacar-se também a participação ativa de Hilda no desenrolar
do processo, defendendo suas convicções e seus interesses pessoais em detrimento
daqueles de sua mãe e de seu irmão, ou seja, de sua família.
Hilda e Barnabé muito possivelmente se conheceram e iniciaram namoro na Rua
Caripunas, onde moravam. Em Belém, no início do século XX, o casamento entre vizinhos
ou coabitantes foi representativo, chegando a aproximadamente 15% do total de uniões
ocorridas. Em outras palavras, esse dado evidencia a vizinhança enquanto um importante
espaço de sociabilidade para a formação de casais. Entretanto, ela – a vizinhança – não

37
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Uso e mau uso dos arquivos, op. cit., pp. 37.
38
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Barnabé Assunção Martins e requerida Teresa Santos. 1917. p. 4.
39
idem, p. 6-7.
25

pode ser vista apenas como um espaço de “sociabilidade amorosa”, mas também como um
lócus de controle e vigilância. Os vizinhos eram testemunhas preferenciais e das mais
requisitadas para deporem sobre o comportamento “moral” dos envolvidos em processos
judiciais40. Ao afirmar que tinha ciência da existência de uma união consensual de Barnabé
com outra mulher, Teresa afiançava seu testemunho salientando que sabia disso porque
eram vizinhos.
A participação de Hilda, uma menor e órfã de pai, na luta de seus interesses
denota a que ponto o individualismo, em construção e consolidação em séculos anteriores,
faz-se presente no início do século XX, assim como atenta-nos para o fato da existência de
uma nova configuração do próprio pacto matrimonial, em que o casamento se apresenta
muito mais como uma relação particular entre duas pessoas do que como uma aliança
familiar41. Em contrapartida, a opinião de sua mãe, Teresa Santos, pode nos levar a pensar
que o patriarcalismo – agora reconfigurado e contextualizado – e noções de honra e
honestidade teriam, a sua maneira, sobrevivido ao tempo e se mantido presentes pelo
menos na primeira metade do século XX42. Porém, antes de adensarmos nossas discussões
sobre o exercício do pátrio poder e as estratégias adotadas pelos cônjuges para burlarem-
no, analisemos mais um caso: a história de Benedito Tiago Cardoso e Aurélia de Sousa
Nunes.
Aurélia de Sousa Nunes, sentindo-se desamparada por seu pai, José Vieira Nunes,
e com o desejo de casar-se com Benedito Tiago Cardoso, compareceu ao Juizado de
Órfãos entrando com uma ação de Suprimento de consentimento para casamento. Aurélia
argumentava que seu pai resolveu não mais consentir em seu casamento com Benedito
Cardoso na última hora, mesmo com os papéis e os procedimentos burocráticos para o
casório já em andamento. Além disso, afirmava que sua intenção de se casar deveria ser
louvada e era merecedora de aplausos da sociedade, visto que ela não queria mais estar
sujeita a freqüentar, entre dez e onze horas da noite, tendas de café repletas de indivíduos
desclassificados, entregando-se assim de vez à prostituição. Assim sendo, Aurélia esperava

40
CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas
populares na Belém do final do século XIX e início do XX. (Dissertação). Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas. Campinas/SP: UNICAMP, 1997, p. 17.
41
Cf.: NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit., 2001.
42
Cf.: CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura,
2000.; ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
26

o amparo judicial para de casar, constituir uma família digna e honesta, e não ter mais que
se sujeitar a situações constrangedoras43.
A petição inicial do processo de Aurélia Nunes narra uma história comovente:
uma jovem de 20 anos de idade fora a justiça lutar por sua dignidade, honra e honestidade.
Porém, ao adentrarmos nos depoimentos do processo e dependendo do ponto de vista com
que analisemos o caso, podemos entender que a história não era tão bela assim, mas que
possui elementos que nos subsidiam boas reflexões. Em seu testemunho, José Nunes
afirmava que:

“nega seu consentimento ao casamento de sua filha com


Benedito Cardoso devido ao mau procedimento deste, que já é
casado religiosamente, tendo desse consorcio uma filha de cinco
para seis anos, cuja mulher e filha foram por ele abandonadas,
tendo sua subsistência de vender mingau no mercadinho do canto
da Paes de Carvalho com a Benjamim Constant; que além disso é
dado a conquistas amorosas, não só de mulheres casadas como de
viúvas, tendo ultimamente desfeito um lar no Pinheiro, motivo
pelo qual esteve preso; que além disso costuma apropriar-se de
jóias e valores das mulheres a quem conquista como se deu,
segundo a própria narrativa de Benedito, com uma francesa que da
cidade de Cametá, ele Benedito levou para o Acre, onde a mesma
morreu; que, segundo lhe disse a própria mulher de Benedito,
ultimamente nesta capital ele conquistou uma senhora espanhola
casada, que, digo, casada e de quem ele gastou a importância de
dois contos de réis, espancando-a e abandonando-a; que Benedito
foi expulso do Corpo Municipal de Bombeiros por embriaguez;
que oportunamente apresentava documentos comprobatórios de
suas alegações; que tendo sua filha em petição as folhas onze dos
autos declarado já pertencer a Benedito, declaração esta que
considera falsa, com o único intuito de forçar o juiz a facilitar o
casamento, requer o declarante que a mesma seja submetida a
exame médico-legal a fim de ser apurada a verdade, e bem assim
requer também a remoção do depósito da menor sua filha, em
virtude de não merecer confiança o depositário atual cuja casa é
diariamente freqüentada por Benedito”44.

José Nunes, em seu depoimento, atacava principalmente o caráter e os bons


costumes de Benedito Cardoso: acusou-o de ser conquistador, de sofrer com a embriaguez
e de ser oportunista. As acusações deferidas por José Nunes criam, perante o Juiz de
Órfãos, o estereótipo de que Benedito seria um péssimo partido para casar-se com sua filha
43
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Aurélia de Souza Nunes e requerido José Vieira Nunes. 1930.
44
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Aurélia de Souza Nunes e requerido José Vieira Nunes. 1930. p. 13-14.
27

Aurélia. Com tantos argumentos contrários à pessoa, aos bons costumes e até mesmo ao
caráter de Benedito Cardoso, suporíamos que certamente Aurélia Nunes desistiria de seu
casamento... contudo, como veremos agora, sua opção foi outra. Em seu testemunho,
Aurélia confirmava que Benedito era casado religiosamente, ratificando, todavia, que o
casamento religioso não possuía amparo legal do Brasil, ou seja, que Benedito era livre e
solteiro para casar-se.
A partir do momento em que o casamento civil foi instituído no Brasil, em
meados de 1890, ele constituiu a única forma legal de se legitimar uma união perante o
Estado. O casamento religioso católico, doravante, era apenas facultativo e deveria ser
realizado preferencialmente após a cerimônia civil. Esse contexto de implementação do
casamento civil no Brasil foi marcado por intensos debates, em diversas regiões do país45.
Em Belém, não era incomum, inclusive, que as pessoas procurassem pelas duas formas de
casamento. Em nossa pesquisa, concentrada em registros civis, encontramos dezessete
referências de casais que declararam terem casado anteriormente na Igreja. Com o passar
do tempo, essa tendência foi sendo amenizada. Em 1909, houve cinco casos nesse sentido,
contra apenas um em 1925.
Durante a década de 1890, quando em determinados momentos o casamento civil
deveria ser obrigatoriamente realizado antes do religioso, a ordem dos casamentos se
invertia, como no caso de Antonio Mendes Costa e Raimunda Apolinária dos Santos, que
“sendo casados civilmente, como verdadeiros filhos da Igreja não consideram legitimado o
casamento”46. Legalmente, apenas o casamento civil era reconhecido. Entretanto,
moralmente, esse reconhecimento poderia ser relativizado. Essa questão é pertinente ao
caso de Aurélia Nunes e Benedito Cardoso. Ele, sendo casado religiosamente, era
legalmente solteiro (ou viúvo, caso fosse casado em segundas núpcias). Mas, moralmente,
qual seria a sua condição conjugal? Pelo menos na opinião de José Nunes, pai de Aurélia,
ele seria casado, o que inviabilizaria um novo casamento com sua filha.
Aurélia, porém, continuou argumentando a favor do suprimento judicial do
consentimento de seu pai, necessário ao casamento. Ela afirmava “já ser” de Benedito e
que sabia que seu pai mudara de opinião por influência de um membro de sua família que

45
Cf.: CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit.;
SILVA, Maria da Conceição. Catolicismo e casamento civil na Cidade de Goiás. In: Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 23, nº 46, pp. 123-146, 2003.; SOUSA, Alina Silva. A família na República:
casamento civil e imprensa em São Luís na década de 1890. (Dissertação). Programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008.
46
Cúria Metropolitana de Belém. Dispensa de Parentesco e Proclamas (1827-1900). Dispensa de Proclamas
em que foram requerentes Antonio Mendes Costa e Raimunda Apolinária dos Santos (Doc. 112). 1897.
28

tinha uma rixa com seu pretendente. Sendo ainda mais incisiva, declarou que se casaria
com Benedito de qualquer modo, nem que para isso tivesse que esperar sua maioridade
legal, e conseqüente emancipação, vivendo maritalmente com seu pretendente, sem a
formalidade legal que almejava através do casamento47 – lembremos que a partir de 1830,
no Brasil, os jovens que atingissem a maioridade (21 anos) eram automaticamente
emancipados e estavam aptos a casar, diferentemente do período colonial48. Ao afirmar “já
ser de Benedito”, Aurélia tencionava demonstrar ao Juiz que a liberação do casamento
seria a melhor solução, pois mesmo que o pedido de suprimento não fosse acatado, ambos
viveriam juntos, sem casar-se.
Após o desenrolar do processo, e não sabemos ao certo o porquê disto, José
Nunes desistiu de negar seu consentimento, autorizando o casamento de sua filha com
Benedito Cardoso. Contudo, ainda não encontramos o casamento de Benedito e Aurélia em
nossos registros pesquisados e não temos certeza se eles de fato se casaram ou se
separaram, ou ainda se Benedito e Aurélia resolveram viver maritalmente sem a
formalidade que desejam com o casamento civil.

Os argumentos de pais e filhos

Salvaguardadas as especificidades e os diferentes contextos em que se inseriram,


os casos de Hilda de Andrade e Aurélia Nunes demonstram estratégias argumentativas
semelhantes. Seus responsáveis, respectivamente Teresa Santos e José Nunes, atacavam a
“moral”, a “honestidade” e os “bons costumes” dos pretendentes de suas filhas. Em
contrapartida, Hilda e Aurélia acusavam seus pais de as ferirem física, para o caso
específico de Hilda, e moralmente, em ambos os casos. Esses argumentos, encontrados em
praticamente todos os processos de Suprimento de consentimento e Licença para
casamento que pesquisamos, nos indicam as linhas-mestras do raciocínio de cada uma das
partes envolvidas no processo: os pais tentavam a todo custo influir na escolha dos
cônjuges de seus filhos, mantendo sua imagem de bons educadores e provedores do lar, ao
ponto em que objetivavam persuadir o juiz de que os pretendentes de seus filhos não eram
de “bom procedimento” e, em caso de filhas mulheres, que os pretendentes não tinham
recursos para sustentá-las; já os filhos, ávidos por se casarem com quem desejam e amam,

47
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Aurélia de Souza Nunes e requerido José Vieira Nunes. 1930. p. 7-8/11.
48
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit., p. 165.
29

enveredam seus argumentos por brechas da Lei que permitem que se casem sem o
consentimento paterno, alegando que seus pais os submetiam à coação moral e física e,
especificamente para as mulheres, afirmando terem sido possuídas por seus pretendentes.
Façamos um pequeno parêntese.
As discussões deste capítulo se inserem num contexto específico do casamento.
Trata-se do momento em que os filhos saem do Lar paterno-materno para viverem como
uma nova unidade conjugal. A saída de um Lar para a criação de outro denota não apenas
uma mudança física e espacial, mas uma transformação nos papéis de gênero associados ao
novo casal. O marido e a esposa exercem, dentro de sua relação conjugal, papéis familiares
inerentes ao grupo social que pertencem, sob a influência de valores morais específicos49.
Na idealização da época, os homens assumiam o papel de provedores do Lar, enquanto as
mulheres seriam responsáveis por sua manutenção. Essa idealização, pautada numa moral
elitista, não necessariamente se aplicava às camadas populares, que apresentavam
cotidianos amorosos específicos; concernentes ao seu grupo social e aos valores morais a
ele associados.
A virada entre os séculos XIX e XX foi caracterizada, conforme já destacamos
anteriormente, por uma reconfiguração do pacto matrimonial, iniciada em meados dos
Oitocentos. Doravante, o sustento dos recém-casados passou a depender cada vez mais da
contribuição dos maridos, quer em bens, quer por seu emprego50. O provento ao Lar, ideal
de gênero associado ao masculino, interagia com a vigilância ao comportamento da esposa
na idealização de um “bom marido”. No tocante a nossa reflexão neste capítulo cabe ainda
destacarmos que as questões do provento e da vigilância ao lar deveriam passar, por assim
dizermos, de pais a maridos. Ao negarem o consentimento para o casamento de seus filhos,
os progenitores alegavam comumente os “maus procedimentos” dos pretendentes. No caso
de pretendentes homens, a incapacidade de prover ao lar era o cerne da argumentação.
Os argumentos dos pais geralmente colocavam em questão os procedimentos dos
pretendentes de seus filhos. Especificamente para o caso de pretendentes homens, os pais
comumente alegavam também que aqueles não seriam capazes de sustentar suas filhas;
além disso, os argumentos paternos poderiam incidir sobre suas próprias filhas, ao
afirmarem que elas ainda não têm maturidade para casar e/ou que ainda não estão aptas a
desempenhar as atividades do lar. Nesse sentido, destacamos seis pontos que se fazem

49
Cf.: SAMARA, Eni de Mesquita. Casamento e papéis familiares em São Paulo no séc. XIX. In: Cad.
Pesq. São Paulo: 1981. pp. 17-25.
50
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit., p. 211.
30

presentes em praticamente todos os argumentos paternos que pesquisamos, tendo sido


alegados como os motivos que os fizeram negar seu consentimento, quais sejam: o
pretendente não possuiria ocupação e, portanto, forma ideal de subsistir e de se casar; 2) a
pretendente seria muito nova e ainda não teria aprendido os ofícios do lar, o que
inviabilizaria seu casamento por ainda não ser uma boa esposa; 3) o(a) pretendente
seria(m) muito novo(a/os) e ainda não teria(m) maturidade pessoal e financeira para
contrair(em) matrimônio; 4) o(a) pretendente não seria(m) de uma origem (Ex.: de origem
portuguesa) que agradasse aos pais; 5) o(a) pretendente não seria pessoa de bons costumes,
procedimentos e procedência; 6) o(a) pretendente viveria maritalmente, no sentido teúda e
manteudamente, com outrem.
Podemos argüir que os pais, em seus argumentos, tentavam demonstrar, perante o
Juiz de Órfãos, que o casamento de seus filhos, àquele momento e/ou com aquela
determinada pessoa, não seria apropriado para a felicidade e o futuro dos mesmos.
Apresentavam-se através da imagem de bons pais que cumpriam sua função de provedores
do lar e que se preocupavam a todo o instante com o bem-estar de seus filhos, na defesa de
uma família ideal – honesta, digna, honrada e de bons costumes. Antes mesmo de
adentrarmos na discussão sobre os argumentos dos filhos, peço licença para conhecermos
mais um caso: a história de Alfredo Rodrigues Cid e Delfina Rodrigues Alves.
Alfredo Cid e Delfina Alves moravam próximo: ele, na Rua Manoel Barata, 90;
ela, à Rua Tiradentes, 32. Eles tinham, respectivamente, 19 e 18 anos de idade, e se
conheciam já há dois anos. Menores de idade e ainda não emancipados, ambos
necessitariam da autorização paterna para casar. O pai de Alfredo, com quem o mesmo
trabalhava, não de opôs ao casamento, diferentemente de José Rodrigues Alves, pai de
Delfina. Essa história pode ser compreendida em três momentos. Primeiro, o depoimento
de José Alves. Segundo, o testemunho e a defesa de Alfredo. Terceiro e por último, a fala
de Delfina. À história51.
José Alves era contrário ao casamento de sua filha Delfina com Alfredo Cid.
Declarava ser “pobre, mas honrado” e que se sacrificava ao máximo para dar educação aos
“filhos que adora(va)”. Enfático, José afirmava que não consentiam o casamento de sua
filha com Alfredo Cid, pois esse era um “precoce perdido social”, envolvido em crimes e
“vagabundo, sem profissão alguma”. Mais uma vez, os “maus procedimentos” e a
incapacidade de provento ao lar são o cerne da argumentação paterna. José Alves também

51
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Alfredo Rodrigues Cid e requerido José Rodrigues Alves. 1920.
31

acusava o pretendente de sua filha de tê-la seqüestrado52. Diante de tantas acusações, qual
seria o teor do depoimento-defesa de Alfredo Cid? Mais da metade do testemunho de
Alfredo incidia na afirmação de que não era “vagabundo”, mas “trabalhador com profissão
honesta e definida”. Vejamos um exceto de seu depoimento:

“Não é absolutamente exato (sic) ser o suplicante um


vagabundo, sem alguma profissão, como disse Jose Rodrigues
Alves, pai da menor Delfina Rodrigues Alves, noiva do suplicante.
A prova disso está patente nos atestados inclusos passados por
pessoas conceituadas, dignas de credito, todos domiciliados nesta
capital. O suplicante não possui esse qualificativo, que ele empresta
do pai de sua noiva, pois que é artista e trabalhador digo e exerce a
profissão de seu ofício na fábrica de sapatos dês propriedade de seu
legitimo pai, como se vê no atestado que este dera.
Tem, portanto, a sua profissão honesta e definida, e que
seu salário que é de dez mil seis diárias, lhe dá perfeitamente para
constituir família [...].
[...]
O Sr. José Rodrigues Alves disse mais que o suplicante
raptara a sua filha Delfina. Isso não passa de uma grande mentira,
sem prova alguma. D. Delfina Rodrigues Alves fugira de sua casa
obrigada por circunstâncias superiores. Ela foi impelida a recorrer a
fuga em virtude de continuamente ser espancada pelo seu pai. Os
espancamentos eram repetidos a ponto de receber o seu débil corpo
as lesões, cujas cicatrizes ainda se vêem. Fora esses mais tratos que
motivaram a fuga de Delfina do seu lar paterno, onde não recebia
carinho [...]”53.

Os discursos desse processo evidenciam a importância dos “procedimentos” e do


provento ao Lar, tanto como valores morais inerentes àquela época, quanto como
elementos argumentativos que poderiam persuadir o Juiz de Órfãos a ratificar ou não a
negação do consentimento paterno para o casamento. O testemunho de Alfredo Cid, em
especial, direciona nossas discussões para outra perspectiva. Ao declarar que Delfina era
“espancada” por seu pai, ele tencionava atacar justamente uma das exceções que inibiriam
o exercício legal do pátrio poder: os maus tratos aos filhos. O que denota que não somente
os pais argumentavam contra os pretendentes, mas vice-versa. A Lei era tida, portanto,

52
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Alfredo Rodrigues Cid e requerido José Rodrigues Alves. 1920. p. 4-5(v).
53
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Alfredo Rodrigues Cid e requerido José Rodrigues Alves. 1920. p. 11-12.
32

como um palco de conflitos de experiências inerentes aos valores sociais, morais e


culturais de cada grupo social54.
Enquanto os pais utilizavam uma argumentação embasada essencialmente num
discurso moral, os nubentes apropriavam-se de um discurso legal, em busca de brechas na
Lei que possibilitassem seu casamento mesmo sem o consentimento paterno. A
argumentação dos nubentes incidia principalmente sobre as exceções que inibiam o
exercício legal do pátrio-poder; em alguns casos, alegando também que estavam
envolvidos em crimes sexuais, seja como réus ou vítimas, o que por Lei os levaria em
grande parte dos casos ao casamento – contudo, encontramos casos que pais de filhas
defloradas recusavam dar seu sentimento para um casamento que repararia o mal feito a
elas, como veremos posteriormente. Nesse sentido, em diálogo com a Lei vigente no
período de nossa pesquisa55, discutiremos agora as estratégias adotadas pelos nubentes.
Conforme o código civil de 1916, os pais teriam direito de conceder ou negar seu
consentimento para o casamento de seus filhos menores de idade. Além disso, deveriam
exigir obediência e respeito de sua prole, podendo reclamar judicialmente contra quem
ilegalmente os tirasse do lar por seqüestro ou rapto. Entretanto, além da instrução etária (o
pátrio-poder só poderia ser exercido legalmente caso os filhos fossem menores de idade e
ainda não emancipados), outras situações inibiam o exercício legal do pátrio-poder por
parte dos pais, quais sejam: a emancipação, a maioridade e a adoção dos filhos; o abuso do
poder paterno e o arruinamento dos bens dos filhos, a condenação do pai por crime
irrecorrível punido com mais de dois anos de sentença e caso os pais castigassem
imoderadamente os filhos, os deixassem em abandono ou praticassem e expusessem esses
a situações contrárias à moral e aos bons costumes. Além disso, caberia ao pai manter a
subsistência de seus filhos menores, dando-os boa educação56.

54
Cf.: THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e Caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997. O autor, a partir da análise das origens da Lei Negra na Inglaterra setecentista, apreende a Lei
como um palco de conflitos pautados pelas experiências sociais e culturais de diversos grupos sociais.
55
Os direitos e as obrigações dos pais relativamente aos filhos – que, quando insuficientemente cumpridos,
inibem o exercício legal do pátrio-poder – devem ser analisadas unicamente conforme sua historicidade e
especificidade contextual, apesar de comumente sofrerem poucas alterações num espaço reduzido de tempo.
Para uma reflexão sintética sobre obrigação dos pais com os filhos, cf.: LEBRUN, François. O sacerdote, o
príncipe e a família. In: BURGUIÈRE, André et al. História da família, op. cit., pp. 90-92; ANDERSON,
Michael. Elementos para a história da família ocidental, op. cit., pp. 58-61; ARIÈS, Philippe. História social
da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
56
Código civil quadro comparativo 1916/2002, op. cit., p. 454-455.
33

Com a palavra, o Juiz de Órfãos

A simples exposição das leis que regiam o pátrio-poder e a reflexão sobre os


casos que expusemos por si só poupariam, para o leitor atento, boas linhas de texto e
grande parte de nossas conclusões. Entretanto, sentimos a necessidade de discutirmos a
forma pela qual os nubentes se apropriam do que chamamos de brechas da Lei, com o
objetivo de casarem-se. Podemos entender que assim como no caso de seus pais, os
nubentes foram instruídos no que expor ao Juiz de Órfãos, visto que seria ingenuidade de
nossa parte acreditar que coincidentemente eles tocavam geralmente em questões que, de
alguma forma, facilitariam o suprimento do consentimento necessário para que seu desejo
de casar-se fosse consumado. Nesse sentido, eles alegavam comumente que sofriam
coações morais e físicas, que não eram sustentados por seus pais e que eram
constantemente expostos a situações que de algum modo poderiam ferir sua moral e seus
“bons costumes”. Em alguns casos, admitiam já manter relações sexuais com seus
pretendentes, o que poderia induzir tanto os pais quanto os juízes a, respectivamente,
concederem ou suprirem o consentimento. Tínhamos então o palco montado para o
embate: de um lado, os pais, incrustados na aura de bons genitores que se preocupavam
com o futuro de suas crianças; do outro, os filhos, amantes que desejavam se casar com
aqueles que sentissem afeto, contradizendo a imagem idônea e idealizada de seus pais e
alegando, em determinados momentos, que já eram de seus pretendentes, sendo o
casamento a melhor solução para a questão. Mas, afinal, qual argumento melhor
persuadiria o Juiz de Órfão em seu favor?
Infelizmente, os processos que pesquisamos, em sua maioria, encontram-se
incompletos, carecendo de informações que só poderíamos mensurar ao certo o valor de
sua perda, caso a elas tivéssemos acesso. Além disso, vários desses processos não
precisavam necessariamente de uma conclusão formal (a decisão final do Juiz de Órfãos),
afinal, muitos pais, mesmo que contrariamente a suas vontades, acabavam por consentirem
com o casamento de seus filhos. Contudo, a conclusão de um processo nos chamou
atenção. Nesse processo, o Juiz de Órfãos à época, Dr. Maurício Cordovil, delineia os
motivos que, alegados pelos pais e posteriormente comprovados contra os pretendentes de
seus filhos, o fariam não consentir com o pedido de suprimento de consentimento. Esses
motivos seriam: a) doença grave e contagiosa do pretendente; b) vida licenciosa da pessoa
com quem a menor quer casar; c) paixão imoderada pelo jogo da pessoa com quem a
menor quer casar; d) vício de embriaguez; e) não ter o pretendente bom procedimento, ou
34

estar sendo processado por qualquer crime; f) existência de qualquer impedimento legal; g)
a falta de recursos por parte do pretendente para a subsistência do casal, h) os maus
costumes provados e notórios da pessoa com quem a menor quer casar e i) os defeitos que
impedem o fim do casamento na pessoa do noivo57.
O parecer de Maurício Cordovil58, comparado à tendência geral das conclusões
de processo, nos ajudam a refletir determinadas questões sobre, afinal, quais argumentos
seriam mais eficazes na persuasão do Juiz de Órfãos. Cordovil, ao delinear os argumentos
que o fariam não conceder o suprimento de consentimento para casamento, nos indica algo
muito claramente: ele apenas não concederia o suprimento, caso os nubentes se
enquadrassem num dos elementos que ele apontara, ou seja, se o nubente fosse uma pessoa
de bons costumes, não possuindo características e comportamentos quaisquer que
denegrissem sua moral, o juiz certamente concederia o suprimento. Maurício Cordovil
apresentou um parecer semelhante em mais um processo – esse agravado pelo fato de ter
havido um defloramento – e, novamente, concedera o suprimento requerido. Os pareceres
de Maurício Cordovil, juntamente ao fato de que dos 29 processos que pesquisamos em
apenas dois houve, por parte do juiz, recusa de suprimento de consentimento e licença para
casamento, demonstram-no que, para o período pesquisado, havia a tendência de serem
supridos os consentimentos paternos, exceto quando houvesse alguma acusação séria e
comprovada que justificasse um não consentir por parte dos pais. Nesse sentido, podemos
afirmar que, do ponto de vista legal, os nubentes teriam o direito de escolher livremente
seus cônjuges.
Dos dois casos em que houve a recusa do suprimento por parte do Juiz de Órfãos,
um é de nosso conhecimento: um processo incompleto e diferente do caso analisado, em
que Benedito Cardoso entrara com um pedido de suprimento de consentimento para casar-
se com Aurélia Nunes59. É instigante percebermos que o processo de Benedito fora logo
inicialmente indeferido, enquanto que, quando Aurélia fora a requente, o processo teve a

57
CMA/UFPA. 1ª Vara Cível (Cartório Santiago). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requerente Maria de Nazaré Martins e requerida Isaura de Jesus Martins. 1936. p. 7-9.
58
Entendemos, obviamente, que a decisão do Juiz, apesar de ser embasada necessariamente na Lei vigente o
período em que julgada, reflete também as próprias experiências do juiz como ator social e sujeito histórico
ativo. Nesse sentido, ressaltamos que compreendemos que a decisão de Maurício Cordovil retrata unicamente
um caso e não a totalidade ou mesmo uma tendência geral das decisões nesse tipo de processo. Contudo, não
podemos descartar sua validade como um valioso registro histórico que resgata, com precisão e objetividade,
o que um juiz num caso, em determinado contexto, decidiu. Além disso, acreditamos que o diálogo entre seu
parecer e a tendência geral das conclusões dos processos consubstancia-se num rico indicador para nossas
reflexões e discussões.
59
CMA/UFPA. 1ª Vara Cível (Cartório Santiago). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Benedito Tiago Cardoso e requerido José Vieira Nunes. 1930.
35

continuidade que expusemos anteriormente, o que pode nos levar a pensar que o processo
de suprimento de consentimento era encarado mais seriamente quando o requente era o
filho dos pais que recusavam o consentimento, e não apenas seu pretendente. O outro caso
se insere numa das questões que discutimos anteriormente: o pretendente não possuía
recursos e era muito novo, então não poderia arcar com os custos de um processo judicial e
nem assumir as responsabilidades e os encargos de chefe e provedor de uma família.

Considerações quase que finais...

Em Belém, no início do século XX, os nubentes, legalmente, teriam o direito de


escolherem os seus cônjuges, sendo o suprimento de consentimento judicial negado apenas
em casos especiais, aos quais nos referimos anteriormente. Apreendemos que a
argumentação dos nubentes, aliada à falta da alegação de motivos “justos” e comprovados
por parte dos pais, prevaleceram sobre a argumentação paterna. Assim sendo, verificamos
que o individualismo e a reconfiguração do pacto matrimonial se fizeram presentes em
Belém, tendo sido o casamento muito mais uma relação particular entre duas pessoas do
que uma aliança familiar propriamente dita. Ao mesmo tempo, atentamos para o fato de
que essa reconfiguração do pacto matrimonial não apenas tornou as relações familiares
mais pessoais, porém evidenciou também que o sustento do casal estava cada vez mais
dependente da contribuição do marido. Apesar de isso atestar o enfraquecimento do pátrio
poder, podemos entender que a influência paterna mesmo que em menor escala, fez-se
presente e constante na hora de os pais interferirem no futuro de sua prole.
O casamento, enquanto um evento vital, relaciona um acontecimento específico
(o ato de casar-se) com o sistema simbólico no qual está inserido60. Nesse sentido, o
casamento constitui, antes de qualquer coisa, um ato cultural que simboliza uma
perpetuação concomitantemente demográfica e social61. O que queremos salientar com isso
é que a análise do casamento não pode estar dissociada de seus valores morais intrínsecos.
Os papéis familiares associados ao masculino e ao feminino, aqui representados por pais,
mães, filhos e filhas, estão carregados de noções advindas de experiências pessoais e do
grupo social no qual estão inseridos. As discussões feitas neste capítulo introduzem outras
que decorrerão ao longo deste trabalho. Agora, após analisarmos o contexto imediatamente

60
Cf.: SAHLINS, Marshall. Estrutura e História. In: Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1990. pp. 172-194.
61
Cf. NADALIN, Sérgio Odilon. História e Demografia, op. cit., pp. 81-101.
36

anterior ao evento de casar-se, cabe-nos refletir sobre o caráter demográfico do casamento.


Suas tendências gerais e o perfil dos indivíduos neles envolvidos serão objeto de nossa
análise, a partir de agora.
37

Capítulo II – Dos números ao casamento

Este capítulo tem por objetivo investigar, através da análise serial de 5.792
processos de casamento civil de Belém, o perfil demográfico dos nubentes, ao ponto em
que também almeja mapear as tendências gerais dos casamentos ocorridos na cidade, entre
1908 e 1925. O interesse é discutirmos o perfil daqueles que se casavam, por meio da
análise de sua origem, ocupação, idade, caráter de (i)legitimidade e estado civil. A partir
desse perfil, procuramos apreender a existência de casamentos endógamos (por origem), e
a tendência de variação da faixa etária e das ocupações exercidas, por gênero, bem como as
nuances da (i)legitimidade. Se no capítulo anterior nosso objetivo foi analisar a construção
de uma nova unidade conjugal através do estudo de discursos, agora iremos refletir sobre o
casamento (o evento), a partir do perfil dos nubentes.

Primeiras considerações...

As alegações paternas para o não consentimento do casamento de seus filhos nos


levam a refletir sobre determinadas questões. Em alguns momentos, a exigência dos pais
era por motivada por um desejo, nas palavras da nubente, frívolo: a mãe não queria que sua
filha se casasse, pois seu pretendente não era português. Em outros, os motivos tangiam à
subsistência do casal e à moral do pretendente. A análise de cada processo de Licença para
casamento (ou de Suprimento de consentimento paterno) traz à luz uma multiplicidade de
experiências que permearam o casamento, em Belém, no início do século XX. Os discursos
presentes nesses processos evidenciam noções de família, papéis de gênero e valores
sociais, culturais e morais associados ao casamento. Todavia, algumas perguntas ainda
permanecem sem resposta: afinal, quais foram as tendências gerais do casamento, em
Belém, no início dos Novecentos? Quem e em qual momento da vida se casava?Essas são
questões que pretendemos responder ao longo de nossas discussões neste capítulo.
Maria de Nazaré Martins, inconformada com os argumentos dados por sua mãe,
Isaura de Jesus Martins, para a negação do consentimento necessário para casar-se com o
“devedor de sua honra”, entrou com um processo de Suprimento de Consentimento. Nazaré
Martins argumentava que sua mãe não consentia com seu casamento por motivos frívolos,
dentre os quais o fato de seu pretendente não ser de origem portuguesa, como sua mãe e,
muito possivelmente, seu pai. Inquirida sobre o assunto, Isaura declarara que não estava
38

mais interessada no casamento de sua filha, que para ela Nazaré havia morrido e que não
gostaria de ser mais importunada com o assunto. Ao término do processo, o suprimento foi
consentido e o casamento autorizado62. A história de Nazaré Martins, justamente um dos
casos em que o Juiz do processo fora o nosso já conhecido Maurício Cordovil, nos dá
sinais63 que, aparentemente inócuos, fazem parte de uma tendência maior de arranjos
familiares. As portuguesas que se casaram em Belém, entre 1908 e 1925, geralmente se
casavam com portugueses (80% o fizeram), diferentemente desses que, tendo migrado em
maior número, casavam-se na maioria dos casos com paraenses (50% dos casos);
tendências que, em si, justificam a preferência de Isaura Martins para o casamento de sua
filha. Nesse sentido, a preferência materna pelo casamento de Nazaré Martins com um
português não foi única e nem, muito menos, um caso isolado. Diferentemente, integrava
uma tendência de casamento em que a naturalidade poderia ser um fator determinante.

O perfil demográfico dos nubentes

Entre 1908 e 1925, os portugueses (como Nazaré, sua mãe e, muito


possivelmente, seu pai) estiverem presentes em aproximadamente um em cada cinco
casamentos. Não podemos pensar em tendências gerais e perfis de casamentos, em Belém,
no início dos Novecentos, sem levarmos em consideração a maciça presença portuguesa.
Em proporções ainda maiores, os casamentos entre migrantes “nordestinos” chegaram, em
alguns momentos, a superar a quantidade de casamentos entre paraenses numa determinada
paróquia da capital (Nazaré), o que denota a influência da migração nordestina na
reconfiguração dos padrões de casamento ocorridos na cidade64. Portanto, ao pensarmos
nos casamentos, na família e na própria sociedade belenense da virada do século XIX ao
XX, pensamos, sobretudo, em migração.
A tendência nacional e regional de crescimento demográfico fez-se presente em
Belém, tendo seu número de habitantes quadruplicado em quase meio século. A população
da cidade aumentou, entre 1872 e 1900, de 61.997 para 96.560, chegando a 236.402 em
192065. Um crescimento populacional tão acentuado e acelerado interfere na dinâmica
social, ecológica e material de uma região. Em conseqüência disso, mudanças na vida

62
CMA/UFPA. 1ª Vara Cível (Cartório Santiago). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requerente Maria de Nazaré Martins e requerida Isaura de Jesus Martins. 1936.
63
Cf.: GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais:
morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 143-179.
64
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit., pp. 148.
65
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912), op. cit., pp.136.
39

material, social e cultural provavelmente ocorreram em Belém66, em grande parte


decorrente do grande e contínuo fluxo migratório destinado ao Pará desde meados do
século XIX. Cabe-nos destacar que, à época, a capital concentrava entre um quinto e um
quarto da população total da Província67. Grande parte desses migrantes era “nordestina”
ou de origem portuguesa, mas também destacavam-se os espanhóis e os amazonenses.
Vejamos a origem dos noivos, por sexo, nacionalidade e naturalidade:

Gráfico I: Origem dos nubentes por sexo e nacionalidade


6.000
5.000
4.000
3.000 Homens
2.000 Mulheres
1.000

0
Brasil Portugal Espanha Itália Síria Outros
países
Gráfico II: Origem dos nubentes por sexo e naturalidade

3.500
3.000
2.500
2.000 Homens
1.500 Mulheres
1.000
500
0
Pará "Nordeste" Amazonas Outras regiões

Apesar de a grande maioria dos nubentes que se casaram em Belém, entre 1908 e
1925, ser brasileira e paraense, a considerável presença de pessoas de outras origens
evidencia não apenas a influência “nordestina” na reconfiguração dos padrões de

66
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo:
Hucitec, Edusp, 2000. p. 18.
67
MORAES, Ruth Burlamaqui. Transformações demográficas numa economia extrativa: Pará (1872-1920).
(Dissertação). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Curitiba:
Universidade Federal do Paraná, 1984, p. 117-118.
40

casamento na cidade, mas uma influência migrante. O fato de que menos da metade dos
homens que se casaram, em Belém, nesse período, era paraense de origem é sintomático
nesse sentido. É importante salientarmos que cada grupo (“nordestinos”, portugueses,
paraenses etc.) possuía padrões de casamento peculiares. Os “nordestinos” e as
portuguesas apresentavam um comportamento endógamo. Os portugueses (homens), por
sua vez, casavam-se especialmente com as paraenses. Estudos vêm sendo feitos no sentido
de analisar os padrões de casamento em Belém, entre o final do século XIX e o início do
XX, levando em consideração a análise de grupos de origens específicas68.
Outra característica importante na delineação dos padrões de casamento é a idade
ao casar. A idade média/mediana de casamento constitui um importante objeto de análise
para a história da família, principalmente quando associada a outros elementos, como a
ocupação e o estado conjugal; afinal, o grau de profissionalização e a quantidade de
núpcias estão diretamente relacionados à idade de casamento. Vejamos o gráfico abaixo,
onde aparecem as idades ao casar dos nubentes, distribuídas conforme as faixas etárias
adotadas no Recenseamento de 1920:

Gráfico III: Distribuição em faixas etárias, por sexo

Distribuição em faixas etárias

Maior de 65 anos
60-64 anos
55-59 anos
50-54 anos
Faixasetárias

45-49 anos
40-44 anos
35-39 anos
30-34 anos
25-29 anos
20-24 anos
15-19 anos
Menor de 15 anos

-3000 -2000 -1000 0 1000 2000 3000


Quantidade

68
CANCELA, Cristina Donza. Casamentos, trajetórias amorosas e redes de sociabilidade de cearenses
em Belém (1870-1920). In: Trajetos (UFC), v. 5, p. 249-264, 2007; CANCELA, Cristina Donza e
BARROSO, Daniel Souza. A presença portuguesa em Belém: um olhar a partir do casamento (1891-
1920). Mimeo.
41

A questão de gênero faz-se importante para a reflexão sobre as idades de


casamento. Analisando o gráfico, percebemos que os homens começavam a se casar cedo,
mas numa idade em que muito provavelmente já estariam inseridos no mercado de
trabalho. Essa tendência poderia ser justificada pela necessidade de os homens darem
provento ao lar, num papel de gênero claramente associado ao masculino – como temos
destacado neste trabalho. Além disso, os homens permaneciam no mercado matrimonial
por mais tempo. As mulheres, por sua vez, começavam a se casar mais cedo e saíam do
mercado matrimonial anteriormente. A partir dos 30 e, principalmente, dos 34 anos de
idade, muito dificilmente uma mulher se casaria, em especial pela primeira vez. A presença
de mulheres se casando com uma idade mais avançada justifica-se pela relação prévia de
uniões consensuais e/ou de casamento religioso, ou mesmo pelo casamento em segundas
núpcias. Há, portanto, uma relação evidente entre a idade ao casar, o estado de maturação
profissional e o estado civil dos nubentes.
A grande maioria dos nubentes que se casaram em Belém, entre 1908 e 1925, o
faziam pela primeira vez; em geral, eram homens e mulheres solteiros casando-se em
primeiras núpcias. Encontramos poucos casos em que pelos menos um cônjuge –
geralmente, o homem – casava-se pela segunda vez. É curioso notar, todavia, que o
casamento em terceiras núpcias, diferentemente, estava associado principalmente ao
feminino. Inclusive, considerando a perspectiva de um segundo recasamento, eram
mulheres jovens, com menos de 40 anos de idade. Ponderamos a hipótese de que nesses
casos havia casamentos e viuvezes dentro de um curto espaço de tempo.
Concomitantemente, também foram encontradas poucas referências a pessoas divorciadas
recasando69. Agora, falemos um pouco sobre as ocupações.
As ocupações exercidas também foram muito importantes como um elemento
para a escolha dos cônjuges. No tocante às filhas, vimos, no capítulo anterior, que os pais
preocupavam-se sobremaneira com a profissão exercida pelos pretendentes de sua prole.
Num contexto em que o sustento do futuro do casal dependia muito mais da capacidade do

69
O divórcio (referimo-nos àquele que possibilita o recasamento) só foi instituído no Brasil, na década de
1970. Os casos encontrados de divórcio referem-se, portanto, a estrangeiros oriundos de países em que a
prática do recasamento, após o divórcio, era permitida. Nesse sentido, é importante destacar que o século
XIX, sob diversas perspectivas, foi marcado por uma nova forma de se perceber e normatizar a família.
Durante o Oitocentos, houve significativa mudança na legislação associada à família. A laicização do
casamento ocorreu na Inglaterra (1837), em Portugal (1867), na Espanha (1870) e no Brasil (1890). Ao
mesmo tempo, o divórcio fora instituído na Inglaterra (1857), na Prússia (1875), na França (1884) e, pouco
tempo depois, em Portugal (1910). Em todos os casamentos em que há divorciados envolvidos, constam
certificações do Consulado do País de origem do nubente, atestando que o recasamento, naquele caso, poderá
ser permitido. Cf.: EHMER, Josef. Marriage, op. cit.
42

homem em provê-lo, diferentemente de séculos anteriores em que elementos como o dote e


a herança, oriundos da mulher, serviam como fonte de mão-de-obra e recursos para a
subsistência do novo casal, procurar um bom partido era primordial. No século XX, em
Belém, casar-se com um homem que exercia profissões liberais mais destacadas, como os
médicos e os advogados, por exemplo, era, dentro do mercado matrimonial, o “desejo” de
pais e filhas. Esses pretendentes, melhor posicionados socioeconomicamente, geralmente
se arranjavam com mulheres que exerciam prendas domésticas ou que tivessem um grau
mais sofisticado de educação, a exemplo das diplomadas pela Escola Normal e pelas
formadas em Belas Artes e Música no Rio de Janeiro, então capital do Brasil70.
A preocupação dos pais com o futuro de seus filhos, comumente alegado quando,
em sua opinião, acreditavam que a profissão dos pretendentes de sua prole era insuficiente
para a subsistência do novo casal, era compartilhada pelos juízes. Na requisição de
suprimento de Raimundo Moreira da Silva, por exemplo, o juiz, ao justificar a recusa de
consentimento, alegou que: “são relevantes, embora não comprovadas, as razões da recusa
do consentimento paterno. Acresça ainda a circunstância de o requerente confessar a sua
falta de recursos, a qual, se o impede de fazer as despesas judiciais do suprimento, impede,
com maior razão, para assumir as responsabilidades e encargos de família”71. Os arranjos
em torno das profissões eram relativos ao próprio nível socioeconômico dos nubentes.
Grandes comerciantes, políticos e magistrados casaram suas filhas, como encontramos em
nossa pesquisa, com médicos, advogados e juízes. Essa preferência, contudo, poderia não
se aplicar a camadas socioeconômicas mais baixas, apesar da idealização de que um
casamento com um homem de “bons costumes” e que pudesse dar provento ao Lar ainda
fosse muito importante. Vejamos o quadro a seguir com as ocupações masculinas dos
nubentes, entre 1908 e 1925:

70
Muriel Nazzari (2001) sustenta a tese de que o crescimento do individualismo, que tornou o pacto
matrimonial muito mais uma relação entre duas pessoas do que uma relação entre famílias, dinamizou a
estrutura interna do casal, deixando a família de ser uma unidade de produção e consumo para
exclusivamente uma unidade de consumo. Nesse sentido, com o desaparecimento do dote, a subsistência dos
novos casais passou a depender mais da capacidade de negociador e da profissão do marido do que
anteriormente era doado pelos pais de sua esposa. Assim sendo, houve uma valorização das profissões
liberais, o que, em si, aumentou o individualismo, visto que, donos de seu próprio sustento, os filhos
poderiam não mais seguir os desejos e as orientações paternas. Nesse sentido, a formação profissional e a
educação ganharam destaque ao longo dos Oitocentos.
71
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, em que foi
requerente Raimundo Moreira da Silva e requerido Manoel Moreira da Silva. 1930.
43

Quadro I: Ocupações masculinas, em setores de atividade

Setor Primário 200 3,5%


Agricultura 151
Pecuária 1
Pecuária e Agricultura 32 3,5%
Pesca 7
Extrativismo 9
Setor Secundário 907 15,5%
Mineração 1
Metais 20
Madeira e mobiliário 50 5%
Têxtil, vestuário e
alimentação 73
Construção civil 95
Meios de transporte
(Manufatura) 43
Outros artesanatos 625 10,5%
Setor Terciário 4.357 74,5%
Profissões liberais 238 4%
Serviço Público 556 9,5%
Educação 46
Saúde 121 8%
Segurança 292
Marítimos 567 9,5%
Igreja 2
Comércio 1.844 32%
Transportes e comunicações 274
Outros serviços 263 11,5%
Jornaleiro 115
Desempregado 1
Ocupação ignorada 366 6,5%
TOTAL 5.792 100%

O quadro acima evidencia a concentração das ocupações masculinas no setor


terciário, com destaque às atividades ligadas ao comércio. É também considerável a parte
dos nubentes que, à época do casamento, estava envolvida em atividades artesanais, no
serviço público ou como marítimo. As ocupações sinalizam para o fato de os casamentos
pesquisados serem provenientes de uma área predominantemente urbana, devido a pouca
representatividade de ocupações ligadas ao setor primário, em especial, à agricultura. O
quadro das ocupações exercidas pelos nubentes, caracterizado pela existência de uma gama
variada de profissões, traduz, com um pouco de imaginação e mesmo de que de forma
44

limitada, a própria lógica da cidade, com a presença de condutores de bonde, comerciantes,


artistas, músicos, médicos, advogados, lavradores, proprietários etc.
Muitas dessas ocupações, e podemos inferir isso, pois há pouco medimos a idade
mediana de casamento, eram exercidas por jovens, que, à época de casar-se, poderiam se
encontrar no início de sua ascensão profissional. Um exemplo evidente disso pode ser
percebido quando analisamos a presença de atividades ligadas ao comércio. Os mais
jovens geralmente ocupavam o cargo de auxiliar do comércio, chegando ao nível de
empregado, posteriormente. Percebemos essa tendência, pois os empregados no comércio
casavam-se média com uma idade superior aos auxiliares. Não podemos, porém, afirmar
que esses jovens um dia alcançariam o posto de comerciantes, visto que isso dependeria de
diversos fatores e não apenas de uma eventual competência profissional, nem afirmar que
os auxiliares do comércio eram, de fato, uma atividade (bem) remunerada.
As ocupações ligadas ao comércio, predominantes entre os homens que se
casaram em Belém no início do século XX, compreendem um amplo rol de atividades, que
poderia abranger: auxiliares e empregados no comércio, guarda-livros, ambulantes,
caixeiros, comerciantes e negociantes. Os “artistas” são outro exemplo interessante nesse
sentido, visto que essa terminologia era empregada para designar um grupo bastante
heterogêneo de trabalhadores que exerciam atividades manuais ou artesanais. O que
almejamos inferir com esses dois exemplos é que as terminologias adotadas para definir as
ocupações exercidas pelos nubentes são analiticamente limitadas. E essa limitação é ainda
mais sintomática no designo das atividades das nubentes.
Aparentemente, as mulheres exerciam ocupações mais restritas. Encontramo-las,
predominantemente, em serviços ou prendas domésticas, assim como, em quantidade
considerável, como professoras de escolas normais. Essas mulheres apareciam também,
embora em proporção muito menor, como costureiras, lavradoras, farmacêuticas,
comerciantes e proprietárias. As formas pelas quais esses nubentes se arranjavam em torno
da ocupação exercida eram muito particulares, sendo difícil mapearmos as tendências
gerais de preferências matrimoniais por ocupação do cônjuge. Todavia, não encontramos,
em toda a nossa pesquisa, um só caso de casamentos verticalizados, ou seja, casamentos
em que os nubentes pertenciam a padrões socioeconômicos bastante distintos. Falemos um
pouco mais das ocupações femininas.
As informações referentes às ocupações femininas, se comparadas às masculinas,
são bem mais restritas. Em geral, as mulheres eram associadas a atividades ligadas ao Lar,
especialmente às prendas e ao serviço doméstico. Acreditamos que essa associação se dê,
45

principalmente, por dois motivos. Primeiro, pelo fato de que os responsáveis pelos
registros de casamento, a exemplo do que ocorria com os recenseadores do mesmo
período, não possuíam grande preocupação em descrever as atividades femininas. Em
segundo lugar, porque o modo de vida popular pressupunha, como veremos melhor
adiante, a presença da mulher em casa ou no magistério. Antes mesmo de adentrarmos nas
discussões sobre as atividades femininas, vejamos um quadro destas ocupações:

Quadro I: Ocupações femininas

Prendas domésticas 3.332 58%


Serviços domésticos 1.139 20%
Professoras normalistas 168 2,5%
Outras ocupações 453 7,5%
Não declarado 700 12%
TOTAL 5.792 100%

O quadro evidencia a concentração das mulheres em atividades ligadas do Lar.


Essa concentração, que, obviamente, passa pela questão do descaso com o registro das
atividades femininas, muito possivelmente se construiu pelo fato de que se percebia o
domínio feminino como o reverso ou a “alteridade ideal”, o Outro de uma cultura
propriamente masculina72. As mulheres, portanto, deveriam ocupar o espaço caseiro,
enquanto os homens trabalhavam fora do Lar, em seu sustento. No capítulo anterior,
demonstramos que na união conjugal havia papéis familiares de gênero associados ao
masculino e ao feminino. Num momento em que os nubentes saem do Lar paterno-materno
para constituir outro, a subsistência do casal passava à responsabilidade do marido. Daí
derivou a grande preocupação de pais e mães com a profissão exercida pelos pretendentes
de suas filhas. Dar provento ao Lar, portanto, não era obrigação da esposa, mas do marido.
Tais questões nos levam a outra: afinal, o que essas mulheres faziam de fato?
Por mais que as nubentes exercecem atividades ligadas ao Lar, isso não significa,
necessariamente, que suas ocupações estivessem limitadas apenas ao espaço privado e
doméstico. As donas-de-casa, por exemplo, poderiam possuir muitos poderes, de natureza
diferente dos homens, passando por redes de sociabilidade informal, onde justamente o

72
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995. p. 40.
46

espaço público tinha grande participação73. Essa associação entre as nubentes e às


atividades ligadas o Lar, apesar de majoritária em Belém, entre 1908 e 1925, não
significou, contudo, uma regra. Em nossa pesquisa, encontramos casos em que as
mulheres, à época do casamento, trabalhavam juntamente com seus nubentes, em especial,
como comerciantes e farmacêuticas.
As atividades domésticas eram descritas, principalmente, como serviços ou
prendas domésticas. Entre ambas, existe significativa distinção, inclusive, social. As
mulheres que se ocupavam de serviços domésticos geralmente casavam-se com homens
cuja ocupação denota um padrão socioeconômico inferior àqueles que se casavam com
mulheres de prendas domésticas. Além disso, ocupar-se em serviços domésticos não
significava que a mulher trabalhasse em seu próprio Lar. Encontramos casos em que as
nubentes trabalhavam na casa de outrem, realizando, obviamente, tarefas as mais diversas
possíveis. Nesses casos, elas especificaram na casa de quem trabalhavam, geralmente em
referência ao homem, chefe da casa. Esses casos, todavia, não aparecem nas mulheres que
se ocupam de prendas domésticas.
As ocupações das mulheres que se casaram em Belém, entre 1908 e 1925, não se
limitavam somente às atividades domésticas. Nesse período, as nubentes exerciam outras
profissões, numa tendência que se intensificou com a chegada dos anos 1920 e das décadas
imediatamente subseqüentes, contudo, em proporções ainda não muito significativas.
Encontramos casos em que as mulheres exerciam profissões liberais e possuíam um nível
de formação educacional, sendo formadas em Medicina ou pela Escola de Belas Artes do
Rio de Janeiro. A análise das ocupações femininas, assim como as masculinas, permite-nos
refletir sobre arranjos conjugais específicos. É o que faremos a partir de agora.
Nossa investigação deparou-se com mulheres comerciantes, farmacêuticas,
lavradoras, proprietárias etc. Cada uma dessas ocupações deve ser discutida
individualmente, pois nos remetem a situações bastante diferenciadas. Comerciantes,
farmacêuticas e lavradoras geralmente se arranjavam com pretendentes que se ocupavam
das mesmas atividades. Não mensuramos ao ponto em que diversas mulheres, que
aparentemente ocupavam-se de prendas domésticas, poderiam realizar outras atividades
juntamente aos seus pretendentes. Porém, um grupo em particular merece destaque.
As proprietárias, das mulheres que não estavam diretamente ligadas às atividades
domésticas, constituem um grupo específico, geralmente formado por viúvas que se

73
PERROT, Michelle. A dona-de-casa no espaço parisiense do século XIX. In: Os excluídos da história:
operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 213.
47

casavam em segundas núpcias. O que nos leva a pensar na possibilidade de essas mulheres
terem herdado um patrimônio, ou, ao menos, o controle de um patrimônio. As mulheres
proprietárias poderiam ser, portanto, induzidas a desempenhar, na ausência definitiva de
seus primeiros maridos, muitos “papéis masculinos”, incluindo a administração de bens e
propriedades74, o que justifica o fato de casarem-se em segundas núpcias preferencialmente
com homens com grau de instrução mais elevado ou que tivessem conhecimento de
atividades comerciais, a exemplo de advogados e comerciantes. Essa tendência evidencia a
preocupação das mulheres com seu patrimônio, ao ponto de procurarem cônjuges que,
numa eventual inexperiência administrativa sua, pudessem gerir seus pertences.
É também importante analisar a relação entre as mulheres e a educação. Essa
relação será analisada sob duas perspectivas. Primeiro, o magistério como uma atividade
exercida pelas nubentes. Em segundo lugar, a educação feminina como capital simbólico
para o casamento. Para tal, dialogaremos com outro tipo de fonte: os livros produzidos
entre o final do século XIX e o início do XX, que foram utilizados para a Educação Cívica
nas escolas primárias do Pará naquele período. Dentre os diversos livros produzidos com
esses fins, escolhemos, em especial, um: Noções de Educação Cívica, de autoria de Higino
Amanajás. Nossa escolha foi pautada pelo fato de o livro analisar a presença e a
importância da mulher para a construção de uma nova noção, agora sob as égides da
República. Partamos, agora, a nossas reflexões.
Higino Amanajás, em 1898, ressaltava a importância da relação entre as mulheres
e a educação. Em suas palavras: “[as mulheres] no magistério, em que sem dúvida são
superiores ao homem, quando se trata de ensinar crianças, tem ela ensejo, ou antes, tem
obrigação imperiosa de cumprir esse dever, que ainda mais a engrandece”75. Essa exaltação
ao magistério feminino compunha um manual a ser utilizado nas escolas primárias de todo
o Pará em que se discutiam os elementos da educação cívica republicana, ressaltando-se a
importância da mulher para a pátria, ora como mãe, ora como professora. O mesmo
Higino, em 1905, publicou outra obra nesse sentido. Dessa vez tratava-se de um romance
infantil intitulado Alma e Coração, também a ser utilizado nas escolas primárias do Pará
como leitura obrigatória. Novamente, embora com outro enfoque, o autor exaltava a figura
da mulher, agora principalmente como mãe. Além disso, destacava também o papel da sala

74
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder, op. cit., p. 56.
75
AMANAJÁS, Hygino. Noções de educação cívica: para uso das escolas primarias do Estado do Pará.
Belém: _, 1898. p. 110.
48

de aula como um espaço em que se ensinava aos alunos a serem cidadãos honrados,
respeitosos e de bons costumes76.
Entre 1908 e 1925, o magistério feminino era exercido, no momento do
casamento, por uma pequena parte das mulheres que pesquisamos. Conforme percebemos,
sua importância possuía destaque na República e poderíamos vê-lo, inclusive, como uma
forma de trazer a mulher às idéias republicanas, num contexto em que, como ressalta
Higino Amanajás: “apesar de não ser chamada ao exercício dos direitos políticos, tem
deveres sacratíssimos com a sua pátria”77. Num contexto histórico e social em que as
mulheres legalmente não poderiam exercer seus direitos políticos, elas deveriam ajudar na
formação, tanto como mães quanto como professoras, daqueles que poderiam exercê-los:
seus filhos e alunos.
A educação feminina não estava limitada ao magistério, visto que,
concomitantemente, ela servia como capital simbólico para se arranjar um bom casamento,
mesmo quando as mulheres ainda eram estudantes. As diplomadas e professoras da Escola
Normal eram a maioria, mas encontramos também mulheres bacharéis em Música,
Medicina e Belas Artes. Grande parte dessas mulheres casava-se com homens que
possuíam ocupações mais prestigiosas e com grau de instrução mais elevado,
principalmente se comparado ao quadro geral das ocupações. Além disso, percebemos,
entre as mulheres com um padrão educacional mais sofisticado, uma tendência de casar-se
com uma idade maior. Inclusive, parte considerável dessas mulheres casava-se após atingir
maioridade, o que pode nos levar a refletir sobre a relação entre o grau de
instrução/educação e a liberdade feminina, em nosso caso, imageticamente representada
através do casamento e da escolha de seu cônjuge – possível do ponto de vista legal. Por
fim, chegamos ao último ponto da discussão: a (i)legitimidade.
A presença constante das uniões ilegítimas na história brasileira certamente
dificulta o trabalho do historiador. Mas, afinal, o que seria ilegítimo? Em determinados
momentos, as fontes, ao invés de nos auxiliarem a supor questões e sustentar nossas idéias,
dificultam sobremaneira nossa análise. Nessa discussão, ainda há espaço para outro
elemento: os filhos de criação. Em 1909, Manoel Antonio da Costa compareceu à
Subchefatura de Polícia da Capital para prestar queixa do defloramento de sua filha de
criação, Maria Francisca. Manoel reclamava que o responsável pelo defloramento, Jose
Antonio da Silva, mesmo ciente de suas obrigações, recusava-se a reparar o mal que tinha

76
AMANAJÁS, Hygino. Alma e Coração. Belém: _, 1905.
77
AMANAJÁS, Hygino. Noções de educação cívica..., op. cit, p. 110.
49

feito a Maria Francisca, fugindo na última madrugada. O caso, em si, apesar de sucinto,
impressiona pelo fato de Manoel da Costa narrar com detalhes o enlace entre Maria
Francisca e seu deflorador. Além disso, Manoel foi detalhista ao ponto de afirmar, com
veemência, quando e por que fugira o deflorador. Poderíamos supor, por exemplo, que
José da Silva fosse residente na vizinhança de Manoel Costa. O que não imaginávamos é
que José Antonio da Silva era filho legítimo de Manoel Antonio da Costa. Encontramos
um caso em que um pai, mesmo de criação, defende os interesses e a “honestidade” de uma
menina com quem nem sequer tem laços de sangue, mas apenas de afeto, contra alguém de
sua própria família consangüínea, José da Silva, seu filho legítimo78. A defesa de Manoel
Costa à Maria Francisca, sua filha de criação, em, diríamos, detrimento de seu filho
legítimo, dá-nos noção da dificuldade que há em se definir, conceituar e abordar a presença
da ilegitimidade nas relações familiares. Abre-se uma questão: de que forma devemos
abordar a ilegitimidade quando o enfoque de nossa pesquisa é a família?
No tocante à presença da (i)legitimidade, abordá-la-emos de duas formas: sua
presença entre os nubentes e a utilização do casamento como um mecanismo legal
legitimador de filhos nascidos de uma união consensual não legitimada perante a lei. Nesse
sentido, discutamos cada caso particularmente. Em nossos registros, encontramos um
percentual razoável de nubentes que eram filhos naturais, sendo 10% dos homens e 14%
das mulheres ilegítimos, o que demonstra a predominância da ilegitimidade entre as
mulheres. Essa tendência, entretanto, é extremamente oscilante, visto que esses nubentes
poderiam vir a ser legitimados através de processos de investigação de paternidade ou de
testamentos. Contudo, não acredito que, à época, a (i)legitimidade do pretendente fosse um
critério determinante para a escolha dos cônjuge, pois menos de 1/3 dos homens e 1/4 das
mulheres ilegítimos casavam entre si. A ilegitimidade, todavia, não se faz presente apenas
entre os nubentes, mas também nas relações consensuais que vários desses mantinham há
anos e que enfim resolveram legalizar, legitimando seus filhos comuns.
Sob outro ponto de vista, o casamento servia também como mecanismo legal de
legitimação das uniões e dos filhos delas provenientes. Para o período que pesquisamos,
podemos afirmar que houve uma reconfiguração na utilização nesse sentido. Durante a
década de 1910, os nubentes que se casavam com objetivo de legitimar sua união e os
filhos que tiveram entre si, geralmente eram pessoas com idade elevada e que alegavam
estar adoentadas, solicitando, inclusive, a dispensa dos proclamas como forma de se

78
APEP. Secretaria de Segurança Pública. Chefatura de Polícia. Ocorrências policiais 1909-1919. p. 1-2.
50

agilizarem os tramites burocráticos do casamento, evitando-se o grande dano que isso


poderia causar aos nubentes. Posteriormente, esse quadro se modificara. Os nubentes
casavam-se consideravelmente mais novos, não atestavam doenças mais graves e
justificavam seu casamento pelo interesse imediato que tinham de legitimar seus filhos. A
legitimação dos filhos, inclusive, é alegada com mais freqüência e citada com mais
entusiasmo do que a própria legitimação da união, o que pode nos levar a pensar acerca da
pouca preocupação dos nubentes com a legalidade ou não de seus enlaces e, além disso, o
fato de garantirem aos seus filhos a categoria de legítimos.

Considerações quase que finais...

A delineação do perfil dos nubentes que se casaram civilmente em Belém, entre


1908 e 1925, traz a luz, mesmo que de forma limitada, a própria lógica da cidade à época.
Ao incluirmos quadros, gráficos e tabelas, nossa intenção não era apenas expor os
casamentos numericamente. Almejávamos, em diálogo com outras perspectivas não
quantitativas (processos cíveis, ocorrências policiais e obras literárias), demonstrar que os
números não são apenas números, mas indicadores de relações sociais, padrões culturais e
comportamentos populacionais. Esses indicadores, por sua vez, são imbricados aos valores
morais dos grupos sociais específicos nos quais estão inseridos. Ora, não é a toa que
portuguesas casassem-se com portugueses e que os “nordestinos”, em especial os
cearenses, casassem entre si.
Estratégias familiares que, ao analisarmos apenas um caso, são aparentemente
particulares, na verdade, podem fazer parte de uma tendência maior, apenas conjecturável
a partir de uma análise macro. Concomitantemente, investigar as relações familiares por
cima, ou seja, considerando somente as tendências gerais de uma argüição macroscópica,
muito possivelmente elidiria a especificidade de casos particulares e trajetórias pessoais.
Não há dúvidas que valiosas percepções podem ser extraídas de dados quantitativos, visto
que são elas, as tendências gerais, que freqüentemente tornam notáveis e importantes os
“desvios” particulares79. Nesse sentido, o ideal é o diálogo entre as perspectivas micro e
macro, “qualitativa” e quantitativa. Esse diálogo permeou não apenas a relação entre o
capítulo anterior e este, mas a unidade argumentativa do próprio trabalho como um todo.

79
GRAHAM, Richard. Os números e o historiador não-quantitativo. In: Locus, v. 14, n. 1 (janeiro a junho
de 2008). Juiz de Fora/MG: PPHIST/UFJF, 2008. p. 20.
51

Neste capítulo, através da delineação do perfil demográfico dos nubentes,


buscamos, em síntese, apreender quem se casava. Nossas discussões evidenciaram que,
para a investigação desse perfil, a análise pautada numa perspectiva de gênero é
fundamental ao estudo do casamento. Homens e mulheres casavam-se com idades
diferentes e exerciam profissões distintas, o que denota uma diferenciação no espaço
ocupado por masculinos e femininos. Espaços não somente no sentido físico (público e
privado), mas dentro da própria união conjugal. Os papéis familiares de gênero associados
ao marido e à esposa influíram diretamente no perfil que acabamos de delinear. Afinal, se
os homens casavam-se com mais idade que as mulheres e se as ocupações femininas,
mesmo que por limitação de fonte, restringiam-se principalmente às atividades domésticas
e ao magistério, isso é justificado pelos papéis familiares a serem exercidos no casamento.
As discussões do primeiro capítulo e deste demonstram que o casamento, mesmo
o civil, não era apenas o registro de um evento motivado por desejos pessoais ou
estratégias familiares. Mais que isso, ele se baseava em subjetividades e normas sociais
intrínsecas. Os papéis familiares de gênero, o perfil demográfico dos nubentes e os valores
morais associados ao casamento, todos, juntos, serão o eixo norteador de nosso próximo
capítulo. Nas próximas páginas, refletiremos sobre um casamento especial: o de Pedro
Cavalcante e Severa Romana. Sua história, muito bem documentada para uma relação
amorosa entre duas pessoas das camadas populares, apresenta, em sua plenitude, o desejo
de normatização do casal, o papel do homem como provedor do Lar, as representações da
honra feminina e, principalmente, os valores morais associados ao casamento.
52

Capítulo III – Severa Romana: casamento, gênero e representações morais

Este capítulo tem por objetivo discutir as tensões morais e as representações da


honra feminina associadas à morte de Severa Romana, como forma de problematizarmos
as tensões morais associadas ao casamento, em Belém, no início do séc. XX. Inicialmente,
discutiremos a repercussão social de sua morte. Posteriormente, analisaremos as tensões
morais e as representações da honra feminina propriamente ditas. Por último, tentaremos
reconstruir o perfil de seu assassino, Antonio Ferreira. Nossas reflexões foram baseadas em
jornais do período, no processo-crime aberto contra Antonio Ferreira pelo assassinato de
Severa e em obras de intelectuais do período que, indiretamente, nos ajudam a analisar
estas problemáticas. Além disso, outros documentos, em especial aqueles referentes aos
migrantes e à cidade de Belém, também nos deram suporte em algumas discussões.
Nos capítulos anteriores, analisamos o casamento, em Belém, sob duas outras
perspectivas: primeiro, estudando o momento anterior ao casamento, através da discussão
sobre o pátrio poder; segundo, a partir de uma análise demográfica do casamento,
destacando as preferências matrimoniais, as tendências gerais que permearam os
casamentos e o perfil dos indivíduos neles envolvidos. A partir de agora, veremos o
casamento com outro olhar. O mote das discussões deste capítulo, qual seja, as tensões
associadas principalmente à fidelidade conjugal, nos ajuda a refletir sobre o ser casado, em
Belém, entre o final do século XIX e o início do XX. Portanto, almejamos, com este
capítulo, “completar” a análise sobre o casamento, analisando-o antes, a consumação do
ato em si e, posteriormente, a vida conjugal. Às reflexões.

A morte de Severa Romana e sua repercussão social

“Terrível cena de sangue se desenrolou ontem, ao lusco fusco, em


uma barraca na rua João Balbi, entre as travessas 14 de março e 22
de junho, residência do praça do 15º Batalhão Pedro Cavalcante de
Oliveira, casado com Severa Romana Pereira. Morava em
companhia do casal o cabo de esquadra do 35º Batalhão, adido ao
15º, Antonio Ferreira dos Santos que desde muito tempo vivia em
perseguições a mulher de seu companheiro. Como encontrava
sempre oposição por parte de Severa, criou-lhe ódio e planejou
53

vingar-se da pobre rapariga que preferiu a morte à indignidade de


manchar seu lar com um indelével adultério”.80

Assim se inicia, no jornal Folha do Norte, uma grande matéria sobre o assassinato
de Severa Romana, ocorrido em Belém, no dia anterior: 02 de julho de 1900. A morte de
Severa causou instantânea repercussão e grande comoção popular em Belém: “uma mulher
honesta, num ato heróico em defesa de sua honra e da moral de seu lar”, preferira morrer a
se entregar aos “desejos voluptuosos” de Antonio Ferreira, seu assassino. A história de
Severa Romana, conforme veremos a partir de agora, foi permeada por tensões morais e
construída a partir de um universo de representações da honra feminina que idealizavam
Severa como uma mulher “virtuosa”.
O assassinato de Severa Romana teve, à sua época, uma grande repercussão na
sociedade paraense. Os jornais Folha do Norte e A Província do Pará, os de maior
circulação em Belém no período, traziam quase que diariamente notícias sobre a morte de
Severa Romana e seus desdobramentos sociais. A Folha do Norte, inclusive, publicou, no
dia 04 de julho, outra grande matéria com o relato de várias testemunhas, muitas das quais
testemunharam posteriormente no processo-crime de homicídio contra Antonio Ferreira81,
que conviveram com Severa Romana e que vivenciaram seus últimos momentos. A partir
do dia 09 de julho, encontramos pela primeira vez, em A Província do Pará, uma nova
coluna destinada à Severa Romana: a Heroína da Honra. Essa coluna, que se fez presente
no jornal nos meses imediatamente posteriores à morte de Severa, trazia notícias sobre suas
repercussões. A primeira coluna traz a seguinte mensagem:

“É com o maior desvanecimento que registramos nestas


colunas as manifestações piedosas feitas à memória da desditosa
Severa, a vítima heróica do assassino Ferreira, o réprobo
ignominioso já condenado pela justiça da opinião pública.
A sociedade paraense, prestigiando o nome de Severa,
desafronta-se deste crime hediondo praticado em seu próprio seio e
dá ao mesmo tempo uma sobeja demonstração do culto sincero que
lhe merece a virtude”.82

Além disso, a “Heroína” trouxe as condolências de diversas sociedades, cooperativas e


uniões que se solidarizavam pelo assassinato de Severa Romana, assim como também

80
CENTUR. Assassinato Bárbaro. Folha do Norte. 03 de julho de 1900. p. 2.
81
Agradecemos desde já à gentileza de Amanda Lima, bolsista do CMA/UFPA, pela cessão da transcrição
completa do processo-crime do homicídio de Severa Romana.
82
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 09 de julho de 1900. p.2.
54

propunha a criação de uma comissão que organizasse a construção de um mausoléu em sua


homenagem no cemitério de Santa Izabel, onde Severa fora enterrada. Esta comissão,
formada, dentre outros membros, por intelectuais como Arthur Vianna e Higino Amanajás,
recebia constantemente doações populares à causa que, em si, “já constitui por si um
eloqüente atestado dos princípios da moral”83 da sociedade paraense. No dia 13 de julho, a
Heroína da Honra informava que o Mausoléu seria inaugurado no dia 08 de agosto e que
seu epitáfio havia sido decido: “SEVERA ROMANA. Assassinada em defesa de sua honra
em 2 de julho de 1900. Homenagem popular à virtude heróica”.84
No dia 08 de agosto, a Província noticiava que o mausoléu de mármore já havia
sido concluído, destacando que o assassinato de Severa ainda estava vivo na memória dos
paraenses. A partir da divulgação da conclusão da obra, o jornal publicou várias matérias
sobre Severa e, quanto mais se aproximava da inauguração do mausoléu, maior era o
entusiasmo com que a Província narrava seus últimos preparativos. O povo prometia
comparecer em grande número à homenagem, assim como diversos corpos de
trabalhadores, sociedades e cooperativas. O policiamento da capital, por sua vez, afirmava
seguidas vezes que se faria presente na solenidade, trazendo segurança e organização a
todos os presentes.
Quatro dias depois chegava, enfim, o tão ansiado momento: em 12 de agosto de
1900, a Província trouxe, em sua primeira página, um discurso em homenagem à Severa
Romana, destacando suas qualidades como mulher “digna”, “honesta” e “virtuosa”... uma
mulher que preferiu a morte à perda de sua honra. Os preparativos para a inauguração
estavam todos feitos. A nós, que visitamos o passado, cabia então esperar o jornal do
próximo dia, 13, em que poderíamos saber, com detalhes, do que se passara no dia anterior.
E não aconteceu nada além do que nós poderíamos esperar: uma grandiosa homenagem.
Logo na primeira missa, marcada para as sete horas da manhã, o povo, em romaria,
começava a chegar nos trens. Do começo da manhã ao final da tarde, chegavam pessoas,
pessoas e mais pessoas. A solenidade transcorreu todo o dia, encerrando-se, ao final da
tarde, com um discurso emotivo de Higino Amanajás, em que ele agradecia à presença da
população e desejava que o exemplo de Severa ficasse perpetuado nos costumes dos
paraenses como um raro ensinamento de heroísmo e virtude85.

83
idem.
84
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de julho de 1900. p.1.
85
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de agosto de 1900. p. 1.
55

A partir de sua criação, a “Heroína da Honra” passou a ser o principal veículo


divulgador de informações sobre as repercussões sociais da morte de Severa, tanto pela
riqueza de detalhes que se incorporava à coluna quanto por sua periodicidade quase que
diária, aliada ao fato de ser publicada num dos jornais de maior circulação do período em
Belém: A Província do Pará. A “Heroína” acompanha o caso de Severa desde sua morte
até pelo menos o julgamento de Antonio Ferreira, período que acompanhamos neste
ensaio. Desse modo, a Heroína e o processo-crime se consubstanciam em riquíssimas
fontes à discussão das tensões morais e das representações da honra feminina associadas à
morte de Severa Romana.

Tensões morais: a relação conjugal e suas representações

Nossas reflexões anteriores permitem-nos, doravante, adentrar no universo de


representações que se construiu em torno do assassinato e das idealizações de Severa
Romana. A partir de agora, nossas atenções estarão voltadas, principalmente, para a
relação conjugal que Pedro Cavalcante e Severa Romana mantinham entre si: permeado
pelo exercício de papéis familiares, distinguidos claramente entre o masculino e o
feminino, o casamento representa, para o caso de Severa, o cerne da questão; afinal,
praticamente todas as tensões morais e representações da honra feminina nos remetem a
uma questão central: a fidelidade conjugal.
Como temos destacado, o casamento, enquanto um evento vital, relaciona um
acontecimento específico – o ato de casar-se – com o sistema simbólico no qual está
inserido. Os casamentos, portanto, não podem ser compreendidos separadamente dos
valores sociais e culturais a eles imbricados.86 Ao mesmo tempo em que constituem, antes
de qualquer coisa, atos culturais, eles – os casamentos – evidenciam também uma
perpetuação demográfica e social87. O que queremos salientar com essa breve reflexão é
que as tensões morais, as representações da honra feminina e a própria definição da
fidelidade conjugal que permearam a morte de Severa Romana estavam inseridas em
determinadas relações sociais, padrões culturais e, principalmente, num universo simbólico
específico, sem os quais não poderiam ser compreendidos.
Durante os depoimentos no processo-crime aberto pela morte de Severa, todas as
testemunhas, exceto, obviamente, o acusado Antonio Ferreira, convergiram num ponto:

86
Cf.: SAHLINS, Marshall. Estrutura e História, op. cit.
87
NADALIN, Sérgio Odilon. História e Demografia, op. cit., pp. 99.
56

Severa Romana era uma mulher “honrada”, “digna” e fiel ao seu casamento: ora com mais
e menos entusiasmo, as testemunhas defendiam justamente a questão da fidelidade
conjugal. Aqueles que conviviam num espaço de sociabilidade mais próximo, a exemplo
de Joana Gadelha, Antonia Ferreira e José do Patrocínio, foram os mais enfáticos na defesa
deste ponto de vista. Os depoimentos de Joana e Antonia ganharam, inclusive, ar de
dramaticidade devido à comoção de suas narrativas. Ambas, certamente, não estariam
defendendo apenas a “honra”, a “honestidade” e a fidelidade conjugal como preceitos de
morais a serem respeitados, visto que, por detrás de tudo isto, estava o fato de Severa
Romana ser, como elas, uma mulher.
Entretanto, antes de passarmos para a discussão acerca das tensões morais
associadas à fidelidade conjugal, faz-se necessária uma ressalva: o fato de Joana Gadelha,
Antonia Ferreira e José do Patrocínio defenderem, em torno de Severa, uma representação
de honradez, honestidade e fidelidade não significa, todavia, que os mesmos praticassem,
em suas vivências cotidianas, as noções morais que idealizavam em Severa Romana. Além
disso, não podemos saber se estas noções eram realmente as que defendiam ou se sequer
possuíam noções de moralidade específicas, diferentes de um “senso comum”.
Infelizmente, todos os pontos de vista convergiam à mesma questão: a fidelidade conjugal.
É de suspeitarmos, obviamente, desta congruência de percepções, porém, a única opinião
claramente contrária é a de seu assassino Antonio Ferreira, a qual nos ateremos
posteriormente e que merece suspeição ainda maior.
As percepções relativas às tensões morais associadas à morte de Severa Romana,
como ressaltamos anteriormente, são multifacetadas. Sendo assim, não podemos entender
as noções morais que permeiam o caso através apenas dos discursos das testemunhas no
processo-crime ou no que foi-nos dito pelos jornais, principalmente através da “Heroína da
Honra”, visto que as obras produzidas à época também consubstanciam uma rica memória
de um período que é-nos interessante analisar. Desse modo, ao pesquisarmos livros que
foram escritos no período, um ganhou papel de destaque: Noções de educação cívica, de
Higino Amanajás88. Esta obra, produzida para ser leitura obrigatória nos colégios
paraenses, retrata elementos, dito cívicos, que a República desejava edificar. Assim, o livro
perpassa por discussões relativas à nação brasileira, com destaque, ao final da obra, para
elementos moralizadores que o governo republicano preconizava.

88
AMANAJÁS, Higino. Noções de educação cívica: para uso das escolas primarias do Estado do Pará.
Belém: _, 1898.
57

Este trabalho de Higino Amanajás, publicado em 1898, dois anos antes do


assassinato de Severa Romana, ganha destaque ao ponto em que seu autor adquire um
papel de defensor de uma moral e do bom comportamento feminino das mulheres
paraenses. Dessa maneira, não é difícil imaginarmos a tonalidade do discurso de Amanajás
durante o “enterro” de Severa Romana. Vejamos o que o autor nos dizia sobre o feminino:

“Também a mulher, apesar de não ser chamada ao


exercício dos direitos políticos, tem deveres sacratíssimos para
com a sua pátria. É na atmosfera serena do lar, no seio da família,
que ela deve desobrigar-se desse nobilíssimo dever, porque aí a
sua ação benéfica e salutar se exerce mais facilmente e se aumenta
com o carinho inspirado pelo amor. Também no magistério, em
que é sem dúvida superior ao homem, quando se trata de ensinar
crianças, tem ela ensejo, ou antes, tem obrigação imperiosa de
cumprir esse dever, que ainda mais a engrandece. Infiltrar no
coração dos futuros cidadãos um amor exaltado para com a
pátria”.89

De acordo com Higino Amanajás, as mulheres deveriam formar os novos cidadãos


republicanos através da maternidade e do magistério. Em outras palavras, o autor defende a
permanência das mulheres no Lar, onde exerceriam suas atividades – exceto, obviamente,
o magistério. Em Belém, no período em que Severa fora assassinada e como destacamos
anteriormente, as mulheres exerciam, em sua maioria, atividades ligadas ao lar (serviços e
prendas domésticas) e ao magistério (em especial, como professoras normalistas), o que,
nas entrelinhas, denota a preocupação com a presença feminina no lar e no seio da família
Severa Romana foi, para Amanajás, o arquétipo da virtude feminina que deveria
servir de exemplo para gerações posteriores e ficar perpetuado nos costumes paraenses
como um raro ensinamento de heroísmo e virtude90. Até o momento, as opiniões
convergiam à “virtude” de Severa Romana: o depoimento de seus vizinhos a exaltavam, os
jornais a saudavam e Higino Amanajás, certamente representando a moral que a República
desejava impor, tinha Severa como exemplo a ser seguido. Mas, as noções de honra, moral
e honestidade que permearam à morte de Severa Romana foram pautadas por tensões, sob
dois pontos de vista principais: primeiro, na descaracterização de uma “união ideal” entre
Pedro Cavalcante e Severa Romana; segundo, sobre a martirização da “virtude” de Severa.
Assim, abordemos agora algumas controvérsias.

89
Amanajás, op. cit., p. 110.
90
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de agosto de 1900. p. 1.
58

No dia 05 de agosto, a Província do Pará, novamente por intermédio da Heroína


da Honra, publicou a seguinte matéria:

“Ainda está palpitante na memória do nosso público essa


tragédia singular de que foram protagonistas uma mulher obscura
e indefesa e um soldado concupiscente, que aproveitando as
circunstâncias da ocasião tentou desvirtuar uma esposa dedicada e
fiel, privada nesse momento do único apoio que a sorte lhe
permitira – a companhia de seu marido, um jovem soldado que a
ela se uniu pecos laços inquebrantáveis de um afeto recíproco e
espontâneo.
Algumas pessoas de coração endurecido, por sentimento
ou por espírito da contradição, pretenderam obscurecer o heroísmo
de Severa argumentando com a razão paradoxal de que cumpre
toda esposa a defesa da honra conjugal.
[...] A intenção moral do casamento visa especialmente
solidificar esses princípios de fidelidade que constituem a base da
família, estabelecendo a solidariedade afetiva entre o marido e a
mulher.
A instituição do matrimônio, que tem por objetivo a
perpetuação da espécie, seria contraditória se impusesses aos
esposos a condição irremediável da morte, na hipótese de ser
impossível a resistência de uma coação, contrair os deveres
sagrados da fidelidade conjugal.
É claro que a mulher, principalmente, escudada nos
preceitos da moral e esclarecida pelas luzes da educação, compete
zelar esse melindroso sentimento que nasceu do amor conjugal,
esforçando-se tanto quanto lhe deseja possível para o manter
inviolável à lama do adultério.
Quando a esposa chega a infâmia de trair o marido,
desceu tanto na escala da objeção que até se torna indigna do ódio
e do desprezo [...].
[...] Insinuar a negação da virtude de Severa Romana é a
maior e mais clamorosa das infâmias, que tanto mais se agrava
quando é sabido que aquela pobre vítima sendo ignorante e
obscura como era, vivendo num círculo de maior necessidade, sem
outra aspiração que não fosse o amor de seu esposo, só se podia
portar como aquela leonina, ao sentir a sua honra assediada, por
dignidade nativa, por bondade ou por pureza que tanto podem
animar o coração como um nobre como de um humilde plebeu
[...]”.91

Esta notícia adquire importância, principalmente, em dois sentidos: ao explicitar a


opinião da Província (de origem republicana) quanto ao casamento e à fidelidade conjugal,
e ao nos indicar que havia, contemporaneamente aos desdobramentos sociais de sua morte,

91
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 05 de agosto de 1900. p. 1.
59

pessoas contrárias ao que chamamos de “martirização da virtude de Severa”. Em ambos os


sentidos, a fidelidade conjugal era tida como um preceito a ser seguido: a diferença residia
basicamente na exaltação da virtude de Severa Romana. Algumas pessoas, opinião esta
defendida pelo jornal, crêem que Severa deveria sim ser louvada por ter preferido à morte a
destinar seu lar “à lama do adultério”. Em contrapartida, outros acreditavam que figura de
Severa Romana não deveria ser exaltada por isso, uma vez que a fidelidade conjugal
deveria ser o preceito regulador de qualquer casamento: religioso, civil ou mesmo uma
relação consensual.
No tocante às noções de casamento – onde está incluída a própria noção de
fidelidade conjugal –, a notícia é-nos também esclarecedora. O casamento, pelo viés da
Província e, obviamente, também de alguns segmentos sociais, era visto como uma união
pautada pelo amor e solidificada pela fidelidade conjugal, e onde a mulher não era vista
apenas passivamente. Ao contrário, educada (não apenas no sentido escolar) e sabedora
dos preceitos morais, ela deveria zelar não apenas pela dignidade sua e de seu casamento,
mas por sua família como um todo. No final do século XIX e no início do XX era exercido
um controle específico da sexualidade feminina que passava, através do casamento, dos
pais ao marido, num momento em que a relação conjugal se transformava de uma união
entre famílias e/ou negócios para uma relação mais particular do casal, onde a própria
noção do amor conjugal ganhava cada vez mais destaque92. Mas, afinal, o que diriam os
exaltadores de Severa ao saberem que sua relação com Pedro Cavalcante não era como
pensavam que fosse?
Antonio Ferreira, em seu depoimento, atacou principalmente a pretensa fidelidade
conjugal da união de Pedro e Severa, salientado que ele possuía uma amásia (amante) e
que Severa “perseguia” diversos homens, dentre os quais o próprio Antonio Ferreira e
Raimundo Rodrigues de Barros, seu colega de Batalhão. Obviamente, Ferreira tentava
descaracterizar a idealização de um casamento “digno”, “honrado” e “honesto”. É
interessante percebermos que, nesta tentativa, Antonio Ferreira não atacava apenas a
honradez de Severa, mas também a fidelidade de Pedro para com ela, o que nos leva a
concluir que, antes mesmo de por em dúvida a dignidade de Severa Romana, era mais
importante desconstruir a idealização de seu casamento, logo, de sua família. Abordemos,
agora, as acusações contra Pedro e Severa.

92
Cf.: NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit.
60

As acusações deferidas por Antonio Ferreira, como destacamos anteriormente,


objetivavam descaracterizar a idealização da fidelidade conjugal entre Pedro Cavalcante e
Severa Romana. Ferreira acusou ambos, sendo mais enfático nas acusações a Severa.
Contra Pedro, Antonio Ferreira afirmou que aquele possuía uma amásia chamada Júlia,
moradora na Rua da Constituição. Além disso, acrescentou que Pedro Cavalcante havia lhe
proposto alugar uma casa maior do que a que moravam e, em troca, prometeu-lhe ajudar a
conseguir a “amizade” de Júlia. Ferreira também dissera que, três dias após a morte de
Severa, Pedro, agora viúvo, havia se mudado de vez para a companhia de sua amásia e que
esta passara a constantemente trazer-lhe comida no Batalhão93.
Como é de se esperar, Antonio Ferreira, em sua defesa, fez duras acusações a
conduta de Severa Romana. Em quase todo seu depoimento, Ferreira insinuou a
infidelidade conjugal de Severa, dando a entender que ela saía com outros homens e que
“se dava a liberdades” com ele e com seu colega de Batalhão, Raimundo de Barros. Aqui,
o interesse de Antonio Ferreira incidia sobre a desmoralização da “virtude” de Severa
Romana. O assassino julgava-se, nesse sentido, vítima de seduções: afirmou que Severa se
insinuava a ele e que vinha se deitar em sua rede quando Pedro Cavalcante estava de
serviço no quartel. Em suma, Ferreira procurava desconstruir o ideal de honra feminina
reproduzido em Severa, atacando diversas representações da honra feminina que, em sua
pluralidade social, faziam-se presentes em todas as referências a Severa. Mas, afinal, quais
seriam estas representações?

Entre o masculino e o feminino: representações da honra feminina

O caso de Severa Romana, à sua época, foi permeado pela pluralidade de


concepções, noções e representações da honra feminina. A presença destas representações
se fez de dois modos: tanto no intento de exaltar Severa, quanto nas tentativas, em especial
de Antonio Ferreira, de descaracterizar sua “virtude”. Aqui, o que está em discussão é a
presença do feminino no exercício de papéis familiares, no trânsito por lugares públicos,
nos comportamentos privados e nos “bons costumes”. Como vimos anteriormente, havia
claramente três posicionamentos quanto à Severa: a “martirização” de sua “virtude”, a
crítica a esta “martirização” e aquele que buscava desconstruir o ideal de virtude, a honra

93
CMA/UFPA. 3º Distrito Criminal. Processo-crime de homicídio em que é Réu Antonio Ferreira dos Santos
e autora a Justiça Pública. 1900. p. 78/79.
61

feminina e a fidelidade conjugal em Severa Romana. A partir de agora, analisemos


algumas destas representações.
Certamente, a primeira e, para este caso, mais importante das representações é a
de Severa Romana como uma mulher virtuosa, que preferiu à morte a se tornar adúltera e
levar sua família a “desonra”. Esta representação, justamente por simbolizar o ideal de
fidelidade conjugal, foi predominante e, indubitavelmente, colaborou para o culto à Severa
como uma santa popular. Entretanto, há, quanto a esta representação, um posicionamento
dúbio: obviamente, a atitude de Severa Romana era louvável, afinal, preferira à morte ao
adultério. O problema aqui incide na seguinte questão: se um dos preceitos normativos do
casamento era justamente a fidelidade conjugal, por que a “virtude” de Severa, em
especial, mereceria tanto louvor? Ela não fez o que qualquer outra mulher honrada faria ou,
pelo menos, deveria fazer? Estas são questões de difícil resposta, mas, façamos algumas
problematizações.
Não podemos afirmar que qualquer mulher contemporânea à Severa, por mais
“honrada” que possa ser, preferiria a morte ao “adultério”. Além disso, também é
impossível termos certeza da fidelidade de Severa com Pedro, e vice-versa. Aqui, a questão
não é procurarmos pelo verdadeiro, mas problematizarmos as diversas versões que
encontramos da mesma história, afinal, uma afirmação falsa, uma afirmação verdadeira e
uma afirmação inventada não apresentam, do ponto de vista formal, nenhuma diferença94.
Porém, é inegável que todos os relatos que a nós chegaram, exceto o de Antonio Ferreira,
convergem para a idealização de Severa enquanto uma mulher, conforme as noções de
moralidade de sua própria época, “honrada”. Além disso, os depoimentos de Antonio
Ferreira relativos aos últimos momentos de Severa e as motivações que o levaram a
assassiná-la são desconstruídos pela fala de Pedro Cavalcante, anterior ao próprio
testemunho de Ferreira. Vejamos, agora, outra representação: a de esposa.
Há uma relação intrínseca entre a fidelidade conjugal, mote de nossas discussões,
e as representações de Severa Romana e Pedro Cavalcante enquanto, respectivamente,
esposa e marido. Ao longo do tempo, homens e mulheres desempenharam papéis distintos
dentro da organização familiar, social e do trabalho. Os papéis masculino e feminino,
definidos assim essencialmente por questões de gênero, variam conforme os diferentes
contextos históricos, meios sociais e valores culturais nos quais estão inseridos. Assim
sendo, a diferença entre os sexos, assimétrica, é produzida no decorrer da maior parte dos

94
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007,
pp. 18.
62

eventos e processos estudados na história95. Essas diferenças sexuais atuam em ambos os


espaços, público e privado, e, por conseguinte, em dois pontos: os papéis familiares
exercidos por Pedro e Severa em seu casamento e a inserção dela, um sujeito histórico
feminino, em diversos espaços de sociabilidade, em especial aqueles públicos. Falemos um
pouco de Pedro.
A moral do casamento traçava uma série de direitos e deveres para homens e
mulheres, num esforço disciplinador dos comportamentos: seu viés servia como norte para
as atitudes do casal. Era no dia-a-dia que o homem se fazia marido, era no cumprimento de
suas obrigações que estavam associadas principalmente ao sustento do lar e à vigilância da
sexualidade da mulher96. Todavia, como marido, Pedro Cavalcante não era responsável
apenas por seguir uma boa conduta e dar proveito a seu lar: ele precisava, também, vigiar
sua esposa, pois esta vigilância se caracteriza, em interação com papel de bom provedor,
na idealização de “bom marido”, afinal, o “desvio” do comportamento feminino idealizado
na infidelidade conjugal atingia diretamente, como destacamos anteriormente, a honra do
marido e da família, questionando sua respeitabilidade (idem). Nesse sentido,
concernentemente às especificidades de contextos históricos e sociais, o marido e a esposa
exercem, dentro de sua relação conjugal, papéis familiares inerentes ao grupo social ao
qual pertencem, sob a influência de critérios e valores morais peculiares97.
Em contrapartida aos papéis masculinos associados a Pedro Cavalcante, Severa
Romana deveria exercer sua feminilidade no ideal de boa esposa: obediente, fiel e que
honra seu marido. Estes três pontos se faziam presentes nos discursos daqueles que
exaltavam a “virtude” de Severa. Todavia, era justamente neles que se concentravam as
críticas de Antonio Ferreira a esta pretensa “virtude”. Indiretamente, suas críticas também
incidiam sobre as obrigações maritais de Pedro, uma vez que, em sua defesa,
freqüentemente fazia alusão a pequenas quantias em dinheiro que dava a Severa Romana
para o provento de seu lar98. Nesse sentido, é interessante percebermos de que forma
Antonio Ferreira se apropriava de diversos aspectos das noções erudita e popular de
“honestidade” com o objetivo de descaracterizar a “virtude” de Severa Romana. Este jogo

95
SCOTT, Joan. Prefácio a Gender and politcs of history. In: Cadernos Pagu, 1994, pp. 20.
96
VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. O cotidiano do desvio: defloramentos e adultérios no Ceará colonial
(1750-1822). (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em História Social. São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 1997, pp. 67.
97
SAMARA, Eni de Mesquita. Casamento e papéis familiares em São Paulo no séc. XIX, op. cit., pp. 81.
98
Severa Romana, com autorização e por indicação de Pedro Cavalcante, cozinhava, lavava e gomava a
roupa de Antonio Ferreira. Estas pequenas quantias as quais Ferreira faz referência são, muito
provavelmente, relativas ao pagamento destes trabalhos. Porém, na narrativa de seu depoimento, ele fala de
uma forma que dá a entender seu caráter de provedor do lar, em detrimento de Pedro Cavalcante.
63

mostra não apenas a presença de uma moralidade no seio e nos discursos de diversos
segmentos da sociedade, mas vai além, ao elevar as noções de “honra”, “moral” e
“honestidade” a instrumentos discursivos que, em determinados casos, poderiam inocentar
ou culpar um réu em julgamento99.
A principal representação em torno de Severa Romana, como é notório,
consubstancia-se no ser esposa: em Severa estava depositada a “honra” de Pedro
Cavalcante, que, por sua vez, deveria vigiá-la. Como vimos há pouco, as experiências
conjugais, sejam elas masculinas ou femininas, construíam-se no dia-a-dia, nas vivências
cotidianas. Nesse bojo, o trânsito e os comportamentos nos espaços público e privado
necessitavam de atenção (leia-se: vigilância) especial. Em suma, podemos entender que
uma mulher “honesta” era assim definida principalmente em base de três elementos: “boa
conduta”, “bons procedimentos” e “bons costumes”. O meio em que a mulher vivia, fora
criada e pelo qual circulava era de grande importância; além disso, também era importante
saber na companhia de quais pessoas andava100. Estas são características que,
sinteticamente, delineiam a própria ordem moral que a República desejava edificar na
sociedade brasileira. As mulheres não gozavam dos mesmos direitos que os homens nem
eram iguais entre si. Elas eram capazes ou incapazes, honestas ou desonestas, dependendo
da posição de cada uma dentro ou fora da família101.
Entretanto, não podemos simplificar as representações da honra feminina
associadas à morte de Severa Romana por sua boa conduta e proveniência. Conforme
verificamos, as definições de honestidade não estavam limitadas somente a estas
representações e a sua “virtude” sexual e moral. Além disso, encontramos constantes
referências a Severa como uma mulher pauperizada que trabalhava para ajudar Pedro
Cavalcante a sustentarem-se. À época de sua morte, Severa Romana exercia atividades
domésticas e fazia alguns trabalhos para fora (cozinhar, lavar e engomar roupas), porém
sempre com a autorização de Pedro. Conforme destacamos anteriormente, na Belém
contemporânea a Severa os migrantes nordestinos exerciam as mais variadas profissões. Os

99
Cristina Cancela verifica nos comportamentos sexuais das mulheres da classe popular de Belém, entre o
final do séc. XIX e o início do XX, um conceito próprio de “honestidade”. Além disso, a autora, a exemplo
de Martha Esteves (1989) e Sueann Caulfield (2005) para o Rio de Janeiro, analisa de que forma as camadas
populares de Belém se apropriavam de um discurso moralizador das elites como instrumento de persuasão
nos julgamentos de crimes de defloramento. Cf.: CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e dissimuladas, op.
cit.
100
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro
da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
101
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2005, pp.
69.
64

homens eram pequenos comerciantes, marítimos, carregadores, empregados públicos,


jornaleiros, militares etc. As mulheres, todavia, concentravam-se em atividades ligadas ao
lar e ao magistério. O que não exclui, como destacamos no último capítulo, um amplo rol
de atividades femininas. Portanto, ao desempenhar suas atividades domésticas, Severa
Romana estava envolvida em atividades “normais” para seu tempo.
Infelizmente, não pudemos acompanhar muitas andanças de Severa Romana pela
cidade nem de que forma ela chegou ao Pará. Não há referências sobre sua migração:
apenas sabemos sua naturalidade (maranhense) e que ela veio a Belém após casar-se com
Pedro Cavalcante em Óbidos (município do interior do Pará). Nos discursos das
testemunhas, principal fonte que possuímos para conhecer alguns de seus passos, quase
não há referências sobre a interação de Severa Romana com o espaço público.
Conhecemos, e bem pouco, seu comportamento privado, sua intimidade familiar e suas
relações de sociabilidade mais próximas. Por exemplo, sabemos que Severa ia
freqüentemente ao quartel levar comida a seu marido, Pedro Cavalcante. Também não é
difícil percebermos a boa relação que ela mantinha com sua vizinhança, ao ponto de ser
conhecida por todos e, no fatídico dia de sua morte, ter sido aconselhada por seu marido a
fugir de Antonio Ferreira e abrigar-se na casa de uma vizinha: Maria Antonia.
Essa “fuga” de Severa Romana adquire ares de dramaticidade. Na noite de seu
assassinato, segundo relata-nos Pedro Cavalcante, Severa seguiu seus conselhos e foi à
casa de sua vizinha. Porém, resolveu voltar para pegar uma rede e algumas “trouxas”. Foi
justamente neste retorno, fatídico, que Severa encontrou com Antonio Ferreira, sendo
morta a facadas102. Nesse caso, não poderíamos pensar no fato de Severa dormir fora de
casa como réprobo segundo os padrões morais da época. Ao contrário, se ela resolveu sair
de casa para dormir na casa de sua vizinha, o fez por conselhos de seu próprio marido. Este
“dormir fora”, porém, ganha outra tonalidade no depoimento de Antonio Ferreira, quando
ele afirma que o estopim para matar Severa (apesar de ele paradoxalmente afirmar que fez
isto sem intenção de feri-la) foi o fato de saber que ela passaria a noite na casa de uma
vizinha que, afirmava, era conhecida por “Mariquinha Mulher” e dada ao meretrício.
Assim, nas entrelinhas, Ferreira se defendia afirmando que matara Severa acidentalmente
para, dentre outras coisas, resguardar a honra de Pedro Cavalcante.
É interessante destacar que a referência a Severa não é feita como “mulher de
Pedro Cavalcante”. Ao contrário, a Pedro se referem como “marido de Severa Romana”.

102
CMA/UFPA. 3º Distrito Criminal. Processo-crime de homicídio em que é Réu Antonio Ferreira dos
Santos e autora a Justiça Pública. 1900. p. 18.
65

Obviamente, isso não significa que Severa estivesse na vanguarda de seu tempo, nem,
muito menos, que não estivesse sob o poder de seu marido Pedro. Desde a primeira
referência que encontramos a Severa, qual seja, a do jornal Folha do Norte um dia após sua
morte, não faz-se referência a Severa como esposa de Pedro: limita-se a afirmar que eram
casados, como pudemos verificar no início deste capítulo. Isso se justifica, acreditamos,
por conta de Severa Romana ser a atriz principal de uma trama cujo enredo abrange as
acepções de moralidade, honradez e virtude na Belém do final do século XIX, início do
XX. Apesar de a discussão estar centrada principalmente no ideal da fidelidade conjugal de
Severa para com Pedro, a “virtude”, nesse caso, seria apenas dela.
Em síntese, as representações da honra feminina presentes no caso de Severa
Romana são multifacetadas. Ao acompanharmos as testemunhas do processo, o
depoimento de Pedro Cavalcante, a defesa de Antonio Ferreira e tudo aquilo que os jornais,
em especial através da Heroína da Honra, nos relatou, podemos claramente perceber a
presença de uma multiplicidade de percepções de “honra”, “moral” e “honestidade”.
Partindo da reflexão de um caso conseguimos problematizar uma ordem social em que a
fidelidade conjugal e os ideais de honra e virtude feminina faziam-se presentes não apenas
nas elites ou nos discursos de jurisconsultos, mas “na boca do povo”, no dia-a-dia, na
vivência cotidiana e nas experiências das camadas populares.
A história dos últimos momentos de Severa, permeada por diversas tensões
morais, é formada por um universo de representações da honra feminina que fizeram com
que, passado pouco mais de um século de sua morte, ela continue viva na memória dos
paraenses. O anseio de Amanajás foi, por fim, realizado: Severa Romana permanece viva
na história de Belém como um exemplo de “virtude”. Sua presença é tão forte que
anualmente, quando em Finados os paraenses vão aos cemitérios relembrar seus entes
queridos, um pouco desta atenção é destinada a Severa. Por mais que nenhum deles lhe
tenha conhecido, muitos a têm em sua fé: Severa Romana está, diariamente, com aqueles
que acreditam que sem exemplo de “virtude” a tenha tornado uma santa.

Ferreira agora é Réu: o perfil do assassino e seu julgamento

“[...] o criminoso, como se nada tivesse feito, corrigiu a


desordem na farda e saiu com destino ao quartel, embrulhando um
cigarro. Estava de sentinela no quartel o esposo de sua vítima.
Ferreira passou tranquilamente por ele e foi ao oficial do estado, o
66

alferes Alfredo Carneiro, a quem falou o seu crime. Deu-lhe voz de


prisão e cominou à polícia”.103

Ao longo deste capítulo, muito se falou sobre Severa Romana, Pedro Cavalcante e
seu casamento. Não é difícil imaginarmos que a morte de Severa não tenha se restringido
tão somente a páginas de jornais e discursos entusiasmados, mas que tenha adentrado no
próprio cotidiano da cidade, sendo discutida em conversas no ambiente de trabalho ou em
burburinhos na vizinhança, por exemplo. As representações da honra feminina idealizadas
em Severa, as tensões morais que permearam seus últimos momentos e os papéis
(familiares) de gênero associados a ela e a Pedro Cavalcante já nos são conhecidos. Mas,
uma questão ainda permanece sem resposta. Qual foi, afinal, o destino de Antonio
Ferreira? Ou melhor: de que forma o assassino de Severa Romana fora representado? Essas
são questões que, antes mesmo de nossas considerações finais, precisamos responder.
A construção da imagem de Antonio Ferreira perpassa pelas noções de
moralidade e “bons costumes”, e pelos papéis de gênero associados ao masculino, no
período analisado. À época, os marcos de adequação social da masculinidade estavam
dispostos de forma mais flexível que os da feminilidade. Desse modo, a transgressão dos
limites aceitáveis para o masculino só ocorria em casos peculiares104. Sob a influência de
um Direito positivo em que antes mesmo de se julgar um caso, julgava-se o “merecimento”
dos envolvidos em serem condenados, absolvidos ou vitimados, a elasticidade dos limites
masculinos e, por conseguinte, a restrição dos limites femininos, culminavam, em grande
parte dos casos, na absolvição de homens e na “condenação” de mulheres envolvidos em
crimes de caráter sexual e afetivo, criando-se, assim, um distanciamento entre uma
“criminalidade real” e uma “criminalidade apurada”105.
Porém, no caso de Severa Romana, o assassino deveria ser condenado, justiçando
sua morte. Em nenhum momento, os jornais ou o processo-crime de homicídio apresentam
discursos no sentido de afirmar que o caso não deveria ser julgado; que Severa não seria
pura e, portanto, que Antonio Ferreira não deveria ser declarado culpado. Mas por quê? O
casamento e sua versão sacra, o matrimônio, são instituições permeadas por diversas
subjetividades, que atuam em confluência a valores morais específicos, variáveis de grupo
social para grupo social. Conforme os discursos que pesquisamos, Pedro Cavalcante e

103
CENTUR. Assassinato Bárbaro. Folha do Norte. 03 de julho de 1900. p. 2.
104
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: EDUSP,
2001, pp. 127.
105
Cf.: FAUSTO, Boris. Crimes sexuais. In: Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924).
São Paulo: EDUSP, 2001, pp. 193-248.
67

Severa Romana formavam, por assim dizermos, um casal ideal. Eram casados formalmente
e seu casamento, na prática cotidiana, era reconhecido socialmente como uma união
“honrada”. Antonio Ferreira, por sua vez, era visto como aquele que, com seus “instintos
voluptuosos”, almejava destruir uma relação “digna” e de “bons costumes”.
Se, à sua época, Severa Romana pode ter sido considerada como um arquétipo
idealizado da “virtude feminina”, isso se justifica, como destacamos anteriormente, pela
idéia de que Severa se sacrificara em prol da fidelidade conjugal, preferindo morrer a
perder as honras sua, de seu marido e, por conseguinte, de sua família. Antonio Ferreira,
em contrapartida, era representado de modo inverso, como aquele que desejava desonrar
uma mulher, um marido e uma família “honesta”. Havia, portanto, um antagonismo entre a
representação do casamento de Pedro e Severa e o comportamento, ou melhor, e os “maus
procedimentos” de Antonio Ferreira. Respectivamente, ambos significavam representações
idealizadas do que deveria e do que não deveria ser feito, da forma que se deveria ou não
agir ou se comportar. Era um conflito entre um ideal de normatização e sua antítese.
Nesse sentido, é importante fazermos algumas ponderações sobre os argumentos
de defesa de Antonio Ferreira. Em resumo, sua argumentação estava baseada numa
tentativa de desconstrução da idealização de uma união “honesta” entre Pedro e Severa.
Para tal, em seus depoimentos, ele não apenas atacava a conduta de Severa Romana, como
também a de Pedro Cavalcante. Se as tensões morais relativas à morte de Severa incidiam,
principalmente, num ideal de casamento que perpassava, necessariamente, pela noção de
fidelidade conjugal, a estratégia argumentativa de Ferreira fora correta: ele não tentou se
justificar ou apenas macular a conduta de Severa, mas, ao contrário, almejava justamente
“ferir a honra” de seu casamento – o que de fato estava em questão. O conflito existente
não era somente entre Ferreira e Severa, mas também entre ele e Pedro.
Antonio Ferreira era, para Pedro Cavalcante, um “rival sedutor”. Ele seria,
portanto, o inimigo do “bom marido”: um elemento que entrava diretamente em conflito
com o ideal do viver como casados, um elemento da desordem. Antonio Ferreira deveria
ser punido porque, ao tentar violar o corpo e a sexualidade de Severa Romana, violaria a
honra (masculina) de Pedro Cavalcante. Sua culpabilidade e, principalmente, sua punição,
faziam parte de uma tentativa normatizadora de controle das sexualidades masculina e
feminina106. Todos os discursos pesquisados, exceto os do próprio Antonio Ferreira, foram

106
Para uma discussão sobre o papel do amante, cf.: VIEIRA Júnior, Antonio Otaviano. Casamento e
sedução masculina em Fortaleza (1799-1820). In: SOUZA, Simone de; NEVES, Frederico de Castro
(Orgs.). Gênero. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2002. pp. 101-118.
68

no sentido de enfatizar o casamento de Pedro Cavalcante e Severa Romana como uma


união “honrada”; e seu assassino como um criminoso que tentou de várias formas violar a
“honestidade” de Pedro, Severa e seu casamento.
O julgamento de Antonio Ferreira, assim como as homenagens póstumas a Severa
Romana, também foi marcado por grande comoção popular. Muitas pessoas reuniam-se do
lado de fora do Tribunal em todos os dias do julgamento, em quantidade que decrescia com
o passar do tempo. A abertura processo-crime de homicídio contra Antonio Ferreira deu-se
logo após a morte de Severa. No primeiro dia em que o réu apresentou-se à Justiça, por
medidas de segurança o sargento Antonio da Silva Costa, responsável pela escolta de
Ferreira ao Tribunal, retirou-o do recinto sem que este tivesse sequer sido formalmente
apresentado, pois o povo encontrava-se do lado de fora do prédio, gritando impropérios e
ameaçando o assassino de apedrejamento e linchamento107.
Em 11 de agosto do mesmo ano, depôs a primeira testemunha, José do Patrocínio.
Ao todo, cinco pessoas testemunharam no processo: o já citado José do Patrocínio, Joana
Maria Gadelha (dona da pensão em que Severa fora assassinada), Antonia Maria
Ferreira108 (a vizinha com quem Severa dormiria naquele dia), Arnaldo Carneiro (praça do
15º Batalhão, a quem Antonio Ferreira confessou o assassinato) e Henrique Samico. É
importante salientarmos que todas foram testemunhas de acusação, não havendo sequer
uma de defesa. Entre apelações e recursos, ocorreram três julgamentos. Em todos, Antonio
Ferreira foi declarado culpado pelos jurados, por unanimidade. A estratégia da defesa de
alegar que Antonio Ferreira estava em estado de “privação de sentidos” ao assassinar
Severa Romana não fora considerada pelos envolvidos no julgamento. Doravante, o réu,
outrora Antonio Ferreira, passara a ser conhecido como o assassino de Severa Romana.

Considerações quase que finais

O universo de tensões morais e representações da honra feminina que permeou à


morte de Severa Romana, ocorrida em Belém, em 02 de julho de 1900, foi o objeto de
análise deste ensaio. Em suma, nosso objetivo foi perceber de que forma uma
multiplicidade de noções de “honra”, “moral” e “honestidade” fazia-se presente na
sociedade de Belém entre o final do século XIX e o início do XX. Severa Romana, atriz

107
CMA/UFPA. 3º Distrito Criminal. Processo-crime de homicídio em que é Réu Antonio Ferreira dos
Santos e autora a Justiça Pública. 1900. p. 31.
108
Seu nome também aparece no processo como Maria Antonia Ferreira.
69

principal de uma peça cujo roteiro aqui rememoramos, serviu-nos de intermédio para
compreendermos, mesmo de que forma limitada, a própria ordem social de uma sociedade
que, em si, trazia heranças morais do século XIX e, concomitantemente, possuía os ares de
renovação do século XX. Ao longo das últimas páginas, o casamento apareceu repleto de
subjetividades, valores de honra e tensões morais; apareceu, na verdade, em variadas
facetas que compõe a multiplicidade de experiências conjugais existentes.
Aqui, discutimos as repercussões sociais de sua morte, as tensões morais e as
representações do feminino que marcaram seus últimos momentos, e tentamos delinear um
perfil de Antonio Ferreira. Por último, ao final deste capítulo, cabe-nos perguntar: hoje,
passado mais de um século de sua morte, qual moral associamos à Severa Romana?
Obviamente, e não temos dúvidas em afirmar isto, Severa foi eternizada na memória dos
paraenses como uma mulher que, em virtude de sua honra, preferida à morte a se tornar
adúltera. Esta é a visão que o povo tem dela, a visão que a fez, nos meios populares, uma
santa. Dentro deste universo de tensões morais e representações da honra feminina, Severa
Romana permaneceu como uma mulher que perdeu a vida por sua fidelidade e virtude
moral: era uma heroína da honra.
70

CONSIDERAÇÕES FINAIS

O casamento, visto ao longo deste trabalho em suas múltiplas facetas, mostrou-se


uma perspectiva diferenciada para a análise de seu entorno social. Como um evento vital
que relaciona um acontecimento específico ao universo simbólico no qual está inserido, o
casamento serviu-nos como um intermédio para compreendermos alguns dos papéis de
gênero, das noções de família, das concepções de honra e dos valores morais presentes em
Belém, no início do século XX. Esta pesquisa evidenciou a família não apenas como um
patrimônio, mas também como um capital simbólico de honra109. Analisar o casamento sob
três enfoques diferentes permitiu-nos apreender as variadas relações sociais que o
permeiam. Em nossas considerações finais, que na verdade são quase que finais,
analisaremos as conclusões deste trabalho seguindo a ordem das discussões nos capítulos.
No primeiro capítulo, refletimos sobre o momento imediatamente anterior ao
evento de casar-se, a partir da análise do exercício legal do pátrio poder/poder familiar e
das estratégias adotadas pelos nubentes para burlarem-no. Inicialmente, destacamos que o
pátrio poder, no início do século XX, do ponto de vista legal, incidia predominantemente
sobre o feminino. A análise das idades de casamento permitiu-nos concluir que em pelo
menos um de cada três casamentos as nubentes estavam sob o poder paterno. Não podemos
esquecer-nos que, à época, o exercício legal do pátrio poder seguia uma instrução etária, ou
seja, que somente os filhos menores de idade (a maioridade no período era 21 anos) e não
previamente emancipados estavam sob jurisdição paterna. Todavia, em seus discursos, pais
e filhos utilizavam estratégias argumentativas diferentes.
Os pais, incrustados na imagem protetores do Lar e da família, demonstravam sua
preocupação com os “procedimentos” e com as profissões dos pretendentes de seus filhos.
Seus discursos sinalizam a construção de papéis familiares de gênero bem definidos. Isso
porque a justificativa de um não consentimento não estava centrada unicamente no
demérito aos pretendentes de seus filhos, mas também nesses. Em alguns casos, os pais
afirmavam que seus filhos (homens) ainda não desempenhavam uma profissão capaz de
prover um Lar, enquanto outros argumentavam que suas filhas ainda eram muito novas e,
portanto, ainda não estavam aptas a realizar as atividades domésticas. Embora agora num
novo contexto, em que o poder paterno possa ter se esfacelado pela perda do direito de

109
PERROT, Michelle. Dramas e conflitos familiares. In: PERROT, Michelle (Org.). História da Vida
Privada, v. 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia de Bolso (Cia. das Letras),
2009, pp. 250.
71

testamentar (leia-se: perda do direito de deserdar)110 e pela ascensão das profissões liberais
e de um crescente individualismo, os pais ainda tentavam influir na escola dos cônjuges
dos filhos.
Os nubentes, por sua vez, usavam uma estratégia argumentativa baseada em
brechas da Lei que permitissem seu casamento mesmo sem o consentimento paterno.
Alegavam constantemente que sofriam agressões físicas e morais e que seus pais não
consentiam com o casamento por motivos frívolos ou por preferirem outro pretendente. O
discurso dos nubentes evidencia a que ponto o individualismo, crescente durante os séculos
anteriores, fazia-se presente no início dos Novecentos. Não dependendo mais de heranças
ou dotes, e ainda com a impossibilidade de serem deserdados e no exercício de profissões
capazes de lhe dar sustento, os nubentes poderiam seus escolher cônjuges111? Entre os
argumentos paternos e o dos nubentes, qual prevaleceria? A que ponto o Juiz de Órfãos,
responsável por julgar o impasse, tenderia a consentir ou não a liberação para o casal?
A partir da análise de um julgamento do juiz Mauricio Cordovil e em diálogo com
as tendências gerais dos processos de Licença para casamento e Suprimento de
consentimento paterno, concluímos que, através da perspectiva da prática jurídica, os
nubentes teriam o direito de livremente escolherem seus cônjuges. Ao todo, encontramos
apenas um caso em que o suprimento de consentimento foi negado. Na verdade, o que
estava em questão não era se os pais legalmente teriam ou não o direito de exercer o pátrio
poder, mas que os nubentes, exceto em casos excepcionais, poderiam escolher seus
maridos e esposas. Essa tendência evidenciou em Belém, durante as primeiras décadas do
século XIX, uma diminuição da autoridade paterna sobre os filhos adultos, enquanto que,
concomitantemente, o poder do marido sobre a esposa pode ter aumentado112.
No segundo capítulo, analisamos o evento do casamento, investigando os perfis
demográficos dos nubentes que se casaram civilmente em Belém, entre 1908 e 1925.
Pesquisamos as origens (nacionalidade e naturalidade), as ocupações, as idades ao casar, o
caráter de (i)legitimidade e o estado civil dos noivos. Percebemos, em diálogo com os
capítulos anterior e posterior, que análise de gênero é de vital importância para a
compreensão do casamento e dos papéis familiares e valores morais a ele associados.
Nesse sentido, as conclusões desse capítulo advieram da apropriação quantitativa de uma

110
PERROT, Michelle. Figuras e papéis. In: PERROT, Michelle (Org.). História da Vida Privada, v. 4, op.
cit., pp. 109.
111
NAZZARI, Muriel. O século XIX, op. cit., pp. 211.
112
Idem.
72

série composta por 5.792 registros de casamento, onde o recorte de gênero teve um papel
não apenas fundamental, mas imprescindível.
O perfil demográfico dos nubentes que se casaram em Belém, no início do século
XX, mostrou-se bastante diversificado. A reflexão acerca desse perfil demonstrou que
podemos analisá-lo de muitas formas; duas, em especial. Primeiro, podemos fazer uma
investigação geral, mapeando as tendências de todos os casamentos. Segundo, também é
possível realizarmos uma análise dos comportamentos matrimoniais de grupos específicos,
a exemplo de portugueses e cearenses. Ao mesmo tempo, concluímos que não devemos
analisar os números apresentados apenas como números, mas como indicadores de
relações sociais, padrões culturais e comportamentos populacionais. Não foi a toa que as
portuguesas e os cearenses buscaram seus conterrâneos na hora de casar-se. Apesar de os
portugueses (homens) terem se casado preferencialmente com as paraenses. Agora,
teçamos mais algumas considerações sobre o perfil demográfico dos casamentos.
Conforme discutimos ao longo do primeiro capítulo, a escolha dos cônjuges, no
início do século XX, era uma decisão dos nubentes. Isso não significou, todavia, que o
casamento fosse totalmente livre, ileso de critérios sociais e valores morais. As relações de
família, amizade e sociabilidade (onde se destacam a vizinhança e o ambiente de trabalho)
desempenham um papel fundamental na escolha do cônjuge113. Em outras palavras, essa
escolha dá-se dentro do círculo de sociabilidades dos indivíduos, o que dificulta, por
exemplo, casamentos entre pessoas de camadas socioeconômicas significativamente
diferenciadas. De todos os casamentos pesquisados, quase seis mil, não encontramos
qualquer referência a casamentos socialmente exógamos. As camadas populares casavam-
se entre si, assim como as elites.
Em geral, os cônjuges casavam-se jovens. Os homens, entre os 20 e os 34 anos.
As mulheres, entre os 15 e os 29 anos. Muito possivelmente, os nubentes (os homens), ao
casarem nessas idades, já estavam inseridos no mercado de trabalho, mesmo que ainda não
num patamar de amadurecimento profissional mais sofisticado. Isso justifica sua inserção
tardia no mercado matrimonial, assim como sua permanência nele por mais tempo. Para
essa análise, não podemos esquecer-nos que o provento ao Lar era um papel de gênero
associado ao masculino. As mulheres, por sua vez, entravam e saiam mais cedo do
mercado matrimonial, sendo difícil uma mulher casar-se após os trinta anos de idade.

113
MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida privada burguesa. In: PERROT, Michelle (Org.). História
da Vida Privada, v. 4, op. cit., pp. 218-219.
73

Quanto às nubentes, ainda podemos considerar certa preocupação com a idade reprodutiva,
uma das principais fases das “idades da vida” de uma mulher114.
Os nubentes exerciam, principalmente, atividades ligadas ao Setor Terciário,
enquanto as nubentes estavam associadas, essencialmente, às atividades domésticas. As
profissões masculinas, melhor descritas e mais detalhadas, evidenciaram, mesmo que de
forma limitada, a própria lógica social e econômica de Belém, à época. As ocupações
femininas, por sua vez, eram descritas de forma limitada, por razões que supusemos ao
longo do capítulo. As conclusões, porém, não se limitaram às estratégias familiares e à
pesquisa da origem, da idade ao casar e das profissões dos nubentes, mas foram além,
apreendendo a tenuidade da análise da (i)legitimidade e o fato de que os nubentes, em
geral, casavam-se em primeiras núpcias. As discussões dos dois primeiros capítulos,
complementares um ao outro, abriram caminho para o estudo de caso de um casamento.
O terceiro e último capítulo consistiu na análise do casamento de Pedro
Cavalcante e Severa Romana. Nosso objetivo foi complementar as reflexões dos dois
primeiros capítulos com uma análise micro-histórica que nos permitisse apreender as
relações sociais que permearam os últimos momentos de um casamento específico. A
discussão sobre o casamento de Pedro e Severa permitiu-nos investigar, através de uma
análise microscópica, noções de família, experiências de conjugalidade, papéis de gênero e
representações da honra feminina, masculina e familiar. Ao mesmo tempo, pudemos
verificar a importância da vizinhança tanto nas teias sociais tecidas por Pedro e Severa,
quanto como testemunhas no decorrer do processo-crime aberto pelo homicídio de Severa
Romana, onde Antonio Ferreira fora réu.
As discussões desse capítulo demonstraram que as representações da honra
feminina (e, por conseguinte, também das honras masculina e familiar) e os valores morais
associados ao caso estavam centrados na idealização da fidelidade conjugal de Severa
Romana. O cerne da questão, portanto, foi o casamento de Pedro e Severa, e as noções de
família e os valores morais a ele relacionados. Inferimos que a moralidade do casamento,
que perpassava tanto pela moral de Pedro quanto pela moral de Severa, foi construída em
base das representações dos papéis familiares de gênero. Não encontramos, exceto no
depoimento de seu assassino, Antonio Ferreira, qualquer tentativa de demérito à “virtude”
de Severa Romana. Os conflitos estavam centrados na martirização ou não dessa “virtude”.

114
Cf. PERROT, Michelle. As idades da vida de uma mulher. In: Minha história das mulheres. São Paulo:
Contexto, 2007, pp. 41-49. VER também: ARIÈS, Philippe. As idades da vida. In: História social da
criança e da família, op. cit., pp. 1-16.
74

Enquanto alguns acreditavam que Severa deveria ser referenciada por sua conduta, outros
julgavam que ela não havia feito nada além do que qualquer outra mulher “honesta”, em
seu lugar, deveria ter feito.
O estudo de caso sobre o casamento de Pedro Cavalcante e Severa Romana
ajudou-nos a analisar o casamento como um ato cultural permeado por subjetividades e
normas sociais. É interessante salientarmos, nesse sentido, o diálogo entre os três capítulos.
No primeiro, analisamos as preocupações paternas com o casamento, que em outras
palavras significou também uma preocupação com a criação de uma nova unidade conjugal
e de um novo Lar. No segundo, investigamos o perfil demográfico de quem se casava. E
no último capítulo, a partir do estudo de um casamento, observamos de que forma as
preocupações que, aparentemente, seriam apenas anteriores ao casamento, refletem na
própria vida conjugal. Severa tornou-se uma idealização da “virtude feminina” justamente
por convergir, em si, os papéis de gênero e os valores morais idealizados a sua época.
Em suma, este trabalhou evidenciou a existência de um novo pacto matrimonial
em Belém, no início do século XX. Os nubentes, doravante, teriam o direito de escolher
seus cônjuges. Essa escolha, entretanto, não era livre de critérios sociais e valores morais.
Em geral, as pessoas casavam-se com indivíduos de uma camada socioeconômica próxima.
As idades de casar, diferentes entre homens e mulheres, sinalizaram a importância dos
papéis de gênero para o casamento. Os homens, no papel de provedores do Lar, entravam e
saiam do mercado matrimonial mais tardiamente, se comparados às mulheres. No tocante
ao casamento e à constituição de uma nova unidade conjugal, havia uma preocupação
muito grande com o provento ao Lar, papel de gênero então associado ao masculino.
É importante salientarmos que, em nossa opinião, foi justamente o exercício de
profissões estáveis, capazes de prover ao Lar sem a ajuda familiar, que permitiu que um
crescente individualismo culminasse na possibilidade de os nubentes poderem escolher
livremente seus cônjuges. O casamento foi evidenciado como um evento que relaciona um
acontecimento específico (o ato de casar-se) ao universo simbólico no qual está inserido.
Nesse sentido, ao analisarmo-lo, percebemos que seu entorno social fora permeado por
múltiplas noções de família, experiências de conjugalidade, representações da honra
feminina, masculina e familiar, e, principalmente, dos valores morais a ele associados.
Estudar o casamento não é apenas dizer quem se casava, mas analisar seu contexto social,
político, econômico e moral.
Por último, gostaríamos de destacar que estas não serão as últimas palavras, nem
muito menos as últimas conclusões desta pesquisa. São, como destacamos páginas atrás,
75

conclusões quase que finais. Um embrião que nasceu em nossas investigações de Iniciação
Científica e que cresceu ao longo deste trabalho terá continuidade – mesmo que não
necessariamente no sentido cronológico. As discussões travadas nesta monografia levaram-
me a elaborar um projeto de pós-graduação, em nível de Mestrado, que tem por objetivo
dar continuidade as mesmas, agora com mais maturidade intelectual e sob outra
perspectiva. Portanto, esperamos que, logo cedo, outras palavras sejam ditas.
76

BIBLIOGRAFIA

AGUIAR, Keila de Sousa. Trabalho, família e habitação: cotidiano dos migrantes


nordestinos na capital paraense (1898-1908). (Trabalho de Conclusão de Curso).
Graduação em História. Belém: Universidade Federal do Pará, 2001

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RELAÇÃO DE FONTES CITADAS

Centro de Memória da Amazônia (CMA/UFPA)115


Fundo: Tribunal de Justiça do Estado do Pará

3º Distrito Criminal. Processo-crime de homicídio em que é Réu Antonio Ferreira dos


Santos e autora a Justiça Pública. 1900.
Cartório Privativo de Casamentos. Casamento de Barnabé Assunção Martins e Hilda de
Andrade. Maio de 1917.
2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Barnabé Assunção Martins e requerida Teresa Santos. 1917.
2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Alfredo Rodrigues Cid e requerido José Rodrigues Alves. 1920.
2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Aurélia de Souza Nunes e requerido José Vieira Nunes. 1930.
1ª Vara Cível (Cartório Santiago). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Benedito Tiago Cardoso e requerido José Vieira Nunes. 1930.
2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, em que foi
requerente Raimundo Moreira da Silva e requerido Manoel Moreira da Silva. 1930.
1ª Vara Cível (Cartório Santiago). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requerente Maria de Nazaré Martins e requerida Isaura de Jesus Martins. 1936.

Fundação Cultural Tancredo Neves (CENTUR)


Obras raras e Hemeroteca

Obras literárias
AMANAJÁS, Hygino. Noções de educação cívica: para uso das escolas primarias do
Estado do Pará. Belém: _, 1898
AMANAJÁS, Hygino. Alma e Coração. Belém: _, 1905.

115
Para esta pesquisa, foram coletados todos os de casamento civil, presentes no acervo do CMA/UFPA,
entre 1908 e 1925, totalizando aproximadamente 6000 processos. Além disso, também foram pesquisados
todos os processos de Licença para casamento e de Suprimento de consentimento paterno, do referido acervo,
relativos ao período de 1910 a 1930, totalizando 29 processos. Por ser uma documentação muito vasta,
incluímos apenas as referências dos documentos citados durante este trabalho.
82

Jornais
Assassinato Bárbaro. Folha do Norte. 03 de julho de 1900
Heroína da Honra. A Província do Pará. 09 de julho de 1900
Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de julho de 1900
Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de agosto de 1900
Heroína da Honra. A Província do Pará. 05 de agosto de 1900

Legislação

Código civil quadro comparativo 1916/2002. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de


Edições Técnicas, 2003.

Cúria Metropolitana de Belém (CMB)

Dispensa de Parentesco e Proclamas (1827-1900). Dispensa de Proclamas em que foram


requerentes Antonio Mendes Costa e Raimunda Apolinária dos Santos (Doc. 112). 1897.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE)

Sinopse do recenseamento de 1920

Arquivo Público do Estado do Pará (APEP)

APEP. Secretaria de Segurança Pública. Chefatura de Polícia. Ocorrências policiais 1909-


1919. pp. 1-2

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