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(2009, FAHIS-UFPA) O Casamento, em Belém, No Início Do Século XX
(2009, FAHIS-UFPA) O Casamento, em Belém, No Início Do Século XX
BELÉM
2009
2
BELÉM
2009
3
BANCA EXAMINADORA:
_____________________________________________
Prof. Dr. Antonio Otaviano Vieira Jr (Orientador – UFPA)
_____________________________________________
Profª. Drª. Cristina Donza Cancela (Membro – UFPA)
BELÉM
2009
4
AGRADECIMENTOS
RESUMO
ABSTRACT
LISTA DE ABREVIATURAS
SUMÁRIO
AGRADECIMENTOS p. 04
RESUMO / ABSTRACT p. 06
LISTA DE ABREVIATURAS p. 07
LISTA DE GRÁFICOS E QUADROS p. 08
SUMÁRIO p. 09
INTRODUÇÃO p. 10
CONSIDERAÇÕES FINAIS p. 70
BIBLIOGRAFIA p. 76
INTRODUÇÃO
1
Projeto de Pesquisa: Centro de Memória da Amazônia: História e Demografia. Plano de Trabalho:
Casamento civil em Belém: perfil demográfico e histórico. Financiamento: Fundação de Amparo à Pesquisa
do Estado do Pará (FAPESPA). Orientação: Prof. Dr. Antonio Otaviano Vieira Junior (UFPA/CNPq).
11
2
FARIA, Sheila de Castro. A colônia em movimento: fortuna e família no cotidiano colonial. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1998, pp. 39.
3
ANDERSON, Michael. Elementos para a História da Família Ocidental (1500-1914). Lisboa: Editorial
Querco, 1984, pp. 10-11.
4
CASEY, James. A História da Família. São Paulo: Editora Ática, 1992.
5
Cf.: NAZZARI, Muriel. O século XIX (1800-1869). In: O desaparecimento do dote: mulheres, famílias e
mudança social em São Paulo, Brasil, 1600-1900. São Paulo: Companhia das letras, 2001, pp. 149-261;
BERNAND, Carmen e GRUZINSKI, Serge. Os filhos do apocalipse: a família na América Central e nos
Andes. In: BURGUIÈRE, André et alli (Orgs.). História da família. O choque das modernidades: Ásia,
África, América, Europa. Lisboa: Terramar, 1998, pp. 135-182; EHMER, Josef. Marriage. In: KERTZER,
David e BARBAGLI, Marzio (Orgs.). The History of the European Family: Family Life in the Long
Nineteenth Century (1789-1913). New Haven / London: Yale University Press, 2002, pp. 282-321. Em
síntese, estes autores salientam importantes mudanças na forma de se perceber e normatizar a família no
século XIX, no Brasil, na América Latina e na Europa. A evolução do individualismo e uma reconfiguração
do pacto matrimonial na São Paulo oitocentista, a liberalização da família nos Andes e na América Central, e
a mudança significativa da legislação, seja ela civil ou eclesiástica, referente à família, com a laicização do
casamento – Inglaterra (1837), Portugal (1867) e Espanha (1870) – e a instituição do divórcio – Inglaterra
(1857), Prússia (1875) e França (1884) – em várias partes da Europa, evidenciam, certamente, uma “nova
família” no século XIX.
12
6
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit., pp. 149-261.
7
SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira. São Paulo: Brasiliense, 2004, pp. 58.
8
BACELLAR, Carlos de A. P. Uso e mau uso dos arquivos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (Org.). Fontes
Históricas. São Paulo: Contexto, 2008, pp. 74.
9
Cf.: Decreto nº. 1.144, de 11 de setembro de 1861.
13
trinta dias após o casamento10. Em 1890, o casamento civil fora instituído no Brasil como
a única forma legal de casamento, a partir de então11. Entretanto, apesar da diferença de
esferas, o casamento civil não significou, pelo menos num primeiro momento, uma ruptura
completa da lógica anterior12.
As mudanças na lógica interna e na legislação normatizadora da família, ao longo
dos Oitocentos, nos ajudam a problematizar determinadas questões, dentre elas: como
foram os casamentos, em Belém, no início do século XX? Qual era o papel dos pais, dos
maridos e das esposas? Qual era o perfil demográfico dos nubentes? Quais eram os
arranjos familiares mais comuns? De que forma os valores morais da época se faziam
presentes e poderiam influenciar na escolha dos cônjuges? Essas são algumas das
discussões que se seguem nas próximas páginas. Mas, afinal, o que é o casamento?
O casamento, enquanto um evento vital, relaciona um acontecimento específico (o
ato de casar-se) com o sistema simbólico no qual está inserido. Assim sendo, o casamento,
mesmo o civil, é mais que um registro: é um evento imbricado por subjetividades, normas
sociais e valores morais. Além disso, em grande parte dos casos, evidencia um momento
importante na vida familiar: a saída do Lar paterno-materno e a criação de outro, pautado
pela nova unidade conjugal que se forma. Dentro dessa unidade conjugal há papéis
familiares de gênero associados ao marido e à esposa. Ele, na condição de provedor e
mantenedor do Lar, tanto no sentido econômico, quanto moral. Ela, por sua vez, no papel
de boa esposa, mãe e dona-de-casa. Obviamente, isso é somente uma idealização do
casamento, existente dentro de uma multiplicidade de outras experiências.
Para a análise do casamento, a discussão de gênero mostrou-se imprescindível.
Inicialmente, a utilização dessa categoria pela historiografia decorreu da necessidade de
pensar-se na diferença comportamental e social entre homens e mulheres como uma
construção histórica, que definiria as relações entre indivíduos e grupos sociais13. Por sua
vez, as relações de gênero caracterizam-se por serem, antes de qualquer coisa, relações de
poder, que são reescritas e reinterpretadas a cada novo contexto histórico14. A reflexão
10
Cf.: Decreto nº. 5.604, de 25 de março de 1874.
11
Cf.: Decreto nº. 181, de 24 de janeiro de 1890.
12
Não estou me referindo, obviamente, às obrigações religiosas para casar-se catolicamente. Minha
observação é centrada nas características principais de ambos, a exemplo da idade mínima, dos requisitos e
dos impedimentos para o casamento. Para o aprofundamento da discussão sobre a família na passagem dos
casamentos e divórcios católicos para os civis, cf.: SAMARA, Eni de Mesquita. A família brasileira, op. cit.,
pp. 68-81.
13
SCOTT, Joan. História das mulheres. In: BURKE, Peter (Org.). A escrita da História: novas
perspectivas. São Paulo: Editora da UNESP, 1992, pp. 90.
14
SCOTT, Joan. Gender: a useful category of historical analysis. In: The American Historical Review,
Vol. 91, n. 5 (Dec. 1986), pp. 1074.
14
sobre a existência de papéis familiares de gênero como parte integrante das próprias
experiências de conjugalidades foi importante principalmente no sentido de ajudar-nos a
mais bem compreender os discursos sobre o casamento e seu perfil demográfico. Os papéis
familiares associados ao masculino e ao feminino, e, portanto, ao marido e à esposa,
constituíram grande parte de nossas análises.
Assim como a família, o casamento também é um tema bastante controvertido,
pois são inúmeros os conceitos e definições relativos a ele. A análise de um corpo
documental vasto, composto por variadas tipologias documentais, certamente evidenciará
muitas dessas experiências de conjugalidade. Para os católicos, o ideal de casamento muito
possivelmente seria aquele sacramentado por sua fé. Para os protestantes, idem. Algumas
pessoas podem pensar que o ideal de casamento é o registro civil, enquanto outras talvez
acreditem que o casamento formal não é necessário. As noções de casamento são inerentes
a cada grupo social e ao contexto histórico no qual estão inseridas. Portanto, é incorreto
dizermos que a noção de casamento presente em determinado período é essa ou aquela; ao
contrário, devemos considerar as noções de conjugalidade em sua multiplicidade. Mas, isso
não significa que não haja uma idealização da relação conjugal.
A historiografia brasileira, ao longo do século XX, produziu muitos trabalhos
sobre a família e o casamento. Em cada momento, ambos foram vistos de formas
diferenciadas pelos historiadores. Se não podemos definir somente uma noção de
casamento associada a determinado período, podemos refletir sobre as formas pelas quais
os historiadores analisavam a família. A idéia de uma família patriarcal, a revisão do papel
social associado às mulheres e os estudos sobre a sexualidade são algumas das questões
que nos ajudam a refletir acerca da produção historiográfica brasileira sobre a família.
Aqui, nosso interesse é, em diálogo com a historiografia, perceber de que forma o estudo
sobre o casamento se modificou ao longo do tempo.
Nos anos 1920, 30 e 40 encontram-se as matrizes ideológicas de um pensamento
que iria vigorar por décadas acerca da natureza, estrutura, importância, função e conceito
de “família brasileira”15. A grande referência desse período foi o clássico Casa-Grande e
Senzala, de Gilberto Freyre. Essa obra, que influenciou marcantemente os trabalhos
subseqüentes, introduziu o conceito de “família patriarcal”: uma organização familiar
formada por um núcleo central (o marido, a esposa e a prole legítima) e por membros
subjacentes (parentes, afilhados, expostos, serviçais, amigos, agregados e escravos) que,
15
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento – São Paulo, século XVII. Bauru/SP: Edusc,
2003, pp. 17.
15
entre si, interagiam sob uma relação centralizadora mediada pelo patriarca da família. A
família extensa e patriarcal e suas múltiplas relações seriam, para Freyre, um dos alicerces
principais da sociedade colonial brasileira16.
Nas décadas de 1950 e 1960, alguns estudos revisionistas, a exemplo do ensaio
clássico de Antonio Candido17, voltaram sua atenção às especificidades regionais e para
uma análise diacrônica da família brasileira, ou seja, considerando mudanças e
permanências em sua estrutura e organização, ao longo do tempo. O papel social da mulher
foi revisitado com a apreensão de sua interação com a família e a sociedade, apesar de a
idéia de patriarcalismo ainda se fazer presente. O revisionismo da idéia de família
brasileira, construído paulatinamente, encorpou-se na década de 1970, quando os
historiadores “redescobriram” a família enquanto objeto de análise, a partir de novos
enfoques, da pesquisa em outros corpos documentais e do auxílio da demografia histórica
como ferramenta metodológica de análise.
Essa tendência revisionista, presente nos anos 1970, revigorou-se na década
posterior. Novas pesquisas, realizadas através de uma perspectiva multidisciplinar18 cada
vez mais presente, ampliaram os objetos de análise a reflexões acerca da mulher, da
criança, da sexualidade, da educação etc. À época, os trabalhos sobre a família brasileira
passaram a ser, pouco a pouco, substituídos por tentativas de visões conjunturais, com a
preocupação de comparar regiões do Brasil entre si e, inclusive, com outras partes da
América Latina19. Desse modo, os estudos realizados nas décadas de 1970 e 1980, no
Brasil, marcaram definitivamente a produção historiográfica mais recente sobre a família
brasileira. Doravante, seria impossível pensarmos, para o Brasil, um sistema familiar uno e
homogêneo, ao longo de nossa história.
Até o momento, nossas discussões serviram para apresentar o problema deste
trabalho e para refletirmos conceitualmente sobre o casamento. Em síntese, verificamos as
mudanças ocorridas na lógica interna e na legislação sobre a família, durante o século XIX.
Demonstramos que nos Oitocentos houve uma reconfiguração do pacto matrimonial, em
16
Cf.: FREYRE, Gilberto. Casa-Grande e Senzala: formação da família brasileira sob o regime da
economia patriarcal. São Paulo: Global, 2006.
17
Cf.: CANDIDO, Antônio. The Brazilian family. In: SMITH, T. Lynn; MARCHANT, Alexander (Ed.).
Brazil: portrait of a half continent. New York: Dryden Press, 1951, pp. 291-312.
18
Trabalhos teóricos como os de GOODE (1964), RABB (1973) e MICHEL (1974) associaram os estudos
sobre história da família a demais ciências sociais como, por exemplo, a antropologia, a sociologia, a
demografia e a psicologia. Cf., em especial, HAREVEN, Tamara K. The history of the family as an
interdisciplinary field. In: RABB, Theodore (org.). The family in History. New York: Harper Torchbooks,
1973, p. 211-226.
19
SAMARA, Eni de Mesquita. Família, mulheres e povoamento, op. cit., pp. 22.
16
que o sustento do casal passou a depender muito mais da profissão e dos negócios do
marido, num contexto em que o casamento adquiria um caráter mais particular e afetivo.
Além disso, salientamos que os casamentos devem ser analisados levando-se em
consideração o universo simbólico no qual estão inseridos, e os papéis familiares de gênero
e os valores morais a eles associados. A partir de agora, cabe-nos apresentar a metodologia
adotada e o contexto histórico no qual se inserem nossas discussões posteriores. Porém,
antes mesmo de discutirmos ma metodologia adotada neste trabalho, é importante tecermos
algumas considerações sobre os corpos documentais utilizados.
Para esta pesquisa, consultamos os acervos do Centro de Memória da Amazônia
(CMA/UFPA), do Arquivo Público do Estado do Pará (APEP) e da Fundação Cultural
Tancredo Neves (CENTUR). Os documentos pesquisados foram processos de casamento
civil, licenças para casamento, suprimentos de consentimento paterno e processos-crime
(CMA/UFPA); ocorrências policiais (APEP), periódicos e obras literárias (CENTUR).
Cada um desses documentos exigiu a utilização de recursos metodológicos apropriados.
Ateremo-nos, mais especificamente, aos registros de casamento civil e aos processos cíveis
de Licença para casamento e Suprimento de consentimento paterno, que foram a
documentação privilegiada neste trabalho. Isso sem esquecermo-nos, obviamente e em
especial, dos jornais.
Os casamentos que pesquisamos constituem parte do acervo do CMA/UFPA. Para
esta pesquisa foi coletada uma série composta por 5.792 registros. De cada um desses
registros, coletamos: o nome, a nacionalidade, a naturalidade, o endereço completo, a
profissão, o estado civil, a idade ao casar, a (i)legitimidade e nome dos pais dos nubentes.
O processo de coleta foi realizado com o auxílio da demografia histórica20 como
20
Segundo Volpi Scott (2004), os avanços teórico-metodológicos de uma historiografia da família, ocorridos
nas últimas décadas, estão ligados ao desenvolvimento dos métodos de análise quantitativa e, principalmente,
da demografia histórica, que forneceram elementos para uma “nova história da família”. A demografia
histórica surgiu na França, na década de 1950, através de uma proposta, por parte de Louis Henry e Michel
Fleury, de coletar e analisar sistematicamente registros paroquiais do país, com vistas a reconstituir a história
de famílias francesas de diversas comunidades. Os recursos da demografia histórica possibilitaram aos
historiadores da família ferramentas que propiciaram análises como: a noção de mudanças no comportamento
populacional de uma sociedade, a mobilidade, a fertilidade, o controle de nascimento, a mortalidade infantil e
a lógica dos arranjos familiares e da organização domiciliar. Para Sheila Faria (1997), o estudo sobre família
tornou-se sistemático com o auxílio da demografia histórica – embora haja críticas sobre o método
essencialmente empírico da demografia. Esta “sistematização” propôs revisões, novas abordagens e
percepções, demonstrando-se que organização familiar varia em função do tempo, do espaço (com destaque
para as especificidades regionais) e, também, dos diferentes grupos sociais analisados, como uma estrutura
social importante para compreendermos a interação entre o indivíduo e a sociedade, influenciando diversas
gerações de historiadores brasileiros a partir de pelo menos a década de 1970 – esses inspirados
essencialmente pelas contribuições de Peter Laslett e do Cambridge Group for the History of Population and
Social Structure. Inclusive, de acordo Michael Anderson (1984), a abordagem demográfica consubstancia-se
17
numa das principais vertentes de estudos sobre a família no Ocidente, juntamente a uma abordagem “dos
sentimentos” e a outra sobre a família como uma unidade de produção doméstica.
21
NADALIN, Sergio Odilon. História e Demografia: elementos para um diálogo. Campinas/SP: ABEP,
2004, pp. 81-101.
22
Cf.: LUCA, Tânia Regina de. História dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi
(Org.). Fontes Históricas, op. cit., pp. 111-154.
18
econômicos e (por que não?) afetivos e morais, visto que os aspectos sociais que permeiam
as experiências familiares são analiticamente indissolúveis desses nexos23. Portanto, ao
estudarmos determinadas famílias precisamos conhecer muito bem o contexto histórico no
qual estão inseridas. Agora, cabe-nos indagar: afinal, o que era Belém, entre o final do
século XIX e o início do XX?
A Belém do início do século XX era uma cidade cosmopolita, centro de influência
regional do que hoje chamamos Amazônia. Sua localização estratégica e a importância de
seu porto, aliadas à intensa dinâmica e aos excelentes resultados que a borracha trazia à
economia paraense, mudavam paulatinamente a estrutura e o cotidiano da cidade desde
pelo menos a primeira metade do século XIX. Concomitantemente, Belém se expandia em
variadas direções: estrutura demográfica, delimitação espacial, importância geopolítica,
econômica e cultural para toda a região. Uma cidade, que há um século era cercada por
florestas densas e cortada por igarapés, tornara-se o coração social, político, econômico e
cultural da Amazônia24.
Para este trabalho, dois pontos ganham destaque: o crescimento demográfico e o
processo de modernização da cidade. Ambos marcaram todo o contexto ao qual nos
referimos, acentuando-se, principalmente, a partir da década de 1870. A vinda maciça de
migrantes, em especial de “nordestinos” e europeus (portugueses e espanhóis), e o
processo de modernização da cidade consubstanciam a idéia de Belém como uma capital
regional: “um centro de vida própria, mas interligado aos mercados exteriores e a sua
região com ‘uma animação e progresso’ como não se conhecia pela Amazônia”25. Em
Belém, assim como em outras cidades da nascente República brasileira26, assistia-se à
transformação do espaço público, do modo de vida, à propagação de uma nova moral e à
montagem de uma nova estrutura urbana, cenário de controle das classes pobres e do
aburguesamento de uma classe abastada27.
Na virada do século, a cidade estava no auge de seu desenvolvimento econômico,
contando com mais de trinta fábricas que produziam desde sabão até uma litografia, além
de um movimentado setor de construção civil; o que nos dá noção de sua importância
23
Cf.: HOBSBAWM, Eric. Da história social à história da sociedade. In: Sobre História. São Paulo:
Companhia das Letras, 2005, pp. 83-105.
24
PENTEADO, Antonio Rocha. Belém: estudo de geografia urbana (v. 1). Belém: Editora da UFPA, 1968.
25
Ibidem, pp. 130.
26
Sobre um texto mais aprofundado acerca do nascimento da República no Pará, cf.: FARIAS, William Gaia.
A construção da República no Pará (1886-1897). (Tese) Programa de Pós-Graduação em História.
Niterói/RJ: UFF, 2005.
27
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912). Belém/PA: Paka-
Tatu, 2002, pp.13.
19
comercial na região28. Em 1900, Belém já contava com 96.560 moradores, e esses números
cresciam progressivamente, tendo a população da cidade chegado, em 1920, a 236.402
pessoas29. Uma preocupação com uma reordenação do espaço público, já em voga naquele
período, intensificou-se com a vinda destes migrantes “nordestinos”30. A migração, que se
acentuara na segunda metade do século XIX, causou um grande impacto na estrutura
demográfica da cidade. Inclusive, em alguns momentos, a quantidade de casamentos entre
migrantes “nordestinos” chegou a superar as uniões entre paraenses, em regiões de
ocupação mais recente da cidade, a exemplo da Paróquia de Nazaré31. As transformações
na lógica interna e da legislação referente à família, em diálogo com um contexto histórico
específico, incidiram diretamente nos resultados a serem discutidos neste trabalho. Estes
primeiros aspectos, abordados ao longo desta Introdução, serão esmiuçados no decorrer de
nossos três capítulos.
No primeiro capítulo, investigamos o momento imediatamente anterior ao
casamento, através da discussão do exercício legal do pátrio poder e das estratégias
adotadas pelos nubentes para burlarem-no. A partir de uma análise centrada especialmente
nos discursos dos pais, dos nubentes e de eventuais testemunhas, buscamos apreender as
noções de família, as experiências de conjugalidade e os papéis familiares de gênero
associados ao casamento. Foram utilizados processos cíveis de Licença para casamento e
de Suprimento de consentimento paterno. As reflexões evidenciam a preocupação com o
provento ao Lar – o que refletiu a grande preocupação com as profissões exercidas pelos
pretendentes – e com a moralidade do casal.
O segundo capítulo consiste na delineação dos perfis demográficos dos nubentes
que se casaram civilmente em Belém, entre 1908 e 1925, a partir da análise de uma série
completa composta por 5.792 registros. Investigamos as origens (nacionalidade a
naturalidade), as ocupações, as idades ao casar, o caráter de (i)legitimidade e o estado civil
dos noivos, com o auxílio da demografia histórica como ferramenta metodológica de
análise. Em diálogo com a perspectiva quantitativa, utilizamos também processos de
Licença para casamento e obras literárias do período. As discussões desse capítulo
28
SARGES, Maria de Nazaré e LACERDA, Franciane Gama. Uma cidade quase quatrocentona: Belém,
suas histórias e sonhos. In: Rev. Cult. do Pará, v. 17, nº 2, Jul/Dez 2006. p. 149-162.
29
IBGE. Sinopse do recenseamento de 1920. Rio de Janeiro: Tipografia de Estatística, 1926.
30
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque, op. cit.
31
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha (Belém – 1870-
1920). (Tese). Programa de Pós-Graduação em História Econômica da Universidade de São Paulo. São
Paulo: Universidade de São Paulo, 2006.
20
Este capítulo tem por objetivo refletir acerca da dinâmica das relações de pátrio
poder, em Belém, durante o início do século XX. Através da análise dos discursos
presentes nos casamentos e em autos de Licença para casamento e Suprimento de
consentimento paterno, almejamos investigar o momento de construção de uma nova
unidade conjugal, em que as mulheres – e seu respectivo sustento – saem da esfera
paterno-materna e ficam sob responsabilidade do marido, e em que os homens passam da
condição de filhos dependentes para provedores do Lar. A partir de agora, adentraremos
num contexto imediatamente anterior ao casamento (entendido, nesse caso, como o evento
de casar-se), analisando as falas de pais, mães, noivos e noivas. Sentimentos, opiniões
pessoais, noções de família e de casamento, discursos de gênero, “moralidade” e
“honestidade”... todos esses elementos compõem o universo de representações em torno do
casamento que os convido a conhecer.
Primeiras palavras...
32
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Barnabé Assunção Martins e requerida Teresa Santos. 1917.
22
Barnabé Martins e Hilda de Andrade enfim se casaram. Sua união legal, que
anteriormente carecia do consentimento paterno (esse exercido pela mãe, Teresa Santos,
visto que Hilda era órfã de pai), fora realizada em 10 de maio de 1917 no Cartório
Privativo de Casamentos de Belém33. Agora, após termos contado a breve história de
Barnabé e Hilda, que acompanhamos desde o pedido da mão da nubente à consumação do
casamento propriamente dito, cabe-nos destacar e discutir elementos implícitos no
processo judiciário que Barnabé entrou contra Teresa Santos, com vistas a refletirmos
sobre o estatuto legal do pátrio-poder e, nesse caso, as estratégias adotadas por Barnabé e
Hilda para, com amparo da Lei, terem conseguido suprir o não consentimento de Teresa
Santos a seu casamento. Nesse sentido, faremos uma breve exposição do estatuto jurídico
do pátrio-poder (doravante chamado de poder familiar) no Código Civil de 1916, vigente à
época do processo que temos acompanhado inicialmente.
Conforme o Código Civil de 1916, o exercício legal do pátrio-poder, no tocante
ao casamento, seguia uma instrução etária, ou seja, os pais só tinham direito de influir
legalmente na escolha dos cônjuges dos filhos caso esses fossem menores de idade (a
maioridade no período era de 21 anos) e não previamente emancipados. Além disso, caso o
33
CMA/UFPA. Cartório Privativo de Casamentos. Casamento de Barnabé Assunção Martins e Hilda de
Andrade. Maio de 1917.
23
filho fosse legítimo, o pátrio-poder se exerceria preferencialmente pelo pai, sendo dever da
mãe apenas quando o nubente era órfão de pai ou filho natural34. O código civil de 1916
praticamente manteve inalteradas as disposições do decreto 181, de 14 de janeiro de 1890
– que promulgou o casamento civil no Brasil e regulou, pela primeira vez na República, a
questão do poder paterno no tocante ao casamento. O decreto previa a idade mínima de
casamento para homens e mulheres como sendo, respectivamente, 16 e 14 anos. O
casamento antes das idades mínimas era permitido apenas em algumas ocasiões, a exemplo
de “reparar o mal” de um crime de estupro; mas, nesse caso, os nubentes poderiam viver
em separação de corpos até alcançarem a idade mínima permitida, conforme determinação
do Juiz de Órfãos. As poucas alterações que ocorreram entre o decreto 181 e o Código
Civil de 1916 foram relativas ao aumento da idade mínima do casamento (a partir de 1916,
18 e 16 anos para, respectivamente, homens e mulheres) e regulamentação situações e de
mecanismos que elidiriam o exercício do pátrio poder, doravante denominado Poder
Familiar35.
Portanto, pelo fato de Hilda ter se casado com 16 anos de idade, fora necessário
que seu pretendente entrasse no Juizado de Órfãos com uma ação de Suprimento de
consentimento para casamento36, a fim de conseguir a devida autorização para casar-se. O
processo de Barnabé Martins, que começa a poder ser mais bem compreendido do ponto de
vista legal, continuará inicialmente a nos servir de exemplo e ponto de partida para nossas
discussões. Assim sendo, podemos partir para outras reflexões, quais sejam, o exercício
legal do pátrio-poder por parte dos pais e as estratégias adotadas pelos nubentes para
burlarem-no. Para tal, daremos atenção especial aos discursos das testemunhas, justamente
34
Código civil quadro comparativo 1916/2002. Brasília: Senado Federal, Subsecretaria de Edições Técnicas,
2003. p. 411-460.
35
Delineando a idade mediana de casamento por sexo, encontramos que os homens se casavam pela primeira
vez em média entre os 20 e os 34 anos; enquanto as mulheres, com entre 15 e 30 anos. Esse é dado muito
importante, pois possibilita-nos concluir que o pátrio poder do século XX, ao contrário dos séculos
anteriores, incidia principalmente sobre as mulheres, em especial as filhas mais novas, numa tendência que se
encorpa a partir do final do século XIX (NAZZARI, 2001). Ao todo, apenas 298 homens estavam sujeitos ao
pátrio poder. Quanto às mulheres, este percentual era significativamente maior: em 2.240 casos, as nubentes
estavam sob pátrio poder. O que significa dizer que, em aproximadamente 1/3 dos casamentos, as nubentes
necessitariam ou da autorização paterno-materna, ou do consentimento por via judicial para se casarem.
36
Suprimento para consentimento e Licença para casamento são ações de natureza cível produzidas no
Juizado de Órfãos. Geralmente são solicitados pelos nubentes como forma de possuírem um mecanismo legal
que elida o consentimento paterno e autorize o casamento. Em sua maioria são processos curtos, bastante
sucintos e que se limitam à petição inicial e aos testemunhos dos envolvidos no imbróglio. Ressaltamos,
todavia, que a Licença para casamento era comumente usada em casos de órfãos de ambos os pais, não
sendo uma “afronta” ao poder paterno como o Suprimento de consentimento propriamente dito, que em
alguns casos se desenrolava contrariamente ao desejo de ambos os pais.
24
por serem um rico indicador que nos permite recuperar sociabilidades e pequenos atos
cotidianos do passado37.
Após o depósito de Hilda na casa de seu tutor provisório, Teresa Santos foi
convocada pelo Juiz de Órfãos para esclarecer os motivos que tinha para não consentir com
o casamento de sua filha e Barnabé Martins. Teresa argumentou “que não consente no
casamento de sua filha Hilda com o requerente porque este vive maritalmente, há dez anos,
com uma mulher com a qual tem dois filhos; que sabe disso porque são vizinhos”38. Em
contrapartida, Hilda afirmou que sua mãe estava equivocada. Admitiu que Barnabé
realmente vivera por vários anos com uma mulher com quem teve dois filhos, mas
asseverou que esse relacionamento já havia acabado e que, mesmo sabendo da oposição de
sua mãe, desejava casar-se com Barnabé. Mais adiante, Hilda seria ainda mais enfática, ao
dizer que por sofrer coações morais e físicas não voltaria ao lar de sua mãe no estado de
solteira39.
É interessante percebermos a lógica intrínseca nos depoimentos de Hilda de
Andrade e Teresa Santos. É plausível pensarmos, inclusive, que ambas foram instruídas no
que depor, pois seus argumentos incidem diretamente naquilo que poderia convencer o
Juiz de Órfãos a dar ganho causa a uma ou a outra. Teresa Santos, enquanto mãe e no
direito de exercer o pátrio poder legal, não consentia que sua filha casasse com alguém que
mantinha relações maritais com uma mulher com quem já tinha dois filhos, e afirmara que
essa união persistia e que sabia disso porque era vizinha de Barnabé. Hilda,
diferentemente, seguia outra linha de raciocínio, desmentindo sua mãe quanto à existência
atual de uma união de Barnabé com outra mulher e afirmando que vivia seqüestrada,
sofrendo coações físicas e morais tanto por parte de sua mãe quanto de seu irmão, cujo
nome não foi citado. Há de destacar-se também a participação ativa de Hilda no desenrolar
do processo, defendendo suas convicções e seus interesses pessoais em detrimento
daqueles de sua mãe e de seu irmão, ou seja, de sua família.
Hilda e Barnabé muito possivelmente se conheceram e iniciaram namoro na Rua
Caripunas, onde moravam. Em Belém, no início do século XX, o casamento entre vizinhos
ou coabitantes foi representativo, chegando a aproximadamente 15% do total de uniões
ocorridas. Em outras palavras, esse dado evidencia a vizinhança enquanto um importante
espaço de sociabilidade para a formação de casais. Entretanto, ela – a vizinhança – não
37
BACELLAR, Carlos de Almeida Prado. Uso e mau uso dos arquivos, op. cit., pp. 37.
38
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Barnabé Assunção Martins e requerida Teresa Santos. 1917. p. 4.
39
idem, p. 6-7.
25
pode ser vista apenas como um espaço de “sociabilidade amorosa”, mas também como um
lócus de controle e vigilância. Os vizinhos eram testemunhas preferenciais e das mais
requisitadas para deporem sobre o comportamento “moral” dos envolvidos em processos
judiciais40. Ao afirmar que tinha ciência da existência de uma união consensual de Barnabé
com outra mulher, Teresa afiançava seu testemunho salientando que sabia disso porque
eram vizinhos.
A participação de Hilda, uma menor e órfã de pai, na luta de seus interesses
denota a que ponto o individualismo, em construção e consolidação em séculos anteriores,
faz-se presente no início do século XX, assim como atenta-nos para o fato da existência de
uma nova configuração do próprio pacto matrimonial, em que o casamento se apresenta
muito mais como uma relação particular entre duas pessoas do que como uma aliança
familiar41. Em contrapartida, a opinião de sua mãe, Teresa Santos, pode nos levar a pensar
que o patriarcalismo – agora reconfigurado e contextualizado – e noções de honra e
honestidade teriam, a sua maneira, sobrevivido ao tempo e se mantido presentes pelo
menos na primeira metade do século XX42. Porém, antes de adensarmos nossas discussões
sobre o exercício do pátrio poder e as estratégias adotadas pelos cônjuges para burlarem-
no, analisemos mais um caso: a história de Benedito Tiago Cardoso e Aurélia de Sousa
Nunes.
Aurélia de Sousa Nunes, sentindo-se desamparada por seu pai, José Vieira Nunes,
e com o desejo de casar-se com Benedito Tiago Cardoso, compareceu ao Juizado de
Órfãos entrando com uma ação de Suprimento de consentimento para casamento. Aurélia
argumentava que seu pai resolveu não mais consentir em seu casamento com Benedito
Cardoso na última hora, mesmo com os papéis e os procedimentos burocráticos para o
casório já em andamento. Além disso, afirmava que sua intenção de se casar deveria ser
louvada e era merecedora de aplausos da sociedade, visto que ela não queria mais estar
sujeita a freqüentar, entre dez e onze horas da noite, tendas de café repletas de indivíduos
desclassificados, entregando-se assim de vez à prostituição. Assim sendo, Aurélia esperava
40
CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e dissimuladas: as relações amorosas das mulheres das camadas
populares na Belém do final do século XIX e início do XX. (Dissertação). Programa de Pós-Graduação em
Antropologia Social da Universidade Estadual de Campinas. Campinas/SP: UNICAMP, 1997, p. 17.
41
Cf.: NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit., 2001.
42
Cf.: CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro
(1918-1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura,
2000.; ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de
Janeiro da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
26
o amparo judicial para de casar, constituir uma família digna e honesta, e não ter mais que
se sujeitar a situações constrangedoras43.
A petição inicial do processo de Aurélia Nunes narra uma história comovente:
uma jovem de 20 anos de idade fora a justiça lutar por sua dignidade, honra e honestidade.
Porém, ao adentrarmos nos depoimentos do processo e dependendo do ponto de vista com
que analisemos o caso, podemos entender que a história não era tão bela assim, mas que
possui elementos que nos subsidiam boas reflexões. Em seu testemunho, José Nunes
afirmava que:
Aurélia. Com tantos argumentos contrários à pessoa, aos bons costumes e até mesmo ao
caráter de Benedito Cardoso, suporíamos que certamente Aurélia Nunes desistiria de seu
casamento... contudo, como veremos agora, sua opção foi outra. Em seu testemunho,
Aurélia confirmava que Benedito era casado religiosamente, ratificando, todavia, que o
casamento religioso não possuía amparo legal do Brasil, ou seja, que Benedito era livre e
solteiro para casar-se.
A partir do momento em que o casamento civil foi instituído no Brasil, em
meados de 1890, ele constituiu a única forma legal de se legitimar uma união perante o
Estado. O casamento religioso católico, doravante, era apenas facultativo e deveria ser
realizado preferencialmente após a cerimônia civil. Esse contexto de implementação do
casamento civil no Brasil foi marcado por intensos debates, em diversas regiões do país45.
Em Belém, não era incomum, inclusive, que as pessoas procurassem pelas duas formas de
casamento. Em nossa pesquisa, concentrada em registros civis, encontramos dezessete
referências de casais que declararam terem casado anteriormente na Igreja. Com o passar
do tempo, essa tendência foi sendo amenizada. Em 1909, houve cinco casos nesse sentido,
contra apenas um em 1925.
Durante a década de 1890, quando em determinados momentos o casamento civil
deveria ser obrigatoriamente realizado antes do religioso, a ordem dos casamentos se
invertia, como no caso de Antonio Mendes Costa e Raimunda Apolinária dos Santos, que
“sendo casados civilmente, como verdadeiros filhos da Igreja não consideram legitimado o
casamento”46. Legalmente, apenas o casamento civil era reconhecido. Entretanto,
moralmente, esse reconhecimento poderia ser relativizado. Essa questão é pertinente ao
caso de Aurélia Nunes e Benedito Cardoso. Ele, sendo casado religiosamente, era
legalmente solteiro (ou viúvo, caso fosse casado em segundas núpcias). Mas, moralmente,
qual seria a sua condição conjugal? Pelo menos na opinião de José Nunes, pai de Aurélia,
ele seria casado, o que inviabilizaria um novo casamento com sua filha.
Aurélia, porém, continuou argumentando a favor do suprimento judicial do
consentimento de seu pai, necessário ao casamento. Ela afirmava “já ser” de Benedito e
que sabia que seu pai mudara de opinião por influência de um membro de sua família que
45
Cf.: CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit.;
SILVA, Maria da Conceição. Catolicismo e casamento civil na Cidade de Goiás. In: Revista Brasileira de
História. São Paulo, v. 23, nº 46, pp. 123-146, 2003.; SOUSA, Alina Silva. A família na República:
casamento civil e imprensa em São Luís na década de 1890. (Dissertação). Programa de Pós-Graduação em
História Social da Universidade de São Paulo. São Paulo: Universidade de São Paulo, 2008.
46
Cúria Metropolitana de Belém. Dispensa de Parentesco e Proclamas (1827-1900). Dispensa de Proclamas
em que foram requerentes Antonio Mendes Costa e Raimunda Apolinária dos Santos (Doc. 112). 1897.
28
tinha uma rixa com seu pretendente. Sendo ainda mais incisiva, declarou que se casaria
com Benedito de qualquer modo, nem que para isso tivesse que esperar sua maioridade
legal, e conseqüente emancipação, vivendo maritalmente com seu pretendente, sem a
formalidade legal que almejava através do casamento47 – lembremos que a partir de 1830,
no Brasil, os jovens que atingissem a maioridade (21 anos) eram automaticamente
emancipados e estavam aptos a casar, diferentemente do período colonial48. Ao afirmar “já
ser de Benedito”, Aurélia tencionava demonstrar ao Juiz que a liberação do casamento
seria a melhor solução, pois mesmo que o pedido de suprimento não fosse acatado, ambos
viveriam juntos, sem casar-se.
Após o desenrolar do processo, e não sabemos ao certo o porquê disto, José
Nunes desistiu de negar seu consentimento, autorizando o casamento de sua filha com
Benedito Cardoso. Contudo, ainda não encontramos o casamento de Benedito e Aurélia em
nossos registros pesquisados e não temos certeza se eles de fato se casaram ou se
separaram, ou ainda se Benedito e Aurélia resolveram viver maritalmente sem a
formalidade que desejam com o casamento civil.
47
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Aurélia de Souza Nunes e requerido José Vieira Nunes. 1930. p. 7-8/11.
48
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit., p. 165.
29
enveredam seus argumentos por brechas da Lei que permitem que se casem sem o
consentimento paterno, alegando que seus pais os submetiam à coação moral e física e,
especificamente para as mulheres, afirmando terem sido possuídas por seus pretendentes.
Façamos um pequeno parêntese.
As discussões deste capítulo se inserem num contexto específico do casamento.
Trata-se do momento em que os filhos saem do Lar paterno-materno para viverem como
uma nova unidade conjugal. A saída de um Lar para a criação de outro denota não apenas
uma mudança física e espacial, mas uma transformação nos papéis de gênero associados ao
novo casal. O marido e a esposa exercem, dentro de sua relação conjugal, papéis familiares
inerentes ao grupo social que pertencem, sob a influência de valores morais específicos49.
Na idealização da época, os homens assumiam o papel de provedores do Lar, enquanto as
mulheres seriam responsáveis por sua manutenção. Essa idealização, pautada numa moral
elitista, não necessariamente se aplicava às camadas populares, que apresentavam
cotidianos amorosos específicos; concernentes ao seu grupo social e aos valores morais a
ele associados.
A virada entre os séculos XIX e XX foi caracterizada, conforme já destacamos
anteriormente, por uma reconfiguração do pacto matrimonial, iniciada em meados dos
Oitocentos. Doravante, o sustento dos recém-casados passou a depender cada vez mais da
contribuição dos maridos, quer em bens, quer por seu emprego50. O provento ao Lar, ideal
de gênero associado ao masculino, interagia com a vigilância ao comportamento da esposa
na idealização de um “bom marido”. No tocante a nossa reflexão neste capítulo cabe ainda
destacarmos que as questões do provento e da vigilância ao lar deveriam passar, por assim
dizermos, de pais a maridos. Ao negarem o consentimento para o casamento de seus filhos,
os progenitores alegavam comumente os “maus procedimentos” dos pretendentes. No caso
de pretendentes homens, a incapacidade de prover ao lar era o cerne da argumentação.
Os argumentos dos pais geralmente colocavam em questão os procedimentos dos
pretendentes de seus filhos. Especificamente para o caso de pretendentes homens, os pais
comumente alegavam também que aqueles não seriam capazes de sustentar suas filhas;
além disso, os argumentos paternos poderiam incidir sobre suas próprias filhas, ao
afirmarem que elas ainda não têm maturidade para casar e/ou que ainda não estão aptas a
desempenhar as atividades do lar. Nesse sentido, destacamos seis pontos que se fazem
49
Cf.: SAMARA, Eni de Mesquita. Casamento e papéis familiares em São Paulo no séc. XIX. In: Cad.
Pesq. São Paulo: 1981. pp. 17-25.
50
NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit., p. 211.
30
51
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Alfredo Rodrigues Cid e requerido José Rodrigues Alves. 1920.
31
acusava o pretendente de sua filha de tê-la seqüestrado52. Diante de tantas acusações, qual
seria o teor do depoimento-defesa de Alfredo Cid? Mais da metade do testemunho de
Alfredo incidia na afirmação de que não era “vagabundo”, mas “trabalhador com profissão
honesta e definida”. Vejamos um exceto de seu depoimento:
52
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Alfredo Rodrigues Cid e requerido José Rodrigues Alves. 1920. p. 4-5(v).
53
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Alfredo Rodrigues Cid e requerido José Rodrigues Alves. 1920. p. 11-12.
32
54
Cf.: THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e Caçadores: a origem da Lei Negra. Rio de Janeiro: Paz e
Terra, 1997. O autor, a partir da análise das origens da Lei Negra na Inglaterra setecentista, apreende a Lei
como um palco de conflitos pautados pelas experiências sociais e culturais de diversos grupos sociais.
55
Os direitos e as obrigações dos pais relativamente aos filhos – que, quando insuficientemente cumpridos,
inibem o exercício legal do pátrio-poder – devem ser analisadas unicamente conforme sua historicidade e
especificidade contextual, apesar de comumente sofrerem poucas alterações num espaço reduzido de tempo.
Para uma reflexão sintética sobre obrigação dos pais com os filhos, cf.: LEBRUN, François. O sacerdote, o
príncipe e a família. In: BURGUIÈRE, André et al. História da família, op. cit., pp. 90-92; ANDERSON,
Michael. Elementos para a história da família ocidental, op. cit., pp. 58-61; ARIÈS, Philippe. História social
da criança e da família. Rio de Janeiro: LTC, 2006.
56
Código civil quadro comparativo 1916/2002, op. cit., p. 454-455.
33
estar sendo processado por qualquer crime; f) existência de qualquer impedimento legal; g)
a falta de recursos por parte do pretendente para a subsistência do casal, h) os maus
costumes provados e notórios da pessoa com quem a menor quer casar e i) os defeitos que
impedem o fim do casamento na pessoa do noivo57.
O parecer de Maurício Cordovil58, comparado à tendência geral das conclusões
de processo, nos ajudam a refletir determinadas questões sobre, afinal, quais argumentos
seriam mais eficazes na persuasão do Juiz de Órfãos. Cordovil, ao delinear os argumentos
que o fariam não conceder o suprimento de consentimento para casamento, nos indica algo
muito claramente: ele apenas não concederia o suprimento, caso os nubentes se
enquadrassem num dos elementos que ele apontara, ou seja, se o nubente fosse uma pessoa
de bons costumes, não possuindo características e comportamentos quaisquer que
denegrissem sua moral, o juiz certamente concederia o suprimento. Maurício Cordovil
apresentou um parecer semelhante em mais um processo – esse agravado pelo fato de ter
havido um defloramento – e, novamente, concedera o suprimento requerido. Os pareceres
de Maurício Cordovil, juntamente ao fato de que dos 29 processos que pesquisamos em
apenas dois houve, por parte do juiz, recusa de suprimento de consentimento e licença para
casamento, demonstram-no que, para o período pesquisado, havia a tendência de serem
supridos os consentimentos paternos, exceto quando houvesse alguma acusação séria e
comprovada que justificasse um não consentir por parte dos pais. Nesse sentido, podemos
afirmar que, do ponto de vista legal, os nubentes teriam o direito de escolher livremente
seus cônjuges.
Dos dois casos em que houve a recusa do suprimento por parte do Juiz de Órfãos,
um é de nosso conhecimento: um processo incompleto e diferente do caso analisado, em
que Benedito Cardoso entrara com um pedido de suprimento de consentimento para casar-
se com Aurélia Nunes59. É instigante percebermos que o processo de Benedito fora logo
inicialmente indeferido, enquanto que, quando Aurélia fora a requente, o processo teve a
57
CMA/UFPA. 1ª Vara Cível (Cartório Santiago). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requerente Maria de Nazaré Martins e requerida Isaura de Jesus Martins. 1936. p. 7-9.
58
Entendemos, obviamente, que a decisão do Juiz, apesar de ser embasada necessariamente na Lei vigente o
período em que julgada, reflete também as próprias experiências do juiz como ator social e sujeito histórico
ativo. Nesse sentido, ressaltamos que compreendemos que a decisão de Maurício Cordovil retrata unicamente
um caso e não a totalidade ou mesmo uma tendência geral das decisões nesse tipo de processo. Contudo, não
podemos descartar sua validade como um valioso registro histórico que resgata, com precisão e objetividade,
o que um juiz num caso, em determinado contexto, decidiu. Além disso, acreditamos que o diálogo entre seu
parecer e a tendência geral das conclusões dos processos consubstancia-se num rico indicador para nossas
reflexões e discussões.
59
CMA/UFPA. 1ª Vara Cível (Cartório Santiago). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requente Benedito Tiago Cardoso e requerido José Vieira Nunes. 1930.
35
continuidade que expusemos anteriormente, o que pode nos levar a pensar que o processo
de suprimento de consentimento era encarado mais seriamente quando o requente era o
filho dos pais que recusavam o consentimento, e não apenas seu pretendente. O outro caso
se insere numa das questões que discutimos anteriormente: o pretendente não possuía
recursos e era muito novo, então não poderia arcar com os custos de um processo judicial e
nem assumir as responsabilidades e os encargos de chefe e provedor de uma família.
60
Cf.: SAHLINS, Marshall. Estrutura e História. In: Ilhas de História. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor,
1990. pp. 172-194.
61
Cf. NADALIN, Sérgio Odilon. História e Demografia, op. cit., pp. 81-101.
36
Este capítulo tem por objetivo investigar, através da análise serial de 5.792
processos de casamento civil de Belém, o perfil demográfico dos nubentes, ao ponto em
que também almeja mapear as tendências gerais dos casamentos ocorridos na cidade, entre
1908 e 1925. O interesse é discutirmos o perfil daqueles que se casavam, por meio da
análise de sua origem, ocupação, idade, caráter de (i)legitimidade e estado civil. A partir
desse perfil, procuramos apreender a existência de casamentos endógamos (por origem), e
a tendência de variação da faixa etária e das ocupações exercidas, por gênero, bem como as
nuances da (i)legitimidade. Se no capítulo anterior nosso objetivo foi analisar a construção
de uma nova unidade conjugal através do estudo de discursos, agora iremos refletir sobre o
casamento (o evento), a partir do perfil dos nubentes.
Primeiras considerações...
mais interessada no casamento de sua filha, que para ela Nazaré havia morrido e que não
gostaria de ser mais importunada com o assunto. Ao término do processo, o suprimento foi
consentido e o casamento autorizado62. A história de Nazaré Martins, justamente um dos
casos em que o Juiz do processo fora o nosso já conhecido Maurício Cordovil, nos dá
sinais63 que, aparentemente inócuos, fazem parte de uma tendência maior de arranjos
familiares. As portuguesas que se casaram em Belém, entre 1908 e 1925, geralmente se
casavam com portugueses (80% o fizeram), diferentemente desses que, tendo migrado em
maior número, casavam-se na maioria dos casos com paraenses (50% dos casos);
tendências que, em si, justificam a preferência de Isaura Martins para o casamento de sua
filha. Nesse sentido, a preferência materna pelo casamento de Nazaré Martins com um
português não foi única e nem, muito menos, um caso isolado. Diferentemente, integrava
uma tendência de casamento em que a naturalidade poderia ser um fator determinante.
62
CMA/UFPA. 1ª Vara Cível (Cartório Santiago). Suprimento de consentimento para casamento, onde foi
requerente Maria de Nazaré Martins e requerida Isaura de Jesus Martins. 1936.
63
Cf.: GINZBURG, Carlo. Sinais: raízes de um paradigma indiciário. In: Mitos, emblemas, sinais:
morfologia e história. São Paulo: Companhia das Letras, 1989. p. 143-179.
64
CANCELA, Cristina Donza. Casamento e relações familiares na economia da borracha, op. cit., pp. 148.
65
SARGES, Maria de Nazaré. Belém: riquezas produzindo a Belle-Époque (1870-1912), op. cit., pp.136.
39
0
Brasil Portugal Espanha Itália Síria Outros
países
Gráfico II: Origem dos nubentes por sexo e naturalidade
3.500
3.000
2.500
2.000 Homens
1.500 Mulheres
1.000
500
0
Pará "Nordeste" Amazonas Outras regiões
Apesar de a grande maioria dos nubentes que se casaram em Belém, entre 1908 e
1925, ser brasileira e paraense, a considerável presença de pessoas de outras origens
evidencia não apenas a influência “nordestina” na reconfiguração dos padrões de
66
MARCÍLIO, Maria Luiza. Crescimento demográfico e evolução agrária paulista: 1700-1836. São Paulo:
Hucitec, Edusp, 2000. p. 18.
67
MORAES, Ruth Burlamaqui. Transformações demográficas numa economia extrativa: Pará (1872-1920).
(Dissertação). Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Curitiba:
Universidade Federal do Paraná, 1984, p. 117-118.
40
casamento na cidade, mas uma influência migrante. O fato de que menos da metade dos
homens que se casaram, em Belém, nesse período, era paraense de origem é sintomático
nesse sentido. É importante salientarmos que cada grupo (“nordestinos”, portugueses,
paraenses etc.) possuía padrões de casamento peculiares. Os “nordestinos” e as
portuguesas apresentavam um comportamento endógamo. Os portugueses (homens), por
sua vez, casavam-se especialmente com as paraenses. Estudos vêm sendo feitos no sentido
de analisar os padrões de casamento em Belém, entre o final do século XIX e o início do
XX, levando em consideração a análise de grupos de origens específicas68.
Outra característica importante na delineação dos padrões de casamento é a idade
ao casar. A idade média/mediana de casamento constitui um importante objeto de análise
para a história da família, principalmente quando associada a outros elementos, como a
ocupação e o estado conjugal; afinal, o grau de profissionalização e a quantidade de
núpcias estão diretamente relacionados à idade de casamento. Vejamos o gráfico abaixo,
onde aparecem as idades ao casar dos nubentes, distribuídas conforme as faixas etárias
adotadas no Recenseamento de 1920:
Maior de 65 anos
60-64 anos
55-59 anos
50-54 anos
Faixasetárias
45-49 anos
40-44 anos
35-39 anos
30-34 anos
25-29 anos
20-24 anos
15-19 anos
Menor de 15 anos
68
CANCELA, Cristina Donza. Casamentos, trajetórias amorosas e redes de sociabilidade de cearenses
em Belém (1870-1920). In: Trajetos (UFC), v. 5, p. 249-264, 2007; CANCELA, Cristina Donza e
BARROSO, Daniel Souza. A presença portuguesa em Belém: um olhar a partir do casamento (1891-
1920). Mimeo.
41
69
O divórcio (referimo-nos àquele que possibilita o recasamento) só foi instituído no Brasil, na década de
1970. Os casos encontrados de divórcio referem-se, portanto, a estrangeiros oriundos de países em que a
prática do recasamento, após o divórcio, era permitida. Nesse sentido, é importante destacar que o século
XIX, sob diversas perspectivas, foi marcado por uma nova forma de se perceber e normatizar a família.
Durante o Oitocentos, houve significativa mudança na legislação associada à família. A laicização do
casamento ocorreu na Inglaterra (1837), em Portugal (1867), na Espanha (1870) e no Brasil (1890). Ao
mesmo tempo, o divórcio fora instituído na Inglaterra (1857), na Prússia (1875), na França (1884) e, pouco
tempo depois, em Portugal (1910). Em todos os casamentos em que há divorciados envolvidos, constam
certificações do Consulado do País de origem do nubente, atestando que o recasamento, naquele caso, poderá
ser permitido. Cf.: EHMER, Josef. Marriage, op. cit.
42
70
Muriel Nazzari (2001) sustenta a tese de que o crescimento do individualismo, que tornou o pacto
matrimonial muito mais uma relação entre duas pessoas do que uma relação entre famílias, dinamizou a
estrutura interna do casal, deixando a família de ser uma unidade de produção e consumo para
exclusivamente uma unidade de consumo. Nesse sentido, com o desaparecimento do dote, a subsistência dos
novos casais passou a depender mais da capacidade de negociador e da profissão do marido do que
anteriormente era doado pelos pais de sua esposa. Assim sendo, houve uma valorização das profissões
liberais, o que, em si, aumentou o individualismo, visto que, donos de seu próprio sustento, os filhos
poderiam não mais seguir os desejos e as orientações paternas. Nesse sentido, a formação profissional e a
educação ganharam destaque ao longo dos Oitocentos.
71
CMA/UFPA. 2ª Vara Cível (Cartório Odon). Suprimento de consentimento para casamento, em que foi
requerente Raimundo Moreira da Silva e requerido Manoel Moreira da Silva. 1930.
43
principalmente, por dois motivos. Primeiro, pelo fato de que os responsáveis pelos
registros de casamento, a exemplo do que ocorria com os recenseadores do mesmo
período, não possuíam grande preocupação em descrever as atividades femininas. Em
segundo lugar, porque o modo de vida popular pressupunha, como veremos melhor
adiante, a presença da mulher em casa ou no magistério. Antes mesmo de adentrarmos nas
discussões sobre as atividades femininas, vejamos um quadro destas ocupações:
72
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo:
Brasiliense, 1995. p. 40.
46
73
PERROT, Michelle. A dona-de-casa no espaço parisiense do século XIX. In: Os excluídos da história:
operários, mulheres e prisioneiros. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1988. p. 213.
47
casavam em segundas núpcias. O que nos leva a pensar na possibilidade de essas mulheres
terem herdado um patrimônio, ou, ao menos, o controle de um patrimônio. As mulheres
proprietárias poderiam ser, portanto, induzidas a desempenhar, na ausência definitiva de
seus primeiros maridos, muitos “papéis masculinos”, incluindo a administração de bens e
propriedades74, o que justifica o fato de casarem-se em segundas núpcias preferencialmente
com homens com grau de instrução mais elevado ou que tivessem conhecimento de
atividades comerciais, a exemplo de advogados e comerciantes. Essa tendência evidencia a
preocupação das mulheres com seu patrimônio, ao ponto de procurarem cônjuges que,
numa eventual inexperiência administrativa sua, pudessem gerir seus pertences.
É também importante analisar a relação entre as mulheres e a educação. Essa
relação será analisada sob duas perspectivas. Primeiro, o magistério como uma atividade
exercida pelas nubentes. Em segundo lugar, a educação feminina como capital simbólico
para o casamento. Para tal, dialogaremos com outro tipo de fonte: os livros produzidos
entre o final do século XIX e o início do XX, que foram utilizados para a Educação Cívica
nas escolas primárias do Pará naquele período. Dentre os diversos livros produzidos com
esses fins, escolhemos, em especial, um: Noções de Educação Cívica, de autoria de Higino
Amanajás. Nossa escolha foi pautada pelo fato de o livro analisar a presença e a
importância da mulher para a construção de uma nova noção, agora sob as égides da
República. Partamos, agora, a nossas reflexões.
Higino Amanajás, em 1898, ressaltava a importância da relação entre as mulheres
e a educação. Em suas palavras: “[as mulheres] no magistério, em que sem dúvida são
superiores ao homem, quando se trata de ensinar crianças, tem ela ensejo, ou antes, tem
obrigação imperiosa de cumprir esse dever, que ainda mais a engrandece”75. Essa exaltação
ao magistério feminino compunha um manual a ser utilizado nas escolas primárias de todo
o Pará em que se discutiam os elementos da educação cívica republicana, ressaltando-se a
importância da mulher para a pátria, ora como mãe, ora como professora. O mesmo
Higino, em 1905, publicou outra obra nesse sentido. Dessa vez tratava-se de um romance
infantil intitulado Alma e Coração, também a ser utilizado nas escolas primárias do Pará
como leitura obrigatória. Novamente, embora com outro enfoque, o autor exaltava a figura
da mulher, agora principalmente como mãe. Além disso, destacava também o papel da sala
74
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. Quotidiano e poder, op. cit., p. 56.
75
AMANAJÁS, Hygino. Noções de educação cívica: para uso das escolas primarias do Estado do Pará.
Belém: _, 1898. p. 110.
48
de aula como um espaço em que se ensinava aos alunos a serem cidadãos honrados,
respeitosos e de bons costumes76.
Entre 1908 e 1925, o magistério feminino era exercido, no momento do
casamento, por uma pequena parte das mulheres que pesquisamos. Conforme percebemos,
sua importância possuía destaque na República e poderíamos vê-lo, inclusive, como uma
forma de trazer a mulher às idéias republicanas, num contexto em que, como ressalta
Higino Amanajás: “apesar de não ser chamada ao exercício dos direitos políticos, tem
deveres sacratíssimos com a sua pátria”77. Num contexto histórico e social em que as
mulheres legalmente não poderiam exercer seus direitos políticos, elas deveriam ajudar na
formação, tanto como mães quanto como professoras, daqueles que poderiam exercê-los:
seus filhos e alunos.
A educação feminina não estava limitada ao magistério, visto que,
concomitantemente, ela servia como capital simbólico para se arranjar um bom casamento,
mesmo quando as mulheres ainda eram estudantes. As diplomadas e professoras da Escola
Normal eram a maioria, mas encontramos também mulheres bacharéis em Música,
Medicina e Belas Artes. Grande parte dessas mulheres casava-se com homens que
possuíam ocupações mais prestigiosas e com grau de instrução mais elevado,
principalmente se comparado ao quadro geral das ocupações. Além disso, percebemos,
entre as mulheres com um padrão educacional mais sofisticado, uma tendência de casar-se
com uma idade maior. Inclusive, parte considerável dessas mulheres casava-se após atingir
maioridade, o que pode nos levar a refletir sobre a relação entre o grau de
instrução/educação e a liberdade feminina, em nosso caso, imageticamente representada
através do casamento e da escolha de seu cônjuge – possível do ponto de vista legal. Por
fim, chegamos ao último ponto da discussão: a (i)legitimidade.
A presença constante das uniões ilegítimas na história brasileira certamente
dificulta o trabalho do historiador. Mas, afinal, o que seria ilegítimo? Em determinados
momentos, as fontes, ao invés de nos auxiliarem a supor questões e sustentar nossas idéias,
dificultam sobremaneira nossa análise. Nessa discussão, ainda há espaço para outro
elemento: os filhos de criação. Em 1909, Manoel Antonio da Costa compareceu à
Subchefatura de Polícia da Capital para prestar queixa do defloramento de sua filha de
criação, Maria Francisca. Manoel reclamava que o responsável pelo defloramento, Jose
Antonio da Silva, mesmo ciente de suas obrigações, recusava-se a reparar o mal que tinha
76
AMANAJÁS, Hygino. Alma e Coração. Belém: _, 1905.
77
AMANAJÁS, Hygino. Noções de educação cívica..., op. cit, p. 110.
49
feito a Maria Francisca, fugindo na última madrugada. O caso, em si, apesar de sucinto,
impressiona pelo fato de Manoel da Costa narrar com detalhes o enlace entre Maria
Francisca e seu deflorador. Além disso, Manoel foi detalhista ao ponto de afirmar, com
veemência, quando e por que fugira o deflorador. Poderíamos supor, por exemplo, que
José da Silva fosse residente na vizinhança de Manoel Costa. O que não imaginávamos é
que José Antonio da Silva era filho legítimo de Manoel Antonio da Costa. Encontramos
um caso em que um pai, mesmo de criação, defende os interesses e a “honestidade” de uma
menina com quem nem sequer tem laços de sangue, mas apenas de afeto, contra alguém de
sua própria família consangüínea, José da Silva, seu filho legítimo78. A defesa de Manoel
Costa à Maria Francisca, sua filha de criação, em, diríamos, detrimento de seu filho
legítimo, dá-nos noção da dificuldade que há em se definir, conceituar e abordar a presença
da ilegitimidade nas relações familiares. Abre-se uma questão: de que forma devemos
abordar a ilegitimidade quando o enfoque de nossa pesquisa é a família?
No tocante à presença da (i)legitimidade, abordá-la-emos de duas formas: sua
presença entre os nubentes e a utilização do casamento como um mecanismo legal
legitimador de filhos nascidos de uma união consensual não legitimada perante a lei. Nesse
sentido, discutamos cada caso particularmente. Em nossos registros, encontramos um
percentual razoável de nubentes que eram filhos naturais, sendo 10% dos homens e 14%
das mulheres ilegítimos, o que demonstra a predominância da ilegitimidade entre as
mulheres. Essa tendência, entretanto, é extremamente oscilante, visto que esses nubentes
poderiam vir a ser legitimados através de processos de investigação de paternidade ou de
testamentos. Contudo, não acredito que, à época, a (i)legitimidade do pretendente fosse um
critério determinante para a escolha dos cônjuge, pois menos de 1/3 dos homens e 1/4 das
mulheres ilegítimos casavam entre si. A ilegitimidade, todavia, não se faz presente apenas
entre os nubentes, mas também nas relações consensuais que vários desses mantinham há
anos e que enfim resolveram legalizar, legitimando seus filhos comuns.
Sob outro ponto de vista, o casamento servia também como mecanismo legal de
legitimação das uniões e dos filhos delas provenientes. Para o período que pesquisamos,
podemos afirmar que houve uma reconfiguração na utilização nesse sentido. Durante a
década de 1910, os nubentes que se casavam com objetivo de legitimar sua união e os
filhos que tiveram entre si, geralmente eram pessoas com idade elevada e que alegavam
estar adoentadas, solicitando, inclusive, a dispensa dos proclamas como forma de se
78
APEP. Secretaria de Segurança Pública. Chefatura de Polícia. Ocorrências policiais 1909-1919. p. 1-2.
50
79
GRAHAM, Richard. Os números e o historiador não-quantitativo. In: Locus, v. 14, n. 1 (janeiro a junho
de 2008). Juiz de Fora/MG: PPHIST/UFJF, 2008. p. 20.
51
Assim se inicia, no jornal Folha do Norte, uma grande matéria sobre o assassinato
de Severa Romana, ocorrido em Belém, no dia anterior: 02 de julho de 1900. A morte de
Severa causou instantânea repercussão e grande comoção popular em Belém: “uma mulher
honesta, num ato heróico em defesa de sua honra e da moral de seu lar”, preferira morrer a
se entregar aos “desejos voluptuosos” de Antonio Ferreira, seu assassino. A história de
Severa Romana, conforme veremos a partir de agora, foi permeada por tensões morais e
construída a partir de um universo de representações da honra feminina que idealizavam
Severa como uma mulher “virtuosa”.
O assassinato de Severa Romana teve, à sua época, uma grande repercussão na
sociedade paraense. Os jornais Folha do Norte e A Província do Pará, os de maior
circulação em Belém no período, traziam quase que diariamente notícias sobre a morte de
Severa Romana e seus desdobramentos sociais. A Folha do Norte, inclusive, publicou, no
dia 04 de julho, outra grande matéria com o relato de várias testemunhas, muitas das quais
testemunharam posteriormente no processo-crime de homicídio contra Antonio Ferreira81,
que conviveram com Severa Romana e que vivenciaram seus últimos momentos. A partir
do dia 09 de julho, encontramos pela primeira vez, em A Província do Pará, uma nova
coluna destinada à Severa Romana: a Heroína da Honra. Essa coluna, que se fez presente
no jornal nos meses imediatamente posteriores à morte de Severa, trazia notícias sobre suas
repercussões. A primeira coluna traz a seguinte mensagem:
80
CENTUR. Assassinato Bárbaro. Folha do Norte. 03 de julho de 1900. p. 2.
81
Agradecemos desde já à gentileza de Amanda Lima, bolsista do CMA/UFPA, pela cessão da transcrição
completa do processo-crime do homicídio de Severa Romana.
82
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 09 de julho de 1900. p.2.
54
83
idem.
84
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de julho de 1900. p.1.
85
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de agosto de 1900. p. 1.
55
86
Cf.: SAHLINS, Marshall. Estrutura e História, op. cit.
87
NADALIN, Sérgio Odilon. História e Demografia, op. cit., pp. 99.
56
Severa Romana era uma mulher “honrada”, “digna” e fiel ao seu casamento: ora com mais
e menos entusiasmo, as testemunhas defendiam justamente a questão da fidelidade
conjugal. Aqueles que conviviam num espaço de sociabilidade mais próximo, a exemplo
de Joana Gadelha, Antonia Ferreira e José do Patrocínio, foram os mais enfáticos na defesa
deste ponto de vista. Os depoimentos de Joana e Antonia ganharam, inclusive, ar de
dramaticidade devido à comoção de suas narrativas. Ambas, certamente, não estariam
defendendo apenas a “honra”, a “honestidade” e a fidelidade conjugal como preceitos de
morais a serem respeitados, visto que, por detrás de tudo isto, estava o fato de Severa
Romana ser, como elas, uma mulher.
Entretanto, antes de passarmos para a discussão acerca das tensões morais
associadas à fidelidade conjugal, faz-se necessária uma ressalva: o fato de Joana Gadelha,
Antonia Ferreira e José do Patrocínio defenderem, em torno de Severa, uma representação
de honradez, honestidade e fidelidade não significa, todavia, que os mesmos praticassem,
em suas vivências cotidianas, as noções morais que idealizavam em Severa Romana. Além
disso, não podemos saber se estas noções eram realmente as que defendiam ou se sequer
possuíam noções de moralidade específicas, diferentes de um “senso comum”.
Infelizmente, todos os pontos de vista convergiam à mesma questão: a fidelidade conjugal.
É de suspeitarmos, obviamente, desta congruência de percepções, porém, a única opinião
claramente contrária é a de seu assassino Antonio Ferreira, a qual nos ateremos
posteriormente e que merece suspeição ainda maior.
As percepções relativas às tensões morais associadas à morte de Severa Romana,
como ressaltamos anteriormente, são multifacetadas. Sendo assim, não podemos entender
as noções morais que permeiam o caso através apenas dos discursos das testemunhas no
processo-crime ou no que foi-nos dito pelos jornais, principalmente através da “Heroína da
Honra”, visto que as obras produzidas à época também consubstanciam uma rica memória
de um período que é-nos interessante analisar. Desse modo, ao pesquisarmos livros que
foram escritos no período, um ganhou papel de destaque: Noções de educação cívica, de
Higino Amanajás88. Esta obra, produzida para ser leitura obrigatória nos colégios
paraenses, retrata elementos, dito cívicos, que a República desejava edificar. Assim, o livro
perpassa por discussões relativas à nação brasileira, com destaque, ao final da obra, para
elementos moralizadores que o governo republicano preconizava.
88
AMANAJÁS, Higino. Noções de educação cívica: para uso das escolas primarias do Estado do Pará.
Belém: _, 1898.
57
89
Amanajás, op. cit., p. 110.
90
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de agosto de 1900. p. 1.
58
91
CENTUR. Heroína da Honra. A Província do Pará. 05 de agosto de 1900. p. 1.
59
92
Cf.: NAZZARI, Muriel. O desaparecimento do dote, op. cit.
60
93
CMA/UFPA. 3º Distrito Criminal. Processo-crime de homicídio em que é Réu Antonio Ferreira dos Santos
e autora a Justiça Pública. 1900. p. 78/79.
61
94
GINZBURG, Carlo. O fio e os rastros: verdadeiro, falso, fictício. São Paulo: Companhia das Letras, 2007,
pp. 18.
62
95
SCOTT, Joan. Prefácio a Gender and politcs of history. In: Cadernos Pagu, 1994, pp. 20.
96
VIEIRA Jr., Antonio Otaviano. O cotidiano do desvio: defloramentos e adultérios no Ceará colonial
(1750-1822). (Mestrado) Programa de Pós-Graduação em História Social. São Paulo: Pontifícia Universidade
Católica de São Paulo, 1997, pp. 67.
97
SAMARA, Eni de Mesquita. Casamento e papéis familiares em São Paulo no séc. XIX, op. cit., pp. 81.
98
Severa Romana, com autorização e por indicação de Pedro Cavalcante, cozinhava, lavava e gomava a
roupa de Antonio Ferreira. Estas pequenas quantias as quais Ferreira faz referência são, muito
provavelmente, relativas ao pagamento destes trabalhos. Porém, na narrativa de seu depoimento, ele fala de
uma forma que dá a entender seu caráter de provedor do lar, em detrimento de Pedro Cavalcante.
63
mostra não apenas a presença de uma moralidade no seio e nos discursos de diversos
segmentos da sociedade, mas vai além, ao elevar as noções de “honra”, “moral” e
“honestidade” a instrumentos discursivos que, em determinados casos, poderiam inocentar
ou culpar um réu em julgamento99.
A principal representação em torno de Severa Romana, como é notório,
consubstancia-se no ser esposa: em Severa estava depositada a “honra” de Pedro
Cavalcante, que, por sua vez, deveria vigiá-la. Como vimos há pouco, as experiências
conjugais, sejam elas masculinas ou femininas, construíam-se no dia-a-dia, nas vivências
cotidianas. Nesse bojo, o trânsito e os comportamentos nos espaços público e privado
necessitavam de atenção (leia-se: vigilância) especial. Em suma, podemos entender que
uma mulher “honesta” era assim definida principalmente em base de três elementos: “boa
conduta”, “bons procedimentos” e “bons costumes”. O meio em que a mulher vivia, fora
criada e pelo qual circulava era de grande importância; além disso, também era importante
saber na companhia de quais pessoas andava100. Estas são características que,
sinteticamente, delineiam a própria ordem moral que a República desejava edificar na
sociedade brasileira. As mulheres não gozavam dos mesmos direitos que os homens nem
eram iguais entre si. Elas eram capazes ou incapazes, honestas ou desonestas, dependendo
da posição de cada uma dentro ou fora da família101.
Entretanto, não podemos simplificar as representações da honra feminina
associadas à morte de Severa Romana por sua boa conduta e proveniência. Conforme
verificamos, as definições de honestidade não estavam limitadas somente a estas
representações e a sua “virtude” sexual e moral. Além disso, encontramos constantes
referências a Severa como uma mulher pauperizada que trabalhava para ajudar Pedro
Cavalcante a sustentarem-se. À época de sua morte, Severa Romana exercia atividades
domésticas e fazia alguns trabalhos para fora (cozinhar, lavar e engomar roupas), porém
sempre com a autorização de Pedro. Conforme destacamos anteriormente, na Belém
contemporânea a Severa os migrantes nordestinos exerciam as mais variadas profissões. Os
99
Cristina Cancela verifica nos comportamentos sexuais das mulheres da classe popular de Belém, entre o
final do séc. XIX e o início do XX, um conceito próprio de “honestidade”. Além disso, a autora, a exemplo
de Martha Esteves (1989) e Sueann Caulfield (2005) para o Rio de Janeiro, analisa de que forma as camadas
populares de Belém se apropriavam de um discurso moralizador das elites como instrumento de persuasão
nos julgamentos de crimes de defloramento. Cf.: CANCELA, Cristina Donza. Adoráveis e dissimuladas, op.
cit.
100
ESTEVES, Martha de Abreu. Meninas Perdidas: os populares e o cotidiano do amor no Rio de Janeiro
da Belle Époque. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1989.
101
CAULFIELD, Sueann. Em defesa da honra: moralidade, modernidade e nação no Rio de Janeiro (1918-
1940). Campinas, SP: Editora da UNICAMP, Centro de Pesquisa em História Social da Cultura, 2005, pp.
69.
64
102
CMA/UFPA. 3º Distrito Criminal. Processo-crime de homicídio em que é Réu Antonio Ferreira dos
Santos e autora a Justiça Pública. 1900. p. 18.
65
Obviamente, isso não significa que Severa estivesse na vanguarda de seu tempo, nem,
muito menos, que não estivesse sob o poder de seu marido Pedro. Desde a primeira
referência que encontramos a Severa, qual seja, a do jornal Folha do Norte um dia após sua
morte, não faz-se referência a Severa como esposa de Pedro: limita-se a afirmar que eram
casados, como pudemos verificar no início deste capítulo. Isso se justifica, acreditamos,
por conta de Severa Romana ser a atriz principal de uma trama cujo enredo abrange as
acepções de moralidade, honradez e virtude na Belém do final do século XIX, início do
XX. Apesar de a discussão estar centrada principalmente no ideal da fidelidade conjugal de
Severa para com Pedro, a “virtude”, nesse caso, seria apenas dela.
Em síntese, as representações da honra feminina presentes no caso de Severa
Romana são multifacetadas. Ao acompanharmos as testemunhas do processo, o
depoimento de Pedro Cavalcante, a defesa de Antonio Ferreira e tudo aquilo que os jornais,
em especial através da Heroína da Honra, nos relatou, podemos claramente perceber a
presença de uma multiplicidade de percepções de “honra”, “moral” e “honestidade”.
Partindo da reflexão de um caso conseguimos problematizar uma ordem social em que a
fidelidade conjugal e os ideais de honra e virtude feminina faziam-se presentes não apenas
nas elites ou nos discursos de jurisconsultos, mas “na boca do povo”, no dia-a-dia, na
vivência cotidiana e nas experiências das camadas populares.
A história dos últimos momentos de Severa, permeada por diversas tensões
morais, é formada por um universo de representações da honra feminina que fizeram com
que, passado pouco mais de um século de sua morte, ela continue viva na memória dos
paraenses. O anseio de Amanajás foi, por fim, realizado: Severa Romana permanece viva
na história de Belém como um exemplo de “virtude”. Sua presença é tão forte que
anualmente, quando em Finados os paraenses vão aos cemitérios relembrar seus entes
queridos, um pouco desta atenção é destinada a Severa. Por mais que nenhum deles lhe
tenha conhecido, muitos a têm em sua fé: Severa Romana está, diariamente, com aqueles
que acreditam que sem exemplo de “virtude” a tenha tornado uma santa.
Ao longo deste capítulo, muito se falou sobre Severa Romana, Pedro Cavalcante e
seu casamento. Não é difícil imaginarmos que a morte de Severa não tenha se restringido
tão somente a páginas de jornais e discursos entusiasmados, mas que tenha adentrado no
próprio cotidiano da cidade, sendo discutida em conversas no ambiente de trabalho ou em
burburinhos na vizinhança, por exemplo. As representações da honra feminina idealizadas
em Severa, as tensões morais que permearam seus últimos momentos e os papéis
(familiares) de gênero associados a ela e a Pedro Cavalcante já nos são conhecidos. Mas,
uma questão ainda permanece sem resposta. Qual foi, afinal, o destino de Antonio
Ferreira? Ou melhor: de que forma o assassino de Severa Romana fora representado? Essas
são questões que, antes mesmo de nossas considerações finais, precisamos responder.
A construção da imagem de Antonio Ferreira perpassa pelas noções de
moralidade e “bons costumes”, e pelos papéis de gênero associados ao masculino, no
período analisado. À época, os marcos de adequação social da masculinidade estavam
dispostos de forma mais flexível que os da feminilidade. Desse modo, a transgressão dos
limites aceitáveis para o masculino só ocorria em casos peculiares104. Sob a influência de
um Direito positivo em que antes mesmo de se julgar um caso, julgava-se o “merecimento”
dos envolvidos em serem condenados, absolvidos ou vitimados, a elasticidade dos limites
masculinos e, por conseguinte, a restrição dos limites femininos, culminavam, em grande
parte dos casos, na absolvição de homens e na “condenação” de mulheres envolvidos em
crimes de caráter sexual e afetivo, criando-se, assim, um distanciamento entre uma
“criminalidade real” e uma “criminalidade apurada”105.
Porém, no caso de Severa Romana, o assassino deveria ser condenado, justiçando
sua morte. Em nenhum momento, os jornais ou o processo-crime de homicídio apresentam
discursos no sentido de afirmar que o caso não deveria ser julgado; que Severa não seria
pura e, portanto, que Antonio Ferreira não deveria ser declarado culpado. Mas por quê? O
casamento e sua versão sacra, o matrimônio, são instituições permeadas por diversas
subjetividades, que atuam em confluência a valores morais específicos, variáveis de grupo
social para grupo social. Conforme os discursos que pesquisamos, Pedro Cavalcante e
103
CENTUR. Assassinato Bárbaro. Folha do Norte. 03 de julho de 1900. p. 2.
104
FAUSTO, Boris. Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924). São Paulo: EDUSP,
2001, pp. 127.
105
Cf.: FAUSTO, Boris. Crimes sexuais. In: Crime e cotidiano: a criminalidade em São Paulo (1880-1924).
São Paulo: EDUSP, 2001, pp. 193-248.
67
Severa Romana formavam, por assim dizermos, um casal ideal. Eram casados formalmente
e seu casamento, na prática cotidiana, era reconhecido socialmente como uma união
“honrada”. Antonio Ferreira, por sua vez, era visto como aquele que, com seus “instintos
voluptuosos”, almejava destruir uma relação “digna” e de “bons costumes”.
Se, à sua época, Severa Romana pode ter sido considerada como um arquétipo
idealizado da “virtude feminina”, isso se justifica, como destacamos anteriormente, pela
idéia de que Severa se sacrificara em prol da fidelidade conjugal, preferindo morrer a
perder as honras sua, de seu marido e, por conseguinte, de sua família. Antonio Ferreira,
em contrapartida, era representado de modo inverso, como aquele que desejava desonrar
uma mulher, um marido e uma família “honesta”. Havia, portanto, um antagonismo entre a
representação do casamento de Pedro e Severa e o comportamento, ou melhor, e os “maus
procedimentos” de Antonio Ferreira. Respectivamente, ambos significavam representações
idealizadas do que deveria e do que não deveria ser feito, da forma que se deveria ou não
agir ou se comportar. Era um conflito entre um ideal de normatização e sua antítese.
Nesse sentido, é importante fazermos algumas ponderações sobre os argumentos
de defesa de Antonio Ferreira. Em resumo, sua argumentação estava baseada numa
tentativa de desconstrução da idealização de uma união “honesta” entre Pedro e Severa.
Para tal, em seus depoimentos, ele não apenas atacava a conduta de Severa Romana, como
também a de Pedro Cavalcante. Se as tensões morais relativas à morte de Severa incidiam,
principalmente, num ideal de casamento que perpassava, necessariamente, pela noção de
fidelidade conjugal, a estratégia argumentativa de Ferreira fora correta: ele não tentou se
justificar ou apenas macular a conduta de Severa, mas, ao contrário, almejava justamente
“ferir a honra” de seu casamento – o que de fato estava em questão. O conflito existente
não era somente entre Ferreira e Severa, mas também entre ele e Pedro.
Antonio Ferreira era, para Pedro Cavalcante, um “rival sedutor”. Ele seria,
portanto, o inimigo do “bom marido”: um elemento que entrava diretamente em conflito
com o ideal do viver como casados, um elemento da desordem. Antonio Ferreira deveria
ser punido porque, ao tentar violar o corpo e a sexualidade de Severa Romana, violaria a
honra (masculina) de Pedro Cavalcante. Sua culpabilidade e, principalmente, sua punição,
faziam parte de uma tentativa normatizadora de controle das sexualidades masculina e
feminina106. Todos os discursos pesquisados, exceto os do próprio Antonio Ferreira, foram
106
Para uma discussão sobre o papel do amante, cf.: VIEIRA Júnior, Antonio Otaviano. Casamento e
sedução masculina em Fortaleza (1799-1820). In: SOUZA, Simone de; NEVES, Frederico de Castro
(Orgs.). Gênero. Fortaleza: Fundação Demócrito Rocha, 2002. pp. 101-118.
68
107
CMA/UFPA. 3º Distrito Criminal. Processo-crime de homicídio em que é Réu Antonio Ferreira dos
Santos e autora a Justiça Pública. 1900. p. 31.
108
Seu nome também aparece no processo como Maria Antonia Ferreira.
69
principal de uma peça cujo roteiro aqui rememoramos, serviu-nos de intermédio para
compreendermos, mesmo de que forma limitada, a própria ordem social de uma sociedade
que, em si, trazia heranças morais do século XIX e, concomitantemente, possuía os ares de
renovação do século XX. Ao longo das últimas páginas, o casamento apareceu repleto de
subjetividades, valores de honra e tensões morais; apareceu, na verdade, em variadas
facetas que compõe a multiplicidade de experiências conjugais existentes.
Aqui, discutimos as repercussões sociais de sua morte, as tensões morais e as
representações do feminino que marcaram seus últimos momentos, e tentamos delinear um
perfil de Antonio Ferreira. Por último, ao final deste capítulo, cabe-nos perguntar: hoje,
passado mais de um século de sua morte, qual moral associamos à Severa Romana?
Obviamente, e não temos dúvidas em afirmar isto, Severa foi eternizada na memória dos
paraenses como uma mulher que, em virtude de sua honra, preferida à morte a se tornar
adúltera. Esta é a visão que o povo tem dela, a visão que a fez, nos meios populares, uma
santa. Dentro deste universo de tensões morais e representações da honra feminina, Severa
Romana permaneceu como uma mulher que perdeu a vida por sua fidelidade e virtude
moral: era uma heroína da honra.
70
CONSIDERAÇÕES FINAIS
109
PERROT, Michelle. Dramas e conflitos familiares. In: PERROT, Michelle (Org.). História da Vida
Privada, v. 4: da Revolução Francesa à Primeira Guerra. São Paulo: Companhia de Bolso (Cia. das Letras),
2009, pp. 250.
71
testamentar (leia-se: perda do direito de deserdar)110 e pela ascensão das profissões liberais
e de um crescente individualismo, os pais ainda tentavam influir na escola dos cônjuges
dos filhos.
Os nubentes, por sua vez, usavam uma estratégia argumentativa baseada em
brechas da Lei que permitissem seu casamento mesmo sem o consentimento paterno.
Alegavam constantemente que sofriam agressões físicas e morais e que seus pais não
consentiam com o casamento por motivos frívolos ou por preferirem outro pretendente. O
discurso dos nubentes evidencia a que ponto o individualismo, crescente durante os séculos
anteriores, fazia-se presente no início dos Novecentos. Não dependendo mais de heranças
ou dotes, e ainda com a impossibilidade de serem deserdados e no exercício de profissões
capazes de lhe dar sustento, os nubentes poderiam seus escolher cônjuges111? Entre os
argumentos paternos e o dos nubentes, qual prevaleceria? A que ponto o Juiz de Órfãos,
responsável por julgar o impasse, tenderia a consentir ou não a liberação para o casal?
A partir da análise de um julgamento do juiz Mauricio Cordovil e em diálogo com
as tendências gerais dos processos de Licença para casamento e Suprimento de
consentimento paterno, concluímos que, através da perspectiva da prática jurídica, os
nubentes teriam o direito de livremente escolherem seus cônjuges. Ao todo, encontramos
apenas um caso em que o suprimento de consentimento foi negado. Na verdade, o que
estava em questão não era se os pais legalmente teriam ou não o direito de exercer o pátrio
poder, mas que os nubentes, exceto em casos excepcionais, poderiam escolher seus
maridos e esposas. Essa tendência evidenciou em Belém, durante as primeiras décadas do
século XIX, uma diminuição da autoridade paterna sobre os filhos adultos, enquanto que,
concomitantemente, o poder do marido sobre a esposa pode ter aumentado112.
No segundo capítulo, analisamos o evento do casamento, investigando os perfis
demográficos dos nubentes que se casaram civilmente em Belém, entre 1908 e 1925.
Pesquisamos as origens (nacionalidade e naturalidade), as ocupações, as idades ao casar, o
caráter de (i)legitimidade e o estado civil dos noivos. Percebemos, em diálogo com os
capítulos anterior e posterior, que análise de gênero é de vital importância para a
compreensão do casamento e dos papéis familiares e valores morais a ele associados.
Nesse sentido, as conclusões desse capítulo advieram da apropriação quantitativa de uma
110
PERROT, Michelle. Figuras e papéis. In: PERROT, Michelle (Org.). História da Vida Privada, v. 4, op.
cit., pp. 109.
111
NAZZARI, Muriel. O século XIX, op. cit., pp. 211.
112
Idem.
72
série composta por 5.792 registros de casamento, onde o recorte de gênero teve um papel
não apenas fundamental, mas imprescindível.
O perfil demográfico dos nubentes que se casaram em Belém, no início do século
XX, mostrou-se bastante diversificado. A reflexão acerca desse perfil demonstrou que
podemos analisá-lo de muitas formas; duas, em especial. Primeiro, podemos fazer uma
investigação geral, mapeando as tendências de todos os casamentos. Segundo, também é
possível realizarmos uma análise dos comportamentos matrimoniais de grupos específicos,
a exemplo de portugueses e cearenses. Ao mesmo tempo, concluímos que não devemos
analisar os números apresentados apenas como números, mas como indicadores de
relações sociais, padrões culturais e comportamentos populacionais. Não foi a toa que as
portuguesas e os cearenses buscaram seus conterrâneos na hora de casar-se. Apesar de os
portugueses (homens) terem se casado preferencialmente com as paraenses. Agora,
teçamos mais algumas considerações sobre o perfil demográfico dos casamentos.
Conforme discutimos ao longo do primeiro capítulo, a escolha dos cônjuges, no
início do século XX, era uma decisão dos nubentes. Isso não significou, todavia, que o
casamento fosse totalmente livre, ileso de critérios sociais e valores morais. As relações de
família, amizade e sociabilidade (onde se destacam a vizinhança e o ambiente de trabalho)
desempenham um papel fundamental na escolha do cônjuge113. Em outras palavras, essa
escolha dá-se dentro do círculo de sociabilidades dos indivíduos, o que dificulta, por
exemplo, casamentos entre pessoas de camadas socioeconômicas significativamente
diferenciadas. De todos os casamentos pesquisados, quase seis mil, não encontramos
qualquer referência a casamentos socialmente exógamos. As camadas populares casavam-
se entre si, assim como as elites.
Em geral, os cônjuges casavam-se jovens. Os homens, entre os 20 e os 34 anos.
As mulheres, entre os 15 e os 29 anos. Muito possivelmente, os nubentes (os homens), ao
casarem nessas idades, já estavam inseridos no mercado de trabalho, mesmo que ainda não
num patamar de amadurecimento profissional mais sofisticado. Isso justifica sua inserção
tardia no mercado matrimonial, assim como sua permanência nele por mais tempo. Para
essa análise, não podemos esquecer-nos que o provento ao Lar era um papel de gênero
associado ao masculino. As mulheres, por sua vez, entravam e saiam mais cedo do
mercado matrimonial, sendo difícil uma mulher casar-se após os trinta anos de idade.
113
MARTIN-FUGIER, Anne. Os ritos da vida privada burguesa. In: PERROT, Michelle (Org.). História
da Vida Privada, v. 4, op. cit., pp. 218-219.
73
Quanto às nubentes, ainda podemos considerar certa preocupação com a idade reprodutiva,
uma das principais fases das “idades da vida” de uma mulher114.
Os nubentes exerciam, principalmente, atividades ligadas ao Setor Terciário,
enquanto as nubentes estavam associadas, essencialmente, às atividades domésticas. As
profissões masculinas, melhor descritas e mais detalhadas, evidenciaram, mesmo que de
forma limitada, a própria lógica social e econômica de Belém, à época. As ocupações
femininas, por sua vez, eram descritas de forma limitada, por razões que supusemos ao
longo do capítulo. As conclusões, porém, não se limitaram às estratégias familiares e à
pesquisa da origem, da idade ao casar e das profissões dos nubentes, mas foram além,
apreendendo a tenuidade da análise da (i)legitimidade e o fato de que os nubentes, em
geral, casavam-se em primeiras núpcias. As discussões dos dois primeiros capítulos,
complementares um ao outro, abriram caminho para o estudo de caso de um casamento.
O terceiro e último capítulo consistiu na análise do casamento de Pedro
Cavalcante e Severa Romana. Nosso objetivo foi complementar as reflexões dos dois
primeiros capítulos com uma análise micro-histórica que nos permitisse apreender as
relações sociais que permearam os últimos momentos de um casamento específico. A
discussão sobre o casamento de Pedro e Severa permitiu-nos investigar, através de uma
análise microscópica, noções de família, experiências de conjugalidade, papéis de gênero e
representações da honra feminina, masculina e familiar. Ao mesmo tempo, pudemos
verificar a importância da vizinhança tanto nas teias sociais tecidas por Pedro e Severa,
quanto como testemunhas no decorrer do processo-crime aberto pelo homicídio de Severa
Romana, onde Antonio Ferreira fora réu.
As discussões desse capítulo demonstraram que as representações da honra
feminina (e, por conseguinte, também das honras masculina e familiar) e os valores morais
associados ao caso estavam centrados na idealização da fidelidade conjugal de Severa
Romana. O cerne da questão, portanto, foi o casamento de Pedro e Severa, e as noções de
família e os valores morais a ele relacionados. Inferimos que a moralidade do casamento,
que perpassava tanto pela moral de Pedro quanto pela moral de Severa, foi construída em
base das representações dos papéis familiares de gênero. Não encontramos, exceto no
depoimento de seu assassino, Antonio Ferreira, qualquer tentativa de demérito à “virtude”
de Severa Romana. Os conflitos estavam centrados na martirização ou não dessa “virtude”.
114
Cf. PERROT, Michelle. As idades da vida de uma mulher. In: Minha história das mulheres. São Paulo:
Contexto, 2007, pp. 41-49. VER também: ARIÈS, Philippe. As idades da vida. In: História social da
criança e da família, op. cit., pp. 1-16.
74
Enquanto alguns acreditavam que Severa deveria ser referenciada por sua conduta, outros
julgavam que ela não havia feito nada além do que qualquer outra mulher “honesta”, em
seu lugar, deveria ter feito.
O estudo de caso sobre o casamento de Pedro Cavalcante e Severa Romana
ajudou-nos a analisar o casamento como um ato cultural permeado por subjetividades e
normas sociais. É interessante salientarmos, nesse sentido, o diálogo entre os três capítulos.
No primeiro, analisamos as preocupações paternas com o casamento, que em outras
palavras significou também uma preocupação com a criação de uma nova unidade conjugal
e de um novo Lar. No segundo, investigamos o perfil demográfico de quem se casava. E
no último capítulo, a partir do estudo de um casamento, observamos de que forma as
preocupações que, aparentemente, seriam apenas anteriores ao casamento, refletem na
própria vida conjugal. Severa tornou-se uma idealização da “virtude feminina” justamente
por convergir, em si, os papéis de gênero e os valores morais idealizados a sua época.
Em suma, este trabalhou evidenciou a existência de um novo pacto matrimonial
em Belém, no início do século XX. Os nubentes, doravante, teriam o direito de escolher
seus cônjuges. Essa escolha, entretanto, não era livre de critérios sociais e valores morais.
Em geral, as pessoas casavam-se com indivíduos de uma camada socioeconômica próxima.
As idades de casar, diferentes entre homens e mulheres, sinalizaram a importância dos
papéis de gênero para o casamento. Os homens, no papel de provedores do Lar, entravam e
saiam do mercado matrimonial mais tardiamente, se comparados às mulheres. No tocante
ao casamento e à constituição de uma nova unidade conjugal, havia uma preocupação
muito grande com o provento ao Lar, papel de gênero então associado ao masculino.
É importante salientarmos que, em nossa opinião, foi justamente o exercício de
profissões estáveis, capazes de prover ao Lar sem a ajuda familiar, que permitiu que um
crescente individualismo culminasse na possibilidade de os nubentes poderem escolher
livremente seus cônjuges. O casamento foi evidenciado como um evento que relaciona um
acontecimento específico (o ato de casar-se) ao universo simbólico no qual está inserido.
Nesse sentido, ao analisarmo-lo, percebemos que seu entorno social fora permeado por
múltiplas noções de família, experiências de conjugalidade, representações da honra
feminina, masculina e familiar, e, principalmente, dos valores morais a ele associados.
Estudar o casamento não é apenas dizer quem se casava, mas analisar seu contexto social,
político, econômico e moral.
Por último, gostaríamos de destacar que estas não serão as últimas palavras, nem
muito menos as últimas conclusões desta pesquisa. São, como destacamos páginas atrás,
75
conclusões quase que finais. Um embrião que nasceu em nossas investigações de Iniciação
Científica e que cresceu ao longo deste trabalho terá continuidade – mesmo que não
necessariamente no sentido cronológico. As discussões travadas nesta monografia levaram-
me a elaborar um projeto de pós-graduação, em nível de Mestrado, que tem por objetivo
dar continuidade as mesmas, agora com mais maturidade intelectual e sob outra
perspectiva. Portanto, esperamos que, logo cedo, outras palavras sejam ditas.
76
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115
Para esta pesquisa, foram coletados todos os de casamento civil, presentes no acervo do CMA/UFPA,
entre 1908 e 1925, totalizando aproximadamente 6000 processos. Além disso, também foram pesquisados
todos os processos de Licença para casamento e de Suprimento de consentimento paterno, do referido acervo,
relativos ao período de 1910 a 1930, totalizando 29 processos. Por ser uma documentação muito vasta,
incluímos apenas as referências dos documentos citados durante este trabalho.
82
Jornais
Assassinato Bárbaro. Folha do Norte. 03 de julho de 1900
Heroína da Honra. A Província do Pará. 09 de julho de 1900
Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de julho de 1900
Heroína da Honra. A Província do Pará. 13 de agosto de 1900
Heroína da Honra. A Província do Pará. 05 de agosto de 1900
Legislação