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Frederico Morais:
trajetória e provocações
São Paulo
2015
PUC – Pontifícia Universidade Católica
COGEAE – Pós-Graduação – Lato Sensu
Arte: Crítica e Curadoria
Frederico Morais:
trajetória e provocações
São Paulo
2015
Autorizo a reprodução total ou parcial deste trabalho, por qualquer meio convencional
ou eletrônico, para fins de estudo e pesquisa, desde que citada a fonte.
Ficha catalográfica:
ÁLVARES, Ana Paula Figueiredo Teixeira.
Frederico Morais: trajetória e provocações / Ana Paula
Figueiredo Teixeira Álvares, 2015
51f. + anexo
Ana Paula Figueiredo Teixeira Álvares
Banca Examinadora:
Prof.
Dr._______________________________________________________________
Instituição:
____________________________________________________________
Prof.
Dr._______________________________________________________________
Instituição:
____________________________________________________________
Prof.
Dr._______________________________________________________________
Instituição:
____________________________________________________________
À Profa Dra. Lisette Lagnado, por ter contribuído para que o encontro com Frederico
Morais se tornasse possível.
Palavras-chave:
The socio-political and cultural situation had strong impact on the period’s artistic
production, which was also deeply marked by the transformations, these on a global
scale, that characterized contemporaneity. This brought new paradigms which
challenged the previously established concepts for art, promoting a rupture that parted
with the more rigid definitions of work, artist, public institutions and criticism. Such
effervescence resulted in innovative movements, enabling the emergence of a new
avant-garde movement in the artistic field.
The study focuses on one of the most productive and purposeful phases of his
work. Morais was a central figure of the cultural scene and therefore, a great
supporter of this new experimental art form. The research is based on reading the
works by Morais, who worked as a daily columnist for periodicals for years, and that
by other authors who studied or depicted the period in question. The three main fronts
of intellectual performance guided the division of the work that follows, structured
from his links to, primarily, the vanguards, the critics and, lastly, the public space.
Key Words:
Introdução
p. 9
Capítulo 1
Frederico Morais e as vanguardas
p. 13
Capítulo 2
Frederico Morais e a revolução da crítica
p. 24
Capítulo 3
Frederico Morais e o espaço público
p. 36
Conclusão
p. 45
Referências Bibliográficas
p. 48
Anexo:
I – Cronologia
p. 51
INTRODUÇÃO
Os 21 anos (1964-1985) durante os quais a Ditadura Militar perdurou no Brasil
foram marcados por diferentes fases e realidades. O regime foi comandado por cinco
generais e vivenciou da liberdade comportamental do ano de 1968 à violência
extrema nos anos pós AI-5 (1968), até a retomada, lenta e gradual, à democracia. Os
diferentes posicionamentos por parte do regime, ao longo do período de sua duração,
geraram diferenças também na forma de viver, de criar e de se posicionar diante dos
fatos cotidianos.
Durante a época, com maior ou menor liberdade, o Brasil experimentou uma
produtividade de alta qualidade em diferentes áreas das artes. Como Claudia Calirman
bem aponta em seu livro Arte brasileira na ditadura militar, 1 seria absurdo dar
qualquer crédito à ditadura pelo rico período artístico, ainda que muito da ousadia e
da revolução estética tenha sido uma resposta ao regime. De qualquer maneira, não só
os artistas transformaram a cena cultural, mas muito se discutiu durante a vigência
dos militares no comando do país, dando forma a uma das épocas mais profícuas em
relação à produção intelectual e crítica no campo artístico.
Dessa forma, esta pesquisa propõe-se a apresentar, de forma pormenorizada, o
trabalho do crítico e curador Frederico Morais, utilizando um corte temporal entre
1964 e 1973. Mesmo que sua carreira em redações de jornais tenha se iniciado na
década de 1950, com incursões na área artística, em especial no cinema, o ano que
marca o início deste estudo evidencia uma atuação mais relevante de Morais como
crítico de arte, com destaque a um embate regional, em Belo Horizonte, sua cidade
natal, que ganhou destaque nacional. A pesquisa acompanha suas ações mais
relevantes na cidade mineira e sua transferência para o Rio de Janeiro, onde vive e
atua até os dias de hoje. Sua figura foi emblemática para a atuação dos artistas
conhecidos pelo movimento de neovanguarda, bem como para a Geração AI-5, com
os quais se vinculou. Morais também foi o propositor da denominada Nova Crítica,
atuando como um dos críticos mais ousados na História da Arte brasileira, ao
conceber um novo papel para o crítico, além de exercer função precursora no uso dos
espaços públicos pela atividade artística, enquanto foi responsável por algumas das
instituições de maior relevância nas referidas décadas.
1
CALIRMAN, Claudia. Arte brasileira na ditadura militar. Rio de Janeiro: Réptil, 2013, p. 143.
9
O presente trabalho divide-se justamente nesses três eixos de atuação de Morais,
que, embora na prática estejam fortemente interligados e cheguem, inclusive, a se
confundir, foram aqui subdivididos como metodologia de estudo. Dessa forma,
pretende-se realizar uma análise mais aprofundada dos diferentes personagens
representados pela figura desse intelectual.
Com a intenção de examinar o papel exercido por Morais para a arte, esse trabalho
estrutura-se de maneira a retomar os seguintes aspectos:
O Capítulo 1 — Frederico Morais e as vanguardas — pretende resgatar a
história da arte nacional partindo do que se entendeu enquanto vanguarda artística.
Por meio de uma breve reconstituição, vinculada à participação de Morais, criou-se
uma espécie de linha do tempo relacionando as inovações intelectuais, estéticas e
comportamentais concernentes à contemporaneidade. Trabalhando com ações
culturais e artísticas específicas, constata-se o movimento pelo qual a arte extrapolou
o contexto no qual até então se encaixava. A discussão travada por Morais sobre o
tema é relacionada com outras teorias envolvendo as ideias de vanguarda, elaboradas
por pensadores e artistas, da mesma maneira como se acompanhou o percurso feito
por artistas — e movimentos artísticos — e intelectuais de acordo com as fases de
repressão e censura impostas pelo governo — hegemonia da esquerda, euforia de
1968, o AI-5 e o vazio cultural resultante do exílio e da clandestinidade. À realidade
social e política brasileira, que impunha desafios próprios, somaram-se as
provocações determinadas, em escala global, a partir de uma transformação, como
poucas, ocorrida no cerne da arte. Revolução estética e militar entrelaçaram-se
marcando a história da nossa arte e, portanto, a própria história de Morais.
No Capítulo 2 — Frederico Morais e a revolução da crítica —, buscou-se
contextualizar o trabalho crítico de Morais e o conceito de Nova Crítica, elaborado e
executado por ele. A discussão acerca do papel da crítica é retomada por meio do
levantamento teórico, com enfoque especial na proposta de crítica militante e
engajada, com a qual Morais demonstra maior identificação. É ainda abordada a
exposição A Nova Crítica, realizada na Petite Galerie, no Rio de Janeiro, no ano de
1970, na qual o crítico atinge a elaboração máxima de sua teoria, tecendo, em forma
de exposição, comentários críticos sobre trabalhos dos artistas Cildo Meireles,
Thereza Simões e Guilherme Vaz. A evolução desta Nova Crítica desloca a atuação
de Morais para a linguagem audiovisual, outro marco importante de sua carreira. Mas
entendendo este envolvimento com o audiovisual como uma atuação mais próxima do
10
artista do que do crítico, a questão foi abordada no Capítulo 1, juntamente com suas
atividades vanguardistas.
O Capítulo 3 — Frederico Morais e o espaço público — encerra o trabalho,
dando destaque ao que Morais identifica como vocação: o lado de fora (do museu). A
abordagem aqui entende esta percepção como a capacidade visionária de identificar a
necessária ampliação dos espaços das instituições. Por meio da apropriação do espaço
público, Morais insiste na interferência direta da arte com a vida cotidiana das pessoas
comuns. A abordagem neste eixo final da pesquisa reforça a postura de Morais, na
qual a arte é compreendida por um aspecto mais amplo, em que essa não passa por um
processo lógico, reflexivo, mas que se destina a atuar ampliando a percepção do ser
humano, de maneira pessoal e imprevisível.
Tendo como fundo histórico um período fortemente marcado tanto pela violência
quanto pela euforia econômica do dito “milagre brasileiro”, a Conclusão procura
fazer uma síntese da atuação de Frederico Morais neste conturbado e complexo
cenário. Acima de tudo, o trabalho a seguir propõe-se a mostrar um homem de
vanguarda, que, nos diferentes papéis que exerceu, se comprometeu em entender sua
época e a sociedade à qual pertencia.
Como leitura complementar, foi adicionada uma Cronologia, elaborada de forma
a abranger o período estabelecido, identificando as principais ações com as quais
Morais esteve envolvido. Não se pretendeu fazer uma indicação histórica de todos os
acontecimentos relevantes da faixa temporal delimitada para estudo, assim como não
houve obrigatoriedade em cobrir todos os anos de maneira sistemática. Apesar de a
pesquisa manter relação direta com a Ditadura Militar, uma vez que se cobre
exatamente a, quase, primeira década do governo autoritário imposto pelo golpe de
1964, alguns dos episódios que seriam indispensáveis para a investigação desta não
foram incluídos, como as Bienais da Bahia (1966 e 1968) ou a X Bienal de São Paulo
(1969), conhecida como a Bienal do Boicote.
No dia 25 de junho de 2015, no Rio de Janeiro, foi realizada uma entrevista com
Frederico Morais. O encontro tinha como objetivo o intuito de tirar dúvidas
relacionadas a questões específicas, geradas a partir da leitura de diferentes textos;
rever, sob a perspectiva de Morais e considerando o relativo distanciamento histórico,
algumas ações realizadas no período estudado e as influências destas nos dias atuais; e
indagar o crítico quanto ao seu pensamento atual acerca da arte e da própria crítica.
Trechos da entrevista foram utilizados ao longo do trabalho. O contato direto com a
11
figura de Morais serviu para o enriquecimento em relação às suas teorias e suas
ideias. Devido à sua extensão e por haver um entendimento de que seu conteúdo seria
mais adequado para outro fim, a íntegra da entrevista, que seria incluída como anexo,
não integra a versão final do trabalho.
12
CAPÍTULO 1
Frederico Morais e as vanguardas
No decorrer das décadas de 1960 e 1970, Frederico Morais foi um militante da —
e para a — vanguarda, profundamente engajado em teorizá-la, atuando enquanto
crítico-artista e, acima de tudo, comprometido em abrir espaço para os artistas de uma
nova vanguarda que surgia. Desempenhou, assim, papel fundamental, especialmente
durante o período acima citado, diretamente relacionado com a arte que surgiu
vinculada ao termo francês avant-garde.
O termo, originalmente vinculado a uma estratégia militar (as guardas da frente) e
depois presente num ideário político revolucionário, ganhou status de discussão
cultural a partir do início do século XX, quando alguns movimentos artísticos
propuseram e formalizaram seus programas estéticos. 2 Desde então, o conceito
assumiu diversas interpretações teóricas, sendo abordado por diferentes perspectivas
estéticas, ideológicas e historiográficas. Mas, de uma maneira geral, é possível
afirmar que o termo está atrelado a um caráter inovador, experimental e contestatório.
Pela perspectiva de Morais, que conceituou o termo no cartaz-catálogo da mostra
Vanguarda Brasileira:
Vanguarda o que é. Antes de tudo, um comportamento, um modo de ser,
um espírito aberto à pesquisa permanente do novo, do significativo. É a
sistemática atualização de princípios e ideias, o que é diferente do apoio
post-factum dos oportunistas e medrosos às novas ideias e aos modismos
de última hora. A vanguarda e a pesquisa constante não excluem os
princípios, e estes não limitam nem restringem a criação artística.3
4
Porvolta do ano de 1964, a crítica belo-horizontina iniciou uma discussão acerca da nova vanguarda
artística. Houve um significativo diálogo entre Frederico Morais e Olívio Tavares de Araújo sobre o
tema. A discussão foi intensificada em 1965, em função de um polêmico artigo de Wilson Martins, que
falava das “contradições de vanguarda”, publicado na Revista de Cultura Brasileña em dezembro de
1964, intitulado “La vanguardia ha muerto. Viva la vanguardia!". Morais apoiava o argumento de
Martins, que propunha uma reavaliação do termo e questionava o conformismo das mesmas, quando
deixam de ser novidade e viram modismo. Na carta em que Morais lida diretamente com o tema,
dialogando com Araújo, ele diz: “como você mesmo chega quase a concordar, a vanguarda brasileira
sempre foi oficial ou teve o apoio da burguesia dominante. Da Semana de 22 à FABER. Naturalmente,
havendo apoio oficial, a tendência é a subdivisão das vanguardas, atomização, como diz Wilson
Martins em seu depoimento, e o resultado é a rotina, a burocratização”. Olívio T. de Araújo e Marco
Antônio Menezes foram os diretores da peça neovanguardista FABER, que fazia sucesso em Belo
Horizonte naquela época e contava com o apoio da Galeria Guignard.
5
Carta de Frederico Morais para Olívio Araújo, publicada em ARAÚJO, Olívio Tavares de. Cartas
sobre a vanguarda (I). Diário de Minas. Belo Horizonte, 2 fev. 1965, p. 5.
6
RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas: Belo Horizonte — anos 60. Belo Horizonte: C/Arte,
1997, p. 49.
7
ECO, Humberto. O Grupo 63, o experimentalismo e a vanguarda. Sobre os espelhos e outros
11
MORAIS, Frederico. Artes Plásticas: a crise da hora atual. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 85.
12
OITICICA,
Hélio. Esquema geral da Nova Objetividade. In: FERREIRA, Glória. COTRIM, Cecília
(Orgs). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2006, p. 156 e 165.
16
muitos casos, influenciada pelo cenário político. Criticados pela direita e pela
esquerda ortodoxa, estes jovens artistas “rebeldes” voltaram-se para seus corpos, seu
país e seus pensamentos, produzindo uma arte inovadora.
Se até o final de 1968, houve relativa hegemonia cultural da esquerda no Brasil,
apesar da ditadura da direita,13 o Ato Institucional no 5 marcou uma mudança drástica
na atmosfera política e cultural. O AI-5 teve imediata repercussão sobre a vida do país
e, no plano cultural, oficializou a censura prévia, repercutindo fortemente sobre a
produção intelectual artística. “O AI-5 paralisou tudo: cinema novo, teatro, música,
tropicalismo”,14 afirmava Glauber Rocha, refletindo uma situação que se aproximava
do desespero.
Os artistas responderam à realidade imposta forjando novas formas de produzir e
exibir seus trabalhos. A inovação virou necessidade, à medida que a censura foi se
tornando mais presente e mais violenta. Dessa forma, as táticas de guerrilha urbana
entraram no cenário artístico. Assim como a body art, o site specific, a discussão
acerca do objeto, o questionamento dos critérios da crítica e do papel das instituições,
a proximidade da arte com o cotidiano, o lado de fora do museu, a apropriação do
corpo enquanto “motor da obra”, 15 o uso de materiais pouco convencionais, a
superação da fase visual e a participação do espectador na construção do trabalho
artístico.
Do final de 1968 ao início da década seguinte, Morais afirma que a arte brasileira
viveu momentos de grande inquietação, até se estabilizar negativamente com a
autocensura, numa aceitação passiva do status quo. A vanguarda assumiu uma
posição de marginalidade em relação ao sistema. No período seguinte, constituiu-se o
quadro caracterizado pelo: 1. agravamento sensível do conflito com a censura; 2.
surgimento de uma contra-arte ou arte-guerrilha; 3. êxodo crescente de artistas e
intelectuais para o exterior.16
Em 1969, a censura atinge seu ponto mais tenso, com a proibição da mostra dos
artistas selecionados para a representação brasileira na VI Bienal de Jovens de Paris,
13
CALIRMAN, Claudia. Arte brasileira na ditadura militar: Antonio Manuel, Artur Barrio e
Cildo Meireles. Rio de Janeiro: Réptil, 2013, p. 8. Referência a SCHWARZ, Roberto. Cultura e
política no Brasil, 1964-1969 (1970).
14
ROCHA, Glauber. Revista Visão, jul. 1971, p. 52.
15
MORAIS, Frederico. Artes Plásticas: a crise da hora atual. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 24-34.
16
MORAIS, Frederico. Artes Plásticas: a crise da hora atual. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 101.
17
no Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro.17 Esse fato gerou um protesto enérgico
da Associação Brasileira de Críticos de Arte (ABCA), sob presidência de Mário
Pedrosa, o boicote internacional à X Bienal de São Paulo18 e a apropriação, por parte
dos artistas, do I Salão da Bússola como um espaço, inesperadamente, de vanguarda.
Realizada no MAM-RJ, em novembro desse mesmo ano, o Salão da Bússola,
patrocinado pela Aroldo Araújo Comunicação, não pretendia ser diferente dos demais
salões de arte. Porém, em função da censura do governo a outras mostras e da
emergência de uma nova geração de artistas marcadamente conceituais, e se
aproveitando de uma brecha do regulamento, que incluía a palavra etcétera entre as
categorias artísticas, várias obras de vanguarda foram expostas, como, por exemplo, a
primeira “trouxa ensanguentada” de Artur Barrio. Pode-se dizer que, com os prêmios
concedidos, o Salão praticamente lançou a Geração AI-5, identificada na corrente
chamada de Contra-Arte. Os participantes cariocas do evento foram: Cildo Meireles,
Artur Barrio, Thereza Simões, Odila Ferraz, Guilherme Vaz, Luiz Alphonsus, Alfredo
José Fontes, Umberto Costa Barros e Dileny Campos. Morais era componente do júri
do Salão, mas sua proximidade com os artistas de vanguarda, em especial com os que
faziam arte engajada e conceitual, era evidente e prévia, sendo este o grupo com o
qual Morais atuou de forma mais direta e para o qual redigiu o seguinte manifesto:
Somos bárbaros de uma nova raça. Os imperadores da velha ordem que se
guardem. Nosso material não é o acrílico bem comportado, tampouco
almejamos as estruturas primárias higiênicas. O que fazemos são
celebrações, rituais sacrificatórios. Nosso instrumento é o próprio corpo —
contra os computadores. Nosso artesanato é mental. Usamos a cabeça —
contra o coração. Ao invés de lazer, imaginação. E as vísceras e o esperma
se necessário. O sangue e o fogo purificam. Nosso problema é ético —
contra o onanismo estético. Vanguarda é transformação permanente. É o
precário como norma, a luta com o processo da vida.19
17
Suspensão, por ordem do departamento cultural do Ministério das Relações Exteriores do Brasil, da
exposição dos artistas que representariam o Brasil na VI Bienal de Jovens de Paris, no MAM-RJ. Uma
fotografia de Evando Teixeira e uma serigrafia de Antonio Manual relacionadas ao movimento
estudantil foram consideradas subversivas e prejudiciais ao regime, acarretando o cancelamento da
exposição com os trabalhos que seriam enviados a Paris e a proibição da saída das obras do país.
18
Uma série de manifestos contrários ao recrudescimento da repressão instaurada pelo AI-5, que levou
19
provocativo e polêmico. A exposição rompeu com as fronteiras do espaço expositivo,
levou a arte para o cotidiano da cidade, fez uso da criação artística a partir do local de
realização da obra e criticou fortemente a ditadura. Além de poético, o Manifesto do
Corpo à Terra exemplifica bem como Morais percebia a arte de forma ampla e
inovadora:
Da arte à antiarte, do moderno ao pós-moderno, da arte de vanguarda à
contra-arte (proposições) a abertura é sempre maior. O horizonte da arte,
hoje, é mais impreciso, ambíguo, provável — porém necessário. Situações,
eventos, rituais ou celebrações — individuais ou coletivas — a arte
permanece. Contudo, não se distinguindo mais nitidamente da vida e do
quotidiano. O gelo que desfaz-se, a chama precária da vela, semear o
campo o homem que caminha no Parque. [...] A vida que bate no seu corpo
— eis a arte. O seu ambiente — eis a arte. Os ritmos psicofísicos — eis a
arte. A vida intra-uterina — eis a arte. A supra-sensorialidade — eis a arte.
Imaginar (ou conceber — faça-se a luz) — eis a arte. O pneuma — eis a
arte. A simples apropriação de objetos, de áreas urbanas e suburbanas,
geográficas ou continentais — eis a arte. O puro gesto apropriativo de
situações humanas ou vivências poéticas — eis a arte.23
Enquanto crítico, Morais realizaria neste mesmo ano a exposição A Nova Crítica,
expoente máximo da teoria desenvolvida por ele de uma crítica criativa e não
judicativa. Talvez, a grande atuação vanguardista de Morais esteja justamente na
elaboração teórica e na sua atuação enquanto crítico, melhor detalhadas no Capítulo 2
— Frederico Morais e a revolução da crítica — deste trabalho. Coube a Morais
exercer o papel de expoente do crítico que, de maneira artística, mas sem almejar
substituir o artista, se relaciona com o objeto da crítica no mesmo suporte utilizado
pelo objeto. A evolução da Nova Crítica, assim denominada por Morais, assumiu o
formato dos audiovisuais, nos quais a figura do crítico foi sendo, cada vez mais,
abandonada para dar espaço ao artista.
Mesmo destacando uma ou outra ação vinculada ao que foi a atuação de
vanguarda, como, por exemplo, o esforço isolado de Waldemar Cordeiro para realizar
a mostra internacional de arte-por-computador denominada Arteônica (1971) ou a
mostra Jovem Arte Contemporânea — JAC (1972), no espaço do Museu de Arte
Contemporânea (MAC), ambas em São Paulo, Morais afirma que nada mais de
importante se fez na década, em termos de vanguarda, depois da proposta
revolucionária dos Domingos da Criação (abordados no Capítulo 3). De janeiro a
agosto do ano de 1971, os últimos domingos de cada mês foram ocupados com
23
RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas: Belo Horizonte — anos 60. Belo Horizonte: C/Arte,
1997, p. 297.
20
propostas de consumo criativo, da arte, de uso do espaço e acerca do próprio
significado de domingo, no MAM-RJ. Idealizada e organizada por Morais, essas
ações contaram com participação de vários artistas cariocas e um público que variava
entre 2 a 5 mil pessoas por edição do evento. O uso de todo tipo de material e a
realização por qualquer pessoa, juntamente com a proposição de um novo uso do
espaço, eram as principais premissas da ação.
De certa maneira, a história da vanguarda brasileira se confunde com a história de
Frederico Morais. As ações elencadas, se por um lado não representam a totalidade do
cenário artístico realizado durante o período estudado, por outro, concentram algumas
das mais representativas dentro da História da Arte do país. Ao romper com a
perspectiva da tradição sobre a função da crítica da arte, Morais propôs uma
ressignificação da mesma, atualizando sua função e extrapolando um caráter formal já
inadequado aos novos tempos e às novas aspirações da própria arte. Quando
estabeleceu para si, enquanto crítico, o compromisso com o ato criador, consagrou
uma inevitável aproximação com a função do artista. Propondo, assim, um diálogo —
infindável — entre arte e crítica. Esta última, ao assumir uma linguagem artística,
torna-se uma espécie de comentário sobre a obra, ampliando-a a partir do olhar atento,
e em alguns casos, amoroso, do crítico. Este comentário poético caracterizou a
atuação de Morais. Partindo de um rico repertório de arte, ainda que intuitivo e sem
estudo formal, o crítico-criador explorou suas capacidades por variadas facetas,
incorporando uma maleabilidade de papéis e funções. Se deu ares poéticos à crítica
textual ou se propôs a crítica enquanto gênero literário, foi, contudo, com o
audiovisual que seus comentários transcenderam a crítica e encontraram o auge da
realização artística. Seus trabalhos consistiam em experimentos poéticos, nos quais
imagens eram projetadas simultaneamente a sons captados da vida cotidiana, de
músicas ou de fragmentos narrados, estes podendo ser de sua autoria ou citações.
Sobre os audiovisuais, o crítico Mario Schenberg, em 1973, dizia:
Esse novo desenvolvimento da sua personalidade fez também com que se
despisse de um intelectualismo anterior, substituído por uma vivência mais
profunda e visceral dos problemas fundamentais da nossa época e do seu
reflexo na arte. A realização dos audiovisuais conduziu a uma interação
muito benéfica entre a atividade crítica de Frederico Morais e o seu
desenvolvimento artístico, permitindo um equilíbrio dinâmico e dialético
entre as suas qualidades intelectuais e intuitivas. Hoje ele adquiriu uma
admirável compreensão das afinidades profundas que podem existir entre
manifestações artísticas muito diferentes quanto à sua forma e à sua
linguagem, por vezes até maiores do que as existentes entre as que
21
empregam a mesma forma de expressão.24
24
SCHENBERG, Mario. Frederico Morais: Audiovisuais. 1973. Disponível em:
http://www2.eca.usp.br/cms/index.php?option=com_content&view=article&id=95:frederico-morais-
audiovisuais-&catid=17:artigos-de-mario-shenberg&Itemid=15
25
Depoimento de Frederico Morais em entrevista concedida para este trabalho no dia 26.06.2015.
26
CHAGAS, Tamara Silva. Da crítica à Nova Crítica: as múltiplas incursões do crítico-criador
27
Trecho
retirado do documentário Um domingo com Frederico Morais, dirigido por Guilherme
Coelho, 2011, referente ao texto Chorei em Bruges (1983), de autoria de Morais.
23
CAPÍTULO 2
Frederico Morais e a revolução da crítica
28
WELLEK, René, apud. JUNQUEIRA, Leandro G. Origem e permanência da crítica. Arte e ensaios.
Rio de Janeiro, ano 27, n. 21, p. 124-139, dez. 2010, p. 126.
24
julgamento e fixação de limites. Mas com a Estética, em especial a partir do
pensamento de Immanuel Kant, no século XVIII, se estabelece a noção de crítica que
perdurará até meados do século XX. De acordo com o pensamento kantiano, o juízo
de gosto nasce de uma experiência particular, mas tende à universalidade, na medida
em que a imaginação subjetiva e o entendimento acordam para o ajuizamento acerca
do belo e da arte. O juízo estético subjetivo não é conhecimento (não se fundamenta
em conceitos), mas, por outro lado, ele também não é fruto da simples sensação, e sim
do juízo reflexivo. O surgimento da crítica jornalística especializada se fortalece ao
mesmo tempo em que surge um mercado burguês capaz de absorver a produção de
arte. Cabe à crítica especializada a função de mediadora da arte junto a um público
amplo, mas esta mantém valores semelhantes aos já reconhecidos anteriormente pela
academia. Ela substitui o júri dos salões, mas também resiste às novidades. Em 1890,
a crítica já detém a hegemonia em detrimento da academia. Neste período há um
progressivo abandono de critérios ligados ao tema da pintura em direção àqueles
relacionados aos aspectos puramente formais.
Na obra Teorias da Arte, Anne Cauquelin faz um breve apanhado da história da
crítica de arte para contextualizar as dificuldades desta em relação à arte
contemporânea, quando, em vez da mera descrição, torna-se necessário falar em torno
das obras, trazendo para os ensaios críticos o contexto como fator preponderante.29
Cauquelin estabelece dois modelos primordiais que antecedem a arte contemporânea:
1) Denis Diderot, considerado, ainda que injustamente, o primeiro dos críticos de arte
modernos, faz uso da teoria moral de forma endereçada ao público, comentando as
obras expostas nos Salões (realizados a cada dois anos desde 1667) e, de forma
paradoxal, “mantém o balanço entre a subjetividade do crítico (entusiasmo, emoção,
moral do belo) e a objetividade (informação precisa, ensaio de classificação,
proposições teóricas)” e 2) Clement Greenberg, tido, por alguns, como o maior crítico
do século XX,30 apregoava a especificidade de cada arte e, sobretudo, um retorno à
essência da pintura. Também atuava de forma mais direta sobre a produção dos
artistas e suas reputações, teorizando a prática de seus artistas, no caso específico, os
formalistas.
29
CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 135.
30
CAUQUELIN, Anne. Teorias da Arte. São Paulo: Martins Fontes, 2005, p. 148.
25
No início do século XX, com as vanguardas artísticas, surge a figura do crítico
vanguardista, que não se encaixa em nenhum dos dois modelos apregoados por
Cauquelin. Ele é o defensor do novo, reúne artistas ou se junta a um grupo específico
para apoiar e traçar caminhos para sua arte, e na maioria dos casos, os vínculos de
amizade são ainda mais evidentes que os profissionais. Cauquelin, em seu livro Arte
contemporânea — uma introdução, cita como exemplo de crítico de vanguarda
Guillaume Apollinaire e sua atuação junto aos seus amigos cubistas. Caberia, então, a
este novo personagem, além de teorizar os conflitos de um grupo ou movimento, lutar
contra os conservadores e convencer o público.
Assim como os artistas das décadas de 1960 e 1970 foram comparados aos artistas
de vanguarda do começo do século, definidos por alguns, inclusive, como a
“neovanguarda”, Frederico Morais assume um papel muito próximo a este crítico de
vanguarda, em que atuou de maneira única nas duas décadas acima citadas.
Morais defende e assume uma postura de crítica militante. O contexto artístico da
época mesclava uma ruptura, em escala mundial, com as convenções instituídas e
uma realidade nacional em que o social e a política tiveram forte influência no
trabalho de artistas brasileiros.
De acordo com Tamara Silva Chagas, na sua tese de doutorado intitulada Da
crítica à Nova Crítica: as múltiplas incursões do crítico-criador Frederico Morais,
existem incertezas quanto à data exata das primeiras reflexões publicadas sobre a
problematização do papel da crítica de arte, sendo o ano de 1969 considerado como o
mais provável.31 No entanto, dois anos antes, a questão já tinha sido fortemente
debatida com o episódio ocorrido com a obra O Porco, de Nelson Leirner, no IV
Salão de Arte Moderna do Distrito Federal, no qual o artista questionou publicamente,
em jornal de grande circulação, os critérios utilizados pelo júri para aprovar o seu
trabalho — um porco empalhado dentro de uma cerca de madeira. Esse episódio
gerou polêmica e discussões sobre a questão, assim como respostas dos membros da
comissão julgadora, composta por Mário Barata, Walter Zanini, Mário Pedrosa e
Clarival do Prado Valladares, além do próprio Frederico Morais. Destes, somente
Valladares deixou de responder ao artista. A resposta de Morais dizia:
À crítica aberta não interessa a obra em si, ela não julga mais,
academicamente, os chamados valores plásticos, as qualidades artesanais.
A esta crítica interessa o problema, a proposição e como ela foi resolvida.
31
CHAGAS, Tamara Silva. Da crítica à Nova Crítica: as múltiplas incursões do crítico-criador
Frederico Morais. Espírito Santo: UFES, 2012, p. 16.
26
Para mim tudo é válido, tudo é possível de se transformar em arte: a vida,
o próprio homem. Até o porco do Leirner.32
34
MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 44-50.
28
Em relação ao pensamento de Dewey, que se declara contra a crítica parcial,
diferente, portanto, do crítico militante, sua comparação entre crítico e juiz e a
importância da formação do crítico, por outro lado, se assemelham à postura
defendida por Morais. Este último, inclusive, reforça o caráter aberto de novas e
diferentes abordagens sobre o mesmo objeto, que permeiam tanto a crítica quanto a
história da arte. A formação do crítico, que deve passar por história e teoria da arte,
enriquece o discurso, mas, de acordo com Morais, cabe à crítica ser “amorosa,
envolvente e envolvida”. Teoria que encontra respaldo num dos fundadores da crítica
moderna, Baudelaire. A propósito do Salão de 1846, o poeta francês disse:
Eu creio sinceramente que a melhor crítica é aquela divertida e poética,
não esta fria que sob o pretexto de tudo explicar, não tem ódio nem rancor,
e se despoja voluntariamente de toda espécie de temperamento.35
Roland Barthes, além de afirmar que “toda crítica da obra é crítica de si mesma”,
desenvolveu em seus textos a ideia de Nouvelle Critique, entendendo a crítica como
um discurso (ou linguagem) em segundo grau sobre outro discurso, a linguagem-
objeto, com a qual dialoga. Esta crítica é responsável ainda por colocar a arte em
diálogo com o mundo.
Na sua tese, Chagas chega a sugerir que o termo Nova Crítica tenha surgido a
partir da leitura de textos de Roland Barthes, mas Morais afirma que, a rigor, ainda
não tinha lido os textos do francês quando lhe surgiram as primeiras ideias da Nova
Crítica. Confirma, no entanto, seu interesse posterior pelo crítico literário, em especial
pelo texto em que este responde às críticas feitas pelo também crítico Raymond
Picard (Crítica e verdade, 1966) e suas teorias sobre a crítica amorosa. Em sua tese,
Chagas relaciona os dois teóricos — Morais e Barthes — da seguinte forma:
Pensa-se: a “Nova Crítica” de Frederico Morais, de modo semelhante às
conjecturas de Barthes, coloca-se como um discurso em segundo grau, um
comentário que parte da linguagem do trabalho proposto pelo artista, mas
que possui, concomitantemente, uma linguagem própria, elaborada pelo
crítico. Ela é, portanto, fundamentada na criação. Dessa forma, ela nem se
propõe como reles aparato da obra comentada, nem tenta impor a ela uma
teoria que lhe é exterior e desconectada.36
35
MORAIS, Frederico. Artes plásticas: a crise da hora atual. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 48,
citando BAUDELAIRE, Charles. L’Art romantique. Paris: Garnier, p. 28.
36
CHAGAS, Tamara Silva. Da crítica à Nova Crítica: as múltiplas incursões do crítico-criador
Frederico Morais. Espírito Santo: UFES, 2012, p. 33-34.
29
No que se refere ao pensamento de Michel Ragon, a proximidade com as ideias de
Morais vem da defesa pela crítica militante e teórica, como a que Restany praticava
juntamente aos Novos Realistas. Ragon distingue diferentes tipos de críticos: o crítico
passivo ou voyeur, o crítico-juiz, o crítico teórico e o crítico militante. No livro Les
nouveaux realistes, o pensador francês explicita seu entendimento da crítica enquanto
criação de segundo grau:
No nível em que nos colocamos, o crítico não se contenta em ser um
companheiro do artista. Ele o ajuda a ser ele mesmo. Com frequência ele o
revela ao próprio artista antes de o revelar aos outros. Não apenas indica
novos caminhos em que se engaja a arte, mas inventa esses novos
caminhos ao trabalhar com esses materiais que se constituem pelos
próprios artistas. Situa alguns artistas, vê suas concordâncias, exalta-as, e
outros artistas chegam. Para esses últimos o crítico terá sido um revelador,
não apenas revelador no sentido de “aquele que faz conhecer”, mas
principalmente no sentido com que se emprega essa palavra em
fotografias: “que faz aparecer a imagem latente”. Ele soube expressar antes
deles o que sentiam confusamente. É aí que a crítica se eleva à criação.
Para o crítico teórico, “o artista é o material de que ele se serve para se
exprimir”. É talvez uma forma de criação em segundo grau, mas ela não
está só. O músico que compõe após um poema, o cineasta que [realiza um
filme] após um romance também estão a fazer uma criação em segundo
grau, às vezes, melhor que a original.37
A Nova Crítica consiste, portanto, em uma alternativa criativa e produtora de um
discurso aberto que se contrapõe à crítica tradicional, disseminadora de um discurso
único e explicativo da obra, subtraindo da arte o que nela há de múltiplo e de
contraditório. O crítico-criador Frederico Morais elabora nos anos 1960 suas teorias e
defesas da Nova Crítica e coloca em prática suas conjecturas ao longo da década de
1970.
De acordo com Morais, a Nova Crítica teve início, para ele, durante a mostra
Vanguarda Brasileira, em maio de 1966, na Reitoria da Universidade Federal de
Minas Gerais. O evento, além de marcar sua transição entre Minas e Rio de Janeiro,
figura também como primeira atuação de Morais como curador. O ponto de partida
para o entendimento de um novo papel do crítico de arte surgiu do episódio em que
Morais, juntamente com Antônio Dias e Rubens Gerchman, recriam obras de Hélio
Oiticica, que já trabalhava o conceito de apropriação, tendo defendido, num texto para
a Nova Objetividade Brasileira, o ato como perfeitamente coerente com suas ideias de
recriação da obra. Contrário aos princípios pétreos e à submissão a uma herança, em
37
RAGON, Michael. Da crítica considerada como criação. In: RESTANY, Pierre. Os novos realistas.
São Paulo. Perspectiva: 1979, p. 12.
30
certa medida, caduca, por parte da crítica tradicional, Morais se considerava um
crítico já muito próximo do artista, participante de uma forma intensa da aventura
criativa. Sobre a mostra, ele afirma:
A partir daí começo a repensar o papel do crítico de arte, sem abandonar
minha coluna no jornal, porque era importante também mantê-la, mas
começo a atuar um pouco nesse sentido de me aproximar cada vez mais do
artista e dividir com ele certas tarefas. Esse foi o papel importante dessa
exposição. Para Minas (Gerais) levou um conjunto de artistas, que
significava um processo de atualização, colocou essa questão crítica, e, pra
mim, abriu essa perspectiva que eu fui aprofundando com o tempo.38
39
A partir das leituras dos textos que comentam o fato, não fica claro se a ação era apenas uma série de
jogos de palavras com expressão tão caras a uma perspectiva comunista revolucionária ou se, de fato,
havia, durante a vernissagem, alguma ação física efetuando a “apropriação” e a “desapropriação”.
40
MORAIS, Frederico. Cronologia das artes plásticas no Rio de Janeiro, 1816-1994. Rio de
Janeiro: Topbooks, 1995, p. 311-312.
41
RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas: Belo Horizonte — anos 60. Belo Horizonte: C/Arte,
1997, p. 177.
32
Rio de Janeiro, 18 de junho, Era de Aquário, 1970.42
42
CHAGAS, Tamara Silva. Da crítica à Nova Crítica: as múltiplas incursões do crítico-criador
Frederico Morais. Espírito Santo: UFES, 2012, p. 107.
33
reflexiva, ainda que mais suscetível a modismos e importadora de teorias. Distingue-
se, assim, esta leitura fria, acadêmica, da leitura quente, feita, e valorizada por Morais,
da crítica jornalística, que trabalha com pouco tempo, escrevendo em cima do
acontecimento, para um público, de certa maneira, desconhecido.
Enquanto o crítico perdia espaço, o curador se tornou uma figura fortalecida. Na
visão de Morais, a curadoria seria extensão da crítica de arte, mas da crítica como
criação. Função atribuída a este crítico-criador, engajado e apaixonado, a curadoria
seria no fundo a construção de um texto, que, como todo outro texto, deve ser sedutor.
Ideia condizente com o pensamento de J.-L. Boissier, ressaltada por Cauquelin em
Teorias da Arte:
Talvez, aliás, como pensa e pratica J.-L. Boissier, ‘o novo crítico’ venha a
ser o curador de exposição, o que escolhe, seleciona, sustenta, orienta a
produção a partir das vias que lhe parecem fecundas.43.
45
AMARAL, Aracy. Frederico Morais: da crítica militante à criação artística. In. Frederico Morais —
Audiovisuais. São Paulo: MAM, 12-23 jun. 1973, p. 2.
35
CAPÍTULO 3
Frederico Morais e o espaço público
Num texto que aborda o ensino de arte, Morais cita uma fala, de 1967, feita
durante um Congresso de Cultura, promovido pelo Governo da Guanabara, afirmando
que “a rua é a extensão da escola de belas-artes, a praça a extensão da galeria de arte e
o aterro a extensão do MAM”.47
Como reflexo dessa compreensão de espaços estendidos, há uma ampliação
também que se refere ao processo de aprendizado, na qual o ateliê passa a ser
qualquer lugar da cidade onde estiverem reunidos alunos e professores, definindo
entre si a tecnologia a ser empregada no próprio lugar, a partir do uso do material que
estiver disponível e da proposta a ser desenvolvida. Sobre a relação entre professor e
aluno, caberia ao primeiro perder a mania de ensinar, pois, muitas vezes, a
experiência vem de baixo, e quem aprende é o professor. Defendendo uma
perspectiva que antecede, de certa maneira, a teoria do filósofo Jacques Rancière,48
que, em 1987, publicava seus questionamentos à lógica do pensamento pedagógico
tradicional, este pautado em uma relação de desigualdade, de superioridade e
46
Depoimento de Frederico Morais em entrevista concedida para este trabalho no dia 26.06.2015.
47
MORAIS, Frederico. Artes Plásticas: a crise da hora atual. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 65.
48
Publicação original: RANCIÈRE, Jacques. Le maître ignorant. Paris: Librairie Arthème Fayard,
1987. RANCIÈRE, Jacques. O mestre ignorante — Cinco lições sobre a emancipação intelectual.
Tradução de Lilian do Valle. 2 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2004.
36
inferioridade. Rancière adaptou, mais tarde, suas ideias para a atividade artística,
especificamente para o teatro, no livro O espectador emancipado,49 no qual propõe o
abandono da condição do espectador como observador passivo para que este se torne
participante ativo numa ação coletiva. Esta proposição já era defendida e posta em
prática nos anos 1960, por teóricos — entre eles, Morais — e artistas, como Hélio
Oiticica e Ligia Clark, conforme abordado anteriormente. Retomo o tema em função
da forte identificação desta postura — de uma arte mais aberta, da participação do
público para a realização da obra, do entrelaçamento entre arte e vida cotidiana e da
nova abordagem em relação à atividade criadora — com a apropriação coletiva do
espaço público.
Em julho de 1968, Morais organizou Arte no Aterro — Um Mês de Arte Pública,
exposição em que foram expostas esculturas de Jackson Ribeiro, produzidas com
sucata de ferro e colocadas, sem uso do pedestal, diretamente no chão, em frente ao
Pavilhão Japonês, no Aterro do Flamengo, parque localizado na Baía de Guanabara,
onde se situa também o MAM. Simultaneamente à exposição, ocorriam dentro do
prédio do museu mostras, com duração de uma semana, de trabalhos do grupo
Poema/Processo, com presença e participação do poeta Wlademir Dias-Pino e do
crítico mineiro Márcio Sampaio, além dos artistas Júlio Plaza, Dileny Campos, Wilma
Martins, Ione Saldanha, Pedro Escosteguy e Miriam Monteiro.50 A programação do
evento incluía, aos finais de semana, aulas de Arte e História da Arte ao ar livre, e a
realização de happenings de artistas ligados à arte de vanguarda, como Roberto
Moriconi, que estourou balões e vidros contendo água colorida com tiros de
espingarda, e Hélio Oiticica, responsável pela manifestação final Apocalipopótese, a
mais conhecida entre as ações do evento. Oiticica coordenou um conjunto de
acontecimentos simultâneos e improvisados, gerado por obra de vários artistas, sem
qualquer lógica explícita, senão a criação em nível de participação geral do público.
Entre as obras estavam: Sementes, de Lygia Pape, Apoliroupas, de Sami Mattar, As
três graças do apocalipse, de Roberto Lanari, Urnas quentes, de Antônio Manoel, um
show de cães amestrados, sob o comando de Rogério Duarte (autor do título
Apocalipopótese) e capas de Oiticica, vestidas por passistas da Mangueira, Portela e
49
RANCIÈRE,Jacques. O espectador emancipado. Tradução de Ivone Castilho Benedetti. São
Paulo: WMF Martins Fontes, 2012.
50
CHAGAS, Tamara Silva. Da crítica à Nova Crítica: as múltiplas incursões do crítico-criador
Arte no Aterro teve apoio do jornal Diário de Notícias, que promoveu a ação e
deu total liberdade para Morais, na época, colunista do periódico. Sua divulgação
também rompeu com a prática corrente, sendo eminentemente popular, feita através
de volantes distribuídos aos milhares nas ruas, praias, campos de futebol e outros
locais pouco convencionais para a divulgação artística, no Rio de Janeiro. O intuito
era atrair um público que nunca havia lidado antes com a arte. Via-se a radicalização
em relação à participação do espectador no processo criativo, em favor de uma arte
efetivamente democrática e não hierárquica. Esta ideia era clara para seu realizador e,
ainda que ele assuma haver certa demagogia no texto, os volantes distribuídos à época
deram resultado:
A arte é do povo e para o povo. É o povo que julga a arte. A arte deve ser
levada à rua. Para ser compreendida pelo povo deve ser feita diante dele,
sem mistérios. De preferência coletivamente. Qualquer um pode fazer arte.
E boa arte. Para tanto deve ver obras de arte. E conversar diretamente com
os artistas, críticos e professores.53
51
MORAIS, Frederico. Artes Plásticas: a crise da hora atual. São Paulo: Paz e Terra, 1975, p. 95.
52
Depoimentode Frederico Morais em entrevista concedida para este trabalho no dia 26.06.2015.
53
MORAIS, Frederico. Cronologia das artes plásticas no Rio de Janeiro, 1816-1994. Rio de
54
Publicado
em: TRISTÃO, Mari’Stella. Da Semana de Vanguarda (1). Estado de Minas, Belo
Horizonte, 28 de abril de 1970, p. 5 e TRISTÃO, Mari’Stella. Da Semana de Vanguarda (2). Estado de
Minas, Belo Horizonte, 5 de maio de 1970, p. 5.
55
OLIVEIRA, Fabiana de Castro. Do Corpo à Terra: uma análise do evento. Programa Brasil Arte
Contemporânea. Disponível em:
http://www.emnomedosartistas.org.br/FBSP/pt/ProjetosEspeciais/Documents/fabiana_castro.pdf
http://www.emnomedosartistas.org.br/FBSP/pt/ProjetosEspeciais/Projetos/arquivo%20para%20projeto
s/Artigos%20BAC-%20resumo.pdf
39
Em consonância com algumas das ações mais inovadoras do período, Do Corpo à
Terra foi, no Brasil, ponto alto da Land Art, que, ao abandonar o espaço consagrado
dos museus e das galerias, realizavam-se no ambiente natural — na montanha, no
mar, no deserto, no campo e nos parques das cidades. Dessa maneira, marcava um
retorno metafórico à natureza e uma ação transformadora do artista, visando
estabelecer novas relações entre o homem e seu habitat natural.56 No entanto, a Land
Art não abordava necessariamente questões políticas, tema predominante na ação
ocorrida no país.
Os volantes, assim como ocorrera com Arte no Aterro, foram distribuídos em
cinemas, teatros e campos de futebol. Partia-se, portanto, de uma nova abordagem em
busca de um público menos familiarizado com a arte.
O deslocamento do interior do espaço museológico para o lado de fora se deu
também na primeira incursão de Frederico Morais enquanto artista conceitual. Por
meio da intervenção urbana Quinze Lições de Arte e História da Arte —
Apropriações: Homenagens e Equações, parte integrante da manifestação Do Corpo à
Terra, o crítico-artista estabeleceu um diálogo entre a paisagem urbana de sua cidade
natal e a História da Arte. Fotografias foram tiradas anteriormente à exposição,
retornando como quadros, durante o evento, aos locais que retratavam. As quinze
placas foram instaladas em diversos locais do Parque Municipal, não por acaso, um
espaço de significação afetiva e simbólica para Morais. Continham, além da
fotografia, uma legenda que poderia incluir uma homenagem a um determinado
artista ou a uma personalidade inspiradora do espírito da manifestação, ou poderiam
conter, ainda, uma proposta de equação referente à arte. As fotografias, tiradas por
Maurício Andrés Ribeiro, compunham um outro olhar sobre o espaço, transformado,
simultaneamente, em objeto e local de exposição de arte.
Morais, reavaliando a manifestação ocorrida no ano de 1970, cita sua colaboração,
por meio de correspondência mantida com Luciano Gusmão, a propósito da instalação
Territórios, realizada por este último na área externa do Museu de Arte da Pampulha,
juntamente com Dilton Araújo e Lotus Lobos. A obra consistia numa corda amarrada
a uma pedra, localizada no interior do museu, e estendida até o jardim, funcionando
como uma espécie de cordão umbilical. Em carta, datada de 4 de fevereiro do mesmo
ano, Morais declarava:
56RIBEIRO, Marília Andrés. Neovanguardas: Belo Horizonte — anos 60. Belo Horizonte: C/Arte,
1997, p. 49.
40
Hoje, só tem vitalidade a arte que está inteiramente do lado de fora dos
museus e galerias. Melhor que o Palácio das Artes é o Parque Municipal
em torno. Melhor que a sala de exposições da Reitoria é aquele vazio, em
derredor. Melhor que o Museu da Pampulha, é a montanha que está
próxima.57
No entanto, foi no ano de 1971 que o exercício de busca pela ativação do espaço
público por meio da arte chegou ao seu ápice. Entre janeiro e julho, no último
domingo de cada mês, o MAM-RJ servia de palco para os Domingos da Criação.
Durante seis meses, uma vez por mês, toda a área externa do museu era ocupada por
manifestações de livre criatividade, desafiando o, até então, usual no que se referia à
função do museu, à relação entre artistas e público, ao uso de novos materiais e ao
próprio conceito de domingo.
Morais associou a função lúdica do museu ao museu de arte pós-moderna — em
contraposição à arte moderna, ultrapassada diante da realidade de detritos, ambientes
e manifestações plurissensoriais — e à arte enquanto necessidade vital e, portanto,
social, do homem. De acordo com o crítico, o museu, sendo um bem da coletividade,
deveria criar condições efetivas para que o “desejo estético do corpo social” se
realizasse plenamente. Seria, portanto, meta deste museu de arte pós-moderna
transformar o lazer em atividade criadora.58
O objetivo agora será a atividade criadora, a experiência, buscando-se
aproximar a arte da experiência cotidiana, tal como aliás, pensava Dewey.
Em sua obra clássica, A Arte Como Experiência afirma que “esta tarefa
consiste em restaurar a continuidade entre as formas refinadas e intensas
da experiência, que são as obras de arte, e os acontecimentos, fatos e
sofrimentos diários que são reconhecidos universalmente como
construtivos da experiência”.59
41
ser exercida em qualquer campo, contribuindo para formar pessoas saudáveis. Esta
ideia corrobora outra de Morais, enxergando a arte, além do seu benefício direto ou
imediato, como instrumento de mudança na própria vida. Ao dizer que gostaria de
rever alguns participantes dos Domingos da Criação, o faz com a certeza de ter
exercido forte impacto em suas vidas, através do contato com esses momentos de
êxtase criativo, coletivo e compartilhado. Sendo assim, a nova função deste museu
fortemente atrelado ao público foi capaz de deflagrar nas pessoas um senso de
liberdade, como diz Cildo Meireles, em depoimento no filme Um domingo com
Frederico Morais (2011), do diretor Guilherme Coelho. Já Esther Jablonski, em fala
no mesmo filme, assinala o despertar de um senso de transcendência. Segundo o
próprio Morais, esta é a fala de maior impacto, para ele, dentro do documentário. Para
Jablonski, a arte e a cultura, a ela acessíveis por meio dos encontros aos domingos,
eram um acolhimento para suas angústias adolescentes. Para Morais, o museu era
fuga e ao mesmo tempo busca de soluções. O crítico ainda provoca ao afirmar que
este deveria ser o desafio dos curadores: pensar opções para que a conclusão do
contato com a arte se realize fora do que está sendo visto. Porque se a arte ocupou o
lado de fora do museu, o entendimento da arte também não se restringe ao espaço
expositivo.
Se coube à instituição adequar seu caráter a uma nova realidade, à arte coube a
aproximação com a vida cotidiana.
A arte não pode ser nunca encarada como um valor intocável, absoluto,
acima e maior do que o homem. A verdadeira compreensão da arte só pode
se dar na experiência diária do cotidiano.60
Vale ressaltar que o termo “para fora”, tão utilizado por Morais, inclui em seu
entendimento essa dissolução da arte no cotidiano. A frequência de um público
numeroso e diversificado ampliou esta compreensão, e a participação dos
espectadores substituiu o ver pelo fazer e a contemplação pela ação. Aproximar a arte
do cotidiano era tirá-la da torre, trazê-la para a vida normal.
Carlos Vergara confirma o caráter político de Domingos da Criação, afinal de
contas, eram os anos de chumbo. Mas reconhece como a maior marca da ação a
quebra da distância entre artista e público.61 A ideia não era promover cursos ou
60
MORAIS,
Frederico. Ver o mundo pela primeira vez. O Globo, janeiro, 1977, sem página.
61
Depoimento para o documentário Um domingo com Frederico Morais, dirigido por Guilherme
Coelho, 2011.
42
colocar os artistas ensinando ou orientando os participantes, postura contrária à
proposta original, mas atribuir aos artistas a responsabilidade de iniciar os processos
criativos. A democratização da arte decorria desta igualdade entre artistas e público.
Colocar o espectador dentro da obra de arte (como fizemos na série
“Domingos da Criação”) é pólo oposto, desaliená-lo duplamente. Acelerar
o processo de compreensão da obra de arte a partir de um relacionamento
direto com a criação, dando ênfase à experiência revelando potencialidades
e provocando iniciativas. Podendo realizar a obra o espectador rompe o
mistério, e o processo de compreensão vem como que por “insight”, como
uma forma de aprofundamento imediato. 62
65
VELASCO, Suzana. Domingo no parque. O Globo, Rio de Janeiro, 17 out. 2010. Disponível em:
http://encontros.art.br/wp-content/uploads/10/Capa-Segundo-Caderno.jpg.
44
CONCLUSÃO
O melhor que poderia se dizer da função da arte é que ela nos coloca
diante do mundo como se pela primeira vez. Este estado de espírito do
achar, de se descobrir encantado diante do mundo, do maravilhar-se. E se,
para alguns filósofos gregos, este é o princípio de filosofar, poderia dizer
também que este é o comportamento que leva à arte.66
47
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
FERREIRA, Glória. Cecília (Orgs). Escritos de artistas: anos 60/70. Rio de Janeiro:
Jorge Zahar, 2006.
MORAIS, Frederico. Artes Plásticas: a crise da hora atual. São Paulo: Paz e Terra,
1975.
VELOSO, Caetano. Verdade tropical. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
VENTURA, Zuenir. 1968: o ano que não terminou. Rio de Janeiro: Objetiva, 2013.
Periódicos
ARAÚJO, Olívio Tavares de. Cartas sobre a vanguarda (I). Diário de Minas, Belo
Horizonte, 1965.
MORAIS, Frederico. Ver o mundo pela primeira vez. O Globo, Rio de Janeiro, 1977.
Sites
Outros
50
ANEXO I
CRONOLOGIA — FREDERICO MORAIS
1964
-‐ XIX Salão Municipal de Belas-Artes
Museu de Arte da Pampulha, Belo Horizonte, de 30 de março a 20 de
dezembro.
Considerado como um ponto de inflexão na arte mineira, esta edição do
evento é tida como um marco para o surgimento da arte contemporânea em
Belo Horizonte. Em depoimento concedido a Frederico Morais, Jarbas Juarez,
um dos artistas participantes no Salão, propõe uma espécie de manifesto
contra o “estilo mineiro de pintar”. A polêmica gira em torno da visão
cristalizada da cultura mineira e, em especial, da influência do mestre
Guignard na arte produzida pelos mineiros. A entrevista, supostamente lida
por Mário Pedrosa, que era então presidente do júri, formado ainda por José
Geraldo Vieira, Clarival do Prado Valladares, José Joaquim Carneiro
Mendonça e Mari’Stella Tristão, é publicada antes da definição dos
premiados. Juarez acaba sendo um dos principais premiados, pela obra
Composição em preto. Após a publicação do manifesto, Morais oferece apoio
ao desenvolvimento de propostas experimentais em Belo Horizonte e publica
uma série de reportagens no Suplemento Dominical do Estado de Minas, nas
quais proclama: “Rei morto, rei posto. Guignard, o grande derrotado no Salão
Municipal de Belas-Artes”; “Salão Municipal de Belas-Artes”;. “Contra o
estilo mineiro de pintar: uma revolução em progresso”.
1966
-‐ Mostra Vanguarda Brasileira
Reitoria da Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 25 de
julho.
Exposição-happening, seguida de debate, acompanhada de cartaz-catálogo
com informações e depoimentos dos artistas, e com a reflexão crítica de
Frederico Morais sobre a vanguarda. Foi considerado o evento mais polêmico
do ano realizado em Belo Horizonte. Na ocasião, Morais defende o “objeto”
como uma situação nova, que configura ou é o veículo mais adequado para
expressar as novas realidades propostas pela arte pós-moderna. Sofreu
51
influência do Novo Realismo (Pierre Restany proclamava a volta de um novo
humanismo centrado nos problemas sociais e políticos de cada país), tema
debatido pela própria nova vanguarda brasileira.
Reuniu os expositores de Pare, exposição realizada na Galeria G-4, no Rio de
Janeiro, no mesmo ano: Rubens Gerchman, Carlos Vergara, Antônio Dias,
Pedro Escosteguy e Hélio Oiticica, além de Ângelo Aquino, Dileny Campos,
Maria do Carmo Secco e Roberto Magalhães.
Evento essencial para a análise do trabalho de Morais, pois marca sua
transição entre Minas Gerais e Rio de Janeiro. Ao mesmo tempo em que
realiza seu último evento em Belo Horizonte, Morais leva para Minas um
grupo de artistas atuante na capital fluminense. Esta exposição se destaca
ainda por ser a primeira ação de Morais como curador e por ser o ponto de
partida para o entendimento do crítico assumindo um novo papel.
Por seu caráter polêmico, marcou profundamente a arte mineira, abrindo
novos caminhos para os artistas locais, entre eles Teresinha Soares e José
Ronaldo Lima.
-‐ Em agosto, Frederico Morais e sua esposa, Wilma Martins, instalam-se no Rio
de Janeiro. Morais assume a coluna diária sobre arte do jornal Diário de
Notícias.
1967
-‐ IV Salão de Arte Moderna do Distrito Federal ou Salão de 67
Teatro Nacional Cláudio Santoro, Brasília, de dezembro de 1967 a fevereiro
de 1968.
Coordenado por Frederico Morais, inclui pela primeira vez num regulamento
de um salão de arte brasileiro o objeto como categoria. Apesar de ser contrário
ao rótulo do objeto em qualquer meio particular de expressão, Morais assume
a contradição com o intuito de ampliar a discussão. Considerado polêmico, o
evento ficou marcado, ainda, pelo impasse do júri na premiação, indeciso
entre João Câmara, Anchises Azevedo e Hélio Oiticica, fato que resultou na
premiação dos três e na publicação do documento Declaração dos Princípios
do Júri. Além de Morais, o júri era formado por Clarival do Prado Valladares,
Mário Pedrosa, Mário Barata e Walter Zanini.
52
O Salão ficou conhecido pela polêmica em torno dos critérios utilizados pela
crítica, após publicação em veículo de grande circulação de um
questionamento, por parte do artista Nelson Leirner, quanto à aceitação de sua
obra O Porco pela comissão julgadora do Salão. Os membros do júri também
se posicionaram publicamente quanto à questão.
1968
-‐ Arte no Aterro — Um Mês de Arte Pública
Aterro do Flamengo, Rio de Janeiro, de 06 a 28 de julho.
Organizado por Frederico Morais, com apoio do jornal Diário de Notícias, a
base do evento é a exposição das esculturas de Jackson Ribeiro, com as obras
colocadas diretamente no chão, defronte ao Pavilhão Japonês. Paralelamente,
são realizadas no interior do pavilhão exposições, com duração de uma
semana, de Dileny Campos, Miriam Monteiro, Ione Saldanha, Júlio Plaza,
Pedro Escosteguy e do grupo Poema/Processo, e, aos domingos à tarde,
eventos como os de Roberto Moriconi, Hélio Oiticica e Rogério Duarte,
Antônio Manuel, Lygia Pape e Roberto Lanari. Ainda aos finais de semana,
eram dadas aulas de Arte e História da Arte.
-‐ No dia 13 de dezembro, é decretado o Ato Institucional no 5 (AI-5).
1969
-‐ I Salão da Bússola
Museu de Arte Moderna (MAM), Rio de Janeiro, de 05 de novembro a 05 de
dezembro.
Ainda que não fosse a proposta do evento, o Salão da Bússola acabou se
tornando um marco da ação artística de vanguarda do período, sendo
considerado por Morais como “o único grito da vanguarda” neste ano. Em
função de uma especificidade do regulamento, que incluía, entre as possíveis
linguagens artísticas participantes, a categoria etcétera, várias obras de
vanguarda, que não puderam ser apresentadas em mostras censuradas pelo
governo, foram exibidas, transformando o Salão numa síntese da nova arte
brasileira vanguardista. Frederico Morais compunha o júri junto com Mário
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Schemberg e Walmir Ayala. Por meio das premiações concedidas, pode-se
dizer que o Salão praticamente lançou a chamada Geração AI-5 ou o que
passou a ser chamado de Contra-Arte.
-‐ Frederico Morais divulga no Brasil as primeiras exposições de arte conceitual:
Live in your Head — When Attitudes Become Form, realizado em Berna, e
Conceptual Art — No Object, organizada pelo Museu de Leverkusen, que só
existiu no catálogo, considerado conteúdo e suporte da mostra.
-‐ Sob a coordenação de Frederico Morais, o Museu de Arte Moderna realiza
ampla reforma de seus cursos, visando maior integração entre eles, bem como
o atendimento a um público diversificado. Juntamente com Cildo Meireles,
Guilherme Vaz e Luiz Alphonsus, Morais cria e coordena a Unidade
Experimental do Museu de Arte Moderna do Rio de Janeiro, que funcionava
no bloco-escola do museu. Encarada como laboratório de linguagem, a UE
pretende explorar ao máximo a capacidade lúdica do ser humano. Durou cerca
de um ano e promoveu além de debates, um concerto de Guilherme Vaz, um
curso de Cildo Meireles e uma importante pesquisa sobre os frequentadores do
MAM, incluindo os espaços internos e externos.
1970
-‐ Semana de Arte de Vanguarda
Grande Galeria do Palácio das Artes, Parque Municipal, ruas, serras e
ribeirões da cidade, Belo Horizonte, de 17 a 21 de abril.
Coordenada por Frederico Morais, a pedido de Mari’Stella Tristão, dentro do
contexto do Salão de Ouro Preto,67 trata-se da realização de dois eventos
simultâneos: a exposição Objeto e Participação (Palácio das Artes) e a
67
Não há consenso quanto a um suposto vínculo entre a Semana de Arte de Vanguarda e o Salão de
Ouro Preto realizado no mesmo ano. Embora Frederico Morais negue a realização da primeira como
parte integrante da segunda, a bibliografia trabalhada sugere, embora não declare explicitamente, uma
ligação entre ambos. O vínculo mais evidente é o envolvimento de Mari’Stella Tristão nos dois
eventos, primeiramente por ter convidado Morais para realizar uma exposição de vanguarda em função
da recente criação do Palácio das Artes, e para ser o responsável pelo Salão da cidade histórica mineira.
Mas, em alguns casos, existe uma ambiguidade em relação ao tema, como mostra trecho do texto de
Morais (sem data) que revisa Do Corpo à Terra: “A iniciativa foi de Mari’Stella Tristão, diretora do
setor de exposições do recém-criado Palácio das Artes e idealizadora, também, do Salão de Ouro Preto,
que a cada ano se ocupava de uma categoria estética. Pelo sistema de rodízio, em 1970 seria a vez da
escultura. Convidado por Mari’Stella a fazer a curadoria do Salão daquele ano, que seria realizado
excepcionalmente no Palácio das Artes, substituí a escultura pelo objeto, ao mesmo tempo que incluí
como área de atuação dos artistas o Parque Municipal”. Ou ainda, o site Do objeto para o mundo —
Coleção Inhotim, que vincula diretamente as duas mostras ao comentar a obra de Décio Noviello,
participante da manifestação histórica ocorrida em Belo Horizonte no ano de 1970.
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manifestação Do Corpo à Terra (Parque Municipal de Belo Horizonte).
Promovido pela Hidrominas (estatal responsável pela exploração dos recursos
hidrominerais e pelo fomento do turismo em Minas Gerais) para comemorar a
inauguração do Palácio das Artes e a Semana da Inconfidência.
De caráter amplo, experimental e coletivo, é tida como uma das realizações
mais significativas de vanguarda no Brasil. Foi ainda considerada o ponto alto
da influência da Land Art no país.
A ocasião marca a participação de Morais como artista conceitual
apresentando Quinze Lições sobre Arte e História da Arte — Homenagens e
Equações, em que fotografias da paisagem urbana foram colocadas nos locais
fotografados para serem vistas pelos transeuntes como quadros em exposição
ao ar livre.
1971
-‐ Domingos da Criação
Museu de Arte Moderna, Rio de Janeiro, de janeiro a julho.
No último domingo de cada mês, o MAM realizava manifestações,
organizadas por Frederico Morais, de livre criatividade com uso de novos
materiais, num total de seis eventos. A proposta discutia o próprio conceito de
domingo, abrangendo um teor de lazer criativo contra o consumo
estereotipado dos gadgets e dos clubes sociais. Colocando em questão vários
temas contemporâneos, os Domingos da Criação tornaram-se uma referência
para projetos semelhantes em todo o país.
-‐ Em 25 de janeiro, surge o Centro Brasileiro de Crítica de Arte, dissidência da
Associação Brasileira de Críticos de Arte, comandada por Frederico Morais,
Waldemar Cordeiro, Roberto Pontual, Mário Barata e Maria Eugênia Franco.
No documento em que anunciam seu desligamento da ABCA, os signatários
afirmam a necessidade de o crítico desenvolver efetivamente uma crítica-arte,
e concluem que “criar e criticar constituem um mesmo ato”. Registrou-se um
tom agressivo e grande polêmica nos embates travados entre as instituições,
mas, de fato, o CBCA teve vida curtíssima e nada fez na prática.
1973
-‐ Frederico Morais – Audiovisuais
Museu de Arte Moderna, São Paulo, de 12 a 26 de junho.
A partir da década de 1970, Morais passou a usar também a linguagem poética
audiovisual para fazer seus comentários críticos. Após realizar o primeiro
audiovisual, em 1970, Morais elaborou uma série de peças que comentavam o
trabalho artístico, ironizavam os júris dos salões, discutiam a própria
linguagem audiovisual ou faziam referência à sua história pessoal. Participou e
foi premiado em diferentes exposições. Entre os seus principais audiovisuais,
realizados até a data da exposição Audiovisuais, que reuniu os trabalhos de
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Morais, constam: Memória da paisagem (1970), O pão e o sangue de cada um
(1970), Cantares (1971), Carta de Minas (1971/1972), O júri (1971/1972),
Klee (1972), Volpi (1972), Curriculum Vitae I e II (1972) e Água (1973).
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