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ROGÉRIO
BORGES
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POPULAR 1 Alberto Rassi ............................................. 4
2 Altamiro de Moura Pacheco........................... 6
3 Amália Hermano......................................... 8
4 Amado Batista ......................................... 10
5 Ana Maria Pacheco .................................... 12
6 Antônio Poteiro ........................................ 14
7 Attilio Correa Lima.................................... 16
8 Bariani Ortencio ....................................... 18
9 Basileu França ......................................... 20
10 Belkiss Spenciére...................................... 22
11 Bernardo Élis........................................... 24
12 Bernardo Sayão ........................................ 26
13 Boogarins ............................................... 28
14 Carmo Bernardes ...................................... 30
15 Célia Câmara........................................... 32
16 Cici Pinheiro ........................................... 34
17 Coimbra Bueno ........................................ 36
18 Colemar Natal e Silva ................................ 38
19 Cora Coralina ......................................... 40
20 Coronel Hipopota ..................................... 42
21 Cristiana Toscano..................................... 44
22 Dom Pedro Casaldáliga ............................... 46
23 Dom Fernando Gomes ................................ 48
24 Dom Tomás Balduíno.................................. 50
25 Egídio Turchi e Celenita Turchi...................... 52
26 Elder Rocha Lima...................................... 54
27 Família Matteucci ..................................... 56
28 Fernandão .............................................. 58
29 Frei Nazareno Confaloni ............................. 60
30 Geraldo Faria .......................................... 62
31 Geraldinho ............................................. 64
32 Goiandira do Couto ................................... 66
33 Gustav Ritter........................................... 68
34 Hélio de Oliveira ...................................... 70
35 Henrique Rodovalho .................................. 72
36 Hugo de Carvalho Ramos ............................ 74
37 Iris Rezende ............................................ 76
38 Jaime Câmara ......................................... 78
39 Janildes Fernandes.................................... 80
40 Jesco Von Puttkamer ................................. 82
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41 João Bennio ................................................... 84


42 João Malandro ................................................ 86
43 Joaquim Câmara ............................................. 88
44 Joaquim Jayme ............................................... 90
45 José Hidasi .................................................... 92
46 José J. Veiga .................................................. 94
47 José Júlio Rosenthal ......................................... 96
48 José Porfírio................................................... 98
49 Leandro & Leonardo ........................................ 100
50 Leide das Neves ............................................. 102
51 Leodegária de Jesus ........................................ 104
52 Leolídio di Ramos Caiado .................................. 106
53 Leopoldo de Bulhões........................................ 108
54 Marconi Perillo............................................... 110
55 Maria Guilhermina .......................................... 112
56 Marietta Telles Machado ................................... 114
57 Marília Mendonça............................................ 116
58 Mauricinho Hippie ........................................... 118
59 Mauro Borges................................................. 120
60 Nabyh Salum ................................................. 122
61 Nelson Piccolo ............................................... 124
62 Neusa Moraes ................................................ 126
63 Nhanhá do Couto ............................................ 128
64 Otavinho Arantes ............................................ 130
65 Octo Marques ................................................ 132
66 Padre Pelágio ................................................ 134
67 Pedro Ludovico .............................................. 136
68 Pompeu de Pina ............................................. 138
69 Regina Lacerda .............................................. 140
70 Rosarita Fleury .............................................. 142
71 Santa Dica .................................................... 144
72 Seu Donca .................................................... 146
73 Siron Franco.................................................. 148
74 Taylor e José Modesto Oriente/Olavo e Othelo Tormin .....150
75 Tia Tó ......................................................... 152
76 Toniquinho de Jataí ......................................... 154
77 Veiga Valle ................................................... 156
78 Venerando de Freitas Borges .............................. 158
79 Vicente Rebouças ........................................... 160
80 Wanderley Magalhães....................................... 162
81 Washington Novaes ......................................... 164
82 Zacharias Calil ............................................... 166
83 Zezé de Camargo & Luciano............................... 168
84 Zoroastro Artiaga............................................ 170
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Alberto
Rassi
O sobrenome
da Medicina
E
m Goiás, quando se fala na família Rassi, a associação com a área da Medicina é
imediata. Não dá para ser diferente. Este sobrenome é ligado ao pioneirismo na
área, sobretudo em Goiânia, onde batiza hospitais e conta muito da história que faz
de Goiás um centro de referência em diversas especialidades. E tudo começou com
viagens por oceanos, decisões tomadas com determinação e vocações inegáveis para
investir existências inteiras a curar o outro. O primeiro membro do clã a se dedicar à
área foi Alberto Rassi, um dos filhos mais velhos de Abrão e Mariana.

“Meu avô nasceu em uma cidade do Líbano, Cheikn-Taba, que na época pertencia
à Síria”, relata o também médico Alberto Rassi Filho. No momento em que o mundo
estava conturbado, Abrão migrou, ainda criança, para a Espanha e, em seguida, para
Cuba, onde ficou por um período, voltando ao Líbano algum tempo depois. “Ele se
casou com minha avó e retornaram a Cuba, onde nasceram os seis primeiros filhos,
inclusive meu pai”, conta Alberto. Quando decidiram vir para o Brasil, já haviam
nascido, além de Alberto Rassi, Salvador, Leonardo, Luís, Glória e Aurora.
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“Eles deveriam ter descido em Santos, mas houve um problema e o porto estava
fechado. Acabaram aportando no Rio de Janeiro, sem conhecerem ninguém”, diz
Alberto. A única referência que tinham era uma comunidade libanesa oriunda da
mesma região da família e que morava em uma pequena cidade do interior. Os
trilhos da estrada de ferro terminavam nela: Vianópolis. Goiás entrava em cena.
“Aqui nasceram os outros filhos, os tios João, Fued, Raul, Anis e Afif ”, elenca Alberto.
Seu pai foi o primeiro a ir para o Rio de Janeiro, em 1940, cursar Medicina, mas isso
não foi simples.

“Meu pai foi cursar o que corresponderia hoje ao Ensino Médio em São Paulo,
mas chegando lá viu seus primos estudarem e quis fazer isso. Um irmão do meu
Este sobrenome avô decidiu ajudá-lo, mas o plano inicial era que ele voltasse a Vianópolis para
é ligado ao ser alfaiate.” Não voltou, formou-se médico e ainda possibilitou que outro de seus
pioneirismo irmãos, Luiz, fizesse o mesmo caminho. “Meu pai, antes de voltar, aperfeiçoou
na área, sua formação no Hospital das Clínicas de São Paulo, que já era um modelo para o
Brasil.” Quando retornou a Goiás, Alberto Rassi já encontrou a família instalada em
sobretudo Goiânia.
em Goiânia,
onde batiza Começava uma nova saga. “Ele recebeu um apoio muito grande do Dr. Mário
hospitais e da Costa Galvão, de quem acabou comprando o Instituto Médico-Cirúrgico de
conta muito da Campinas. Logo ele rebatizou o hospital para Casa de Saúde Dr. Rassi”, informa
história que Alberto Rassi Filho. Com o tempo, novos membros da família, como Anis Rassi,
passaram a entrar na área. Uma nova unidade foi construída perto do Lago das
faz de Goiás Rosas e ganhou o nome de Hospital Rassi. Em 1963, o local foi vendido para o
um centro de Instituto de Previdência do Estado e se tornou o Hospital Geral de Goiânia (HGG).
referência
em diversas “Com isso, meu pai construiu o Hospital São Salvador. Foi dentro desse hospital,
especialidades. trabalhando, atendendo, que meu pai faleceu em 1997, aos 82 anos de idade”,
recorda o filho. “Meu pai era de um tempo em que o médico fazia de tudo, em que
não havia tantas especialidades. A formação precisava ser ampla.” Provavelmente,
Alberto Rassi, o pai, não poderia imaginar que seu exemplo seria seguido por tantos
integrantes da família. “Já estamos na terceira geração de médicos. Acredito que
entre os Rassi existam mais de 100 médicos, mas não tenho certeza”, comenta o filho.

Sim, há também engenheiros, farmacêuticos, advogados com o sobrenome


Rassi. Mas é claro que a Medicina ainda é mais forte. Um dos irmãos mais jovens
de Alberto, Anis Rassi, dá nome a um hospital de referência em Goiânia. Lá atuam
outros integrantes da família, como o cirurgião cardíaco Sérgio Rassi, que já foi
presidente do Goiás Esporte Clube. Um outro irmão de Alberto, Luiz Rassi, o
segundo a seguir a carreira, morreu em 2016. Em cada um que parte, em cada um
que chega, a força dessa família na Medicina em Goiás é lembrada e confirmada.

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Altamiro de
Moura Pacheco
O homem das
terras de Goiânia
Q
uem pega a estrada que liga Goiânia a Brasília, passa, logo ao sair da capital goiana,
por uma enorme área verde, onde está o lago que deverá, no futuro, abastecer a zona
metropolitana de água. Esse verdadeiro pulmão natural, com quase 3.200 hectares,
leva o nome do antigo proprietário da fazendona onde a gigantesca porção de
Cerrado nativo foi preservada. É o Parque Ecológico Altamiro de Moura Pacheco,
homenagem a uma das personalidades que ajudaram a moldar os destinos do Estado
a partir de meados do século passado.

“Ele teve uma grande importância”, confirma o historiador Antônio Pinheiro


Caldas, diretor do Instituto de Pesquisas e Estudos Históricos do Brasil Central,
da PUC Goiás, que coordenou a Casa de Cultura Altamiro Pacheco, cuja sede é
na antiga residência do fazendeiro, um casarão situado na Avenida Araguaia e que
passou por restaurações recentes. “Ele era um progressista em muitos sentidos.
Quando a agropecuária em Goiás estava em seu início, ele criava gado de qualidade
7

e distribuía entre outros fazendeiros para que melhorassem seus rebanhos”, relata o
pesquisador.

Essa influência levou Altamiro a ser o fundador da Sociedade Goiana de Pecuária


e Agricultura (SGPA), em 1941. “Interessante é que ele tinha um pensamento bem
diferenciado. Ele compra sua grande fazenda no entorno da nova capital em 1938 e
reserva 70% da área para uma gigantesca reserva ambiental. Ele foi extremamente
ecológico já naquela época”, salienta Antônio. O peso do nome de Altamiro também
foi importante na construção de Brasília. “Ele convenceu os donos das terras onde a
nova capital seria construída para que aceitassem as desapropriações”, enfatiza.

“Existe até uma carta pessoal enviada por Juscelino Kubitschek mostrando sua
Nascido em gratidão pelo trabalho do Altamiro. E ele fez todo esse esforço gratuitamente, porque
ele via na construção de Brasília uma grande oportunidade de desenvolvimento do
Bela Vista em Estado. Altamiro chegou a participar da comissão que criou a Novacap, empresa que
1896, Altamiro ficou incumbida das obras de Brasília”, informa Antônio Caldas. “Ele gostava muito
Pacheco de viajar. Esteve em várias partes do mundo. Altamiro foi um homem que se fez
primeiramente sozinho. Ele ficou órfão de pai ainda muito cedo.”
cursou
Nascido em Bela Vista em 1896, Altamiro Pacheco primeiramente cursou
Farmácia
Farmácia na cidade de Goiás e depois se formou médico na antiga Faculdade de
na cidade Medicina Fluminense, em Niterói. Quando isso aconteceu, ele já era um homem um
de Goiás e pouco mais velho que a média de idade dos universitários. Sua opção foi retornar
depois se para a sua cidade, montando uma farmácia por lá. Quando Goiânia se consolidava
formou médico como um novo centro urbano, mudou-se para a cidade que seu colega médico Pedro
na antiga Ludovico Teixeira fundara e aqui criou o Instituto Médico-Cirúrgico.
Faculdade
A fazenda de Altamiro Pacheco percorria as margens do Ribeirão João Leite até
de Medicina desembocar no Rio Meia Ponte. “Ele vendeu várias chácaras e doou áreas. Uma
Fluminense, em delas foi a destinada para a construção do aeroporto de Goiânia. Mas ele fez duas
Niterói. exigências”, revela Antônio Caldas. “A primeira é que deveria ser um aeroporto
internacional. A segunda é sobre o nome. A mãe dele se chamava Genoveva. Por isso
o aeroporto se chama Aeroporto Santa Genoveva, como uma homenagem. E isso
também vale para o nome do bairro e do hospital que também estão onde antes era a
fazenda.”

Antônio conta uma curiosidade sobre Altamiro. “Na barra do João Leite com o
Meia Ponte, havia uma grande árvore. Há uma foto dele com o primeiro prefeito,
Venerando de Freitas Borges, tentando abraçar essa árvore. Um dia ele discutiu com
um homem que pescava com bomba no local e ele não gostava. Para se vingar, o
homem colocou fogo na árvore. Aquilo abalou seu Altamiro.” Amante da natureza e
da cultura, ele, pouco antes de morrer, aos 100 anos de idade, doou seu imóvel, com
a ampla biblioteca. Também vendeu a preço baixo a área do Parque Ecológico.

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Amália
Hermano
A dama das orquídeas
Q
uando o tempo ajudava, Amália Hermano e seu marido, Maximiano da Matta
Teixeira, subiam numa velha Rural que encarava qualquer tipo de estrada e sumiam
no mundo. O destino? Os ermos do Cerrado. O objetivo? Caçar tesouros. “Eles
percorriam todo o Estado de Goiás e o que hoje é o Tocantins. Iam até o fim do
mundo atrás das orquídeas”, revela o geógrafo Bento Fleury Curado, que conviveu
com a escritora durante muitos anos, atuando como secretário, datilógrafo e
organizador de seus trabalhos. “Eu a conheci assim, enquanto ela procurava as
flores.”

Quando era pequeno, Bento vivia em uma fazenda nas proximidades da cidade
de Goiás. Certo dia, o casal chegou à propriedade para explorar o terreno em busca
de orquídeas. “Mais tarde, quando já morava em Goiânia, nós nos reencontramos.”
A paixão de Amália havia crescido ainda mais. “Ela catalogou a maior parte das
orquídeas do Cerrado e até encontrou uma espécie nova, que foi batizada com seu
nome. É a Cattleya Nobilior Amaliae, que ela encontrou na Serra Dourada”, informa
9

Bento. Esse conjunto valioso de informações foi resgatado após sua morte.

Bento Fleury e outros pesquisadores buscaram preservar sua obra escrita e


os estudos que Amália Hermano desenvolveu até o final da vida. “Ela tinha um
projeto muito ambicioso de escrever a História de Goiás em oito volumes, uma
obra que teria cerca de 5 mil páginas. Ela ia escrevendo e eu ia datilografando em
uma máquina Olivetti e organizando. Conseguimos fazer isso com cerca de 1.200
páginas”, afirma o geógrafo. “Boa parte desse acervo ficou comigo, cedido pelo irmão
da Amália, o José Hermano”, acrescenta. Outra parcela virou um livro póstumo,
Bento Fleury lançado em 2011.
e outros
pesquisadores Na edição de 26 de maio daquele ano, O POPULAR publicou uma ampla
buscaram reportagem abordando o trabalho, que foi organizado pelas pesquisadoras
Eleuzenira Menezes e Janete Fontanezi. História de Goiás, que corresponderia
preservar sua ao primeiro volume do trabalho idealizado por Amália, é dividido em três partes
obra escrita e principais, intituladas O Território, Bandeiras e Bandeirantes e Ouro e Minas. Cada
os estudos que qual é dedicada a um momento específico da formação do Estado, indo daqueles que
Amália Hermano aqui habitavam desde tempos mais remotos e chegando ao ciclo do ouro, do auge à
desenvolveu decadência.
até o final da
Na ocasião, as organizadoras salientaram o fato de o trabalho ser resultado de
vida. “Ela tinha mais de três décadas de pesquisas realizadas por Amália Hermano. Ela, porém,
um projeto não chegou a sequer esboçar a conclusão, o que faz de História de Goiás um livro
muito ambicioso inevitavelmente não finalizado. Deixar um trabalho pela metade não era uma
de escrever característica que a metódica autora tinha em seu cotidiano. “Ela era extremamente
a História de disciplinada”, diz Bento. Ele conta que seus horários eram observados com rigor.
“Ela atendia todo mundo, mas só nas horas estabelecidas. Sua rotina era bem
Goiás em oito
estruturada.”
volumes, uma
obra que teria Esse dia-a-dia se passava, em grande parte, em seu pequeno paraíso criado
cerca de 5 mil no coração do Centro da capital. No amplo lote da Rua 24, Amália Hermano e o
páginas. marido construíram uma casa exatamente como desejavam e formaram um quintal
onde se respirava natureza. “Até mina d´água tinha”, detalha Bento. As orquídeas,
claro, tinham lugar de destaque. Era ao lado delas que a anfitriã recebia suas visitas
famosas. Muitas personalidades do mundo cultural, quando vinham a Goiânia,
faziam uma parada obrigatória ali, como as atrizes Maria Della Costa e Dercy
Gonçalves.

O imóvel histórico, que quase sediou a Academia Feminina de Letras e Artes


de Goiás (Aflag), mas que acabou demolido para dar lugar a um prédio que leva
o nome da antiga moradora, também testemunhou muitas conversas de Amália
e Maximiano com outro casal, Jorge Amado e Zélia Gattai. “Maximiano e Jorge
tinham sido colegas de escola e a amizade permaneceu”, contextualiza Bento Fleury.
Amália também tinha uma chácara no Setor Santa Genoveva, reservada para plantar
flores. Quando morreu, em 1991, partiu uma incansável defensora da beleza.

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Amado
Batista
O Rei das rádios
E
m mais de 45 anos de carreira, já são 35 milhões de discos vendidos. Uma marca
que poucos artistas podem ostentar. Ainda mais se considerarmos que o mercado
de discos sofreu o maior revés de sua história nos últimos 15 anos e que o cantor e
compositor goiano Amado Batista, o dono deste feito, sempre precisou enfrentar
muita resistência para ter seu trabalho reconhecido por parte da crítica. Se bem que
ele não parece dar muita importância para o que falam sobre sua produção. Ele está
interessado mesmo é se suas composições continuam a fazer o sucesso popular de
sempre.

Nascido em Catalão em 1951, em uma família de lavradores, Amado


Batista mudou-se para Goiânia quando tinha 14 anos de idade. Sua missão era,
primeiramente, sobreviver; depois, vencer. O primeiro objetivo ele conseguiu
trabalhando em variados ofícios. Foi faxineiro, balconista e teve contato com o meio
cultural de maneira mais estreita quando conseguiu o posto de subgerente em uma
livraria. Quando os anos 1970 chegaram, ele estava no auge da juventude e tinha em
Roberto Carlos seu grande ídolo. Vencer significava, então, buscar a popularidade
que o Rei desfrutava.
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O gênero escolhido foi o romântico, tal qual Roberto Carlos. A música ficou ainda
mais próxima de sua vida quando Amado Batista tornou-se representante de uma
gravadora de âmbito regional, a Chororó. Não foi por meio dela que ele conseguiu
alcançar o tão almejado sucesso nacional, mas o selo lhe propiciou a estreia no
mundo artístico e o primeiro ensaio de projeção na cena em que desejava ingressar.
Em 1975, lançou seu primeiro compacto duplo, que não teve muita repercussão. No
ano seguinte, com a canção Desisto, a história foi diferente.

Nos anos A música começou a ser tocada nas rádios e o jovem Amado Batista chamou a
seguintes, atenção. Isso permitiu que a Chororó investisse em um LP, o disco Amado Batista
Amado Batista Canta o Amor. Com farta cabeleira crespa e uma camisa bem ao estilo anos 1970 –
gola gigantesca e estampas –, o cantor fazia pose de galã na capa. Funcionou. Com
colecionou
canções como É Um Sonho Esta Vida, Borboletas, Cativo e Meu Pressentimento, ele
marcas e saltou do patamar de cantor conhecido regionalmente para um nome com potencial
recordes. para girar as engrenagens do mercado fonográfico. Hora de ampliar horizontes.
Com os discos
Dinamite do O primeiro contrato nacional foi assinado com a gravadora Continental, que na
Amor, Escuta, época reunia boa parte dos campeões de vendas de discos no Brasil. Sua carreira foi,
então, direcionada para atender uma parcela do púbico ávida por ídolos populares
Eu Sou Seu
e românticos. Suas canções deveriam atender essa demanda. Em 1979, a canção
Fã, gravações O Fruto do Nosso Amor o fez superar a marca de 1 milhão de discos vendidos.
ao vivo e Sementes de Amor, O Amor Não É Só de Rosas, Um Pouco de Esperança. Os títulos
coletâneas, dos discos nessa época dão o tom de suas canções de amor e dor de cotovelo.
o cantor
raramente Sua carreira passou a ser associada a um consumo mais popular, o que não é
incorreto. Em certa época, Amado Batista foi conhecido como o “rei das empregadas
deixou de
domésticas”, alusão que continha uma carga pretensamente pejorativa, mas que
vender mais aludia a algo que se comprovava. As rádios tocavam suas músicas com enorme
de um milhão frequência e não só as empregadas domésticas, como todos aqueles que costumavam
de discos por ou podiam ouvir a programação das estações, eram públicos fieis do cantor. Sua
trabalho nos popularidade se espalhou por todo o Brasil. Enfim, trilhava o mesmo caminho do
anos 1980 e ídolo Roberto.
1990.
Nos anos seguintes, Amado Batista colecionou marcas e recordes. Com os discos
Dinamite do Amor, Escuta, Eu Sou Seu Fã, gravações ao vivo e coletâneas, o cantor
raramente deixou de vender mais de um milhão de discos por trabalho nos anos
1980 e 1990. Também se tornou um campeão de shows. Sua relação com Goiás
nunca se desfez. Pelo contrário. Ainda hoje ele mantém uma casa em Goiânia e
é proprietário de uma fazenda em Goianápolis. Quando completou 40 anos de
carreira, em 2015, gravou um disco e fez uma turnê. E constatou que continua
Amado.

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Cristina Cabral

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pelo
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Ana Maria
Pacheco
Arte universal
É
impossível olhar para uma obra da artista plástica Ana Maria Pacheco e ficar
impassível. Suas esculturas e suas telas são poderosas demais para que passemos
incólumes por seus traços e formas. Nelas, como a própria autora diz, há “a condição
humana, suas tragédias, seus sofrimentos, seus mistérios e epifanias”. Sentimentos
que movem todos nós e que essa goiana há décadas radicada em Londres sabe
traduzir em expressões que se gravam na memória, que podem até perturbar o sono,
mas que trazem reflexões profundas sobre nossa própria existência.

“Eu iniciei meus estudos de Artes Visuais na então Escola de Belas Artes da
Universidade Católica de Goiás”, relata Ana Maria. “A escola tinha um caráter
muito especial. A memória que tenho deste período é sempre prazerosa. Dois
nomes sempre estarão comigo: Maria de Castro e o professor Luiz Curado, pela
dedicação e interesse que eles sempre demonstraram.” Ela também investiu em
outras artes, formando-se em Música na Universidade Federal de Goiás, área em
que posteriormente, em meados dos anos 1960, se pós-graduou no Rio de Janeiro,
tornando-se professora logo em seguida.

Depois de lecionar na Faculdade de Arquitetura da UCG, em 1973 ela tomou a


13

decisão que mudaria os rumos de sua vida e, consequentemente, de sua arte. “Fui
para a Inglaterra como bolsista do British Council da Slade School of Fine Arte.
Tinha a ambição de morar no exterior. Perceber a visão de mundo do colonizador,
uma relação dialeticamente oposta à nossa”, declarou Ana Maria, em entrevista
concedida ao POPULAR em 2012, quando fez uma grande exposição de seus
trabalhos na Pinacoteca de São Paulo, um dos templos maiores das artes plásticas no
Brasil.
Seus trabalhos Hoje, dez anos depois, Ana Maria tem uma visão consolidada sobre esses quase
não passaram 50 anos residindo no Velho Continente. “A condição de trabalho na Europa não
despercebidos é fácil, sobretudo para estrangeiros. Mas acredito que as dificuldades existem
no circuito das em qualquer lugar, se há um desejo de criar algo que tenha um significado além
artes plásticas do modismo ou ganho financeiro”, avalia. Nessas cinco décadas, Ana Maria se
naturalizou cidadã inglesa – há quem até se esqueça, ao apresentá-la, que ela
da Europa,
nasceu no Brasil. Mas Ana enfatiza que quando se mudou, já tinha uma formação
simplesmente acadêmica consolidada.
o maior, mais
tradicional e Seus trabalhos não passaram despercebidos no circuito das artes plásticas da
mais seletivo Europa, simplesmente o maior, mais tradicional e mais seletivo do mundo. Baseada
do mundo. na Inglaterra, pôde fazer com que suas obras rompessem fronteiras. Alemanha,
Estados Unidos, Japão, Noruega. São muitos os países em que instituições, como
Baseada na museus e centros culturais, adquiriram suas esculturas, quadros, gravuras em que
Inglaterra, mescla elementos variados, resultando em peças que às vezes são de um realismo
pôde fazer espantoso, às vezes de uma simbologia intrigante, sem que um caminho exclua o
com que outro.
suas obras
rompessem Com mais de 40 exposições individuais e quase 80 participações em mostras
coletivas em quatro continentes, Ana Maria Pacheco amealhou um currículo
fronteiras. impressionante. O crítico de arte Julian Bell, no livro Uma Nova História da Arte,
Alemanha, elenca o nome da goiana entre os mais relevantes da área nos últimos séculos. Ao
Estados lado dela, só há mais um brasileiro: ninguém menos que Aleijadinho, nome que teria
Unidos, Japão, ecos nos trabalhos em madeira da artista. Falando da instalação Terra Sem Retorno,
Noruega. Bell disse que “a obra provocou no público uma aguda e avassaladora emoção
religiosa”.

Ao falar com O POPULAR para esta reportagem, em 2016, Ana Maria Pacheco
estava em Paris, trabalhando no ateliê de um amigo. Com familiares em Goiânia, ela
retorna regularmente à sua terra natal. “Manter viva a fonte de origem é fundamental
em qualquer processo criativo”, argumenta. “Minha infância e juventude são
embutidas de imagens, experiências que são únicas. É como um rio profundo onde
mergulho e sempre descubro tesouros infindáveis. Portanto, sou goiana e Goiás vive
dentro de mim.” Goiana que ganhou o mundo, e que o mundo ganhou.

n
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Zuhair Mohamad
vidas
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pelo
POPULAR

Antônio
Poteiro
Doce inocência colorida
C
om cores fortes na palheta à sua frente, Antônio Poteiro deixava a imaginação
fluir. Sem ter ido assistir à apresentação das Cavalhadas de Pirenópolis, pintou
como ninguém a encenação do embate entre mouros e cristãos na cidade histórica
goiana. Sem precisar frequentar festas juninas, ilustrava-as com vivacidade em telas
que pareciam animadas. As manifestações religiosas do interior, as procissões e as
romarias surgiam em suas telas com o poder de transmitir o espírito poderoso desses
momentos. Tudo na chamada arte naïf, com sua singeleza e seu encantamento.

O mesmo encantamento que a capa de O POPULAR estampou, em edição


especial de 9 de junho de 2010, para noticiar sua morte. Nesta homenagem, as
figuras típicas de suas criações, como pessoas vestidas com simplicidade, pombas
da paz e breves estrelas traçadas em X, remetem ao imaginário de um homem que
aprendeu o ofício de ceramista e começou a moldar peças utilitárias, sem apelos
artísticos. Nascido na pequena Aldeia de Santa Cristina da Pousa, na região de
Braga, Portugal, ele veio para o Brasil com apenas um ano de idade, tornando-se um
exemplo da força da arte popular.
15

“Calculamos que meu pai tenha produzido mais de 3.400 peças”, informa
Américo Poteiro, filho do artista plástico e que seguiu a carreira do pai. “Nós criamos
uma fundação em 2011 para cuidar desse acervo. Aqui temos mais de 100 trabalhos
dele e cerca de 300 obras de outros artistas que ele foi ganhando no decorrer da
vida.” Um patrimônio artístico e tanto que permanece no antigo ateliê de Poteiro no
Jardim América, onde ele mantinha uma produção sem interrupções. Quem fosse
visitá-lo em seu amplo refúgio tinha muitas chances de testemunhá-lo em ação.

Já radicado Poteiro nunca teve um perfil de prima donna, de um artista badalado. Sua vida
em Goiânia, explica isso. Depois de duas tentativas frustradas de manter uma fábrica de cerâmica,
para onde se Antônio Batista de Souza (seu nome de batismo) passou uma temporada entre
mudou em indígenas na Ilha do Bananal. Um ponto de virada em sua estética. Já radicado em
Goiânia, para onde se mudou em 1957, adotou o apelido de Poteiro, referência aos
1957, adotou potes de barro que vendia pela cidade. Nos anos 1970 e 1980, era possível comprar
o apelido essas peças diretamente do artista em uma banca na antiga Feira Hippie, no Centro.
de Poteiro,
referência aos Nessa época, sua fama estava em ascensão. Aconselhado por amigos, como a
potes de barro folclorista Regina Lacerda e o pintor Siron Franco, começou a assinar obras, como
que vendia bonecos e peças decorativas. Suas temáticas giram em torno de elementos da
natureza, de pessoas simples, de animais que conquistam nosso afeto. O amarelo
pela cidade. vibrante dos girassóis, o show de tonalidades alegres de vilas imaginárias, as cenas
Nos anos bucólicas de um cotidiano do interior que narram modos de vida em extinção.
1970 e 1980, Poteiro soube unir uma técnica nata a um conjunto de elementos que se casaram à
era possível perfeição com seu estilo.
comprar
essas peças “Hoje, o mundo está mais atualizado. As informações correm e acredito que
exista mais pessoas interessadas em uma arte como a do meu pai. Ele vem sendo
diretamente do valorizado gradativamente. A pintura dele é muito alegre e bonita. Todos gostam
artista em uma de ver”, avalia Américo. Segundo o filho do artista plástico, a fama do pai já corre
banca na antiga por várias partes do mundo. Exposições de seus quadros e esculturas em argila têm
Feira Hippie, no sido realizadas com frequência em centros como São Paulo, Brasília e Recife. “Agora
Centro. precisamos tomar cuidado com as falsificações. Por isso estamos certificando as
obras”, afirma.

Já em vida, Poteiro enfrentava esses desafios. Com o reconhecimento de seu


trabalho, que o levou a ganhar um prêmio da Associação Paulista dos Críticos de
Arte (APCA) e a receber convites para ministrar cursos de cerâmica em cidades da
Alemanha, os personagens de rosto com traços básicos, mas tão expressivos que
habitaram suas telas, atraíram curiosidade. Poteiro era muito generoso nesse sentido.
Há muitos relatos de pessoas próximas que, ao lhe prestarem um favor, ganhavam
um quadro de presente, uma escultura como prova de amizade. Esse era seu jeito de
ser e viver.

n
16

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Attilio Correa
Lima
O arquiteto do
novo tempo
A
o chegar a Paris em 1927 para usufruir de uma bolsa de estudos que havia ganho
em um prêmio do Salão Nacional de Belas Artes, Attilio Corrêa Lima, filho de um
renomado escultor e com um diploma de arquiteto debaixo do braço, estava prestes
a retraçar seu destino. Na capital francesa, teve contato com técnicas inovadoras
de construção, com artistas que transpiravam criatividade e com um ambiente
totalmente propício a experimentações. Decidiu que não mais faria o curso na
Escola Moderna Polithécnica. Preferia matricular-se no Instituto de Urbanismo.
Sábia decisão.

Essa mudança de planos deu a possibilidade a Attilio de adquirir uma formação


que outros profissionais de seu tempo não possuíam e de ser influenciado por quem
estava modernizando a arquitetura e o urbanismo mundiais. Esse aprendizado foi
trazido ao Brasil em sua volta e o talento que aquele jovem com menos de 30 anos
demonstrava chamou a atenção de certo interventor que pretendia construir uma
nova capital estadual no meio do Cerrado. Pedro Ludovico contratou Attilio e o
desenho de Goiânia começou a ganhar forma no início dos anos 1930.
17

“Ele rompe com o paradigma formal francês porque acreditava que uma cidade
não poderia ser concebida apenas em um desenho. Ela precisava interagir com seu
ambiente”, aponta a arquiteta Anamaria Diniz, principal especialista do País na obra
de Attilio Corrêa Lima. No final de 2017, ela lançou a obra O Itinerário Pioneiro
do Urbanista Attilio Corrêa Lima, dividida nos volumes Percursos e Cartas, fruto
de uma ampla pesquisa em nível de doutorado e pós-doutorado sobre o perfil
profissional e pessoal do homem que planejou Goiânia.

Anamaria conseguiu que a família do urbanista lhe desse acesso a um conjunto


de documentos inéditos, que incluem anotações e correspondências esclarecedoras
sobre os métodos que Attilio usou para construir a nova capital de Goiás. Todo esse
Nos anos acervo passou por digitalização, com o objetivo de gerar um mapa virtual inédito da
seguintes, o cidade, que foi inspirada em desenhos de centros urbanos franceses e erguida com
prestígio de técnicas que só seriam disseminadas pelo menos uma década depois. “Attilio tinha
os olhos no futuro”, define a pesquisadora.
Attilio cresceu.
Ele projetou, O projeto original não foi totalmente executado e várias mudanças
por exemplo, o implementadas comprometeram a ideias iniciais do urbanista. Fachadas de viés
Plano da Cidade modernista deram lugar a linhas de um art dèco tardio. Alguns bairros não
Operária de observaram seus desenhos e foram reformulados. Bosques e parques foram
Volta Redonda, diminuídos ou deslocados, isso quando não simplesmente eliminados. As margens
dos córregos ganharam ocupações. Attilio, na verdade, ficou menos tempo que o
no Rio de previsto por aqui. Desentendimentos com empreiteiras o afastaram de Goiânia, já
Janeiro, e o em 1935.
Plano Regional
de Urbanização Nos anos seguintes, o prestígio de Attilio cresceu. Ele projetou, por exemplo, o
do Vale do Plano da Cidade Operária de Volta Redonda, no Rio de Janeiro, e o Plano Regional
de Urbanização do Vale do Paraíba. Um outro projeto seu, porém, traria uma
Paraíba.
ironia mórbida. É de Attilio a planta da Estação de Passageiros de Hidroaviões do
Aeroporto Santos Dumont, no Rio de Janeiro, entregue em 1937. Seis anos depois,
um acidente aéreo neste mesmo aeroporto ceifou sua vida promissora. Por sua
experiência e seus contatos profissionais, Attilio possivelmente participaria das obras
de Brasília.

“A planta tem diretrizes de trânsito. Goiânia é a primeira capital brasileira a ser


planejada já levando em conta a existência dos carros, uma novidade na época”,
destaca a pesquisadora Anamaria Diniz para salientar o quanto Attilio Corrêa
Lima pensava muito além do presente. Homem que conheceu grandes vultos da
arquitetura e do urbanismo, ele imprimiu em Goiânia seus sonhos de uma cidade
que pudesse ser, de fato, sustentável, em todos os sentidos. Esse desejo ficou mesmo
como uma utopia. Goiânia ainda preserva algo daquele rapaz obstinado, mas não o
suficiente.

n
18

Zuhair Mohamad
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Bariani
Ortencio
Seu nome é folclore
A
biblioteca da casa de desenho modernista em que o escritor Waldomiro Bariani
Ortencio mora, em plena Praça Cívica, é uma verdadeira arca do tesouro. Títulos
raros, exemplares com dedicatória de nomes como Guimarães Rosa, coleções há
muito fora do catálogo. Nesse lugar, o veterano pesquisador dos nossos costumes e
nosso folclore sente-se à vontade. Sabe onde está cada volume, recorda-se de cada
episódio testemunhado, conta seus causos, ouvidos ou vividos. Este é o homem que,
prestes a fazer 99 anos de idade, não deixa de hastear a bandeira da preservação da
cultura.

Os interesses de suas pesquisas são vastos. Ele transita pela literatura, música,
culinária, futebol, política. Nome respeitado e reverenciado em vários setores,
Bariani tem mais de 50 livros lançados, em que demonstra sua maneira de encarar
o mundo que o cerca: com curiosidade. Característica que mantém desde muito
cedo, quando se mudou com apenas 15 anos de idade para Goiânia, vindo da cidade
paulista de Igarapava, que fica na fronteira com Minas Gerais. Ele chegou à nova
capital no mesmo ano que a primeira edição de O POPULAR era publicada na
cidade.

“Foi graças ao Departamento de Propaganda de divulgação de Goiânia, presidido


19

pelo Dr. Joaquim Câmara Filho, que o meu avô, Fioravante Bariani, transferiu-
se com toda a família para cá, montando uma serraria de desdobrar madeira,
tornando-se a primeira indústria urbana de Goiânia, a Serraria Bariani”, recorda o
escritor. As trajetórias do jornal e desse paulista de múltiplos talentos correram em
paralelo. Por mais de 20 anos, entre 1991 e 2012, ele foi cronista fixo de O Popular,
compartilhando vivências e histórias de alguém que viu (e foi) muita coisa.

Os interesses Ainda praticamente um adolescente, enquanto trabalhava nos negócios da


família, Bariani se dedicava a outra atividade. O escritor foi um elogiado goleiro de
de suas
uma das primeiras formações do Atlético Goianiense. Ele entrou no time porque
pesquisas são faltava um jogador durante uma partida apitada, ninguém menos, pelo primeiro
vastos. Ele prefeito de Goiânia, Venerando de Freitas Borges. Na cidade ainda em sua fase
transita pela inicial, Bariani foi um dos pioneiros em muitas áreas. Na cultural, por exemplo.
literatura, Pertenceu a ele a primeira grande rede de lojas de discos da cidade, o Bazar
música, Paulistinha.
culinária,
Bariani não apenas vendia músicas, como também as compunha. Algumas de
futebol, suas mais de 50 criações foram gravadas por cantores que tiveram fama no passado,
política. Nome como Lindomar Castilho. Até disco gravou. Seu destaque maior, porém, está nos
respeitado e livros. Várias de suas obras ganharam publicações de editoras nacionais, como a
reverenciado José Olympio, caso de Vão dos Angicos e Força da Terra. Em sua produção literária,
em vários Bariani experimentou todos os gêneros, como contos, crônicas, romances, livros
infanto-juvenis e até novelas de suspense e policiais.
setores,
Bariani tem Nessa toada, ele atravessou décadas e colecionou histórias deliciosas. Em todos os
mais de sentidos. “Certa vez fizemos uma série de galinhadas para os intelectuais. Fizemos
50 livros várias delas, nas casas da Yêda Schmaltz, do Miguel Jorge e aqui em casa”, relatou
lançados, em ele em uma reportagem especial de O Popular na comemoração de seus 90 anos de
que demonstra vida. “O júri para escolher a melhor receita era composto pelo Ursulino Leão, pelo
Bernardo Élis e pelo Siron Franco. No final, o Ziraldo e a Fernanda Montenegro, que
sua maneira
estavam em Goiânia, vieram aqui para comer a galinhada.”
de encarar o
mundo que Os pratos típicos do Cerrado são com ele mesmo. No livro A Cozinha Goiana,
o cerca: com clássico do gênero, ele faz um amplo apanhado de ingredientes, sabores e receitas.
curiosidade. Uma delas foi criação sua. Bariani é o inventor do prato Peixe na Telha, preparado
no forno a lenha e que agradou tanto que entrou no cardápio de várias casas
especializadas em pescados. Criador e presidente da Comissão Goiana de Folclore,
Bariani elabora e incentiva publicações nesse setor, realizando eventos em prol da
área. Até um dicionário já escreveu para falar dessa alma popular que ele luta para
preservar.

n
20

Cristina Cabral

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Basileu
França
Um mestre, com carinho
U
ma escola com formação completa, em que além das disciplinas regulares e
tradicionais, os alunos tinham acesso a outras habilidades, a campos diversos de
conhecimento. Era nesse sentido que o educador Basileu Toledo França direcionou
seu trabalho. Mais, direcionou sua vida. “Nos anos 1950, em Goiânia, ele fundou
o Instituto França, onde os alunos tinham acesso a esportes, jogos, brincadeiras,
gincanas, escotismo e onde ele promovia a leitura de livros junto à criançada. Havia
almoço e estudo dirigido para quem ficava em período integral”, diz seu filho, José
Manuel França.

Apesar de ter nascido em Jataí em 1919, a jornada pela educação de Basileu


França começou fora de Goiás. “Em São José do Rio Preto, São Paulo, ele fundou,
construiu e dirigiu o colégio São Luiz, hoje uma universidade, bem como deixou
obras literárias sobre a história desta cidade”, informa Olga França, outra filha de
Basileu. “Vivemos em Rio Preto até 1956 e lá ele teve uma vida muito atuante como
educador e jornalista. Foi diretor e redator do jornal ‘A Notícia’ por vários anos, e
suas opiniões foram muito respeitadas”, completa.

Quando se mudou para Goiânia, Basileu permaneceu atuando no jornalismo


21

e manteve durante um longo período a coluna Das Duas, Uma, em O Popular,


abordando assuntos variados ligados à sociedade, à política e à educação. “Essa linha
de opinião lhe trouxe alguns problemas políticos”, revela o filho José Manuel. Isso,
porém, nunca o fez recuar de suas convicções. Personalidade forte e que tinha na
justiça uma de suas marcas o levaram não só a ser um empreendedor na educação,
como a ocupar a direção do Instituto de Educação de Goiás, além de dar aulas na
UFG.

“Ele tinha a capacidade de se colocar no lugar do outro, enxergar seus problemas


e ajudar”, testemunha o filho José Manuel. “Eu me lembro dos fins de semana no
quintal, com ele escrevendo e ouvindo música clássica, os jogos e brincadeiras no
recreio entre as aulas. Os passeios na chácara Descanso Oásis (que depois tornou-se
De acordo Clube Oásis), onde ele me ensinou a nadar”, rememora. “Ele lia seus escritos para
com os três nossa mãe e isso soava como cantigas de ninar. Meu pai tinha grande amor à família
filhos, o pai e perseverança em seus objetivos”, reforça Maria Bernadete França, sua filha do meio.
adorava contar
Misto de professor à moda antiga e homem com o olhar no futuro da educação,
passagens de Basileu, com o Instituto França, tornou-se referência. Primeiro no Centro,
sua infância depois no Setor Universitário (onde hoje funciona a sede do Centro Educacional
em Jataí. Profissionalizante em Artes Basileu França), ele formou gerações. “Em seu velório
Histórias que e missa de 7° dia, fui cumprimentado por dezenas de pessoas que se apresentavam
ele narrava como ex-aluno(a)s e faziam questão de citar o carinho que tinham por ele”, ressalta
com um sabor José Manuel. “Ele gostava de ordem e respeito aos mais velhos”, pontua a filha Maria
Bernadete.
todo especial.
Sua terra Basileu França exercia enorme ascendência sobre seus alunos, o que se repetia
natal, aliás, no âmbito privado, na convivência familiar. “Exigia dos filhos bom comportamento”,
nunca saiu de lembra a filha Olga. “Era muito metódico e disciplinado, usava terno até aos
seu coração. domingos, sempre presente em casa”, complementa Manuel França. “Rígido, nos
corrigia apenas com palavras. Atento às nossas necessidades, nunca exigiu que
vivêssemos seus sonhos, mas nos mantinha leitores habituais.” Não era para menos.
O professor Basileu sempre teve a literatura como companhia, com 20 livros
publicados.

De acordo com os três filhos, o pai adorava contar passagens de sua infância em
Jataí. Histórias que ele narrava com um sabor todo especial. Sua terra natal, aliás,
nunca saiu de seu coração. “A homenagem em vida que mais o comoveu foi em sua
querida Jataí, quando inauguraram um Centro Cultural que recebeu o seu nome”,
assegura José Manuel. Em 2003, após ficar viúvo da esposa, a também professora
Ada Gomes França, e convalescendo de uma doença grave, o professor Basileu
faleceu. Ficou a memória de um professor que soube fazer a diferença na vida de
seus alunos.

n
22
Ênio Tavares

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Belkiss
Spenciére
A dama do piano
E
m seu belo sobrado na Avenida Tocantins, onde morou desde um tempo em
que Goiânia vivia em outro ritmo, a musicista Belkiss Spenciére tinha um
belíssimo piano Steinway de cauda inteira, um instrumento maravilhoso e raro
em Goiânia. Nele, ela deu aulas para alunos e parentes. Nele, costumava dar
luxuosas mostras de seu talento para visitas especiais ou reuniões sociais. Com
ele, com muitos outros pianos que passaram por suas delicadas mãos, a neta da
também pianista Nhanhá do Couto fez história na música em Goiás e expressou
uma personalidade doce e singular.

“Eu tive uma ligação muito próxima com tia Belkiss, comparável à de uma
mãe com uma filha”, diz, saudosa, a sobrinha Anunziata Spenciére, professora de
literatura e musicista – o talento parece estar mesmo no sangue da família. “Ela
sempre se preocupava com as outras pessoas. Eu ainda me impressiono como ela
conseguia arranjar tempo para ajudar todo mundo. Sempre tinha uma atenção
especial com todos.” Um comportamento que não se limitava às pessoas de sua
convivência habitual. Dona Belkiss, como era conhecida, voltava seus olhos para
várias áreas.
23

“Tia Belkiss deu muito apoio ao teatro, às artes plásticas, fazia campanhas para
ajudar projetos. Ela sempre recebia pedidos nesse sentido e tentava atender todos”,
recorda Anunziata. “Ela possuía uma capacidade enorme para arregimentar pessoas
em torno de causas. Isso acontecia porque desfrutava de um prestígio imenso com
todas as áreas da sociedade.” Foi com esse espírito empreendedor e criativo que ela
reuniu forças para realizar um grande sonho de sua avó. Após uma fase de estudos
no Rio de Janeiro, Belkiss retornou a Goiânia para fazer algo inédito na cidade.

“Tia Belkiss foi uma das fundadoras do Conservatório de Música e a pedido


do professor Colemar Natal e Silva, ela e suas amigas, também musicistas e que
lecionavam no local, tomaram todas as providências para que ele integrasse
o conjunto de cursos que fundariam a Universidade Federal de Goiás”, relata
Anunziata. Nesses primeiros anos, muitas vezes ela precisou fazer investimentos
Membro da financeiros pessoais para que o Conservatório se mantivesse em funcionamento e
Academia não era raro receber os alunos em casa para as lições, já que havia problemas quanto
Nacional de a espaço físico.
Música, da
Academia Também por sua iniciativa, Belkiss conseguiu trazer para Goiânia, nos primeiros
anos da UFG, professores de ponta, como o maestro Camargo Guarnieri, que ficou
Internacional na cidade por um período ajudando na formação de novos músicos. Enquanto isso,
de Música e ela gerenciava a própria carreira. Belkiss Spenciére era um nome internacional,
da Academia sendo requisitada para fazer concertos em várias partes do Brasil e no exterior.
Brasileira de Coube à musicista goiana, por exemplo, fazer uma turnê pela América Latina, a
Música, Belkiss convite do Itamaraty, para marcar as comemorações do centenário de Heitor Villa-
gravou diversos Lobos.
CDs e contribuiu Membro da Academia Nacional de Música, da Academia Internacional de
com reflexões Música e da Academia Brasileira de Música, Belkiss gravou diversos CDs e
acadêmicas em contribuiu com reflexões acadêmicas em publicações em vários idiomas tratando de
publicações em sua área. Ao mesmo tempo, revelou-se uma talentosa escritora de textos mais leves,
vários idiomas cotidianos. Durantes vários anos, foi cronista de O POPULAR, trazendo em suas
tratando de sua participações lembranças e registros únicos de suas vivências. “Ela exercia esse papel
com muito prazer e orgulho. Adorava estar com vocês do jornal”, reforça Anunziata.
área.
Já em seus últimos anos de vida, dona Belkiss fez turnês pela América do Norte
e Europa. A mulher que inaugurou o piano do Palácio das Esmeraldas a convite
de Pedro Ludovico e que não se negava a tocar em pianos modestos pelo interior
do País jamais quis parar. Seu compromisso de vida era levar música de qualidade
a quem desejava ouvi-la, não importa onde fosse. Em 2005, após sofrer um AVC
e ficar alguns meses na UTI, ela faleceu em Goiânia. Mas quem pôde conviver
com a dama do piano, ainda consegue ouvir suas notas, tiradas com uma natural
delicadeza.

n
24

Marisa de Sousa

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Bernardo
Élis
Tradutor do
homem e do sertão
F
ilho de peixe, peixinho é. Sim, o ditado é batido, mas se enquadra à perfeição a
Bernardo Élis. Ganhador de dois Prêmios Jabuti, o mais importante da literatura
brasileira, e único escritor goiano a ingressar na Academia Brasileira de Letras,
esse goiano de Corumbá tinha em casa um exemplo e tanto. Érico Curado,
pai de Bernardo, foi o introdutor de movimentos literários importantes em
Goiás, como o Parnasianismo e o Simbolismo, e integrou a Academia Goiana
de Letras. Desde cedo, portanto, um certo menino tinha à sua disposição um
universo enorme de erudição.

Aos 13 anos de idade, Bernardo fez o caminho natural daquela época, saindo
de sua pequena Corumbá e indo estudar na capital, a cidade de Goiás. A profissão
que escolheu foi a de advogado, formando-se em Direito, e chegou a trabalhar
como escrivão de polícia em Anápolis antes de mergulhar definitivamente nas
letras. Desde a adolescência, escrevia pequenos contos inspirados em autores de sua
preferência, como Machado de Assis e Eça de Queiroz. Em 1944, faria sua estreia
definitiva com os contos de Ermos e Gerais, um livro seminal em vários sentidos.
25

Editado pelo prestigiado selo José Olympio, do Rio de Janeiro, a obra de Élis
logo tornou-se assunto nas rodas literárias. Naquela época, a então capital federal
concentrava boa parte da vida cultural brasileira e o autor goiano passou a ser
conhecido (e lido) por nomes de peso. Um deles foi ninguém menos que João
Guimarães Rosa. Eles dialogaram e se influenciaram mutuamente em alguma
medida. Os sertões e o Cerradão de Goiás e Minas Gerais estavam nas obras de
ambos, mas com abordagens universais, falando profundamente do ser humano e
suas contradições.

“Bernardo era um homem de extrema bondade, com o olhar sempre voltado


Editado pelo para o outro, em busca de que a justiça social fosse feita”, afirma a viúva do autor, a
prestigiado selo também escritora Maria Carmelita Fleury Curado. Primos em segundo grau, eles se
casaram em 1981 após um raciocínio lógico. “Quando ele me pediu em casamento,
José Olympio, do
eu disse sim porque nós dois tínhamos paixões comuns pela arte, tínhamos uma
Rio de Janeiro, educação parecida”, explica ela. “Eu não havia lido quase nada do Bernardo”,
a obra de Élis admite. “Mas depois li tudo. Sou uma das pessoas que melhor conhecem a obra
logo tornou- dele.”
se assunto nas
rodas literárias. Segundo a viúva, a literatura de protesto nos trabalhos de Bernardo Élis pode
ser vista em textos como Nholá dos Anjos, André Louco e A Enxada. Em cada um
Naquela
deles, uma temática perturbadora abordada, uma denúncia realizada, seja pela
época, a então inclemência com que certas pessoas marginalizadas são tratadas na sociedade,
capital federal seja a exploração do trabalho dos mais pobres por parte dos mais ricos. “Ele foi
concentrava do Partido Comunista, mas logo deixou.”, lembra Carmelita. No regime militar,
boa parte da Bernardo Élis continuou a fazer uma literatura engajada, o que não lhe livrou de
vida cultural uma fama injusta.
brasileira e o
Em 1975, o autor goiano disputou a eleição na Academia Brasileira de Letras
autor goiano contra o ex-presidente Juscelino Kubitschek. “Bernardo era amigo do general
passou a ser Lyra Tavares e o Adolpho Bloch, dono da revista Manchete, escrevia que ele era o
conhecido candidato dos militares para derrotar JK. Mas o fato é que o grande contista era
(e lido) por o Bernardo e não JK, de quem eu até viria a gostar, se tivesse conhecido”, alega a
nomes de peso. viúva. De acordo com ela, seu marido chegou a ser pressionado a não concorrer,
mas disputou e venceu. “JK foi muito atencioso e até compareceu à posse, sentando
Um deles foi
na primeira fila.”
ninguém menos
que João Bernardo Élis não agradou a todos, mas foi coerente consigo mesmo e produziu
Guimarães Rosa. uma literatura marcante. Obras como Veranico de Janeiro, Chegou o Governador
e o romance histórico O Tronco, que foi adaptado para o cinema pelo diretor João
Batista de Andrade, gravaram seu estilo e o associaram a descrições, da natureza
e do homem, que encantam e incomodam. Bom exemplo é o conto A Cheia do
Corumbá, uma tragédia familiar causada pelo rio e pelo egoísmo. Saber promover
essa junção entre o mundo palpável e os sentimentos era uma das virtudes de
Bernardo Élis.

n
26

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Bernardo
Sayão
O mito do Oeste
N
a estrada que abria, ele morreu. Em janeiro de 1959, Bernardo Sayão trabalhava nas
obras da Rodovia Belém-Brasília quando uma árvore que estava sendo retirada caiu
e o atingiu. A fatalidade foi um emblema para um homem que dedicou boa parte de
sua vida a fazer conexões, a ligar as pessoas por caminhos que não existiam. “Tem
ares de uma tragédia grega”, pondera o historiador Sandro Dutra, que pesquisou
a vida de Sayão para escrever o livro No Oeste, A Terra e o Céu: A Expansão da
Fronteira Agrícola no Brasil Central. “Ali começa a nascer seu mito.”

Bernardo Sayão era um carioca da gema, que gostava de natação e foi atleta.
Formado em Agronomia, decidiu que o litoral onde nascera não era exatamente o
lugar em que gostaria de viver. Preferia se embrenhar pelo interior do Brasil e isso foi
fundamental para ele e para as regiões às quais se dedicou. “Ele vai ter sua história
totalmente relacionada ao Centro-Oeste e ao Norte do País”, pontua Sandro, que é
professor da UEG e da UniEvangélica, de Anápolis, e foi pesquisador visitante da
Universidade da Califórnia (EUA). Isso fez Sayão ser chamado de “desbravador”.

Sandro Dutra enfatiza que mesmo Bernardo Sayão tendo sido personagem central
na chamada “Marcha para o Oeste”, patrocinada pelo governo Getúlio Vargas, a
imagem de um homem que desbravava os sertões – termo que era evitado na época
27

porque era considerado pejorativo – só lhe foi associada após a morte. “Em um livro
sobre o neobandeirismo, publicado por Cassiano Ricardo, o autor fala de Cândido
Rondon e até de Juscelino Kubitschek como esses novos ‘bandeirantes’ do País, mas
não cita Sayão. Mas as circunstâncias de sua morte mudaram isso.”

Segundo o historiador, o discurso emocionado de JK nos funerais de Sayão, que


foi sepultado em Brasília como um herói nacional, e a repercussão que o fato teve
na imprensa nacional e estrangeira criaram um mito em torno de sua personalidade
Bernardo Sayão forte e seus feitos. E eles não foram poucos. “Sua primeira visita a Goiás é em 1939.
foi eleito vice- Ele pega um carro e vem com as filhas. Em estradas precárias, ele visita Goiânia em
governador de construção, vai a Anápolis, Jaraguá, vai até o Araguaia. E ele percebe que faltavam
Goiás e chegou estradas.” Isso vai se transformar em sua grande meta, associada a outra.
a assumir a
“Quando, pelo Decreto 30.059, de 1941, são criadas as colônias agrícolas, Sayão
gestão estadual se encontra com Getúlio Vargas e sai com o cargo de diretor da Colônia Agrícola
por um breve Nacional de Goiás, que será a primeira a ser implementada. Ele vem para Goiás com
período. Quando essa missão.” Aqui, funda esse núcleo experimental que hoje é a cidade de Ceres.
JK decide “Em 1940 é definida a região do Vale do São Patrício, área de floresta densa, para a
mudar a capital construção da colônia. Sayão vem desbravar essa área. Depois ele é exonerado do
para terras cargo, mas mantém uma adesão popular fortíssima.”
do Estado, ele Essa condição o leva à política. Bernardo Sayão foi eleito vice-governador de
encontra em Goiás e chegou a assumir a gestão estadual por um breve período. Quando JK decide
Sayão um aliado mudar a capital para terras do Estado, ele encontra em Sayão um aliado de primeira
de primeira hora. Logo, torna-se um dos diretores da Novacap, empresa responsável pelas obras.
hora. Em seguida, assume a recém-criada Rodobrás, com a incumbência de completar o
projeto da Marcha para o Oeste: interligar o interior do País ao restante do Brasil.
Agrônomo, ele percebe que uma das possibilidades para isso era a agricultura.

“Até a década de 1930, Goiás ainda era um Estado muito pecuarista. Era
impensável que essa região fosse um celeiro agrícola. Nesse sentido, Sayão teve
um papel precursor. Em 1943, ele inaugura um aeroporto de cargas em Anápolis
para transportar tais produtos. Isso será fundamental na construção de Brasília”,
destaca Sandro. O escritor norte-americano John dos Passos, no livro O Brasil
em Movimento, conta seu encontro com Sayão. Em 1947, a revista Time faz uma
reportagem com ele. “Acho que deveria ter um reconhecimento maior do que tem”,
opina o historiador.

n
28

Valéria Pacheco

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Boogarins
Os quatro
meninos de Goiânia
D
ez anos é um período longo o suficiente para adquirir experiência, mas também
pode ser um intervalo curto diante do sucesso amealhado, das conquistas realizadas,
da influência exercida em sua área de atuação. Para a banda Boogarins, as duas
leituras são válidas. Benke Ferraz, Fernando Almeida e Raphael Vaz, juntos desde
o início, têm dez anos inesquecíveis para contar. Hans Castro, o outro integrante
da formação inicial, deu lugar a Ynaiã Benthroldo, que ingressou no grupo de rock
psicodélico em 2014. Juntos, têm derrubado uma barreira atrás da outra.

“Desde moleques, todos nós íamos aos shows dos festivais de rock que
aconteciam em Goiânia. Acho que essa cena roqueira na cidade está inteiramente
ligada à nossa trajetória”, afirma Benke. “Eu e o Dinho [Fernando] nos conhecemos
no Instituto Federal Goiano, onde estudávamos. O restante da banda chegou a partir
dessa cena rock. Eles tocavam em outras bandas.” Em entrevista ao POPULAR
concedida em 2013, Benke admite que a ideia inicial sequer era formar uma banda.
Ele e Dinho se reuniam para gravar aleatoriamente, tirar um som sem maiores
pretensões.
29

O primeiro disco, As Plantas que Curam, nasceu dessas experimentações


descompromissadas. Pela internet, começaram a mostrar suas composições. E o
cenário da música atualmente tem ainda menos fronteiras do que sempre teve. Um
empresário norte-americano topou com aquele conteúdo compartilhado, gostou do
que ouviu e entrou em contato com a rapaziada. Contato que veio acompanhado
com uma proposta de contrato. E assim a Boogarins iniciava uma trajetória que faz
dela um das bandas de rock nacional com maior prestígio no exterior atualmente.

O peso de estar sob os holofotes não é um problema para os garotos, hoje na


casa dos 30 anos. “É uma responsabilidade que gostamos de ter”, resume Benke.
E que aumenta. A Boogarins já recebeu elogios de publicações como a revista
A Boogarins já Rolling Stones e uma ampla matéria nas páginas do The New York Times. Também
concorreu ao Grammy Latino e passou a participar de todos os principais festivais de
recebeu elogios rock do País, como Porão do Rock e Lollapoloza, e alguns do exterior, como o Rock
de publicações In Rio Portugal, sendo convidados até para tocar na edição do Coachella nos EUA.
como a revista
Rolling Stones “Essa visibilidade nunca foi um problema porque nossa meta inicial não era
e uma ampla perseguir essa fama. Nosso principal objetivo foi fazer o som que queríamos fazer,
fazer as coisas que achamos certas. Nosso trabalho reflete essa verdade que temos”,
matéria nas
alega Benke. Em sua opinião, a ascensão que experimentam é uma mistura de
páginas do fatores. “Acho que era o tipo de som que as pessoas queriam ouvir naquele momento.
The New York Tivemos gente que acreditou em nosso trabalho e sorte para encontrar esse ambiente
Times. Também favorável. O importante, no fim das contas, é fazer boa música.”
concorreu
ao Grammy A qualidade é algo de que os rapazes da Boogarins não abrem mão. Eles se
reinventam o tempo todo. Uma das provas disso é o álbum Manual ou Guia de Livre
Latino e passou
Dissolução dos Sonhos, que lhes valeu uma indicação para o Grammy Latino, em
a participar que, além de canções novas, o grupo apresentou arranjos revigorados de antigos
de todos os sucessos. Com uma agenda de shows repleta de compromissos, eles não descuidam
principais da produção bem arquitetada nas apresentações e não abdicam de um período para
festivais de criar e repensar os caminhos da carreira, com criatividade e planejamento.
rock do País
“O desafio agora é fazer com que nossa carreira seja sustentável lá fora, onde
nosso trabalho tem uma recepção até melhor que no Brasil”, anuncia Benke. Isso
passa por saber aproveitar as oportunidades que surgem para tocar com grandes
nomes, em eventos relevantes, estando ao lado dos melhores. Da cena roqueira
goianiense surgiram diversas bandas. “Acontecer com outro grupo o que aconteceu
conosco é possível, claro, mas não é fácil. Não queremos iludir ninguém, sem
fantasias. Mas queremos estimular que continuem batalhando.” Referências já não
faltam.

n
30

Lailson Duarte
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Carmo
Bernardes
A sabedoria do sertanejo
“E
screverei enquanto tiver vivência”, avisava Carmo Bernardes na edição de 1º de
outubro de 1972. E cumpriu a promessa. Quando morreu em 1996, o escritor deixou
um legado literário, sociológico e antropológico que foi construído até os limites de
suas forças. Herança preciosa que só alguém com muita, mas muita vivência seria
capaz de amealhar. “Ele não media esforços para fazer o que queria”, define sua neta,
a veterinária Ana Flávia Bernardes de Oliveira. “Com ele, aprendi a falar o que penso
e a correr atrás do que desejo. Ele era assim e fazia isso defendendo a natureza e a
vida.”

Em outra entrevista concedida ao POPULAR, Carmo, que foi cronista do


jornal por muitos anos e teve em suas páginas espaço para exercitar sua prosa
internacionalmente premiada, fazia um alerta sobre o destino do Rio Araguaia e
seus afluentes, paisagem tão caras ao seu imaginário. “Da matança dos animais,
a consequência primeira pode ser a extinção imediata de animais como a anta, o
pirarucu e outras espécies que não têm proteção nenhuma”, denunciava ele em 26
de setembro de 1971. E naquela época ele já abordava a diminuição das águas do
grande rio.
31

Carmo era assim. Falava do passado comunicando-se com o presente e com os


olhos postos no futuro. Sua ficção traz esse traço de vanguarda que se apoia em
tradições seculares de homens valentes, criados entre as hostilidades do sertão.
Profundo conhecedor da fauna e da flora do Cerrado, o autor era capaz de dar
verdadeiras aulas sobre esses temas, incluindo toda essa sabedoria em histórias
deliciosas, que podiam ter desfechos engraçados ou trágicos. Contista de mão cheia,
romancista de elevado talento e cronista acima da média, ele funda uma criação
singular.

Os 24 contos de A Ressurreição do Caçador de Gatos compõem um daqueles


Esse lado mais primores da literatura de temática regional, mesclando referências populares com
polemista eruditas e elaborando enredos envolventes, com personagens bem construídos em
de Carmo histórias que denotam um respeito genuíno pela natureza e por quem sabe com ela
lidar. Já o romance Jurubatuba é uma obra que se achega à dimensão psicológica sem
Bernardes
tirar os pés de uma realidade feita de roças e estradas, em que amores e aversões,
lhe rendeu desejos proibidos e ambições desmedidas acompanham a vida de cada criatura.
perseguições
durante a Carmo, de alguma forma, transferia o refinado traçado de sua personalidade
ditadura para as páginas que escrevia. “Meu avô era um sujeito muito humano e complexo.
militar. Em Era um roceiro muito estudado e inteligente. E quando publicava seus textos, seus
livros e suas crônicas no jornal, não se importava se os outros gostariam ou não,
certa ocasião,
mas adorava receber essa resposta, ainda que fossem críticas. Muitas delas, ele
precisou se respondia”, sublinha a neta Ana Flávia. Bom de briga ele era. Sincero, não escondia
refugiar em seus inconformismos e suas queixas. Gostava de ouvir histórias, mas também de
locais mais narrá-las.
longínquos
para evitar Esse lado mais polemista de Carmo Bernardes lhe rendeu perseguições durante
a ditadura militar. Em certa ocasião, precisou se refugiar em locais mais longínquos
problemas.
para evitar problemas. Isso aconteceu também porque o escritor nunca escondeu
suas preocupações sociais e as críticas severas que fazia a respeito de certos sistemas
de mando. O homem da roça, o trabalhador braçal era muitas vezes retratado como
alguém explorado, que precisa superar adversidades e preconceitos para provar
a solidez de seu caráter. Carmo sabia valorizar essa gente simples e tantas vezes
desprezada.

“Ele andava arrastando um chinelinho e adorava contar histórias. Muitas vezes


eu viajei com ele e sempre conversávamos bastante”, orgulha-se Ana Flávia. Histórias
que romperam fronteiras. A Ressurreição de Um Caçador de Gatos, por exemplo,
conquistou o prêmio literário Casa de Las Américas, em Cuba, um dos mais
relevantes do continente. Isso não afetou em nada o modo de vida de Carmo e dona
Maria, sua companheira de toda uma vida. Com ela teve cinco filhas. Com ela, ia
pescar no rio Cristalino. Com ela, construiu uma existência de memórias, criação e
sabedoria.

n
32

Sheila Leal
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Célia
Câmara
Uma verdadeira mecenas
Q
uando Maria Célia Câmara morreu em 28 de setembro de 1998, ela deixou uma
multidão de órfãos. Ela, que teve um filho biológico – Jaime Câmara Júnior –,
adotara gerações de artistas de Goiás ou que aqui vieram construir suas carreiras,
incentivando, adquirindo obras, organizando exposições, dando visibilidade aos
trabalhos. Desde que iniciou sua atuação como marchand, a mais prestigiada da
capital goiana e uma das de maior renome no Brasil, nenhum grande nome das artes
plásticas do Estado ficou sem sua avaliação e auxílio, sobretudo quando ainda eram
desconhecidos.

Paranaense da cidade de Jacarezinho, Célia Câmara encontrou em Jaime Câmara,


fundador do Grupo que leva seu nome, um companheiro para toda a vida. Eles se
casaram em 1943 e levaram adiante, em conjunto, projetos que mudaram a história
goiana nas décadas seguintes. Com o marido, ajudou a consolidar a linha editorial
dos veículos de comunicação da então chamada Organização Jaime Câmara para
que a cultura tivesse sempre destaque. Isso fez toda a diferença para artistas que
precisavam de espaço para mostrar seus talentos.
33

Quando Jaime Câmara foi eleito deputado federal nos anos 1970, Célia instalou-
se em Brasília, sedimentando uma ponte sólida nas artes entre a capital federal e
Goiânia. Com isso, pôde ampliar as possibilidades dos artistas sob seus cuidados.
E eles foram muitos. Antônio Poteiro, Siron Franco, Amaury Menezes. Todos eles
tiveram em Célia Câmara um esteio e um estímulo, o que ficou ainda mais forte
quando ela abriu, em 1972, a Casa Grande Galeria de Arte, espaço nobre para
mostras coletivas e individuais, para lançamentos de projetos e outras iniciativas
culturais.
Assim, Célia
Câmara foi Ficaram famosos seus concursos de Novos Talentos, em que identificava quem
fundamental na estava fazendo bons trabalhos, mas ainda não havia tido uma oportunidade. Essa
ação promoveu uma interação mais orgânica entre artistas que surgiam e os que já
carreira de uma
estavam consolidados no mercado, enriquecendo o trabalho de todos. Assim, Célia
lista extensa Câmara foi fundamental na carreira de uma lista extensa de artistas plásticos: Cléber
de artistas Gouvêa, DJ Oliveira, Roos, Cléia Costa, Isa Costa, Elder Rocha Lima, Alexandre
plásticos: Cléber Liah, Omar Souto, Juca de Lima, Selma Parreira e Gilvan Cabral, entre muitos
Gouvêa, DJ outros.
Oliveira, Roos,
A ligação estreita dessa mulher incansável com o meio artístico-cultural goiano
Cléia Costa, Isa
foi definitivamente selada com a criação da Fundação Jaime Câmara, em 1995,
Costa, Elder oportunidade em que o jornal O Popular completava 57 anos de existência. Para
Rocha Lima, além da cultura, a nova entidade, sem fins lucrativos e de utilidade pública, nasceu
Alexandre Liah, atuando em diversas áreas. Além de forte apoio a ideias no campo da cultura, que
Omar Souto, passavam pela inclusão, formação de público e diversidade de ideias, a Fundação
Juca de Lima, Jaime Câmara também tinha forte presença em projetos de educação e saúde.
Selma Parreira
Antes disso, no início dos anos 1980, Célia Câmara foi pioneira em outro aspecto.
e Gilvan Cabral, Pessoa forte e de atuação independente, ela acreditava que a mulher deveria ter
entre muitos protagonismo na sociedade, ditar seus próprios destinos e combater preconceitos e
outros. estereótipos. Por isso, ao lado da jornalista Glória Drummond, que trabalhava em
O Popular, concebeu e colocou no ar o programa Mulher, em 1981, em que todos
esses temas eram debatidos abertamente. Isso era inédito em Goiás e foi uma das
primeiras atrações do gênero no País, ficando no ar por seis anos.

O sorriso aberto, a elegância e a habilidade em, por meio da diplomacia, chegar


aos objetivos que traçava, Célia Câmara foi uma mulher à frente de seu tempo. Sua
atuação não passou despercebida no restante do País, recebendo homenagens em
vários estados. O compromisso social que sempre demonstrou e sua participação
central na evolução das artes em Goiás fizeram de Célia Câmara uma pessoa
inesquecível para muita, muita gente. Seja como primeira-dama de Goiânia, seja
como vice-presidente do maior grupo de comunicação do Centro-Oeste, ela manteve
a coerência e o carisma.

n
34

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Cici
Pinheiro
A dona da história
“F
oi a partir do meu trabalho que as pessoas passaram a acreditar na qualidade da
televisão goiana”, costumava dizer Floracy Alves Pinheiro, lembrada ainda hoje
pelo nome Cici, uma verdadeira desbravadora das artes cênicas em Goiás. “Ela era
muito poderosa nesse aspecto”, confirma Antenor Pinheiro, sobrinho e filho adotivo
da teatróloga, cineasta e atriz que, a partir de 1949, revolucionou o meio artístico
estadual e estabeleceu conexões com o que se fazia na área em outros lugares.
Uma longa e árdua caminhada que gerou muitos frutos, mas também diversas
frustrações.

“Tia Cici era uma mulher forte e contraditória”, descreve Antenor. “Ao mesmo
tempo que era uma pessoa muito à frente de seu tempo, que desafiava a sociedade
em termos comportamentais, politicamente era uma conservadora”, ri o sobrinho
que, juntamente com seus irmãos, foi criado pela tia protetora. Rígida na educação
das crianças, era também bastante exigente no trabalho e não dava folga na luta para
viabilizar seus projetos. “Ela teve muitos embates com o poder público ao longo da
carreira. Tentava levar a arte para a população, como instrumento libertador.”

Essa visão de mundo a fez ir atrás de seus sonhos muito cedo. Sua estreia foi na
35

peça Vila Rica, da Agremiação Goiana de Teatro, em Goiânia, em 1949. A menina


que veio de Orizona queria ampliar, de maneira constante, sua capacidade criadora.
Em 1951, produziu a primeira radionovela de Goiás, chamada Era Uma Senhora
Mais Brilhante que o Sol, misturando religiosidade e História do Brasil. “Ela foi para
São Paulo acompanhando uma irmã e começou a trabalhar lá. Foi uma época em
que fez muitos amigos e aprendeu com mestres”, ressalta Antenor.

Cici enveredou Em 1952, Cici já estava no ar no prestigiado Teleteatro da TV Tupi, em São Paulo,
pelo cinema, e encenava uma peça de Nelson Rodrigues. Após voltar a Goiás, trouxe inovações,
como a ousadia de colocar nos palcos de Goiânia um beijo na boca, na montagem
produzindo
da peça Deslumbramento. Seus vínculos com o teatro paulista continuaram e
o filme O ela retornou para integrar-se ao elenco do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC),
Ermitão de dividindo a coxia com Cacilda Becker, Walmor Chagas, Augusto Boal e Flávio
Muquém. Rangel. Com esse know how, Cici alçou voo ainda mais corajoso: produzir TV ao
Pelo currículo vivo em Goiás.
que formou,
Isso aconteceu em 1965, quando assinou A Família Brodie, levada ao ar pela TV
passou a ser Anhanguera. É a primeira telenovela goiana da história, com duração de 3 meses.
uma referência O sucesso foi arrebatador, o que ajudou a conquistar público para seus projetos
na área em no teatro. Dois anos depois, nova experimentação. Cici enveredou pelo cinema,
Goiás, o que produzindo o filme O Ermitão de Muquém. Pelo currículo que formou, passou a ser
a estimulou uma referência na área em Goiás, o que a estimulou a encampar outras iniciativas,
a encampar como a criação de grupos teatrais e a inauguração de espaços. Com os amigos
sempre por perto.
outras
iniciativas, “Nossa casa era muito frequentada por artistas daqui e de fora”, recorda Antenor.
como a criação “João Benio e Otavinho Arantes eram muito próximos dela. Tia Cici também lançou
de grupos nomes como Stepan Nercessian, Thelma Reston, Françoise Forton”, enumera. “E ela
teatrais e a recebia muitas visitas. Rolando Boldrin, Dina Sfat, Márcia de Windsor, Ziembinski,
inauguração de todos eles, quando vinham a Goiânia, faziam questão de reencontrá-la.” Um
prestígio que Cici empregava na montagem de temporadas de peças infantis com
espaços. entrada gratuita. “Eu mesmo fui ator em várias delas”, revela Antenor.

Os anos 1980 foram complicados para a teatróloga. Com o País em crise e pouca
atenção à cultura, ela ficou ressentida com tantas dificuldades. “Não pude fazer
tudo o que queria porque estou numa terra de bugres”, queixou-se certa vez. “Ela
reclamava que em Goiás, as pessoas valorizavam muito mais os bois e a soja que
a arte”, referenda Antenor. Sua última peça ocupou o palco em 1989. Era Gimba,
O Presidente dos Valentões. Três anos depois, a maior realizadora que o teatro de
Goiás já possuiu saía de cena, sem ver uma política cultural séria e abrangente ser
implementada.

n
36

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Coimbra
Bueno
Ele ergueu Goiânia
Q
uando Jerônimo Coimbra Bueno recebeu o diploma de Engenharia, com
especialização em Urbanismo, pela Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, a
decisão de realizar a obra que lhe tornaria notório estava sendo tomada. O ano de
1933 seria fundamental para Goiânia e para o homem que tocaria as obras de sua
construção. “Ele cuidou de toda a execução naquele primeiro momento”, pontua o
jornalista Hélio Rocha, que pesquisou sobre a vida do empreiteiro, que trabalhava ao
lado do irmão, Abelardo Coimbra Bueno.

“Naqueles tempos, eram poucas as empresas que conseguiam aceitar esse tipo de
encomenda. Mas os irmãos Coimbra Bueno se interessaram”, diz Hélio. Nascidos em
Rio Verde, filhos de um poderoso comerciante e fazendeiro, havia ligações entre os
engenheiros e o fundador da nova capital, que também começou sua vida política no
sudoeste goiano. “Durante as obras, eles não receberam diversos pagamentos. Pedro
Ludovico deu em troca amplas áreas de Goiânia para saldar os débitos. Áreas que
são hoje, exatamente, os setores Coimbra e Bueno”, informa Hélio Rocha.

Jerônimo Coimbra Bueno foi nomeado para dirigir a Superintendência Geral de


Obras de Goiânia em 1934 e a partir dali começou a trabalhar com o urbanista e
37

arquiteto Attílio Corrêa Lima, contratado para desenhar o projeto da nova capital.
Já no ano seguinte, os dois, que nunca se deram bem, se desentenderam de vez,
fazendo Attílio abandonar o trabalho. Com isso, houve inúmeras modificações
no plano urbanístico original, sendo o mais radical a construção do Setor Sul, já a
cargo de outro profissional, Armando de Godoy.

Pesquisas feitas pela arquiteta Anamaria Diniz a respeito do trabalho de Attilio


Corrêa Lima comprovaram que a empresa dos Coimbra Bueno, não se sabe ao
certo por qual motivo, não observou diversas outras instruções na construção de
Muito prédios públicos, mudando fachadas e até o estilo arquitetônico de vários deles.
prestigiado Nessa briga já notória, os engenheiros saíram vencedores. Isso mostrava o poder
que tinham na gestão Pedro Ludovico. Jerônimo e o irmão conquistaram, pouco
politicamente
tempo depois, a concessão da rodovia que ligaria Goiânia à região Sudeste do País.
e com
experiência Essa parceria foi rompida pela política. Coimbra Bueno foi um dos fundadores
na construção da União Democrática Nacional (UDN) em Goiás, legenda que era rival do Partido
de cidades, Social Democrático (PSD), de Pedro Ludovico. Com a queda do interventor a
também coube reboque do declínio do Estado Novo, a UDN ganhou força e Coimbra Bueno foi
eleito governador em 1947, derrotando Juca Ludovico, que havia sido Secretário
a Coimbra
de Fazenda de Pedro. “Aquela vitória foi surpreendente”, comenta Hélio Rocha.
Bueno dar Em seguida, Coimbra Bueno seria eleito duas vezes para ocupar uma cadeira no
os primeiros Senado.
passos para
que Brasília Muito prestigiado politicamente e com experiência na construção de cidades,
saísse do papel, também coube a Coimbra Bueno dar os primeiros passos para que Brasília saísse
do papel, ocupando o cargo de diretor-técnico da 3ª Comissão de Estudos e
ocupando
Localização da Nova Capital do Brasil, que traçou definitivamente o lugar onde
o cargo de o projeto de Oscar Niemeyer e Lúcio Costa seria concretizado. Ele saiu da cena
diretor-técnico política por um longo período quando terminou seu segundo mandato de senador,
da 3ª Comissão em 1963. No regime militar, dedicou-se às atividades empresariais.
de Estudos e
Localização da Mudando-se para o Rio de Janeiro, Coimbra Bueno ajudou a criar a Companhia
Duratex, investiu na exploração de minérios e em iniciativas de estímulo às
Nova Capital do exportações. Nos anos 1980, seu escritório continuava a formular projetos
Brasil urbanísticos. Alguns deles foram elaborados para Cuiabá, Curitiba, Cabo Frio e
Petrópolis, entre outras cidades. O engenheiro escreveu um trabalho explicando
como foi realizado o Plano de Urbanização de Goiânia. Muitas das ruas que
percorremos hoje em Goiânia e prédios históricos da cidade têm a assinatura dos
Coimbra Bueno.

n
38

Cristina Cabral
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Colemar
Natal e Silva
Disseminador de ideias
P
oucas pessoas em Goiás poderiam se orgulhar de ter fundado tantas instituições de
importância no Estado e participar tão ativamente da história de seu tempo quanto o
professor Colemar Natal e Silva. Por muitos foi chamado de “disseminador de ideias”.
Por outros foi qualificado de “semeador do futuro”. Quando vemos em perspectiva
todo o legado por ele deixado, fica difícil discordar dessas definições. Seu espírito
desbravador, principalmente nos campos da educação e da política, lhe valeram a
imagem de um dos homens mais centrais nos destinos goianos no século 20.

Nascido em 1907 em Niquelândia, que na época se chamava São José do


Tocantins, Colemar teve uma educação esmerada, formando-se na prestigiada
Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro. Quando retornou a Goiás, sua fama o
precedia e ele foi convidado pelo recém-empossado governo do interventor Pedro
Ludovico Teixeira, ainda no início dos anos 1930, a dar aulas de História, Sociologia
e Português no Estado. Sua carreira estava apenas começando e logo ele foi colocado
em postos-chave da administração, como na Secretaria do Interior e Justiça.

Homem de confiança de Pedro Ludovico, Colemar foi escalado para algumas das
missões de maior destaque daquele período. Ele integrou a comissão que, em tese,
39

definiu o local onde seria construída a nova capital goiana. Sua presença aumentou
a legitimidade do grupo de notáveis destacado para essa tarefa, ainda que pesquisas
recentes comprovem que a região que abrigaria Goiânia já estava definida antes do
relatório final da comissão. Também coube a Colemar, já como Procurador-Geral do
Estado, encerrar a disputa por fronteiras entre Goiás e Minas Gerais.

“Meu pai partilhava com Pedro Ludovico e demais membros da mudança


a vocação de descortinar novos horizontes, o que sempre praticou”, ressaltou a
professora emérita da UF Moema de Castro Olival, filha de Colemar, em entrevista
Nos campos dada em 2018. A professora Moema morreu em 2021. Nos campos da educação e da
cultura, entretanto, a atuação de Colemar ficou mais visível. Ainda em 1933, quando
da educação
Goiânia foi oficialmente criada, ele articulou o surgimento do Instituto Histórico
e da cultura, e Geográfico de Goiás. Em 1939, foi o líder da fundação da Academia Goiana de
entretanto, Letras.
a atuação de
Colemar ficou Mais tarde, no final dos anos 1950, lutou incessantemente pela instalação de uma
mais visível. universidade federal em Goiás. Como diretor da Faculdade de Direito de Goiânia,
mobilizou intelectuais, promoveu atos públicos e assembleias e até organizou
Ainda em 1933, passeatas fazendo essa reivindicação. O decreto criando a Universidade Federal
quando Goiânia de Goiás foi assinado em dezembro de 1960 por Juscelino Kubitschek. Colemar
foi oficialmente foi seu primeiro reitor. “Ele foi um guerreiro da educação para ver esse sonho se
criada, ele concretizar”, disse, em discurso, o ex-reitor da instituição, Edward Madureira.
articulou o
surgimento “Meu pai teve atuação marcante na vida do Estado, sobretudo na área cultural,
tendo seu nome ligado a quase todas as instituições culturais de Goiás”, reforçou
do Instituto a filha Moema. Além de exercer cargos – foi, por exemplo, presidente do Instituto
Histórico e Histórico e Geográfico de Goiás por quase 40 anos –, Colemar gostava de participar
Geográfico das ações em si. Ele costumava escrever sobre a história goiana em várias publicações
de Goiás. Em e se empenhou pessoalmente, usando seu grande prestígio, na formação do acervo
1939, foi o líder da biblioteca da Academia Goiana de Letras.
da fundação
Colemar também chegou a presidir a seção goiana da Ordem dos Advogados do
da Academia Brasil, tendo sido um dos fundadores do antigo Instituto dos Advogados de Goiás,
Goiana de em 1932. Na verdade, até o ano de sua morte, em 1996, Colemar manteve-se como
Letras. uma referência. No casarão da esquina da Rua 24 com a Rua 21, no Centro, atual
sede da Academia Goiana de Letras, ele morou com a esposa Genezy de Castro
a partir de 1937 e criou as filhas Moema, Mariza, Magaly e Marilda. Na frente do
imóvel, um grande painel traz a figura de Colemar, um homem que jamais deixou de
semear algo.

n
40

Hélio Nunes
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Cora
Coralina
A moradora da
famosa casa
P
Fale em Goiás e surgirá um nome: “é a terra de Cora Coralina”, dirão,
provavelmente. Essa associação é cada vez mais imediata. Se a conversa girar em
torno da antiga Vila Boa, então, será inescapável mencionar uma certa casa caiada de
branco, na beira de um rio, ao lado de uma ponte. Ali viveu Ana Lins dos Guimarães
Peixoto Bretas, poeta e doceira, um dos nomes mais festejados da literatura brasileira
nas últimas décadas. Com seus poemas simples, sem maiores formalismos, a
imagem da senhora simples encanta cada vez mais o público por seu lirismo com
sabor da terra.

“Cora Coralina era uma pessoa muito interessante. Passava a maior parte do
tempo aqui, na cozinha”, mostra Marlene Velasco, diretora do Museu Casa de
Cora, instituição que ocupa o antigo imóvel da poeta, um casarão centenário que
pertenceu à família da escritora por gerações. O imenso quintal nos fundos da
residência é o lugar onde ainda está plantado um variado pomar, fonte de matéria-
prima saborosa para os doces mais famosos da antiga capital goiana. “Não sou
41

uma ex-doceira. Sou uma doceira e considero melhores os meus doces que meus
versos”, escreveu Cora.

A escrita veio primeiro que as compotas na vida da poeta. Nascida em 1889,


quatro meses antes da Proclamação da República, a autora, que dizia ter em si
“todas as idades do mundo”, cresceu na cidade de Goiás, onde sua família era bem
conhecida. Daí o escândalo que tomou a sociedade local quando a Aninha da
Casa da Ponte fugiu da cidade, com 22 anos de idade, acompanhando o advogado
Cantidio Tolentino Bretas, algumas décadas mais velho e divorciado. Isso eclipsou
A vida de naquele início os versos de uma escritora que florescia.
escritora
As primeiras linhas de Cora foram publicadas no Anuário Histórico e
começou para Geográfico do Estado de Goiás na forma de um conto intitulado Tragédia na Roça.
valer apenas Sua produção literária conheceu um grande hiato por conta do casamento. Uma
em 1965, história (não confirmada) é a de que, vivendo no interior paulista, Cora escrevia
quando publicou textos que não publicava, mas circulavam e teriam gerado um convite para que
seu primeiro ela participasse da Semana de Arte Moderna, em 1922. Fato é que ela permaneceu
anônima. Quando seu marido morreu, em 1934, começou a fazer doces e vender
livro, Poemas
livros para sustentar a casa.
dos Becos
de Goiás e “Quando ela voltou à cidade de Goiás, em 1956, depois de passar 45 anos fora
Histórias Mais. daqui, o que lhe deu sustento foi a produção de doces. Cora viveu disso por 15
Depois veio, anos”, afirma Marlene Velasco. Doces que fizeram a fama da filha que voltava à
em 1976, Meu terra natal. Cora tomou posse da velha casa da família após a morte dos pais e
ali construiu um mito. Com sua letra um pouco tortuosa, escrevia em cadernos
Livro de Cordel,
simples, que mandava a meninada comprar. Mantinha uma rotina de preparação
que caiu nas de doces e de textos. Vila Boa e a poesia que as ruas de pedra lhe inspiravam
mãos de Carlos adornavam seus versos.
Drummond de
Andrade. A vida de escritora começou para valer apenas em 1965, quando publicou seu
primeiro livro, Poemas dos Becos de Goiás e Histórias Mais. Depois veio, em
1976, Meu Livro de Cordel, que caiu nas mãos de Carlos Drummond de Andrade.
Uma carta e uma crônica do poeta trouxeram a fama nacional à autora. Célebre,
Cora precisou dividir seu tempo com os muitos leitores que começaram a bater
à sua porta para comprar livros, doces e conversar. Ela, instalada numa cadeira
no corredor, mantinha a casa aberta. Já idosa, arranjava forças para lidar com a
admiração que suscitava.

Vintém de Cobre: Minhas Confissões de Aninha, Os Meninos Verdes e Estórias


da Casa Velha da Ponte foram os últimos livros que publicou em vida. Em 1983,
ganhou o Prêmio Juca Pato de intelectual do ano. Em 10 de abril de 1985, Cora,
aos 94 anos, morreu em Goiânia. A capa de O POPULAR do dia 11 de abril trazia
a notícia do falecimento da poeta ao lado da manchete que acompanhava a agonia
final do presidente Tancredo Neves, que morreria 10 dias depois. “Tudo aqui está
como ela deixou”, ressalta Marlene. E Cora deixou uma doce poesia para o Brasil.

n
42

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Coronel
Hipopota
Chacrinha do
Cerradão
O
programa era uma grande farra. Nos antigos estúdios da TV Anhanguera, um
senhor corpulento comandava ao vivo uma verdadeira balbúrdia, em que frutas da
feira se misturavam a cantores em busca de 15 segundos de fama. Tudo regido pelo
Coronel Hipopota, nome artístico de Maximiliano Carneiro, filho de pais libaneses,
nascido em Araguari (MG). Com A República Livre do Cerradão, líder absoluto de
audiência nas tardes de sábado, esse homem tornou-se o nosso Chacrinha, a figura
que usava de carisma, autenticidade e um pouco de anarquia para falar com o povo.

“Desde que eu tinha 9 anos de idade, eu me lembro de meu pai fazendo o


programa”, recorda Jane Nacare Carneiro, filha única de Coronel Hipopota com sua
esposa, Maria José, a Zezé, uma querida e respeitada médium espírita. Eles viveram
por muitos anos em uma casa de quintal grande no Setor Universitário, imóvel que
servia como uma espécie de continuação do trabalho do apresentador na TV. “Era
sempre muita fartura. Tinha frutas penduradas para todo lado. Ele levava esses
alimentos para distribuir no programa”, rememora a filha.
43

A casa era muito movimentada. Vários artistas, sabendo onde ele morava,
apareciam por lá para pedir uma chance, mostrar o que sabiam fazer e, quem sabe,
ganhar um espaço em um dos programas mais assistidos da época. “As duplas
sertanejas iam lá em casa para que ele pudesse avaliar se entrariam ou não no ar. Eu
me lembro de Zazá e Zezé cantando e tocando sanfona para papai ouvir. Zezé é o
Zezé di Camargo, que no início fazia dupla com seu outro parceiro, o Zazá”, conta
Jane. “Meu pai ficava até de madrugada pensando como incrementar o programa.”

A carreira artística de Maximiliano começou como radialista em Uberlândia.


Quando se mudou para Goiânia, foi contratado pela Rádio Anhanguera, onde
Além de lidar começou a apresentar o República do Cerradão. Naquela época, já era o Coronel
de forma tão Hipopota. “Esse apelido vem do fato de ele sempre ter sido um homem grande,
intensa com gordo. O apelido dele era Hipopótamo. Quando começou a fazer o programa,
ele queria ser o Coronel. Afinal, ele era dono de uma República, a República do
seu público,
Cerradão”, ri Jane. “Unindo as duas coisas, ficou Coronel Hipopota”, explica.
o Coronel
Hipopota tinha Longe de ser pejorativa, a designação era uma manifestação de carinho. Com
uma paixão chapéu de aba larga na cabeça e um sorriso bonachão, ele recebia as atrações
ardente pelo musicais e os calouros com a mesma simpatia, enquanto brincava com a plateia.
Vila Nova Havia até a versão das chacretes, as hipopotecas. “Impressionante como meu pai
ficou no imaginário de tanta gente. Já fazem 40 anos que ele morreu e muitas pessoas
Futebol Clube.
ainda se lembram perfeitamente dele”, admira-se Jane. A morte foi estúpida. Uma
“Era colorado bicicleta o atropelou quando ele saía de uma feira no Setor Sul. Ele bateu a cabeça e
doente”, não resistiu.
diverte-se Jane.
Já em Minas, Sua alegria, porém, permaneceu na recordação de quem o amou e viveu perto
seu time era o dele. “Meu pai era um homem excepcional. Era muito espontâneo, gostava de festas,
de fazer surpresas para a gente. Ele amava estar rodeado de pessoas o tempo todo”,
Uberaba.
descreve Jane. Quando não estava conversando com alguém, tinha a companhia de
um fiel radinho de pilha, que costumava ouvir sempre que podia. “E gostava de uma
pinguinha”, entrega a filha. “Ele não era um homem de ficar bêbado ou beber o dia
todo. Nada disso. Mas tinha que ter um aperitivo. Era sagrado.”

Além de lidar de forma tão intensa com seu público, o Coronel Hipopota tinha
uma paixão ardente pelo Vila Nova Futebol Clube. “Era colorado doente”, diverte-se
Jane. Já em Minas, seu time era o Uberaba. O homão, porém, ficava amedrontado
com chuvas fortes. “Morria de medo”, resume a filha. Jane considera que teve um
pai amoroso, que colocava a família acima de tudo e que tinha adoração pelos três
netos que ganhou. “Mas quando ficava nervoso, meu Deus, era melhor sair de baixo”,
completa. “Mas a raiva dele era passageira.” Já sua imagem, essa imortalizou-se.

n
44

Douglas Schinatto
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Cristiana
Toscano
A inimiga dos vírus
O
câmpus da Universidade de Yale, uma das mais importantes do mundo, viu uma
história de amor nascer mais de cinco décadas atrás. Vicente, vindo do interior
paulista e filho de italianos, foi para os EUA fazer um pós-doutorado em Química.
Lá, conheceu Patrícia, norte-americana que cursava seu mestrado em Enfermagem.
Eles se apaixonaram, se casaram, tiveram os dois primeiros filhos por lá e decidiram
prosseguir no Brasil as suas vidas. Ambos sabiam que por aqui havia a necessidade
da atuação de quem pudesse fazer a diferença na ciência e na saúde. No novo lar,
nasceram mais dois filhos, entre os quais Cristiana Toscano, uma das maiores
autoridades mundiais em vacinação atualmente.

“Acho que herdei tudo isso dos meus pais”, brinca Cristiana, que representa
esse duplo esforço (ciência e saúde), sobretudo nos últimos anos, combatendo a
Covid-19. Professora da UFG há mais de dez anos, quando se mudou para Goiânia
acompanhando o marido engenheiro que é daqui, Cristiana integrou os comitês de
crise para a pandemia em Goiânia e Goiás, além de ser membro da Câmara Técnica
de Apoio de Imunização, figurando como única latino-americana a estar no Grupo
Estratégico Internacional de Experts em Vacinas e Vacinação da Organização
45

Mundial de Saúde (OMS). O que ela dizia, o mundo ouvia.

“Há muito tempo trabalho em ações de prevenção e mitigação de epidemias


e pandemias de doenças infecciosas pelo planeta”, conta. “Foi com esse olhar
que encarei a Covid desde o início.” Ela trabalha com imunização há mais de
duas décadas, já tendo atuado no Centro de Controle de Prevenção de Doenças
dos EUA, o CDC, de Atlanta, referência mundial na área. Com mestrado em
Doenças Infecciosas e Parasitárias pela Universidade de São Paulo e doutorado
em Epidemiologia pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul, onde também
fez pós-doutorado em Avaliação de Tecnologias em Saúde. Ela participou ainda
Cristiana de estudos na OMS e na Organização Pan-Americana de Saúde sobre patógenos
assinala que contagiosos.
questões
de saúde Além disso, Cristiana tem especialização em Economia da Saúde pela
pública nunca Universidade de York, no Reino Unido, e em sua trajetória lidou com outras
emergências sanitárias, como a pandemia de H1N1, além de já ter atuado no
deveriam ser controle de surtos de ebola, sarampo e cólera em várias partes do mundo. Cristiana
encaradas sob assinala que questões de saúde pública nunca deveriam ser encaradas sob viés
viés ideológico. ideológico. “Isso atrapalha a tomada de decisões articuladas.” Essa vontade de lidar
“Isso atrapalha com políticas públicas de saúde sempre esteve presente na pesquisadora. “Busquei
a tomada esse caminho para poder ajudar mais pessoas”, explica.
de decisões
“Em minha juventude, isso não era tão claro para mim. Eu tinha dúvidas se
articuladas.” queria fazer Fisioterapia, Psicologia e ao mesmo tempo adorava música. Pensei,
então, em fazer Musicoterapia. Meus pais me orientaram a cursar Medicina, que
era algo mais amplo. Depois eu escolheria onde atuar”, recorda. “No meu teste
vocacional, deu Relações Internacionais e Comunicação. O engraçado é que minha
carreira acabou me levando para essas áreas mesmo”, brinca. “Depois fiz um estágio
numa área de comunidade indígena na Amazônia. Gostei demais e soube que era
aquilo que gostaria de fazer.” Em seguida, ela fez residência em infectologia e cuidou,
em UTI, de pacientes com doenças infecciosas.

A alta mortalidade de pessoas por tétano, uma doença prevenível com vacina,
chamou sua atenção para a importância da imunização, área em que é destaque
internacional. Mãe de dois filhos, ela consegue conciliar as várias facetas de sua vida.
“Para manter a sanidade, a gente precisa priorizar as coisas que fazem a vida valer a
pena. Família, relacionamentos, pessoas que lhe são próximas. Isso é fundamental
para atravessarmos as crises”, aconselha. “Tenho que ter esperança para continuar
levantando todo dia.” A cultura é algo que lhe dá ânimo. Além da música, Cristiana
sabe apreciar a boa literatura. “E também adoro História, para não repetirmos os
mesmos erros do passado”, conclui.

n
46

Cristina Cabral
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Dom Pedro
Casaldáliga
O destemido
bispo do povo
O
Bispo do Povo. Esse título não existe na hierarquia da Igreja Católica, mas deveria,
ainda que fosse para conferi-lo a d. Pedro Casaldáliga, um homem que mostrou
de maneira intensa como o sacerdócio pode estar ao lado dos mais necessitados,
dos mais desassistidos, dos mais perseguidos. Há meio século, aquele homem de
aspecto frágil foi uma fortaleza em um meio hostil. No final dos anos 1960, ele veio
da Espanha para o Brasil e escolheu se embrenhar no interior do País em busca de
quem precisava de sua ajuda. Em 1971, tornou-se bispo da Prelazia de São Félix do
Araguaia.

“Eu o conheci logo que chegou e fui trabalhar com ele no Mato Grosso assim que
se tornou bispo”, recorda Antônio Canuto, ex-padre ligado à Comissão Pastoral da
Terra e à Teologia da Libertação, tendência de esquerda que parte do clero brasileiro
seguiu e ampliou, tendo d. Pedro como um de seus expoentes mais destacados. Ao
assumir o cargo, o religioso lançou a carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em
47

Conflito com o Latifúndio e a Marginalização Social. “Eu o ajudei a redigir aquela


carta, compilando documentos que davam sustentação aos seus argumentos”, relata
Canuto.

Aquela manifestação pastoral foi encarada como uma declaração de guerra


pelos grandes proprietários de terras e grileiros da região. E era mesmo. Dom
Pedro deixava claro que teriam nele um opositor poderoso e persistente, que não
se cansaria de denunciar desmandos, explorações, violências e crimes de morte.
“Nós passamos três anos muito conturbados em São Félix. Era muita perseguição”,
testemunha Canuto. Ele mesmo chegou a ser preso e a casa de d. Pedro Casaldáliga
foi invadida. Até ameaças de morte o bispo recebeu. Ameaças quase cumpridas.
Nenhum perigo
que pudesse “Certa vez, um jagunço disse que havia sido contratado para eliminar d. Pedro.
correr fez d. Um dia, o bispo saiu de sua casa e estava andando pelas ruas de São Félix, seguido
Pedro se calar. pelo assassino. Daí ele parou, voltou-se para trás e cumprimentou o homem que
Ele permaneceu tinha a missão de matá-lo. O caboclo não teve coragem de cumprir a ordem”, narra
em sua missão Canuto. Nenhum perigo que pudesse correr fez d. Pedro se calar. Ele permaneceu
em sua missão evangelizadora e expondo condições insalubres de trabalho, invasão
evangelizadora
de terras indígenas e o absurdo de existir fazendas do tamanho de países.
e expondo
condições “Havia um latifúndio com 320 mil hectares. Só o perímetro dela tinha 540 km.
insalubres Pequenininha, né”, ironiza Canuto. Nos tempos de ditadura militar, os proprietários
de trabalho, dessas imensas extensões de terra gozavam da proteção do Estado, que enviava
invasão de tropas para proteger seus interesses de possíveis ações dos trabalhadores. Dom Pedro
Casaldáliga fazia frente a cada uma dessas intimidações. “Já quando foi ordenado
terras indígenas
bispo, ele recusou usar qualquer simbologia de poder associada ao cargo. Foi algo
e o absurdo de inédito. Dom Pedro não tinha mitra, nenhum daqueles acessórios”, relembra Canuto.
existir fazendas
do tamanho de Dom Pedro jamais arredou pé dessas convicções. A diocese da qual passou a
países. cuidar era uma das mais carentes. Carecia de educação, saúde, trabalho, justiça e até
lei. Muitos de seus companheiros de luta caíram em emboscadas, foram retirados
da vida de maneiras covardes, sem que ninguém fosse punido por isso. Ele mesmo
voltou a receber ameaças já em sua velhice, quando precisou se refugiar em um
lugar seguro. Sofrendo os sintomas do Mal de Parkinson, ele voltou a morar na
comunidade que adotou, numa das casas mais simples de São Félix do Araguaia, já
no final da vida.

Sua última aparição pública foi em 2016, quando participou da Romaria dos
Mártires, evento que o próprio d. Pedro criou nos anos 1980 para chamar a atenção
para os mortos nos conflitos agrários da Amazônia. Acompanhando-o em sua
cadeira de rodas estavam trabalhadores sem-terra, indígenas. Também estava a
lembrança do padre João Bosco Burnier, que foi executado em 1976, dentro de uma
delegacia de um distrito de Barra do Garças, na frente de d.Pedro, que tentou conter
o assassino. O Bispo do Povo partiu em 8 de agosto de 2020, aos 92 anos de idade.

n
48

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Dom Fernando
Gomes
Vida sem medo
e sem violência
Q
uando todos se calaram, ele falou. E falou alto, com sua voz possante. Nos anos de
chumbo do regime militar instalado em 1964, em pleno governo do general Médici,
o arcebispo de Goiânia, Dom Fernando Gomes dos Santos, publicou a carta pastoral
Como Vemos a Situação da Igreja em Face do Atual Regime, em que lançava críticas
duríssimas, e até então impensáveis naquele 1973, contra a ditadura. “A base mais
forte do sistema está na força das armas que dispõe de todos os meios para fazer o
povo suportá-lo”, alegou. Ali, ele marcou uma posição histórica e inspiradora.

O documento, como tantos que produziu em sua trajetória eclesiástica, era


coerente com seu lema de vida. O arcebispo repetia que a vida deveria ser encarada
“sem violência e sem medo”. “Dom Fernando Gomes foi o homem certo para o lugar
certo na hora certa”, disse padre Alaor Rodrigues, uma das pessoas mais próximas do
religioso paraibano desde o primeiro dia em que pisou em terras goianas, em 1957,
em entrevista concedida em 2018. “Eu era um menino e estava lá quando o primeiro
bispo chegou. Foi uma coisa fantástica. Eu o vi se paramentar para a posse e pensava:
49

para que tanta roupa?’”, recordou.

Aquele Dom Fernando de 1957 era bem diferente do bispo que enfrentou os
militares em 1973. “A grande virada, a meu ver, foi sua preparação para as mudanças
implementadas pelo Concílio Vaticano II”, explicou o padre Alaor, que morreu
em 2020, vítima da Covid. A forte revisão das normas da Igreja Católica, que
demandaram debates entre 1962 e 1965, aproximou a instituição do povo, retirando
Esse era seu barreiras e simplificando ritos, além de lançar um olhar mais atento aos problemas
jeito de ser: sociais dos fiéis. “No início, Fernando resistiu, mas depois, bem assessorado, foi se
convencendo da importância daquele momento.”
sólido nos
argumentos, Dom Fernando havia estudado em Roma em sua juventude, quando saiu de
contundente Patos, interior da Paraíba, para se tornar um religioso de carreira precoce. Durante
nas falas, o Concílio, reunido no palácio Domus Mariae e participando de quatro das sessões
determinado nas principais, impressionou seus colegas de batina com elogiadas intervenções. “Ele
ações. Quando passou a ser citado nos corredores do Vaticano”, destacou Alaor. Ainda jovem para
os padrões eclesiais, ele já havia ocupado o posto de bispo de Aracaju e liderava uma
ainda estava arquidiocese próxima à capital federal. Seu prestígio estava em alta.
na capital
sergipana, Esse era seu jeito de ser: sólido nos argumentos, contundente nas falas,
organizou determinado nas ações. Quando ainda estava na capital sergipana, organizou uma
uma reunião reunião de bispos, ao lado de Dom Hélder Câmara, para afinar os discursos e
de bispos, ao fortalecer a posição da Igreja. Esse encontro foi a semente da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil, entidade da qual quase foi o primeiro presidente. “Dom Agnelo
lado de Dom Rossi acabou ganhando a disputa e se tornou também arcebispo de São Paulo. Mas
Hélder Câmara, Juscelino Kubitschek conheceu Fernando nessa época e uma simpatia mútua surgiu”,
para afinar informou Alaor.
os discursos
e fortalecer “Ele veio para Goiânia por acaso”, revelou o padre, que esteve ao lado do
a posição da arcebispo até sua morte e escrevia uma biografia sobre ele. “JK pediu que Dom
Fernando fosse arcebispo de Brasília, mas em 1957 não havia nada lá, nem igreja.
Igreja. Foi quando criaram a Arquidiocese de Goiânia e o instalaram aqui, onde havia mais
condições.” E aqui ficou até sua morte, desempenhando um papel especial. “Ele
apoiou fortemente as comunidades eclesiais de base, acolheu missionários, como
Dom Pedro Casaldáliga, aproximou a Igreja da realidade do trabalhador e criou a
UCG.”

A famosa carta pastoral contra o regime militar, lida em todas as paróquias,


impressa e distribuída aos milhares por Goiânia, foi a confirmação dessa postura
combativa e afetuosa. São incontáveis os episódios em que o arcebispo atuou para
proteger perseguidos e denunciou crimes cometidos pelo Estado. Houve represálias
que levaram Dom Fernando a uma crise, contornada com uma carta pessoal do papa
Paulo VI apoiando suas iniciativas. O primeiro arcebispo de Goiânia morreu em
1985, fiel aos seus princípios. Sem violência, sem medo.

n
50

Wildes Barbosa

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Dom Tomás
Balduíno
O bispo da terra
D
om Tomás Balduíno rasgava os céus de Goiás, Mato Grosso e Tocantins com certa
frequência. O bispo emérito da Cidade de Goiás, arquidiocese de que cuidou por
muitos anos e a partir da qual promoveu uma verdadeira revolução na ala mais
progressista da Igreja brasileira, tinha brevê de piloto e não se incomodava em subir
em seu pequeno avião e rumar para alguns dos locais mais remotos e perigosos
dessas regiões. “Pilotei até 83 anos de idade. No meu aviãozinho, eu voei este Brasil
inteiro”, declarou a O POPULAR em dezembro de 2012, quando completou 90 anos
de vida.

O destemor foi uma de suas mais marcantes características. O religioso


dominicano que nasceu na cidade de Posse foi um homem cuja coragem colecionava
admiradores e incomodava desafetos. E ele teve muitos seguidores e inimigos.
Defensor de povos indígenas e camponeses, esteve sob vigilância de órgãos de
segurança durante a ditadura militar – “cheguei a ter mais de 30 agentes me
seguindo” – e foi hostilizado por latifundiários de todo o País. Um dos fundadores
da Comissão Pastoral da Terra (CPT), ele jamais se intimidou com ameaças e até
com possíveis atentados.
51

“Certa vez, fui ao enterro do padre Rodolfo Lunkenbein, que trabalhava entre os
índios bororos, no Mato Grosso, e que havia sido assassinado na missão”, lembrou
ele, na entrevista a O Popular. “Muito tempo depois, um jornalista de Brasília pediu
para eu dizer onde estava naquela data, em 1976. Disse que estava no funeral. Ele
perguntou onde eu deveria estar se não tivesse ido ao enterro. Disse que estaria
numa paróquia, que prefiro não dizer o nome. Um documento a que o repórter teve
acesso mostrava que havia um plano para me matar naquele dia, naquela paróquia.”

Momentos de perigo que se acumularam em sua trajetória combativa, mas


Homem culto que nunca o desviaram de um caminho de fé e serenidade. “Um dos aspectos
– tinha uma fundamentais da atuação dele na pastoral sempre foi o diálogo”, diz Isidoro Reis, ex-
biblioteca com 2 coordenador da CPT e que conviveu de perto com Dom Tomás desde meados dos
anos 1970. “Sua discussão era coletiva. Ele não assumia o papel de bispo que estava
mil volumes – e acima dos outros. Não, ele falava com as pessoas e dava representatividade efetiva
que acreditava para as comunidades eclesiais de base, em que padres, leigos, irmãos estavam todos
que o sacerdócio juntos.”
se exerce
no meio das Segundo Isidoro, que é mais conhecido como Galego, esse método democrático
pessoas mais formou quadros com a mesma mentalidade, influenciando o nascimento de grupos
populares, de sindicatos e associações partidárias. “Dom Tomás acreditava que
pobres, Dom os trabalhadores precisavam ter opções, mas sem que a Igreja ocupasse um lugar
Tomás Balduíno de protagonismo. Ela deveria ser um instrumento de denúncia da violência e de
angariou educação social para que cada um tomasse as rédeas de seus destinos.” Vinculado
respeito até à Teologia da Libertação, ele chegou a transportar trabalhadores rurais para suas
entre aqueles mobilizações.
que dele
Tal postura o fazia ser visto com reserva até por colegas de batina. “Não vivo de
discordavam. ilusões e fantasmas”, respondia ele. “É preciso viver o que é comprovadamente certo.
Eu acho que essa também era a posição de Jesus. Ele acreditava na fé do povo. Não
cultivava sua personalidade. Não era idolátrico.” Isso não quer dizer que se furtava
a usar sua autoridade quando achava necessário. Em visitas a cadeias, em diálogos
diretos com governantes, em homilias contundentes, mostrava vigor na cobrança de
mudanças e melhorias usando as prerrogativas do cargo de bispo.

Homem culto – tinha uma biblioteca com 2 mil volumes – e que acreditava que
o sacerdócio se exerce no meio das pessoas mais pobres, Dom Tomás Balduíno
angariou respeito até entre aqueles que dele discordavam. Ele se assumia como um
homem de esquerda, mas não para defender partidos ou pessoas específicas. “Sou
de uma esquerda que valoriza a participação dos pobres nas decisões importantes,
que tem esperança de um amanhã melhor.” Até o final de sua vida, aos 91 anos, foi
coerente com seus ideais, gostemos deles ou não.

n
52

Simone Ala

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Egídio Turchi e
Celenita Turchi
O casal que
amava a docência
U
m vestígio do sotaque italiano ainda transparecia na fala de Egídio Turchi. Já o bom
humor, o espírito otimista, a fala fácil e envolvente, essas características o professor
Egídio, como ficou conhecido, manteve de sua querida San Benedetto in Alpe, aldeia
próxima a Florença. A casa de sua família era um imóvel histórico, conhecido por ter
hospedado em 1290 o poeta Dante Alighieri, autor da Divina Comédia. Sobre Dante,
aliás, o professor Egídio adorava dar aulas, em que demonstrava toda sua paixão pela
docência, atividade que cumpriu por mais de 50 anos.

“Meu pai veio para Goiânia em 1944 e lecionou em quase todos os colégios.
Em 1948, foi nomeado para o Liceu de Goiânia”, relata a também professora Zaíra
Turchi, filha de Egídio e de outra docente, Celenita Turchi. O casamento entre
os dois foi realizado em 1951 e consolidou a mudança dos rumos da vida de um
homem que veio ao Brasil evangelizar. Após estudar em Turim, Egídio integrou-
se em uma missão religiosa em Cuiabá. A falta de vocação para ser padre logo
53

se manifestou e ele decidiu vir para Goiás. “Desde o primeiro dia que pisei nesta
terra, sabia que viveria aqui o resto da vida”, declarou, para uma reportagem de O
POPULAR sobre seus 90 anos.

“Meu pai participou das reuniões que definiriam a criação da Universidade


Católica, hoje PUC, tendo sido professor durante anos da instituição. Foi um dos
fundadores da UFG, estruturando a Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras,
onde atuou como professor até se aposentar aos 72 anos”, destaca Zaíra. “Minha
mãe dedicou-se inteiramente ao magistério e à causa da educação. Foi sempre uma
pessoa corajosa e valente. Estimulada por meu pai, deixou duas filhas com ele e foi
com duas filhas mais novas estudar na Universidade de Perugia, na Itália, durante
um ano.”
Em sua Esse ambiente incentivou as filhas a seguirem o mesmo caminho. As quatro mais
trajetória, velhas optaram pela carreira acadêmica – Zaíra em Letras, Lenita em Sociologia
Egídio lecionou e Marília e Celina em Medicina. Celina ganhou reconhecimento internacional
Matemática, em 2017, sendo eleita uma das cientistas de maior relevância no mundo por suas
Latim, Filosofia pesquisas sobre o vírus da zika. Em sua trajetória, Egídio lecionou Matemática,
Latim, Filosofia Românica, Direito Romano e Literatura Latina. Já dona Celenita deu
Românica,
aulas de Italiano, Latim, Literatura Italiana e Português. A sala de aula era o habitat
Direito Romano de ambos.
e Literatura
Latina. Já “A docência para os dois era uma importante missão e a educação uma causa
dona Celenita para dedicar a energia e o compromisso da vida inteira. E foi assim que eles viveram,
deu aulas de ensinando gerações e abrindo oportunidades de mais aprendizado e aprimoramento
para as pessoas de Goiás”, diz Zaíra. “No dia a dia, eles exerciam o aprendizado pelo
Italiano, Latim, afeto”, testemunha João Dias Turchi, neto de Egídio e Celenita. “Eles mostravam que
Literatura o espaço do aprender não é estrangeiro, mas transformar a vida e o mundo como
Italiana e uma grande sala de aula. Ele ia contando as coisas e não parecia que era uma aula.”
Português. A
sala de aula era Egídio e Celenita adoravam ser pioneiros. Ele foi o primeiro a ocupar o cargo de
o habitat de presidente do Conselho Estadual de Educação. Já Celenita defendeu, nos anos 1960,
uma tese de doutorado na USP em uma época que uma mulher nessa posição era
ambos. raridade. Em Goiás, ela abriu caminhos com seu trabalho, que foi orientado por
dois dos maiores professores de literatura do País, Antonio Candido e Alfredo Bosi.
O casal de professores se harmonizava à perfeição. Ele mais expansivo, ela mais
contida. “Meus pais juntos se completavam. Estavam sempre disponíveis a ensinar e
ajudar.”

“Uma lembrança dos meus avós era a certeza de que iam me solucionar as
dúvidas da escola e do mundo. Meu avô sempre me contava as coisas que estavam
no jornal, mas, no fim, me contava a história do mundo, o que ele estava vendo das
coisas”, lembra o neto João. “Com minha avó era o texto. O primeiro texto com que
ganhei prêmio, quem corrigiu foi ela”, diz o neto, que também é escritor e mais uma
pessoa que teve a paixão pela palavra despertada pelo casal Turchi.

n
54

Ricardo Rafael
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Elder Rocha
Lima
“Minha cabeça é boa.
Então, continuo”
O
nome de Elder Rocha Lima se confunde com as discussões sobre arte em Goiás
nas últimas décadas. “Eu me lembro de uma grande reportagem em O POPULAR
sobre uma exposição que fiz lá nos anos 1970”, rememora. Sim, mas antes disso ele
já figurava na cena cultural goiana, sendo jurado de concursos, apresentando suas
obras, revelando novos projetos. E esse ritmo parece ser o mesmo tantas décadas
depois. “Tenho 90 anos, meu filho”, disse, em 2018, sem timbre de tristeza em uma
voz ainda jovial. Homem experiente, hoje com 94 anos, que não abre mão de ser
lúdico.

“Eu comecei a pintar por volta de 1960, mas antes eu já nutria verdadeira paixão
pelo desenho”, revela. “Acho que o desenho é uma espécie de arte espontânea. Já
nascemos com essa capacidade. Tenho netos e montei uma pequena coleção dos
desenhos que eles fazem. É uma maravilha. Acho que demorei 40 anos aprendendo
como pintar como uma criança.” O ato de se deslumbrar diante da vida e do mundo
55

é, talvez, uma das maiores virtudes de seus trabalhos. O Cerrado e suas belezas
naturais, seus matizes e seus cenários inspiram Elder a seguir na arte, sempre
revigorado.

“Vendo meus quadros mais antigos, eu percebo que não mudei muito durante
todo esse tempo. Sou um pintor figurativo. Até tentei fazer algo mais abstrato, mas
me dei mal”, reconhece. “Eu me peguei instintivamente desenhando e pintando o
Cerrado, em uma época em que preocupações ambientais não eram prioridades.
“Meu trabalho Meu trabalho é uma grande homenagem ao Cerrado, essa maravilha que corre o
é uma grande risco de desaparecer. O agronegócio está ameaçando esse patrimônio natural. Há
muitos meliantes do Cerrado, políticos que o destroem por dinheiro”, indigna-se.
homenagem ao
Cerrado, essa No intuito de conseguir ver partes do Cerrado ainda preservadas, Elder costuma
maravilha ir ao Parque dos Pireneus, na região de Pirenópolis e Corumbá de Goiás, onde ainda
que corre encontra paisagens que o remetem a um passado quando a região não havia sofrido
o risco de tanto com a ação humana. “Eu passo um tempo em Brasília, mas estou sempre
desaparecer. percorrendo essas áreas. Estou construindo um novo ateliê, organizando o acervo
que tenho”, informou, em 2018. As quase nove décadas e meia de vida não parecem
O agronegócio
pesar. “Tenho bastante pique. Minha saúde é boa, minha cabeça é boa. Então,
está continuo.”
ameaçando
esse Com essa disposição toda, não é de admirar que o artista plástico esteja sempre
patrimônio com novidades. Ele já lançou sete livros em sua carreira, em que faz um verdadeiro
natural. memorial de suas paisagens prediletas. Os casarios de Pirenópolis e da cidade de
Goiás ganham destaque nesse conjunto. No livro Guia Sentimental da Cidade
Há muitos
de Pirenópolis, por meio de desenhos e pinturas, Elder Rocha Lima reconstrói
meliantes episódios formadores do antigo Arraial do Meia-Ponte. Em Guia Afetivo da Cidade
do Cerrado, de Goiás, ele percorre caminho semelhante pelas ruas de pedra da antiga Vila Boa.
políticos que o
destroem por Ex-professor de Arquitetura, Elder sabe como poucos reconhecer a arte que
dinheiro” tantas vezes está oculta em centros urbanos. Desses traçados, ele consegue extrair
o belo, o espírito daquele lugar. Em 2006, fez uma grande exposição na cidade de
Goiás abordando justamente esses aspectos. Naquele ano, Elder foi o principal
homenageado da edição do Festival de Vídeo e Cinema Ambiental, o FICA. Para
retribuir, apresentou uma série de telas em que a junção entre arquitetura colonial
e meio ambiente, que ajudou a cidade a conquistar o título de Patrimônio da
Humanidade, era ressaltada.

Seu processo criativo, porém, é paciente. Elder não gosta de pintar em escala
industrial. “Acho ótimo deixar o trabalho descansando. Vou vendo os defeitos e
retocando. Na hora que estou pintando, não tenho a perspectiva exata do que quero”,
declarou ele naquela ocasião, em 2006. Na época, ele revelou seu lema profissional:
“Se você quiser ser universal, pinte sua aldeia”. A aldeia de Elder Rocha Lima
pode ser Pirenópolis, pode ser a cidade de Goiás, podem ser montanhas, veredas,
chapadões do Cerrado goiano. Cenários que ele pinta como ninguém.

n
56

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Família
Matteucci
O horror de um crime
E
m uma manhã de dezembro de 1957, Goiânia viveu um dia de terror. A cidade, que
contava com apenas 24 anos de existência, deparou-se com uma cena de violência
ainda inédita para seus habitantes. Em uma casa da Rua 74, no antigo Bairro Popular,
moradores e policiais descobriam uma cena macabra. Na residência moravam o
casal Wanderley Mateucci, sua mulher, Lourdes de Sá, e cinco filhos, entre 9 meses e
6 anos de idade. Naquela manhã, a vizinhança acordou com a notícia de que os pais
e quatro de suas cinco crianças haviam sido massacrados a machadadas.

Aquela que ainda é uma das piores e mais cruéis chacinas da história da capital
é, até hoje, rodeada de mistérios. O escritor Miguel Jorge, que escreveu o livro
Veias e Vinhos baseado na tragédia dos Mateucci, não se arrisca a dizer como tudo
se deu. “Para fazer o livro, eu li os oito volumes do processo no fórum, entrevistei
testemunhas, fui à penitenciária três vezes para falar com o suposto assassino e não
consegui respostas definitivas”, reconhece. “Parece que há muito medo em torno do
assunto, tantos anos depois do que aconteceu.”
57

Em 2006, quando uma versão cinematográfica de Veias e Vinhos, filmada pelo


diretor João Batista de Andrade, chegou ao circuito comercial, O POPULAR refez os
passos do caso e chegou a entrar em contato com a única sobrevivente do massacre,
que não quis comentar o assunto. Wânia Mateucci era uma criança de 2 anos de
idade e foi encontrada debaixo de uma cama do quarto em que dormia com os
irmãos. Provavelmente, na hora dos assassinatos, ela caiu acidentalmente e não foi
vista pelos criminosos, já que eles não pouparam nem mesmo um bebê de 9 meses
de idade.
Talvez hoje,
Na ocasião, o pintor Siron Franco, que era vizinho da família e chegou a ver as
a chacina
crianças com que brincava nas ruas mortas pelos cômodos da casa, recordou aquele
entraria para dia. “Foi uma cena horrorosa. Tive pesadelos durante anos com aquela imagem.
as absurdas Acho até que aquilo influenciou de alguma maneira a minha arte”, reconheceu.
estatísticas Walkíria, 6 anos; Wagner, 5; Wolney; 4; e a caçula Wilma, uma bebê de colo. Todos
de crimes com eles, além de seus pais, foram atingidos com golpes violentos na cabeça e outras
que estamos partes do corpo, desferidos com machados e outras ferramentas cortantes.
acostumados.
As investigações apontaram para possíveis brigas familiares e um irmão de
Em 1957, era Wanderley chegou a ser acusado do crime, mas depois inocentado. Suspeita-se que
diferente. A houve torturas por parte dos policiais durante os interrogatórios dos suspeitos. Um
morte brutal de homem, chamado Altino e que trabalhara no comércio da família, confessou as
quase toda uma mortes. Ele cumpriu pena no antigo Cepaigo e, ao sair, desapareceu. O jornalista
família deixou Isanulfo Cordeiro, ex-editor-chefe de O POPULAR, na época repórter, encontrou-
se com o suposto assassino e o acompanhou até a rodoviária, onde ele pegou um
uma cicatriz no
ônibus rumo ao Nordeste.
imaginário da
capital. A versão oficial não parece convincente ainda hoje. O crime, por exemplo,
exigiria a participação de mais pessoas e houve um elemento de ódio envolvido,
dada a fúria com que os golpes foram desferidos. Os motivos de Altino nunca
pareceram suficientes para aquilo. “Sempre ficou essa interrogação”, admite Miguel
Jorge, que morava em Belo Horizonte quando tudo aconteceu. “Eu estava visitando
Goiânia e senti o clima de terror nas ruas. As pessoas achavam que algo parecido
poderia acontecer com elas também. Quando vim morar aqui, resolvi escrever sobre
o assunto.”

Miguel Jorge diz que os arquivos do jornal O POPULAR também foram fonte para
sua pesquisa. A capa do dia seguinte à descoberta dos corpos trazia o massacre em
destaque. Por muitos dias, Goiânia não falou em outra coisa. A polícia, pressionada,
tinha que solucionar o crime o mais rapidamente possível para que a tranquilidade da
população voltasse. Talvez hoje, a chacina entraria para as absurdas estatísticas de crimes
com que estamos acostumados. Em 1957, era diferente. A morte brutal de quase toda
uma família deixou uma cicatriz no imaginário da capital.

n
58

Cristiano Borges
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Fernandão
Um craque
que não morre
Q
uando a queda do helicóptero no dia 7 de junho de 2014 tirou a vida do artilheiro
Fernandão, sua mãe perdia o filho único e um grande amigo. Quando falou
conosco sobre a tragédia, quase 4 anos depois do acidente, dona Marli Ribeiro da
Costa estava mais forte ao recordar o que viveu ao lado de seu maior orgulho. A
dor continuava, mas já compartilhava espaço com uma saudade em que conseguia
até se lembrar de episódios engraçados, conseguia até sorrir e agradecer por ter
dado à luz uma pessoa que esteve em sua vida por 36 anos, dando-lhe três netos e
momentos inesquecíveis.

“As lembranças deles são muitas. Não dá nem para saber quais são as maiores”,
responde Marli. Logo em seguida, porém, as narrativas começam a brotar
naturalmente. “Quando tinha cerca de 16 anos, o Fernando ficou três dias sem ir
treinar. Ele estava subindo para a categoria profissional. Daí o Raimundo Queiroz,
dirigente do Goiás, foi lá em casa e pediu para chamar o Fernando. Conversou
com ele o convenceu a voltar. Quando saiu, o Fernando me deu um abraço e
começou a chorar. Dizia que não era jogador profissional, que não daria conta. E
eu dizia que era sim.”
59

Marli sempre foi um esteio para o craque. Competitivo como todo campeão,
Fernandão odiava perder. “Quando isso acontecia, ele chegava irritado em casa e se
trancava no quarto e era melhor deixar ele quieto.” Quando o filho era mais jovem
ainda, porém, ela precisou interferir algumas vezes. “Um dia, fui ver um jogo dele no
Centro de Treinamento. Ele tinha uns 14 anos. Uma hora, ele fez falta e foi expulso.
Saiu do campo indignado, entrou no carro e me abraçou, muito nervoso. Eu fui
acalmando ele devagar. Ainda bem que, no final das contas, o time dele ganhou.”

Depois de Toda a força dada pela mãe nos momentos mais complicados transformou-se em
gratidão. Ídolo do Goiás, Fernandão, depois de jogar no exterior, foi contratado pelo
revelado pelo
Internacional, de Porto Alegre. Na capital gaúcha, conheceu suas maiores glórias.
Goiás em 1995, “Quando eles ganharam a Libertadores em cima do São Paulo, eu entrei em um
caiu nas graças corredor comprido lá no Estádio Beira-Rio. Abri uma porta e vi o Fernando, que
da torcida do abriu os braços e veio em minha direção. Ele me deu um abraço forte, longo e disse:
Verdão, onde ‘é pra senhora, mãe’. Nunca mais vou esquecer aquela cena.”
jogou até 2001,
Para Marli, o filho que partiu cedo demais foi “um presente de Deus”. Aquela
ganhando cinco
mesma ligação estreita foi transferida para a neta Tainá. “Ela me dá muita força para
campeonatos continuar, para aguentar a falta dele. E ela é a cara do pai.” Com os gêmeos Enzo e
goianos. Eloá, a avó tinha menos contato na época da entrevista. Hoje, Marli faz das próprias
Mudou-se para recordações maneiras de se fortalecer. “A solidariedade, o carinho que vi nas torcidas
a França, onde foi lindo. Eu percebi que não era só eu que estava sofrendo com a morte dele.
defendeu o Milhares de pessoas no Beira-Rio também sentiam muita dor.”
Olympique de Fernandão, quando morreu, iniciava uma nova carreira, a de comentarista de
Marselha e o TV. Experiência ele tinha de sobra para falar de futebol. Depois de revelado pelo
Toulouse. Goiás em 1995, caiu nas graças da torcida do Verdão, onde jogou até 2001, ganhando
cinco campeonatos goianos. Mudou-se para a França, onde defendeu o Olympique
de Marselha e o Toulouse. “Uma vez, ele teve um choque de cabeça num jogo. Me
ligaram dizendo que ele tinha sofrido traumatismo craniano. Fiquei louca. Dois dias
depois, estava na França cuidando dele”, relembra Marli.

Voltou ao Brasil para virar mito dos colorados do Rio Grande do Sul. Era
o capitão do time nas conquistas da primeira Libertadores da América e do
Campeonato Mundial Interclubes, batendo o poderoso Barcelona, em 2006. Em
sua carreira, marcou um dos gols mais bonitos da história do Serra Dourada com
a camisa do Goiás, uma bicicleta perfeita, com a bola no ângulo num jogo contra
o Bahia. Também fez o gol número mil do confronto entre Inter e Grêmio. Uma
estátua em sua homenagem foi erguida na frente do novo Beira-Rio. Para emoção e
gratidão de dona Marli.

n
60

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Frei Nazareno
Confaloni
O italiano mais
goiano de todos
O
ano era 1950 e Goiânia engatinhava. Goiás ainda sofria o trauma da transferência da
capital e o Estado, como um todo, só era convidativo para quem se dispusesse a ser
pioneiro em um lugar onde as benesses da modernidade não haviam chegado. Um
religioso italiano, porém, não se intimidou e aceitou o imenso desafio de plantar aqui
uma semente mais duradoura de arte. E justamente de uma arte revolucionária e
vanguardista. “Eu brinco que Frei Nazareno Confaloni é a Semana de Arte Moderna
de Goiás”, compara PX Silveira, pesquisador e biógrafo desse dominicano corajoso.

Convidado por Dom Cândido Penso para pintar o interior da Igreja Nossa
Senhora do Rosário, na cidade de Goiás, frei Nazareno Confaloni não só terminou
o serviço no prazo de um ano e meio, como decidiu ficar. “Ele nunca mais voltou.
Interessante é que Dom Cândido não o convidou para se transferir para a então
chamada Prelazia do Bananal, esta foi uma decisão exclusiva de Confaloni. Ele até
viajava à Itália, mas só em visitas rápidas. A casa dele passou a ser Goiás”, informa
61

PX, autor do livro Conhecer Confaloni, que refaz a trajetória deste homem de traços
fortes.

Após finalizar os 15 Mistérios na Igreja do Rosário, Confaloni, cujo primeiro


nome de batismo era Giuseppe, estabeleceu-se em Goiânia, onde mudaria a vida
cultural da jovem capital. “Ele encontrou meios propícios para desenvolver sua arte”,
explica PX. Um deles foi a chance de fundar uma escola de belas artes, o que fez em
1965, vinculando esse novo espaço de aprendizado à nascente Universidade Católica
de Goiás. Começava uma tradição da qual fariam parte nomes como Siron Franco,
Convidado Amaury Menezes e Ana Maria Pacheco. “Todos aprenderam com ele”, salienta PX.
por Dom
Cândido Penso Na opinião de seu biógrafo, Frei Confaloni está no mesmo nível de importância
de outros artistas italianos que fizeram carreira no Brasil, mas que por se
para pintar estabelecerem em grandes centros acabaram ficando mais conhecidos, como Alfredo
o interior da Volpi, Victor Brecheret e Lina Bo Bardi. “Ele ombreia com esses nomes, além de ter
Igreja Nossa produzido muito. Estimamos que ele tenha feito cerca de 4 mil obras, mas muito
Senhora do desse patrimônio se perdeu”, lamenta. “Pessoas tinham telas de Confaloni e nem
Rosário, na sabiam. É uma pena. Suas obras ainda não são valorizadas como deveriam, mas isso
cidade de será revertido um dia.”
Goiás, frei Um dos trabalhos de Frei Confaloni é o conjunto de painéis que ornamenta a
Nazareno antiga Estação Ferroviária de Goiânia, na Praça do Trabalhador, e mostra a formação
Confaloni não da população goiana, com suas influências étnicas. Há também um mural na atual
só terminou sede da Secretaria Estadual da Educação, no Setor Coimbra. Uma grande mostra
o serviço no foi exibida no Museu de Arte Contemporânea, do Centro Cultural Oscar Niemeyer,
prazo de um uma retrospectiva da arte de Confaloni, cujo centenário de nascimento foi lembrado
em 2017. Agora ele ganhará um museu no Santuário do Rosário, em Goiás.
ano e meio,
como decidiu “Ele foi um empreendedor. Quando veio para Goiânia, Confaloni conseguiu
ficar. construir a Igreja São Judas Tadeu, no Setor Coimbra, projetada por ele, apenas
vendendo seus quadros ou fazendo permutas. Ele trocava telas por cimento ou areia,
por exemplo”, salienta PX. A igreja é um exemplo representativo de seu talento.
Dentro dela, há vários afrescos que mostram o refinamento de um pintor que
sabia conciliar desenhos delicados com um vigor evidente na expressão das figuras
religiosas, usando para isso cores fortes e formas entre geométricas e sinuosas.

No olhar de um São Francisco que parece nos encarar na alma, na cena dos
apóstolos com Cristo, na simbolização do Espírito Santo, Confaloni extrapola o
motivo religioso que o guia e mergulha em uma arte que, em técnica e expressão,
não fica devendo a contemporâneos seus, como Cândido Portinari. Os rostos
levemente borrados e os cenários cuidadosamente compostos inspiraram gerações
de artistas e encantaram pessoas em diversos espaços. Este é Frei Nazareno
Confaloni, o italiano mais goiano que já tivemos, o homem que trouxe o
modernismo nas artes para seu novo lar.

n
62

Cristiano Borges
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Geraldo
Faria
Mestre dos mestres
E
le gostava de escrever de madrugada. O silêncio ao redor lhe inspirava. “Acordo com
as ideias e coloco no papel. Durante a madrugada dá vontade de escrever, quando
começo a pensar na humanidade”, declarou Geraldo Faria em uma reportagem
publicada no POPULAR em fevereiro de 2011. Naquela ocasião, ele estava lançando
o livro Janelas da Liberdade, volume composto por crônicas e poemas, em que a
criatividade do professor que ensinou e estimulou tantas pessoas a amar o idioma
pátrio e sua literatura era apresentada com a mesma paixão que dedicou à docência.

“Ele inventava novos jeitos de ensinar, inventava formas para passar o conteúdo
e as regras de Português e Gramática”, impressiona-se seu filho, o jornalista e
psicanalista Paulo Alexandre Faria Campos. “Ele estimulava a leitura em seus alunos
usando jornais, cartoons, revistas em quadrinhos. Isso criava uma empatia. As
pessoas passavam a gostar de aprender.” Estratégias que parecem banais hoje em
dia, mas que foram inovações quando o professor do Colégio Aplicação da UFG
começou a adotá-las, em um tempo em que não havia internet e outras parafernálias.

“Uma outra característica sua era estimular os alunos a falar, a terem raciocínio
próprio. Em cada redação que meu pai corrigia, ele colocava um comentário sobre
o que o aluno havia escrito, sobre o pensamento e as ideias deles. Apontava os erros
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que mereciam atenção, mas deixava que os alunos expressassem seu cotidiano,
contassem suas vivências”, diz Paulo. Essa comunicação direta entre o professor
Geraldo e suas inúmeras turmas pôde ser comprovada em janeiro de 2018, quando o
veterano mestre morreu, aos 80 anos de idade, de parada cardíaca.

A morte de Geraldo gerou comoção em gerações de ex-alunos, que guardavam


daquele professor não só as melhores lembranças, mas sobretudo a gratidão por
terem recebido dele uma formação para toda a vida. Depoimentos emocionados
se sucederam para homenagear um homem que, sendo professor universitário,
preferiu, em uma escolha incomum, dar aulas para o ensino fundamental e médio,
Depoimentos ajudando a fazer do Colégio Aplicação um dos melhores do Estado. “Dar aulas para
emocionados o 1º e 2º graus era sua paixão”, confirma o filho Paulo.
se sucederam
para “Ele se tornou professor da UFG em 1971, primeiro na Faculdade de Educação,
depois no Colégio Aplicação. Ele tinha muitas críticas ao sistema e se dizia um
homenagear
privilegiado por dar aulas em um lugar em que podia exercer seu ofício plenamente,
um homem recebendo, em sua própria avaliação, adequadamente para isso. Mas sabia que a
que, sendo maioria de seus colegas professores não gozava dessa situação”, comenta Paulo Faria.
professor Nas palestras que o pai ministrava, tentava mostrar alternativas aos professores para
universitário, que conseguissem dar boas aulas, mesmo com todas as dificuldades.
preferiu, em
Esses encontros com educadores tornaram-se uma das atividades mais constantes
uma escolha do professor Geraldo a partir de certo momento de sua vida. Já uma referência, era
incomum, requisitado para ensinar quem depois ensinaria as crianças. “Meu pai ocupou, de
dar aulas fato, o lugar de mestre”, assegura Paulo. Um de seus preceitos como educador era
para o ensino o de que o aluno não deveria fazer atividades para “tirar nota” e sim para evoluir,
fundamental e tendo consciência da importância daqueles conhecimentos para seu futuro. Isso
médio incluía as temidas regras gramaticais, que Geraldo conseguia desestigmatizar com
seus métodos.

No final da vida, o ex-atleta, que praticou esportes em competições universitárias,


como basquete e futebol – “era um bom atacante”, garante o filho Paulo – andava com
o auxílio de uma bengala. Isso, porém, nunca lhe tirou o vigor para a profissão que
abraçou e para a missão que se propôs cumprir. Em uma das crônicas do livro Janelas
da Liberdade, o professor Geraldo Faria critica o que definia como “prisões sem grades”,
redomas invisíveis criadas por aparelhos tecnológicos que isolam as pessoas do mundo
e do convívio social. O professor Geraldo sabia mesmo das coisas.

n
64

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Geraldinho
Os causos que
Goiás amava ouvir
U
m cigarrinho de palha sempre à mão, um jeito doce de brincar com o palavreado
do homem do campo e uma risada inconfundível. Quem viveu em Goiás
na década de 1980, certamente se deparou, em algum momento, com essa
figura carismática, que arrebatava plateias de todas as classes sociais e idades.
Geraldinho Nogueira era uma espécie de xodó do Estado, talvez por exatamente
simbolizar muito de nossa cultura mais genuína, de uma simplicidade que caíra
de moda, mas que ainda guardávamos em nossa memória afetiva, em nossas
raízes mais profundas.

O contador de causos mais famoso que Goiás já teve foi descoberto por acaso
pelo publicitário Hamilton Carneiro, apresentador do programa Frutos da Terra,
na época exibido pela TV Anhanguera. “Em 1983, eu comecei a fazer reportagens
externas para o programa, para falar de hábitos e costumes do Estado. Um dia,
em Bela Vista, eu e minha equipe pousamos em uma fazenda e eles me falaram
do Geraldinho, que era um senhor que fazia trabalhos braçais, mas que contava
histórias engraçadas na frente de um bar em troca de uma pinguinha que lhe
davam”, relata.
65

Hamilton foi até lá antes das 9h da manhã, porque foi avisado que se chegasse
mais tarde, poderia encontrar Geraldinho já um pouco alterado pela bebida. “De
início, ele ficou meio tímido, mas logo que me deu bom dia, eu fiquei impressionado
com sua força. E foi quando ele me contou o famoso causo da bicicleta, que se
tornou uma de suas marcas registradas”, recorda o apresentador. Esta é sua história
mais famosa que narra como ele tentou “domar” uma bicicleta, levando alguns
Entre sua tombos. “Eu não vou aprumar no lombo dela não”, dizia Geraldinho, entre risadas
descoberta sonoras.
artística e
sua morte, Era um talento em estado bruto, que precisava ser lapidado, mas não muito. “Ele
não poderia deixar de ser quem era, aquela autenticidade. Ele precisava preservar
Geraldinho
isso”, salienta Hamilton Carneiro, que o levou ao seu programa. Sucesso imediato,
viveu uma que logo foi transferido para a publicidade. “Ele fez algumas propagandas da antiga
década fora Caixego, mas só em momentos especiais, escolhidos a dedo. Fizemos 4 peças com
do anonimato. ele: na Nova República, em 1985, na promulgação da Constituinte e na separação do
Sua saborosa Tocantins, em 1988, e quando Sarney quis mais um ano de mandato, em 1989.”
risada se calou
Um show foi montado para que ele pudesse mostrar essa cultura do interior
em 1993, poucos
no teatro. Trova, Prosa e Viola contava, além de Geraldinho, com Hamilton
dias antes de Carneiro, traduzindo em versos a sabedoria da roça, e a dupla André & Andrade,
completar 80 interpretando clássicos da moda de viola. Nesse entremeio, Geraldinho ficou
anos. Dez anos conhecido em todo o País ao se apresentar no palco do programa Som Brasil,
depois de seu apresentado por Lima Duarte nas manhãs de domingo da Globo. “Eles chegaram a
falecimento, nos oferecer um contrato para que fôssemos atração fixa, mas o programa acabou
saindo do ar”, lamenta Hamilton.
foi lançado um
segundo volume “Lotávamos o Teatro Goiânia com o espetáculo e gravamos um disco do show.
de Trova, Prosa Foi um fenômeno de público”, relembra o publicitário. Fama que trouxe recursos
e Viola. para a vida de dificuldades do contador de causos. “Eu e a dupla André & Andrade
combinamos que a bilheteira seria destinada ao Geraldinho, para que ele pudesse
viver mais confortavelmente. Ele ganhou uma boa quantia naquela época e até
comprou casas em Bela Vista, mas a família era grande e logo começaram a
acontecer desavenças. Acho que sobrou pouca coisa depois que ele morreu”, diz
Hamilton.

Entre sua descoberta artística e sua morte, Geraldinho viveu uma década fora do
anonimato. Sua saborosa risada se calou em 1993, poucos dias antes de completar
80 anos. Dez anos depois de seu falecimento, foi lançado um segundo volume de
Trova, Prosa e Viola. Ficou a imagem daquele senhor de roupa puída, chapéu gasto,
proseando na frente de uma casa de pau-a-pique, num quintalzão de terra batida. Ali
era seu habitat, seu meio, onde estava feliz. E quando estava no palco ou na frente da
TV, ele transportava todos nós para aquele que era o seu cenário original.

n
66

Walter Alves

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Goiandira do
Couto
Arte em grãos
E
m 1969, O POPULAR noticiou “a grande descoberta de Goiandira do Couto”.
Na reportagem, é abordada a mudança no estilo da artista plástica, “a pintura em
areia, pela qual vem se dedicando ultimamente”. Esta é uma das facetas – talvez a
mais criativa delas – de uma mulher que sempre esteve na vanguarda de projetos
que ecoam até hoje. “É impossível dissociar o trabalho de Goiandira da cidade de
Goiás”, atesta a historiadora Raquel Miranda Barbosa, professora da UEG e que
defendeu uma tese de doutorado na UFG sobre a vida e a obra de Goiandira.

O trabalho, intitulado Muito Além das Telas Douradas: Cultura e Tradição em


Goiandira do Couto, defende que seu legado está baseado em um tripé: o casario
da cidade de Goiás, sua cultura e suas belezas naturais. “Ela foi a precursora de
um movimento de valorização da antiga capital do Estado após a transferência
da sede do poder para Goiânia”, enfatiza Raquel. “Isso vem desde os anos 1940,
quando ela começou a lutar para que houvesse a recuperação da visibilidade da
cidade de Goiás e suas tradições. Isso resultou, por exemplo, no ressurgimento da
Procissão do Fogaréu.”
67

Segundo a pesquisadora, Goiandira exerceu papel fundamental para que essa


encenação da Semana Santa voltasse a ter importância no imaginário da população.
“Ela concebeu o desenho estético da procissão como a assistimos hoje.” Além disso,
defendeu ferrenhamente o sistema de ensino que foi desmontado após a construção
de Goiânia. A transferência da capital do Estado previa que os colégios, sobretudo o
centenário Lyceu, permaneceria em Goiás, o que não aconteceu. Por isso criou uma
escola de alfabetização no Quartel do 20, sendo sua primeira professora.

Sua arte, que Filha do poeta, advogado e historiador Luís do Couto, Goiandira, ainda que tenha
passou por nascido em Catalão, herdou do pai quase que a missão de zelar apaixonadamente
uma radical pela cidade de Goiás, a terra que foi seu verdadeiro berço. O caminho que escolheu
transformação para fazer isso foi a do patrimônio cultural. “Acredito que o tombamento da cidade
como Patrimônio da Humanidade, em 2001, foi o fechamento desse ciclo de lutas em
em meados
que Goiandira teve um papel muito grande”, pondera Raquel Miranda. “De algum
dos anos modo, ela tinha esse horizonte futuro quando começou a defender a cidade.”
1960, passou
a ser uma Sua arte, que passou por uma radical transformação em meados dos anos 1960,
das melhores passou a ser uma das melhores ilustrações dessa vitória. Ela, que antes pintava em
ilustrações óleo sobre tela, encontrou nas areias coloridas da Serra Dourada uma original forma
de expressão. De grão em grão, surgiram os casarões coloniais, as ruas de pedra, os
dessa vitória.
monumentos, as montanhas e bosques, o Rio Vermelho de sua Goiás, em quadros
Ela, que antes que começaram a ser conhecidos em todo o Brasil e também no exterior. “Ela era
pintava em autodidata. Aprendeu tudo sozinha”, salienta a pesquisadora Raquel.
óleo sobre tela,
encontrou nas Não só as paisagens, mas também as tradições populares do Carnaval e da
areias coloridas Semana Santa foram inspirações no mosaico multicor de obras que não só
representavam a cultura de um povo, mas também lançavam um alerta ambiental.
da Serra
As areias do Cerrado que resultavam naqueles quadros precisavam ser protegidas;
Dourada uma a Serra Dourada merecia mais apreço e carinho. Fundando associações culturais
original forma e ligas de artistas, Goiandira conseguia aglutinar talentos em torno de um projeto
de expressão. maior, que incluía não só contemplação, mas a empatia com sua terra e sua gente.

A artista plástica viveu o bastante para ver muitos de seus sonhos serem
realizados. Goiás foi protegida, destruída por uma enchente e reconstruída; sua
arte ganhou reconhecimento; a velha capital renasceu para todo o Brasil. E quem
ia à antiga Vila Boa parava, quase obrigatoriamente, no ateliê de Goiandira, onde
podia encontrar uma arte única e vital e uma simpatia incomparável na autora de
tais maravilhas minuciosamente construídas. Em 2011, aos 95 anos de idade, ela se
despediu, deixando como herança quase que uma pequena lenda. Um conto da fada
das areias.

n
68

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Gustav
Ritter
O nômade que
achou Goiânia
A
ntes de chegar a Goiânia para ficar, um alemão inquieto e talentoso percorreu,
literalmente, meio mundo. Nascido em Hamburgo em 1904, Henning Gustav Ritter
era um apaixonado pela arte, mas primeiro testou seus talentos na marcenaria.
Tendo cursado a Escola de Artes Lerchenfeld, na Alemanha, seus trabalhos
tiveram como primeira influência as tendências que vigoravam em sua terra após
a Primeira Guerra Mundial. A paixão pela madeira atiçou sua curiosidade e o
fez buscar novidades bem longe de casa. E com 21 anos, aportou no Brasil pela
primeira vez.

Sua primeira morada por aqui foi na cidade de Esteio, no Rio Grande do Sul. A
colônia alemã local o fez se sentir em casa pelos quatro anos que viveu no sul do
Brasil. No final dos anos 1920, voltou para a Alemanha para completar os estudos,
mas seu país já não era o mesmo. O nacionalismo exacerbado, alimentado pela
crise econômica causada pelas sanções impostas à Alemanha após a Primeira
69

Guerra, fizeram crescer um terrível fenômeno político. Em 1933, os alemães


elegeram Adolf Hitler como seu chanceler. Logo, Gustav Ritter soube que não
poderia viver mais ali.

Em 1934, casado, o artista plástico deixou a perseguição e a intolerância para


trás e voltou para a América do Sul. “Essa história é fantástica”, comenta o cineasta
Ângelo Lima, que fez um documentário sobre a vida de Ritter, chamado Uma Arte,
Esse homem Uma Vida. “Sua vinda definitiva para cá foi uma aventura. Ele embarca em um navio
cheio de em Hamburgo e chega a Belém do Pará. De lá, pega um barco, que sobe todo o Rio
histórias únicas Amazonas e vai parar em Iquitos, no Peru, onde passa a morar com outros alemães
chega a Goiás que também haviam fugido da Europa. Imaginem isso em 1934”, espanta-se.
apenas em No meio da selva, Gustav Ritter começa a amadurecer seu trabalho, sobretudo,
1949, depois de de escultor e autor de aquarelas. Quando decide sair do Peru e vir para o Brasil, em
se naturalizar 1936, passa rapidamente pelo Ceará, onde trabalha como desenhista e arquiteto,
brasileiro dois e vai parar em Belo Horizonte. “Lá, ele tem um contato maior com Burle Marx.
anos antes. Chegou a ficar hospedado na casa dele. Isso o faz desenvolver seu lado paisagista”,
Sua vinda para indica Ângelo. Ao lado do mestre, trabalha no projeto paisagístico no Grande Hotel
de Araxá, em Minas Gerais.
Goiânia ocorre
após nomeação Esse homem cheio de histórias únicas chega a Goiás apenas em 1949, depois de se
para ser naturalizar brasileiro dois anos antes. Sua vinda para Goiânia ocorre após nomeação
professor da para ser professor da Escola Técnica Federal, onde lecionou disciplinas de desenho
Escola Técnica industrial. A arte, porém, continuava em seu radar. Ele foi um dos pioneiros da
Federal, Escola de Belas Artes da Universidade Federal de Goiás, onde ensinou escultura e
modelagem. “Toda uma geração de artistas passou pelas mãos dele. Nomes como DJ
onde lecionou Oliveira, Siron Franco, Ana Maria Pacheco, Maria Guilhermina”, lista Ângelo.
disciplinas
de desenho Gustav Ritter batiza hoje um instituto de educação em arte, em Campinas, onde
industrial. há aulas de música, teatro e dança, sobretudo. “Isso faz com que as pessoas achem
que ele foi um compositor ou um dramaturgo. Pouca gente se recorda de que ele foi
um escultor, um dos maiores que já tivemos. Um homem que revolucionou as artes
em Goiás, como Frei Nazareno Confaloni, por exemplo”, defende o cineasta Ângelo.
Ele destaca que Ritter adorava embrenhar-se por um Cerrado ainda incólume para
buscar inspiração e desenhar suas paisagens. “Ia para o Araguaia e ficava dias por lá.”

Professor diligente, Gustav Ritter era descrito como um “homem de fino trato”.
Foi também um incentivador da cultura e deixou isso de herança para dois de seus
filhos, que fazem suas incursões pelas artes plásticas. Seu grande legado, porém, foi
ensinar suas refinadas técnicas escultórias, que incluíam um domínio perfeito da
tridimensionalidade, o que dava vigor impressionante às suas obras. Ritter morreu
em 1979 em Goiânia e no ano seguinte sua obra obteve reconhecimento nacional,
quando foi exposta na 11ª Bienal de Arte de São Paulo.

n
70

Sebastião Nogueira
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Hélio de
Oliveira
A saga de um
leitor da luz
Q
uando Juscelino Kubitschek pousou no Cerradão goiano para visitar, pela primeira
vez, o local onde construiria Brasília, o presidente teve uma surpresa. Acreditando
que só encontraria mato bravo ao sair do avião, ele se deparou com um homem e
uma máquina fotográfica. “Mas até aqui tem jornalista?”, perguntou JK, incrédulo.
Tinha, sim senhor. Seu nome era Hélio de Oliveira e fora incumbido, pelo jornal
O POPULAR, de registrar o momento histórico. “Pois então capriche, porque você
vai tirar a foto do presidente da República na nova capital do Brasil.”

Esta é uma das muitas histórias de um senhor que levou boa parte da história
de Goiânia, de Goiás – e, de quebra, de Brasília também – na memória. “Quando
o Juscelino disse aquilo para mim, eu olhei para um lado, olhei para o outro e
só vi mato. Então eu pensei: ‘esse homem é maluco chamar isso aqui de capital’”,
detalhou Hélio, em entrevista a O POPUlAR, em 2018. Algumas décadas depois,
ao receber o título de Cidadão Brasiliense, Hélio contou esse episódio. “O pessoal lá
71

não gostou muito, mas aí eu disse: ‘bendita maluquice a de Juscelino, que acreditou e
construiu essa maravilha que é Brasília’”.

Hélio de Oliveira, que era dono do maior e melhor acervo fotográfico de Goiás
(mais de 100 mil itens) e testemunhou a história por meio de suas lentes, sabia como
funciona os melindres humanos. Se não fosse assim, não teria permanecido 40 anos
acompanhando governadores como fotógrafo oficial do governo. “Fui o primeiro
fotógrafo do Palácio”, sublinhou, sem se esquecer que também foi o primeiro
fotógrafo fixo de um serviço informativo em Goiás. “Fui até a sede do POPULAR
e conversei com o Câmara Filho. Ele disse que eu ia cumprir uma pauta e que se
gostassem do serviço, eu ficaria.”

A primeira pauta do jornalista Hélio de Oliveira foi averiguar como iam as obras
A primeira de construção da Usina do Rochedo, no Rio Meia-Ponte, perto de Piracanjuba.
pauta do “Naquela época, a pessoa fazia tudo. Fui fotografar, mas também fiz entrevistas e
jornalista redigi a matéria. Acho que eles gostaram do resultado, já que trabalhei no jornal
por 10 anos.” Era um tempo bem diferente. “Todo o material era meu e o jornal não
Hélio de
tinha estrutura para revelar os filmes, por exemplo. Muitas vezes fiz isso em casa.”
Oliveira foi Fotografar na época de Hélio de Oliveira era algo muito mais braçal e difícil que
averiguar como hoje.
iam as obras
de construção “Minha primeira câmera foi uma Voigtlander, que só tirava 8 fotos por filme,
da Usina do em negativos 6 x 9. A gente tirava as fotos e só na revelação ia ver se havia prestado
ou não”, descreveu. Depois ele teve uma Rolleiflex, que tirava até 12 fotos. “Mas eu
Rochedo, no
sempre dava um jeito de tirar 13”, emendou o veterano fotógrafo. “Muitas vezes, eu
Rio Meia- ia a eventos com caixas de lâmpadas para os flashes. Toda hora tinha que trocar as
Ponte, lâmpadas queimadas.” Quando morreu em 2020, aos 90 anos, ele estava aposentado
perto de do ofício há 20 anos, mas tecia críticas aos novos tempos. “Hoje qualquer um pode
Piracanjuba. ser fotógrafo”, disparou.

Rápido nas palavras, Hélio de Oliveira acostumou-se a ser certeiro em sua


profissão, atividade que não permitia erros. “Uma vez, acompanhando a comitiva
de um governador pelo interior, ao rebobinar o filme na máquina, ele se soltou. Não
podia abrir, porque perderia tudo. Perguntei ao prefeito se ele tinha uma sala escura
para fazer a operação. Não tinha. Então pedi o guarda-roupa dele emprestado.
Dentro do guarda-roupa do prefeito, troquei o filme da máquina, mas não perdi
o trabalho.” Parte dessa trajetória pode ser vista nos dois volumes da obra Eu Vi
Goiânia Nascer, de sua autoria.

Hélio esteve ao lado de todos os governadores goianos de Pedro Ludovico


a Marconi Perillo. Fotografou até o Marechal Tito, presidente da Iugoslávia, ao
lado de Mauro Borges. Quando os militares quiseram as fotos para associar o ex-
governador ao comunismo, ele não as entregou. Durante 48 dias, esteve com JK em
sua campanha para senador por Goiás. Viveu ao lado do ex-presidente episódios
engraçados, como quando Juscelino pegou carona numa carroça até a pista de pouso
de uma cidade do interior. “Tudo valeu a pena”, resumiu. E o melhor: tudo está
registrado.

n
72

Diomício Gomes
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Henrique
Rodovalho
Um corpo que não cansa
A
coreografia remetia a voos amplos. E acertou na mosca. Em 1988, um rapaz
formado em Artes Marciais e Educação Física pela Eseffego mudou os rumos da
própria vida e investiu em algo que não se fazia em Goiás. “Goiânia demorou um
pouquinho para entender totalmente a proposta. Éramos ovelhas negras. Para o
público, aquele espetáculo era inovador”, testemunha Henrique Rodovalho, um dos
nomes que fundaram a Quasar Cia de Dança. O primeiro trabalho, como todos os
outros que viriam a seguir na história do grupo, foi concebido por ele. Asas era o
nome.

Com o tempo, as pessoas foram se acostumando a apreciar um novo tipo de


arte na cidade, a dança contemporânea. Espetáculos cujos movimentos no palco
continham uma narrativa, uma reflexão mais densa, diversas provocações. “As
pessoas começaram a ter curiosidade em nos conhecer. Elas se perguntavam: que
pessoal é esse?” Um pessoal corajoso, com certeza. Ao lado de parceiros, como Vera
Bicalho, que se tornou diretora da companhia, Rodovalho angariou companheiros
para uma jornada que exigiria disciplina e criatividade, dois pontos básicos da
dança.
73

“Aqui havia uma tribo de vanguarda que acreditou em nosso trabalho e nesse
sentido, vocês, do jornal O POPULAR, foram importantes para mostrar o que
queríamos propor”, afirma. “Desde o início tivemos esse apoio de setores da
imprensa, que faziam cobertura cultural. A Quasar também nasceu nessa parceria.
Todos os nossos espetáculos contaram com esse auxílio, com essa divulgação, com
essa ajuda na compreensão de nossas mensagens.” E a companhia foi tomando
corpo, se expandindo, se profissionalizando e ganhando o mundo.
Em 34 anos
de história, a Em 34 anos de história, a Quasar montou quase 30 espetáculos, que envolveram
Quasar montou mais de 80 bailarinos e bailarinas, que se sucederam em diversas gerações. Alguns
quase 30 tornaram-se nomes de relevo na cena da dança brasileira, dirigindo outras
espetáculos, companhias e pavimentando suas trajetórias como coreógrafos. Outros foram trilhar
caminhos no exterior. Tiveram a melhor vitrine para isso. A Quasar fez diversas
que envolveram turnês internacionais, apresentando-se em 26 países, participando de vários festivais.
mais de 80 O projeto cresceu e gerou frutos, como a Quasar Jovem, que formava bailarinos.
bailarinos e
bailarinas, que “Agora estamos fazendo uma pausa”, comentou Rodovalho, em 2018. A perda de
se sucederam patrocínios e o enxugamento de editais para a área levaram a companhia a uma crise
em diversas financeira que a obrigou a interromper suas atividades temporariamente. O espaço
que tinham para ensaiar precisou ser devolvido e o grupo chegou a ser desfeito,
gerações. Alguns mas retornou com novas criações, superando até o desafio da pandemia. Entre os
tornaram- trabalhos mais recentes estão a remontagem de Sobre Isto, Meu Corpo Não Cansa e
se nomes de A Lenda das Cataratas, além de promover a mostra de dança Paralelo 16.
relevo na
cena da dança Momentos de reconstrução exigiram de Henrique Rodovalho um esforço criativo.
brasileira, Fases não tão boas parecem servir de combustível para um profissional obstinado,
que construiu algo muito sólido onde antes não havia muito em que se apoiar. Em
dirigindo outras todo esse tempo, metamorfosear-se tornou-se uma prática a quem é constantemente
companhias e desafiado. O coreógrafo mais premiado que Goiás já teve não abre mão de sua
pavimentando condição de definir os rumos da carreira, os parâmetros de sua arte. Foi assim que a
suas trajetórias Quasar ganhou um Prêmio Mambembe e foi agraciada com honrarias no exterior.
como
coreógrafos. Coreografias como Estudos (1989), Não Perturbe (1992), Quadros (1994), Versus
(1994), Registro (1997) e Divíduo (1998) inovaram na linguagem e propuseram
ousadias na essência da leitura corporal que se via no palco. Em espetáculos como
O+ (2004), Só Tinha que Ser Com Você (2005) e Coreografia Para Ouvir (2005),
provaram que outras linguagens cênicas se casavam à perfeição com a dança. Com
Céu na Boca (2009) e No Singular (2012), aposta na abstração e na memória. Por
trás de todos esses trabalhos esteve Henrique Rodovalho, um homem que deu um
passo além.
n
74

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Hugo de
Carvalho Ramos
O senhor do sertão
O
s ermos dos sertões eram sua matéria-prima. Com uma prosa fluente e sedutora,
ele revelou um universo que para muitos era completamente alheio, desconhecido.
Nos contos do livro Tropas e Boiadas, publicado pela Revista dos Tribunais, no Rio
de Janeiro, em 1917, o escritor Hugo de Carvalho Ramos elabora narrativas que
mergulham profundamente na cultura, na mentalidade, nos hábitos, nos conflitos e
nos cenários de um Goiás quase arcaico, que ainda padecia de enorme isolamento. É
o panorama de um tempo e um espaço que ele soube registrar como ninguém.

“Hugo de Carvalho Ramos é um dos maiores regionalistas do nosso País”, define


o cineasta Lázaro Ribeiro, diretor de Hugo, curta-metragem que foi lançado em 2017
durante o Festival Internacional de Vídeo e Cinema Ambiental (FICA), na cidade de
Goiás. A exibição integrou as celebrações do centenário de Tropas e Boiadas. “Ele
influenciou, com seu regionalismo, diversos escritores, entre eles João Guimarães
Rosa e Bernardo Élis”, aponta o diretor. Rosa deu entrevistas em que declarava sua
admiração pelo livro, que ganhou repercussão na época de seu lançamento.

A projeção que Tropas e Boiadas teve nas décadas de 1910 e 1920 se deveu ao
75

fato de ter sido lançado no Rio de Janeiro, centro efervescente da cultura nacional
de então. Os autores que desejavam ser conhecidos precisavam orbitar naquela
atmosfera, onde se encontravam os grandes escritores brasileiros e as principais
editoras e livrarias. Nascido em 1895 e filho de um juiz, até os 17 anos Hugo morou
na antiga Vila Boa. A infância e adolescência passadas ao lado do pai, com o qual
viajava pelos rincões do Estado, moldaram o imaginário que veio explorar em seus
contos.

Em 1911, a morte do pai transformou a vida de Hugo. No ano seguinte, ele se


mudou com a mãe e os irmãos para o Rio de Janeiro. Lá, estudou Direito, mas não
Quando chegou recuperou o vigor que mostrava ter quando vivia em sua terra natal. Sua forma de
ao mercado, escapar da angústia foi escrever. O filme de Lázaro Ribeiro aborda esse tempo de
criação e nostalgia, de produção e dor. Ele surge pálido, introspectivo e vê nascer um
Tropas e
sentimento poderoso. “Sua obra tem um ingrediente que renova e reforça sua forma
Boiadas causou própria de descrever o sertão de Goiás, que é a denúncia”, diz o diretor.
certo alvoroço
e foi comentado Em narrativas como Gente de Gleba, o escritor mexe em feridas ancestrais,
na imprensa causadas por uma cultura arraigada de exploração do homem do campo por
de então, parte dos grandes proprietários de terras, dos coronéis do interior brasileiro. Em
outras, como Ninho de Periquitos e Caminho das Tropas, narra a valentia desse
ganhando
sertanejo diante de adversidades impostas pela natureza ou por lógicas sociais que
críticas o discriminam e o condenam à pobreza e ao trabalho árduo. É uma visão de dentro,
elogiosas de quem conheceu tais mazelas e as elaborou literariamente em um estilo que
de autores impressionou medalhões.
como João
do Rio. Isso, Quando chegou ao mercado, Tropas e Boiadas causou certo alvoroço e foi
comentado na imprensa de então, ganhando críticas elogiosas de autores como João
entretanto, não
do Rio. Isso, entretanto, não bastou para evitar o final trágico de seu criador. No dia
bastou para 12 de maio de 1921, em uma residência do bairro da Tijuca, na capital fluminense, o
evitar o final corpo do escritor, que contava apenas 26 anos idade, foi encontrado no quarto. Ele se
trágico de seu enforcara. A versão mais aceita é que Hugo nunca superou a morte do pai e caiu em
criador. depressão. O assunto, por décadas, foi um verdadeiro tabu na família.

No ano seguinte à sua morte, Monteiro Lobato lançou uma segunda edição
de Tropas e Boiadas por sua editora. O livro, assim, sobreviveu ao autor por um
período e foi lido por gente do quilate do modernista Mário de Andrade. “Mario
chega a afirmar que a obra é exigência cultural para quem quer conhecer a realidade
brasileira”, destaca Lázaro. Depois disso, ganhou edições esporádicas, tratamento
injusto para título tão seminal de toda uma tradição literária brasileira. Impressiona
como sua leitura ainda se mostra atual, falando de desgraças que persistem em nossa
sociedade.

n
76

vidas Diomício Gomes


narradas
pelo
POPULAR

Iris
Rezende
Política na alma
N
os anos 1960, um jovem prefeito ganhou destaque nacional com um regime de
trabalho diferente em suas obras. Ele reunia uma multidão e fazia com que todo
mundo pegasse no pesado. Os mutirões levaram Iris Rezende Machado, na casa
dos 30 anos, a se transformar em uma influente liderança política do Estado.
“Quando os militares me cassaram em 1969, eu já estava com a campanha para
governador na rua. A eleição seria no ano seguinte e eu já tinha até slogan: ‘Bom
Pra 70’”, recordou ele, em entrevista dada em 2018, ocupando o mesmo cargo de 50
anos antes.

Com uma energia incomum para um homem que tinha 84 anos de idade, Iris
Rezende relembrou em detalhes um passado que se confundia com a história de
Goiás no último meio século. Governador em dois mandatos, prefeito de Goiânia
em quatro oportunidades, senador, ministro de Estado em dois governos diferentes,
homem que havia despertado paixões e ódios, suas vivências eram detalhadas
com gestos largos, inflexões na voz e frases de efeito. “Quando fui governador,
asfaltei quase 5 vezes mais estradas que todos os outros que me antecederam. Fiz as
máquinas roncarem.”
77

A carreira política de Iris Rezende foi marcada por vitórias e derrotas, mas nunca
por ostracismo. Seu maior hiato na vida pública foram os 10 anos em que teve seus
direitos políticos cassados, entre 1969 e 1979. “Eles não tinham motivos. Eu não era
dado a subversão. O ato causou incômodo até nos meios militares”, confidenciou.
Formado em Direito, Iris dedicou-se nesse período à advocacia, atuando
constantemente em tribunais de júri, onde sua verve não passou despercebida.
“Eu convidei dois desembargadores que haviam sido aposentados pelo golpe para
montarmos o escritório.”

Iris afirmava que sua gestão na Prefeitura de Goiânia fixara-se no imaginário


do eleitor. “Fui cassado dois dias antes de inaugurar o Parque Mutirama. Também
íamos inaugurar a Praça do Avião, mas não deu tempo.” Quando as eleições diretas
para governador retornaram, Iris já havia recuperado o direito de concorrer e o
Com uma sonho adiado em 1970 pôde se concretizar. “Eu ganhei e fiz 80% dos prefeitos, dos
deputados estaduais e federais e os senadores. Ninguém esperava isso.” A força do
energia PMDB que pedia a redemocratização em Goiás teria outro efeito, este no âmbito
incomum para nacional.
um homem
que tinha 84 “Um dia, o telefone tocou e era o doutor Ulysses Guimarães. E ele me informou
anos de idade, que o partido decidira apoiar uma emenda constitucional que previa a volta da
Iris Rezende eleição direta para presidente e precisava de um lugar para começar a mobilização
popular. Outros governadores já haviam declinado e ele quis saber se eu poderia
relembrou em fazer isso aqui em Goiás”, lembrou. “Topei na hora. Foi um risco calculado. Era
detalhes um a primeira vez que um governador, no regime militar, patrocinava um ato dessa
passado que se natureza. Eu poderia perder o cargo ou ser cassado de novo. Ainda vivíamos a
confundia com ditadura.”
a história de
Goiás no último Não só aquele comício foi feito, como um outro, quando Tancredo Neves e todas
as lideranças que apoiavam sua eleição para o Planalto vieram a Goiânia. Filho
meio século. do dono de uma olaria na pequena Cristianópolis, menino criado na roça e que
chegou a Goiânia com 15 anos de idade, Iris teve um percurso improvável. “Nove
anos depois de chegar, fui eleito vereador no mesmo pleito que Jaime Câmara era
eleito prefeito.” A relação com um dos fundadores de O Popular, em sua avaliação,
foi fundamental. “Jaime Câmara foi uma das pessoas que me deram norte na vida
pública.”

Norte que precisou ser reencontrado após a surpreendente derrota para o governo
em 1998. Iris precisou se reerguer, depois de perder também uma vaga no Senado
em 2002, voltando às origens, à Prefeitura de Goiânia, em 2004. Nos anos seguintes,
conquistaria três mandatos. E em seu gabinete, não faltava um tradicional pão de
queijo. “Ele é feito com leite das vacas da raça gir que crio em Guapó. É uma beleza”,
garantia. “Sei fazer tudo na roça, de tirar leite a manejar machado, a ferramenta mais
exigente que tem.” Iris morreu em 2021, após um AVC, aos 88 anos de idade.

n
78

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Jaime
Câmara
Com os olhos no futuro
A
vinda dos irmãos Câmara para Goiás foi um marco em muitos sentidos. A família,
formada no Rio Grande do Norte, encontrou no Centro-Oeste brasileiro, sobretudo
em uma nova capital que surgia no meio do Cerrado, oportunidades de realizar
projetos grandiosos, de prosperar e imprimir sua marca. O Estado, agitado por
uma mudança política profunda com a Revolução de 1930 e o fim da República
Velha, incentivava empreendedores dispostos a modernizá-lo. Goiânia, ainda em
construção, abriu espaço para novos projetos que lhe dessem sustentação.

Foi justamente o caçula dos irmãos, Jaime Câmara, que revelou maior tino para
os negócios. Logo ao chegar à cidade de Goiás, em 1933, começou a trabalhar e,
apoiado por Joaquim Câmara Filho, iniciou o que seria um dos mais importantes
grupos de comunicação do País. Já em 1935, fundou sua primeira tipografia na
antiga capital goiana. A Tipografia Popular foi a responsável por publicar um jornal
em miniatura, chamado Vossa Senhoria, e um informativo de cunho mais político,
A Razão. O empreendimento também era uma papelaria.
79

O futuro, porém, não estava lá. Não demorou para que todos migrassem para
Goiânia. Joaquim Câmara Filho tinha enorme prestígio junto a Pedro Ludovico,
o que garantiu apoio político para a transferência. Em 3 de abril de 1938, já com a
participação de Vicente Rebouças, editaram o primeiro número de O Popular, que
saiu com 3 mil exemplares, custando $500 réis, algo como 50 centavos na época.
Enquanto Jaime Câmara gerenciava a empresa como um todo, Vicente Rebouças
cuidava da parte comercial e Joaquim Câmara lidava com as questões editoriais.

Antes situado em uma sede modesta perto do Córrego Botafogo, depois instalado
em um prédio em estilo art déco em plena Avenida Goiás – um dos primeiros
Ele também teve edifícios com mais de dois pavimentos construídos na nova capital e que hoje é
relevância em um patrimônio histórico – o jornal O Popular foi um marco para a cidade que
setores sociais nascia. Em breve, os serviços da gráfica, a única que existia em Goiânia até então,
passaram a ser demandados por clientes de outros estados. Os negócios da família
e em espaços
expandiram-se e, com a morte precoce dos irmãos, coube a Jaime Câmara manter a
empresariais, empresa.
sempre
lutando pelo Com visão estratégica, Jaime Câmara percebeu que um grupo de comunicação
desenvolvimento deveria diversificar sua atuação. Em 1961, a Rádio Anhanguera, hoje Rádio Daqui,
do Estado. foi incorporada ao grupo. Dois anos depois, em 1963, o empresário deu um passo
ousado, apostando na nova mídia que conquistava o público nacional: a televisão.
No trato
Surgia a TV Anhanguera, que nasceu dois anos antes da própria Rede Globo, da
pessoal, ficou a qual se tornaria afiliada e retransmissora em Goiás, incluindo o território que hoje
lembrança de um compreende o Tocantins.
homem solícito e
pronto a ajudar A carreira política do irmão mais velho Joaquim Câmara, que foi prefeito de
quem precisasse. Paracatu (MG), Pires do Rio e Anápolis, inspirou Jaime Câmara. No dia 19 de
outubro de 1958, a capa de O Popular trazia na manchete sua eleição para prefeito
de Goiânia, com 17.018 votos. Ele já havia ocupado as secretarias de Agricultura e
de Viação e Obras Públicas do Estado. Mais tarde, elegeu-se suplente de deputado
federal, assumindo o mandato em duas oportunidades. O Ato Institucional Nº 5,
editado pela ditadura militar em 1968, cassou os direitos políticos de Jaime Câmara
em 1969.

Jaime Câmara permaneceu administrando o grupo que criou, lançando nos


anos 1970 o Jornal de Brasília e inaugurando outras retransmissoras de TV pelo
interior de Goiás, além de abrir novas emissoras de rádio. O empresário morreu
em 1989, deixando um grande legado não só na área da comunicação. Ele também
teve relevância em setores sociais e em espaços empresariais, sempre lutando pelo
desenvolvimento do Estado. No trato pessoal, ficou a lembrança de um homem
solícito e pronto a ajudar quem precisasse.

n
80

Wildes Barbosa

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Janildes
Fernandes
Pedaladas em família
O
primeiro membro da família a subir em uma bicicleta, motivado por uma
irresistível paixão pelo esporte, foi o irmão mais velho, Neilson. A partir dele,
todo um clã redesenhou seu destino e imprimiu o sobrenome Fernandes na
história do esporte. “Eu comecei quando tinha 14 anos. Ele me incentivava. Eu
ia assistir as competições dele e gostava que eu pedalasse também. Foi aí que eu
tomei gosto pelo ciclismo. Ele me levou de corpo e alma”, diz Janildes Fernandes,
primeira mulher a conquistar uma medalha na modalidade para o Brasil em Jogos
Panamericanos.

Janildes foi a segunda integrante da numerosa família a investir no ciclismo,


que se revelou como um passaporte para sair de dificuldades e sustentar a casa.
Depois vieram sua irmã Clemilda, a caçula Márcia e primos, como Uênia. Um
grupo unido que formou uma verdadeira equipe, dentro e fora das pistas e trilhas
de competição. “O esporte mudou minha vida, a vida da minha família inteira. Sou
muito grata ao ciclismo por isso”, enfatiza Janildes. Uma relação intensa e que exige
dedicação. “A rotina de treino é pesada. Pedalo entre 100 e 140 km por dia”, calcula.
81

Ao lado de Janildes costuma estar Clemilda, irmã, companheira e também


concorrente. “Eu e minha irmã sempre trabalhamos juntas. Na hora da prova, uma
olha para a outra e já sabemos o que fazer. A gente sempre trabalhou para que
uma de nós vença, independente se sou eu ou se será a Clemilda”, garante. “A gente
sempre buscou a vitória. A gente nunca entrou numa prova para fazer terceiro
ou segundo. Nosso objetivo sempre é o lugar mais alto do pódio. Esse é o nosso
diferencial. Acreditar e sempre sonhar alto. Afinal, o que é o ser humano se não
tiver sonhos”, pergunta.

Sonhos e pesadelos se misturaram na vida de Janildes em 1999. “Foi uma das


piores e uma das melhores fases da minha carreira”, define. “Naquele ano, eu perdi
meu irmão mais velho, que era meu apoiador, meu treinador, que fazia tudo para
mim. Foi um baque muito grande e nesse período eu quase abandonei tudo”, revela.
“Mas Deus mostrou para mim que eu estava no caminho certo, que meu irmão
iria querer me ver bem.” No luto ela encontrou forças para alcançar suas maiores
“O esporte conquistas. “Foi em 1999 que tive a primeira participação na seleção brasileira na
mudou minha categoria Elite.”
vida, a vida da
O melhor ainda estava por vir. Classificada para os Jogos Panamericanos de
minha família Winnipeg, no Canadá, ela fez história com o terceiro lugar no pódio, posição a que
inteira. Sou nenhuma outra ciclista brasileira havia chegado até então. Na edição seguinte, em
muito grata ao Santo Domingo, em 2003, ela subiu um degrau a mais e conquistou a prata nos
ciclismo por jogos. Janildes ainda realizou a meta de participar dos Jogos Olímpicos em Sidney,
isso” em 2000, Atenas, em 2004, e Londres, em 2012. “Fiquei muito feliz. Todo atleta
sonha em chegar às Olimpíadas.” Apesar do esforço, ela não conseguiu uma vaga
para Tóquio em 2020.

Aos 41 anos, Janildes Fernandes parece ter muito fôlego ainda. Baseada em
Goiânia, ela conta com uma ampla experiência, incluindo o período que passou
no exterior. “Eu corri em uma das equipes de ciclismo mais importantes do
mundo e pedalei ao lado de pessoas que eram medalhistas olímpicos, que haviam
conquistado títulos mundiais.” Esse know how sempre foi empregado para
organizar sua rotina de treinos, as estratégias com suas irmãs para as provas, para
conseguir patrocínios, o que sempre é um desafio a mais.

“É sempre desafiador. Já passei momentos ruins, mas também momentos felizes.


Existe certo apoio aos atletas, mas poderia ser um pouco melhor. Nem sempre
acontece como a gente quer. Temos muito a melhorar, mas estamos confiantes,
sempre cobrando melhorias.” Uniformizadas e com os mesmos objetivos esportivos
em mente, Janildes e suas irmãs superam adversidades para continuarem
pedalando – já sofreram acidentes graves durante treinos. Em 2021, Janildes se
envolveu numa polêmica, sendo acusada de agredir uma árbitra da modalidade.

n
82

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Jesco von
Puttkamer
Genuíno pele vermelha
A
alvura da pele mudou de cor várias vezes no decorrer do tempo. Às vezes ela era de
um vermelho intenso, castigada pelo sol inclemente do interior brasileiro. Às vezes
ficava mais parda, nos longos períodos em que cuidava da revelação do material
que captara. Às vezes ganhava as tonalidades da terra, com a qual costumava
se misturar para senti-la melhor. Salpicado de barro ou coberto de poeira, o
documentarista, cinegrafista e fotógrafo Jesco von Puttkamer não media esforços
para estar onde acreditava que deveria estar, para adicionar ao seu acervo uma
imagem a mais.

Ninguém foi tão feliz no registro de um período crucial do Brasil quanto


este homem de origem germânica nascido no Rio de Janeiro em 1919. Filho do
alemão Wolf Heinrich von Puttkamer com a brasileira Karin Holm, Jesco teve
uma formação irretocável na Alemanha e voltou ao Brasil após a Segunda Guerra
Mundial, depois de toda a Europa sofrer os horrores do nazismo. Em Goiás,
aportou em 1948, época em que o Estado buscava gente especializada para suprir
suas deficiências em vários setores. Logo foi designado para debater imigração e
colonização em nome do Estado no Itamaraty.
83

Sua maior contribuição ainda estava por vir. Depois de chegar a vender frutas em
um entreposto atacadista que existia no Setor Bueno – ele mesmo as produzia em
uma chácara que tinha na região –, Jesco foi acompanhar, no final dos anos 1950, a
construção de um novo Brasil. No canteiro de obras de Brasília, mostrou todo o seu
talento como fotógrafo e documentarista. O banco de imagens que deixou sobre o
nascimento da nova capital federal no Cerrado goiano é único. Esse trabalho o levou
a integrar-se aos projetos Marcha Para o Oeste e Operação Bananal.
Jesco imergiu
Com essas novas funções, Jesco participou de dezenas de expedições pelo interior
na cultura do Brasil ao lado de indigenistas, como os irmãos Villas-Bôas, que buscavam
dos cinta- estabelecer e estreitar contatos com diversos povos indígenas. Esses encontros
largas, dos foram brilhantemente documentados por ele. “A obra de Jesco revela arte, poesia,
nambiquaras, sentimentos e fatos”, resume Maria Eugênia Brandão, coordenadora do Núcleo de
dos indígenas Documentação Audiovisual do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da
PUC Goiás. Esse espaço guarda todo o legado de Jesco, que doou seu acervo para
que viviam
consultas e pesquisas.
na região do
Alto Xingu. E É um patrimônio de valor incalculável. Mais de 10 mil páginas de diários e
viu nelas algo anotações e cerca de 200 mil fotos, além de inúmeros filmes, integram a mais
para além da completa coleção existente sobre os contatos do homem branco com os indígenas
estranheza. brasileiros. “O legado é grandioso em termos qualitativos e quantitativos. Ele
capturou imagens fotográficas em diferentes suportes. Testemunhou momentos
históricos da política indigenista brasileira e fotografou com obsessão o índio
brasileiro em sua originalidade cultural”, observa Maria Eugênia.

Em reportagem publicada em O POPULAR no dia 3 de dezembro de 1978,


quando Jesco fez a doação do material para a UCG, Orlando Villas-Bôas falou sobre
o que pensava do trabalho de Jesco, seu companheiro por 8 anos de aventuras na
Amazônia. “Quer seja a doçura de uma criança, o ar grave de um adulto ou a pureza
de uma menina-moça, Jesco fixa com o mesmo amor, a mesma certeza do bem feito.”
Pelas lentes de Jesco, os indígenas deixam de ser estereotipicamente exóticos. Ele
valoriza a humanidade de cada um, o respeito que lhes devemos, sua alma e seus
sentimentos.

Jesco imergiu na cultura dos cinta-largas, dos nambiquaras, dos indígenas que
viviam na região do Alto Xingu. E viu nelas algo para além da estranheza. “Sua
obra documental constitui-se em fonte histórica-antropológica permitindo leituras
multidisciplinares”, reforça a pesquisadora Maria Eugênia. Estudiosos de todo o País
têm buscado no acervo de Jesco na PUC Goiás a fonte primária de suas pesquisas. O
curta-metragem Bubula: O Cara Vermelha, do professor Luís Eduardo Jorge, lançado
em 1999, revela a importância deste alemão para a cultura nacional. Jesco morreu
em 1994.

n
84

vidas
narradas
pelo
POPULAR

João
Bennio
O pai do cinema goiano
J
oão Bennio viveu entre paixões ardentes. Como homem de teatro e cinema,
atuando ou dirigindo, trazia à tona vidas que compunham uma espécie de tradução
de sua personalidade inquieta. Outra era a culinária. Dono de um restaurante,
adorava levar os amigos para lá, onde conversavam e, não raramente, criavam em
comunhão. “Quando quis conhecê-lo, me deram o endereço de seu restaurante.
Ficava na Rua Cruz Alta, Jardim Novo Mundo. Era o ponto de encontro dos
artistas”, relembra o cineasta, Eudaldo Guimarães, que tem participação relevante
na realização do Fica.

Convivendo de perto com Bennio, ele aprendeu muito. “Eu trabalho com
cinema desde os 14 anos de idade e, quando estava atuando em uma agência de
publicidade, tive contato com o trabalho do João Bennio. Achei fantástico. Fui
procurá-lo e quando me viu na porta do restaurante dele, me convidou para comer
uma feijoada. Estava deliciosa.” Ali nascia uma amizade que durou até o final da
vida do diretor de obras que, com o tempo, ganharam um ar cult. “São filmes que,
com certeza, plantaram a semente do cinema em Goiás. É o pai do cinema goiano”,
diz Eudaldo.
85

Os filmes de Bennio careciam de um melhor acabamento técnico, dadas às


dificuldades de fazer cinema na época. Os recursos eram quase inexistentes e
quem quisesse se aventurar, precisava ser desbravador. “Ele optou por um cinema
mais comercial mesmo. Não era experimental. Mas ainda assim era complicado
encontrar espaços”, assinala Eudaldo. A escola de Bennio foi, na verdade, o teatro.
Lá, ele expandiu seus horizontes estéticos. Ainda em Minas Gerais, onde nasceu,
começou sua carreira como ator de companhias itinerantes, montando textos menos
conhecidos.

Ao se transferir para Goiás, trouxe consigo o projeto de formar grupos teatrais


independentes. Aqui ele chegou pelas mãos de dois atores goianos, Emerson
Septímio e Diodato Ungarelli, que o viram em uma apresentação na Bahia. A
A escola de
primeira encenação no Estado que adotaria como seu foi nas dependências do antigo
Bennio foi, Jóquei Clube de Goiás, em 17 de julho de 1955. A partir daí, inicia-se uma longa
na verdade, jornada de lutas. Uma delas envolveu a construção do Teatro Emergência, que ficava
o teatro. Lá, na Rua 3, no Centro. Carmo Bernardes e Elder Rocha Lima ajudaram Bennio nessa
ele expandiu empreitada.
seus horizontes
O teatro, que abrigaria espetáculos com um viés de contestação e de crítica social,
estéticos.
foi inaugurado em 1962 e fez história na cena goiana. Mas por pouco tempo. Dois
Ainda em anos depois, o golpe de 1964 inaugurava um tempo mais sombrio para artistas com
Minas Gerais, o perfil de João Bennio. O prédio do teatro foi retomado pelo governo e deixado
onde nasceu, abandonado, até que fosse demolido. Naquele momento, o ator e diretor se viu
começou forçado a migrar de Goiás para o Rio de Janeiro, onde havia mais mercado. Logo seu
sua carreira talento foi reconhecido nos palcos cariocas, participando de montagens antológicas.
como ator de
Antes disso, Bennio havia tido uma experiência breve no cinema, atuando no
companhias filme Candinho, nos estúdios Vera Cruz. No Rio dos anos 1960, retomou a sétima
itinerantes, arte e passou a figurar em elencos de produções como O Diabo Mora no Sangue,
montando de Cecil Thiré. Em seguida, passou a produzir os filmes. Em um deles, Tempo de
textos menos Violência, trabalhou com Tônia Carrero. Em 1969, ele retornou a Goiás, interessado
conhecidos. em continuar a fazer cinema. Aqui, produziu Simeão – O Bêbado e O Azarento,
trabalhos que ilustram sua veia combativa, mas também seu olhar metafórico sobre
o mundo.

“Quase todo mundo que esteve envolvido com cinema em Goiás entre os anos
1960 e 1980 tiveram em Bennio uma referência”, acredita Eudaldo. Alguns anos
atrás, um trecho de O Azarento viralizou nas redes sociais e resgatou seu nome
de certo esquecimento. As imagens mostram o centro de Goiânia nos anos 1970,
revelando uma cidade já quase perdida na memória de seus próprios habitantes.
Quando morreu, em 1984, Bennio ainda sonhava com um cinema e um teatro para
todos e com a força dessas expressões artísticas. Que seu sonho sobreviva sempre.

n
86

vidas Cristina Cabral


narradas
pelo
POPULAR

João
Malandro
Ele carregou
Goiânia inteira
P
or décadas, João Alves dos Santos, ou simplesmente João Malandro, integrou a
paisagem urbana de Goiânia. Atrás de um volante, bonachão e tranquilo, parava
nos pontos de ônibus sem pressa, cumprimentava todos com educação e afeto
e deixava quem não tinha dinheiro para pagar fazer a viagem mesmo assim.
“Muita gente andou de graça comigo. Lá atrás, o Iris Rezende andou comigo
no meu ônibus. Depois, o Marconi Perillo, quando era menino, também andou
comigo. Conheço todo mundo”, orgulha-se o motorista aposentado.

Aos 95 anos de idade, João Malandro não faz uma “viagem oficial” pelas ruas
da capital já há duas décadas e meia, tempo que não foi suficiente para apagá-lo
do imaginário de gerações que subiram as escadas de seus “carros”, sobretudo
na linha entre o Terminal do Dergo, na Avenida Anhanguera, e a Praça
Universitária, atravessando bairros populosos, como o Setor Coimbra, o Setor
Oeste e o Centro. Por isso a identificação tão grande com os estudantes. Alunos
de colégios e universidades entravam no ônibus e viam João Malandro, com a
87

cara boa, pronto para um “bom dia”.

João Malandro começou a dirigir ainda adolescente, quando passou a trabalhar


como lavador de carros no extinto Posto Lacerda, que ficava na esquina da Av.
Anhanguera com a Rua 20, no coração do Centro de Goiânia. “Eu pegava os carros
para estacioná-los, para levar para algum cliente que trabalhava por ali. Assim, eu
fui aprendendo a dirigir sozinho.” Não demorou muito para que a demanda por
motoristas do transporte coletivo em implantação chegasse ao jovem que mostrava
habilidades ao volante. “Tirei a carteira profissional de motorista e não parei mais.”
Além da
direção de Ele trabalhou em uma única empresa durante toda sua vida e não atuou apenas
seus ônibus, no transporte da capital. João Malandro também dirigia em viagens breves, sempre
guiando um ônibus. Foi em um desses trajetos que passou o maior susto de sua
uma outra
vida. “Eu ia para Anápolis levando pessoas para a festa de Nossa Senhora D’Abadia,
paixão moveu quando o carro perdeu o freio”, relata. “Eu tinha na mão um ônibus a 110 km/h,
João Malandro em uma ladeira, com 65 passageiros a bordo. Pedi para Nossa Senhora proteger e
desde sempre: controlei o ônibus por uns 6 km. Até que pegou uma planura e foi parando.”
o futebol. Ele
chegou a ser Figura popular em toda a cidade, João Malandro conheceu uma Goiânia que
não existe mais. Daquela do passado, ele conhecia cada palmo. Esta de hoje é bem
considerado
diferente. “Antes o trânsito era muito mais tranquilo. A gente fazia uma viagem e
um dos demorava a passar um carro por nós. Tinha muito menos. Já quando estava me
torcedores- aposentando, o trânsito piorou e passava um carro atrás do outro. Hoje, então, está
símbolos da bem pior.” É também uma lembrança saudosa de um trânsito mais gentil, menos
equipe do corrido e com níveis baixos de estresse. João Malandro guiava devagarzinho e
Goiás. ninguém reclamava.

Além da direção de seus ônibus, uma outra paixão moveu João Malandro desde
sempre: o futebol. Ele chegou a ser considerado um dos torcedores-símbolos da
equipe do Goiás. “Eu ajudei a fundar aquele time”, explica. “E ajudei a fundar o Vila
Nova também”, completa. Opa, como é que é? “Sim, sou torcedor do Goiás, mas
tenho muito carinho pelo Vila. Tive proximidade com diretorias de lá. Antigamente,
eu saía pela cidade com os livros-de-ouro para arrecadar doações para comprar
chuteira, calção. Eu levava os livros do Goiás e do Vila juntos. Arrecadava dinheiro
para os dois.”

Esse é o jeito João Malandro de ser: conciliador, avesso a polêmicas, homem da


paz. Mas, por que o apelido mesmo? “Ganhei quando eu era soldado. Uma vez, fiz
uma ligação na rede elétrica e tudo quanto é parte estava dando choque no quartel.
Torneiras, grades... Como eu estava preso por algum motivo, disse ao comandante
que se ele me liberasse, eu consertava tudo. Consertava o que eu mesmo causei. Por
isso me chamaram de malandro.” Histórias desse pai de dez filhos, avô de...? “Não
me lembro quantos netos não.” Histórias do motorista que carregou Goiânia em seu
ônibus.

n
88

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Joaquim
Câmara Filho
Vocação para
o pioneirismo
O
que o jornalismo e a agronomia têm em comum? Bom, talvez uma das melhores
maneiras de responder a essa questão seja consultar a biografia de um homem
que soube unir bem o espírito das duas áreas, cultivando para colher depois.
Ele se chamava Joaquim Câmara Filho, um dos fundadores do jornal O
POPULAR e da empresa familiar que depois viria a ser o Grupo Jaime Câmara.
Sua principal característica era o destemor em abraçar iniciativas que exigiam
coragem, enfrentando obstáculos e adversidades diante dos quais a maioria das
pessoas recuaria.

Vindo de uma família do Rio Grande do Norte, Joaquim Câmara Filho


nasceu em Jardim de Angicos nos últimos instantes do século 19, em 29 de
dezembro de 1899. É o terceiro filho do segundo casamento do pai. Ao todo,
teve 19 irmãos, sendo que apenas 7 deles chegaram à vida adulta, entre os quais
um que lhe era mais velho, Vicente Rebouças, e o caçula, Jaime Câmara. Esse
trio mudaria a história goiana, ainda que não suspeitassem disso quando saíram
89

do Nordeste. Câmara Filho, como ficou conhecido, chegou a Goiás em 1928, mas
antes fez um longo périplo.

Indo primeiro para o Recife, onde estudou Direito, esse verdadeiro empreendedor
mostrou pendor pela terra a cultivar – e por novas terras a descobrir. Ele ingressou
na Escola Superior de Agricultura e Engenharia São Bento. Um curso que só iria
terminar em Minas Gerais, para onde se mudou após se envolver em questões
políticas no âmbito estudantil. Aliás, a política também estava em seu sangue desde
jovem. Formado na Escola de Agricultura e Pecuária, partiu para o Paraná, onde
havia maior necessidade de mão de obra especializada. Lá, se destacou e conseguiu
A primeira um cargo federal.
vez que seu
nome foi parar O fato de presenciar tantas desigualdades sociais entre o Sul onde morava e o
Nordeste onde nascera inquietou Joaquim Câmara que, em 1924, tentou ingressar
na imprensa
na lendária Coluna Prestes, que na ocasião atravessava o território paranaense. As
nacional teve coisas não saíram como o planejado, as tropas do capitão Isidoro Dias, a serviço da
um motivo coluna, se dispersaram e Joaquim Câmara precisou se refugiar. O local escolhido
inusitado. foi o que hoje é o entorno de Brasília. Em Planaltina, Luziânia, Formosa, seu tino
Ele descobriu empresarial se revelou como nunca e ele vendeu terrenos do que seria o Distrito
que havia Federal.
fragmentos da
A primeira vez que seu nome foi parar na imprensa nacional teve um motivo
queda de um inusitado. Ele descobriu que havia fragmentos da queda de um meteorito nos
meteorito nos arredores de Luziânia, que se chamava Santa Luzia. Dono dessa informação,
arredores de começou a propagandear o fato em jornais do Rio de Janeiro, como O Globo. Esse
Luziânia, que episódio, relatado na biografia Câmara Filho, Um Revoltoso que Promoveu Goiás,
se chamava escrita pelo jornalista José Asmar, demonstra o enorme talento que Joaquim Câmara
tinha em colocar fatos em evidência na mídia, o que seria fundamental em seu
Santa Luzia.
futuro.
Dono dessa
informação, Em 1930, com a eclosão da Revolução que derrubou a Primeira República,
começou a Joaquim Câmara lutou ao lado das forças revoltosas e, quando elas saíram vitoriosas,
propagandear foi convidado pelo interventor Pedro Ludovico para trabalhar em Goiás. Começava
o fato em ali uma amizade que duraria até a morte do jornalista. Em 1932, voltou a pegar em
armas, comandando as tropas goianas para combater os paulistas na Revolução
jornais do Rio
Constitucionalista. Depois que a atmosfera se acalmou, ao lado dos irmãos Vicente
de Janeiro, Rebouças e Jaime Câmara, que chegaram em 1933, ele começou a publicar o próprio
como O Globo. jornal.

A primeira experiência foi a minipublicação chamada Vossa Senhoria. Quando


houve a mudança da capital, Câmara Filho e os irmãos vieram para Goiânia e
fundaram O POPULAR, em 1938. Até sua morte precoce, em 1955, Joaquim
Câmara foi fundamental para convencer o povo goiano a apoiar a transferência da
capital e consolidar a mudança. Ele, que já havia sido prefeito da cidade mineira de
Paracatu, também exerceria o cargo em Pires do Rio e Anápolis. Foi ainda diretor do
Departamento de Divulgação e Expansão Econômica do Estado. Um homem que
deixou sua marca.

n
90

Diomício Gomes
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Joaquim
Jayme
Mãos que
nunca paravam
E
les eram jovens em 1970 e todos os sonhos, todas as utopias de um mundo
melhor estavam em pleno viço. Nas portas do Palácio La Moneda, sede do
governo chileno, milhares de pessoas esperavam a aparição do presidente eleito,
o socialista Salvador Allende, que logo saiu na sacada para saudar o povo que
o elegera. Nas primeiras filas da multidão, quatro mãos agitavam em direção
ao líder político. Duas delas eram chilenas, as de Mitzi Segovia. As outras
duas eram brasileiras. Mãos que se agitavam de alegria e pelas quais tanta arte
passaria em seus movimentos.

Naquela cena emblemática para a história do Chile, a chilena Mitzi


e o pirenopolino (nasceu em Niquelândia por acidente) Joaquim Jayme
alicerçavam a parceria de uma vida toda. Em 1971, eles se casaram e passaram
a compartilhar sonhos, dificuldades e um amor incondicional à arte. “Ele era
simples, risonho, singelo”, caracteriza a viúva, que padece de uma ausência
enorme desde 15 de maio de 2017, quando o maestro de tantas orquestras se
91

foi. “As pessoas não têm noção das vitórias, das lutas, do que passamos em nome de
ideais e da cultura. Foi muito duro”, resume.

O enredo dessa trajetória conjunta sempre teve a música como um dos


personagens principais. Durante toda sua vida, Joaquim Jayme se destacou por
brigar – às vezes brigar muito – pela valorização e a formação de músicos clássicos.
“Ele criou duas orquestras, a Filarmônica de Goiás e a Sinfônica de Goiânia, criou o
Centro Cultural Gustav Ritter, formou centenas de músicos. E sempre fez isso com
um espírito de alegria, tocando nas periferias, levando a música a todos os espaços, a
todos os públicos. Sua morte foi uma perda espantosa”, emociona-se Mitzi.
Joaquim Jayme
Joaquim Jayme tinha nessa versatilidade um de seus maiores predicados.
tinha nessa
Compositor, tocava diversos instrumentos e foi um dos maestros mais respeitados
versatilidade do País. Vários de seus alunos conseguiram postos de destaque em orquestras
um de seus mundialmente conhecidas. Sua importância pode ser medida na criação do
maiores Conservatório de Música na Universidade de Brasília. Na sede do Instituto de Artes
predicados. da UnB, uma placa o homenageia como pioneiro da instituição. “Nosso neto entrou
Compositor, na UnB um mês antes de ele falecer. Hoje, ele gosta de passar e ler o nome do avô
nessa placa”, conta Mitzi.
tocava diversos
instrumentos Os interesses do maestro eram vastos. “Ele gostava muito de História, no que
e foi um dos a gente dialogava muito, assim como na música, que eu adoro”, relata a viúva.
maestros mais A matemática e a filosofia também estavam em seu radar. Com mestrado em
respeitados do Musicologia na Universidade de Rostock, na Alemanha, e experiências como
País. Vários professor em São Paulo e no Chile, Joaquim Jayme tinha uma formação muito
sólida, em vários sentidos. Suas composições iam do piano aos arranjos para coro,
de seus alunos
de orquestra de cordas a adaptações líricas de obras populares brasileiras que seriam
conseguiram executadas em concertos.
postos de
destaque em Uma de suas maiores preocupações foi não se mostrar hermético para quem não
orquestras havia tido a chance de apreciar trabalhos de música clássica. “Ele ficava muito feliz
mundialmente quando fazia apresentações ao ar livre, em parques, na rua. Ele percebia que algumas
pessoas não entendiam bem as composições ali apresentadas, mas o que contava
conhecidas.
era a felicidade que sentiam, já que via nelas o espírito de alegria da música.” Nos
46 anos de casados, Joaquim e Mitzi nunca abandonaram totalmente os jovens que
foram naquele Chile de Allende. Preservaram a vontade de falar com o povo por
meio da arte.

Quando faleceu, Joaquim Jayme havia iniciado a redação de algumas


reminiscências, publicadas no livro Família Jaime/Jayme: Genealogia e História.
Esses textos falam um pouco de sua infância e juventude passadas na Goiânia idílica
dos anos 1940, seus estudos no Lyceu e no Atheneu Dom Bosco, as memórias de
um tempo que ajudou a compor seus afetos. Em muitos domingos, O POPULAR
noticiou que Joaquim Jayme, na Sinfônica, na Filarmônica, no Coro Sinfônico faria
recital com entrada franca. Era um convite a ver um artista – e suas mãos que nunca
pararam – em ação.

n
92

vidas Ricardo Rafael


narradas
pelo
POPULAR

José
Hidasi
Uma vida na natureza
E
ra uma vez um homem que amava os bichos. Não, espera aí... Vamos recomeçar.
Existiu um homem que amou – muito – os bichos. E não importa que
estivessem vivos ou mortos, ele os amava assim mesmo, incondicionalmente.
Seu nome era José Hidasi, nascido em 1926 em Macó, no sul da Hungria.
Formado na Escola Superior de História Natural e Geografia, lutou na 2ª Guerra
Mundial pelo exército húngaro como segundo-tenente. Após o conflito, morou
na Alemanha e França, onde se formou em Ciências Naturais. E este homem fez
um trabalho único no mundo.

Hidasi homem chegou ao Brasil em 1950, morando primeiro no Rio de


Janeiro, onde trabalhou no Museu de História Natural. Na instituição, dividiu
suas pesquisas com o ornitólogo Helmut Sick, considerado um dos maiores
cientistas do planeta na área. Ao seu lado, percorreu várias regiões do Brasil e
do exterior atrás de espécimes para seu acervo científico. A chegada a Goiás
ocorreu em 1952, quando veio trabalhar em Aragarças, na Fundação Brasil
Central, parte da chamada conquista do Oeste brasileiro, com a missão de
catalogar os animais que pudesse encontrar.
93

Um documentário sobre sua vida, chamado Cegonha Dourada, dirigido por


Verônica Aldé, mostra que seu trabalho foi se consolidando aos poucos, e de formas
imprevistas. Uma delas foi Hidasi desenvolver a própria técnica de taxidermia para
preservar os animais coletados, classificando-os para estudos posteriores. Método
que ele levou, por meio de cursos, à Austrália, a países da Europa e da África. Isso
também possibilitou que José Hidasi fundasse o Museu de Ornitologia de Goiânia,
que criou em sua própria casa, no bairro de Campinas, em 1968.

“Meu avô sempre viajou muito, em grandes expedições, e fez questão, em


toda a sua vida, de incutir esse amor pela natureza nos filhos, na família inteira”,
Ao todo, Hidasi testemunha Hilari Wanderley Hidasi, neta do pesquisador e que hoje atua como
ajudou a criar veterinária no Zoológico de Guarulhos, em São Paulo. “Tenho certeza de que fui por
ou organizar este caminho por influência de meu avô. Ele nos fazia falar os nomes científicos dos
14 museus em animais, comprava aquele chocolate Surpresa, que vinha com imagens de bichos,
para despertar essa relação afetiva”, afirma.
todo o Brasil,
incluindo o Ao todo, Hidasi ajudou a criar ou organizar 14 museus em todo o Brasil,
Museu Goeld, incluindo o Museu Goeld, em Belém do Pará, referência mundial em estudos de
em Belém aves. Ele também participou da criação do Parque Ecológico Educativo de Goiânia,
do Pará, onde depois seria instalado o zoológico da cidade. “Ele sempre nos levava lá, nos
referência colocava em contato com os animais”, relembra a neta Hilari. Seus vínculos com
o lugar nunca foram desfeitos. Dentro do zoológico, Hidasi criou um museu para
mundial em
expor os animais taxidermizados e que se tornou uma das atrações mais populares
estudos de do lugar.
aves. Ele
também “As pessoas precisam conhecer os animais para que possam defendê-los”,
participou argumenta o cientista no documentário em sua homenagem. A ideia do Museu
da criação de Ornitologia de Goiânia observa essa lógica. É por isso que por décadas o lugar
impressionou incontáveis visitantes, principalmente estudantes. O público tinha
do Parque acesso a um acervo com 100 mil exemplares de aves, mamíferos, répteis, peixes,
Ecológico artrópodes e moluscos, coletados em todas as partes do mundo. Uma coleção que
Educativo de incluía animais raros ou mesmo já extintos, como a ave-do-paraíso, a cegonha bico-
Goiânia, onde de-sapato, o quetzal e o kiwi.
depois seria
instalado o “Para cada uma eu faço uma etiqueta com o nome científico, o sexo, a
procedência. São seus passaportes para a eternidade”, compara. Certa vez, espalhou a
zoológico da lenda de que o tatu canastra, espécie ameaçada de extinção, causava hanseníase. “Foi
cidade. uma maneira de defender o animal”, justifica. O cientista teve 5 filhos, alguns deles
seguindo carreiras ligadas à do pai. Depois de ficar viúvo, ele foi morar em uma casa
de repouso. Parte de seu acervo foi doado à PUC Goiás. José Hidasi morreu em julho
de 2021, aos 95 anos de idade.

n
94

vidas
narradas Cristina Cabral
pelo
POPULAR

José J.
Veiga
Criador incrível,
incríveis criaturas
Q
uando escreveu os contos de Os Cavalinhos de Platiplanto, José J. Veiga já
somava mais de 40 anos de idade. Sua experiência nos 44 anos vividos até aquele
momento era de fazer inveja a muita gente. Nascido em 1915 em Corumbá de
Goiás, aos 11 mudou-se para a cidade de Goiás para continuar seus estudos no
famoso Liceu da então capital do Estado. Aos 18 anos, arrumava suas malas em
direção ao Rio de Janeiro, onde cursaria Direito na Faculdade Nacional. Aos 31,
embarcou para Londres, onde atuaria como redator e tradutor do serviço da
BBC em português.

Essa jornada voltaria a ter o Rio de Janeiro como cenário, para onde retornou
e foi jornalista em importantes publicações da época, como os jornais O Globo,
Tribuna da Imprensa e Jornal do Brasil. Só depois de tudo isso, decidiu que
poderia ser escritor. E começou com uma obra que recuperava sua história,
em que ele pôde reviver o passado. “Ele escreve como se fosse uma criança
narrando”, sublinha o historiador Ramir Curado, de Corumbá de Goiás, um fã e
95

pesquisador da obra desse seu conterrâneo cujos trabalhos extrapolaram, e muito, as


fronteiras de sua terra.

“Em Os Cavalinhos de Platiplanto, Veiga decodifica o mundo adulto pelo olhar


da criança, tentando entender as contradições da vida por um outro aspecto, com
lirismo, a partir da vivência despreocupada do interior. Uma espécie de adulto
precoce, mas sem perder a doçura”, define o analista. Segundo Ramir, o escritor
promoveu uma volta ao menino de sua época de infância. “Ele sempre retornava
a Corumbá. Durante sua vida madura, ele vinha com certa frequência aqui,
principalmente entre os anos 1970 e 1990”, completa.
Vários críticos,
do Brasil e Aquele livro seria a primeira de 17 obras, sobretudo romances e volumes
do exterior, o de contos, em que demonstra interesse por muitas áreas, sempre com grande
colocam entre vivacidade. “Um livro tem continuidade no outro. Os trabalhos se comunicam”,
os principais salienta Ramir. Vários deles fizeram de José J. Veiga um escritor respeitado entre o
nomes da público e seus pares. A Máquina Extraviada, A Sombra dos Reis Barbudos, Aquele
Mundo de Vasabarros, A Casca da Serpente e A Hora dos Ruminantes são alguns
escola do exemplos de narrativas criativas e alegóricas, engajadas e poéticas, contundentes e
realismo líricas.
mágico latino-
americano, Promover essas uniões não é algo tão simples como pode parecer a muita gente.
ao lado de Boa parte de sua produção ocorreu durante o regime militar instaurado com o golpe
Gabriel García de 1964, contexto que foi definidor em sua literatura. “Ele foi o único autor brasileiro
crítico aos militares que não teve um livro sequer censurado. Isso aconteceu porque
Márquez os censores não conseguiam captar as mensagens que ele incluía em sua ficção, não
e Carlos alcançavam o teor de suas alegorias. Mas os leitores de Veiga entendiam direitinho”,
Fuentes. pontua Ramir. E esses leitores não foram poucos.

Apenas Os Cavalinhos de Platiplanto já está em sua 30ª edição no Brasil, a última


lançada pelo selo Companhia das Letras em homenagem ao centenário do escritor,
comemorado em 2015. Ao todo, as obras de José J. Veiga podem ser lidas em oito
idiomas, distribuídas em 40 países. Tanta popularidade deve-se ao reconhecimento
de seu trabalho como um dos de maior qualidade em seu tempo. Vários críticos,
do Brasil e do exterior, o colocam entre os principais nomes da escola do realismo
mágico latino-americano, ao lado de Gabriel García Márquez e Carlos Fuentes.

“Ele não gostava de classificações. Ele tinha a impressão que isso amarrava sua
obra”, avisa o historiador Ramir. Mesmo respeitando essa ressalva, é difícil não o
ombrear com esses nomes. Quando José J. Veiga ressuscita Antônio Conselheiro em
A Casca da Serpente ou cria um universo sombrio e disruptivo em Aquele Mundo
de Vasabarros, esse escritor goiano se supera na força de sua prosa. “A crítica social
sempre esteve presente em sua literatura”, acrescenta o pesquisador. “Ele conciliou o
regional com o universal.” E universal ficou.

n
96

vidas
Cristina Cabral
narradas
pelo
POPULAR

José Júlio
Rosenthal
Com Goiânia no coração
E
m 29 de setembro de 1987, o físico nuclear Valter Mendes levou seu contador
Geiger, aparelho usado para medir índices de radiação, até a sede da Vigilância
Sanitária, no Setor Aeroporto, em Goiânia, atendendo a um chamado. Antes de
entrar no prédio, ele viu que a medição dava índices muito acima dos aceitáveis.
Ele trocou o equipamento e o índice continuava nas alturas. Foi quando percebeu
que a situação era muito grave e fez contato com a Comissão Nacional de Energia
Nuclear (Cnen). Uma autoridade mundial no assunto foi acionada. Um acidente
com Césio-137 ocorrera.

Então chefe de Instalações Nucleares da Comissão, o físico José Júlio Rosenthal


chegou do Rio de Janeiro por volta da meia-noite naquele mesmo dia. “Com o
Júlio, pessoa extraordinária, nós tivemos a parceria da Cnen. Ele trouxe mais
pessoas e participou da coordenação. Começamos a compreender a situação.
Tivemos mais mecanismos para medir o grau de radiação, fazer o trabalho de
descontaminação, atender as pessoas em estado mais grave”, declarou Antônio
Faleiros, que era secretário estadual de Saúde, em um depoimento sobre os 25 anos
do acidente, em 2012.
97

A jornalista Rachel Azeredo, que na época trabalhava no jornal O POPULAR e na


TV Goyá, então retransmissora do SBT em Goiás, acompanhou as primeiras ações
do físico. “Ele foi direto para o hospital, onde estava a Leide das Neves. Quando
aferiu o nível de radiação, eu o vi chorar copiosamente”, recorda. “Às 6h30, ele já
estava indo aos locais contaminados. Algumas pessoas estavam sendo levadas para
o Estádio Olímpico, onde a Cnen montou uma estrutura para atender os afetados.
Antes de entrar Quando percebeu a dimensão do acidente, ele chorou de novo.”
no prédio,
ele viu que a Para a jornalista, a dedicação que o físico demonstrou naquela ocasião foi
medição dava fundamental para evitar que algo ainda pior ocorresse. “Ele era muito humano e foi
índices muito naquelas barraquinhas conversar com cada pessoa ali, falar com cada um. Isso dava
esperança e segurança. E essa postura continuou. O Dr. Rosenthal se importava
acima dos de verdade com as pessoas e isso fez toda a diferença”, aponta. Segundo Rachel,
aceitáveis. a prioridade do físico era isolar as áreas contaminadas, mas, ao mesmo tempo,
Ele trocou o difundia incansavelmente informações qualificadas sobre o que estava acontecendo.
equipamento
e o índice “Ninguém sabia o que era aquilo. Tudo era novo. Muitos veículos de comunicação
continuava de fora vieram para Goiânia depois que o presidente José Sarney esteve aqui em uma
visita. Percebendo que as pessoas estavam falando bobagens, o Dr. Rosenthal, no
nas alturas. auditório do INSS, reuniu cerca de 200 jornalistas do mundo inteiro para dar uma
Foi quando aula sobre césio”, lembra. “Ele explicou tudo certinho: como se dava a contaminação,
percebeu que que tipo de estrutura a radiação do césio conseguia atravessar, que efeitos causava.
a situação era Aquilo foi muito importante para evitar pânico.”
muito grave
e fez contato Montando uma equipe de ponta, José Júlio Rosenthal fez da cidade o seu lar. “Ele
não viajava nem a Brasília e atuou, todo dia, para que a situação fosse controlada,
com a Comissão as pessoas fossem atendidas, para que a cidade pudesse superar aquilo”, acrescenta
Nacional de Rachel. “Eu acompanhei tudo de perto. Quando aconteceu o acidente, fomos os
Energia Nuclear primeiros a noticiar em rede nacional o que havia acontecido. Depois, seguia o Dr.
(Cnen). Uma Rosenthal para onde ele fosse. Ele era meu contador Geiger. Se ele entrava em um
autoridade lugar, eu entrava. Se ele parava, eu parava. Se ele corresse, eu corria também.”
mundial no
O físico passou a ser o dono da palavra que merecia confiança em um momento
assunto foi de incertezas. Depois que tudo passou, continuou a exercer esse papel. Onde fosse,
acionada. Um falava de Goiânia e das lições deixadas pelo acidente com o césio-137. “Acho que ele
acidente com deveria ser mais reconhecido por nós, aqui de Goiânia. Não sabemos dimensionar a
Césio-137 importância que ele teve no momento mais dramático da história da cidade”, avalia a
ocorrera. jornalista. Depois de se aposentar, Rosenthal mudou-se para Israel, onde vivia parte
de sua família. Morreu em 2010 sem nunca ter esquecido do que viu aqui em 1987.

n
98

vidas
narradas
pelo
POPULAR

José
Porfírio
O camponês que
desafiou o sistema
E
m 7 junho de 1973, a história conhecida da vida do ex-deputado José Porfírio de
Souza se perde. Foi nessa data que ele, lendário líder de uma revolta camponesa
de moldes inéditos no Brasil, ocorrida nos municípios de Trombas e Formoso,
no norte goiano, sumiu do mapa. A última informação que se tem é que, após
ser liberado de um quartel em Brasília, onde estava preso, ele se dirigiu para
a rodoviária do Plano Piloto. Não se sabe até hoje se pegou ou não o ônibus
que gostaria. Provavelmente não. Nunca mais se soube dele. É oficialmente um
desaparecido político.

O sumiço de José Porfírio foi um dos casos investigados pela Comissão


Nacional da Verdade e houve o reconhecimento de que o fato deveu-se a uma
ação direta para eliminar opositores do regime militar. “Os militares tinham muito
medo de Porfírio”, declarou, em audiência pública da Comissão em Goiânia em
2014, Marcantônio Dela Côrte, que representava a Associação dos Anistiados
Políticos de Goiás. O fim, provavelmente trágico, de Zé Porfírio, como ficou
99

conhecido, começou a ser traçado pela ousadia com que conduziu uma revolta
improvável.

Entre 1955 e 1957, ele catalisou o descontentamento de trabalhadores rurais


explorados e empobrecidos da região de Trombas e Formoso. Grileiros quiseram
tomar as terras de centenas de famílias de posseiros que estavam estabelecidas
em áreas devolutas. Enfrentando emboscadas e outros tipos de violência, os
Porfírio foi um trabalhadores rurais resistiram, combatendo jagunços, milícias e até forças policiais
dos primeiros do Estado que foram enviadas para desalojar os agricultores. Essa revolta assustou
latifundiários e fez crescer o nome de seu líder, que era ligado aos comunistas.
alvos do golpe
de 1964. Em 1962, quando José Porfírio estava em Cuba, provavelmente recebendo
Perseguido, treinamento, foi eleito para uma cadeira na Assembleia Legislativa de Goiás. Na
passou a época, foi o deputado mais votado. Como não podia exercer cargos pelo Partido
atuar na Comunista Brasileiro, que estava na ilegalidade, elegeu-se por uma coalizão
clandestinidade, PSD-PTB. Ele teve pouco tempo para exercer a nova função. Porfírio foi um dos
primeiros alvos do golpe de 1964. Perseguido, passou a atuar na clandestinidade, já
já sem muita sem muita identificação com o PCB e sim com algumas de suas dissidências.
identificação
com o PCB “Ele era indisciplinado. Queria enfrentar a ditadura contra a orientação do
e sim com partido. Isso era uma loucura!”, contou, na mesma audiência pública da Comissão
algumas de suas da Verdade em Goiânia, a ex-militante Dirce Machado, que esteve ao lado de
dissidências. Porfírio durante a revolta de Trombas e Formoso. Com o golpe, a prisão de Porfírio
foi decretada e ele, que estava em Goiânia, fugiu para Trombas. Primeiro esteve na
fazenda de um amigo em Anápolis e no caminho para o destino final, seu grupo
chegou a trocar tiros na rodovia Belém-Brasília.

O refúgio de Porfírio foi o Maranhão. Ele voltava a ser um militante de campo,


optando pela luta armada, mas não chegou a entrar em combates efetivos. Cogita-
se que havia a intenção do ex-deputado de aliar-se aos integrantes do PC do B que
promoveram a Guerrilha do Araguaia, mas não há uma confirmação disso. Quando
foi preso, Porfírio não estava na região e sim na Fazenda Angico, no município
de Riachão, interior maranhense. A equipe que o localizou o capturou no final de
dezembro de 1972, em uma operação que ganhou o nome de Mesopotâmia.

Porfírio foi levado direto para Brasília, onde permaneceu detido no Comando
Militar do Planalto, até ser colocado em liberdade no dia em que sumiu. De acordo
com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, dois de seus filhos também foram
perseguidos. Um deles, Mané Porfírio, que militava ao lado do pai, foi preso em 1973
e permaneceu encarcerado no DOI-Codi do Rio Janeiro até 1977, sendo torturado
em todo esse período. Durvalino foi capturado e torturado aos 17 anos. Teve
transtornos mentais e desapareceu de um hospital onde estava internado, em 1973.

n
100

vidas Simone Ala


narradas
pelo
POPULAR

Leandro &
Leonardo
Pense neles
“P
erguntaram pra mim, se ainda gosto dela. Respondi, tenho ódio, e morro de amor
por ela.” Fala a verdade, duvido que você não tenha cantarolado a canção Entre
Tapas e Beijos ao ler os primeiros versos de um dos grandes sucessos inaugurais
da dupla goiana Leandro & Leonardo. No final da década de 1980, um fenômeno
tomou as rádios e emissoras de TV do País. Dois irmãos iniciavam uma trajetória
meteórica no cenário musical nacional, revigorando um gênero depreciado por
muitos críticos, mas adorado pelo povão.

A música sertaneja já havia produzido ídolos. Lá atrás, antes das mídias


de massa, o rádio era o canal para as vozes de duplas como Tonico & Tinoco,
Cascatinha & Inhana ou Tião Carreiro & Pardinho. Depois veio uma geração mais
urbana, em que figuravam Milionário & José Rico, Mato Grosso e & Mathias e
Chitãozinho & Xororó. Leandro & Leonardo, porém, inauguram um novo patamar
de popularidade, em que nichos antes fechados às canções românticas do interior
foram literalmente tomados, com o gênero virando febre em capitais do Sudeste e
do Sul.
101

“Eu fiz parte de uma mudança radical na música sertaneja”, declarou Leonardo,
em uma entrevista exclusiva a O Popular em 2013, quando, em uma pesquisa
qualitativa encomendada pelo jornal, a maior parte dos entrevistados indicou o
cantor como o representante típico do “jeito goiano de ser”. “Quando surgiram
Leandro & Leonardo com Entre Tapas e Beijos, canção de um goiano chamado
Nilton Lamas, a gente recebia críticas pra caramba. Depois veio Pense em Mim e já
veio contrato com a Rede Globo para apresentar uma Terça Nobre”, recordou.

Essa exposição na maior rede de TV do País em horário nobre transformou


Leandro & Leonardo em grife e abriu caminho para outras duplas que vieram
posteriormente. Eles ganharam programa próprio na Globo, em que contavam a vida
Essa exposição
dura que tiveram antes de chegar ao estrelato. Lá está o período em que trabalhavam
na maior nas lavouras de tomate de Goianápolis, cidade em que nasceram e que projetaram
rede de TV nacionalmente. Também aparecem as dificuldades em tornar o sonho de cantar e
do País em fazer sucesso na música em uma realidade, com direito a empresários picaretas e
horário nobre shows fracassados.
transformou
Essa história, cheia de tapas e beijos com a crítica especializada e com parcelas do
Leandro &
público menos receptivas ao sertanejo, não impediu que fizessem sucesso também
Leonardo em no exterior. Os irmãos goianos gravaram em espanhol, tornaram-se ídolos em países
grife e abriu da América Latina, fizeram turnês por Estados Unidos, Europa e até Japão. Eles
caminho para encavalaram sucessos que o Brasil cantava de cor, como Talismã (nome da fazenda
outras duplas que a dupla adquiriu em Goiás) e Não Aprendi Dizer Adeus. Ao lado das duplas
que vieram Zezé di Camargo & Luciano e Chitãozinho & Xororó, conceberam o show Amigos.
posteriormente.
História de sucesso que foi bruscamente interrompida durante uma pescaria,
quando Leandro sentiu-se mal. Feitos os exames, o pior dos diagnósticos. O cantor
sofria de um tipo agressivo de câncer. Sua luta contra a doença durou poucos
meses. Em meados de 1998, o País parou, comovido, para acompanhar o velório e
o sepultamento do artista em Goiânia. “Quando estou em Goiás, sou tratado com
muito amor. Eu vi isso mais ainda com o carinho que esse povo me deu quando
aconteceu a morte do meu irmão”, relembrou a O POPULAR, emocionado,
Leonardo.

O cantor prosseguiu com sua carreira solo e manteve o sucesso com outros
projetos. Em 2012, um de seus filhos, Pedro Leonardo, que também era cantor,
sofreu um grave acidente de carro e ficou entre a vida e a morte. Novamente
Leonardo pôde constatar o apreço dos fãs em seus momentos mais difíceis. Leonardo
tornou-se também empresário de novos artistas. Luís José da Costa e Emival Eterno
da Costa, Leandro & Leonardo, os irmãos que colhiam tomate, que foram atendentes
de farmácia e se tornaram ídolos de um País. É ou não é uma história e tanto?

n
102

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Leide das
Neves
A inocência que
o brilho apagou
E
m 26 de outubro de 1987, Goiânia estava de luto e assustada. Em caixões revestidos
de chumbo e acondicionados em caixas de madeira de lei, chegavam à cidade os
corpos das duas primeiras vítimas fatais do acidente com a substância radioativa
Césio-137. Eram a menina Leide das Neves Ferreira, 8 anos, e sua tia, Maria
Gabriela Ferreira, a pessoa que percebeu que algo muito grave era causado pelo
material azul que brilhava no escuro. Foi um dia de horror, em que a dor da perda
foi agravada pela ignorância e violência de manifestantes que chegaram a apedrejar
o cortejo.

No Cemitério Parque, naquele dia ao mesmo tempo comovente e vergonhoso,


uma mulher baixa e com voz aguda tentava, a todo custo, chegar perto do túmulo
de concreto construído especialmente para o sepultamento. Afinal, ela tinha
o direito de se despedir de sua filha. Parcialmente sedada com remédios para
suportar o momento mais difícil de sua vida, Lourdes das Neves Ferreira precisou
de escolta policial e da intervenção de autoridades do Estado para chegar perto do
103

caixão onde sua filha jazia, um invólucro que pesava 700 kg por conta dos materiais
de proteção contra a radiação.

Hoje, com 72 anos – “mas com cabeça de 18”, ela brinca –, Lourdes é uma
mulher que, mesmo enfrentando suas dores durante todo esse tempo, ainda tem
uma saudade imensurável da filha caçula que perdeu. “Quando foram os 30 anos
do acidente e da morte da Leide, eu até falei com algumas pessoas, dei entrevistas.
Mas daí comecei a passar mal. Pensei que ia enfartar e percebi que eu também tinha
que cuidar da minha saúde”, relatou em 2018. Saúde que esteve por um fio naquela
sucessão de acontecimentos que marcariam não só sua vida, mas a história do País.

“Cada pessoa que teve contato com o césio de alguma forma teve sintomas
diferentes. Teve gente que teve dor de cabeça; outros, diarreia. Eu tive sangramento.”
Mulher de Devair Alves Ferreira, o dono do ferro-velho onde a cápsula de césio
do aparelho de radiologia foi definitivamente aberta, Lourdes mantém cristalinas
“Quando eu as lembranças do que aconteceu três décadas e meia atrás. “Sou uma sobrevivente”,
me lembro define-se. E ela está certa. Talvez ninguém que esteve tão próximo às gramas mortais
da Leide, é do Césio-137 tenha escapado de seus piores efeitos quanto esta mãe de outros dois
uma dor e um filhos.
consolo ao
“Agora eu tenho netos e bisnetos, acredita?” Sim, seus planos de vida são de longo
mesmo tempo.
prazo. “Quero ser tataravó”, diverte-se. Uma família que teve continuidade com seus
É uma força outros dois filhos, Lucélia e Lucimar, que não tiveram a chance de ter a irmã Leide
que eu tenho.” das Neves em suas vidas adultas. Lourdes parece incorporar aquele ditado popular
imortalizado num samba famoso: Deus dá o frio conforme o cobertor. E o cobertor
dessa mulher miudinha mostra-se imenso. Em 2003, ela perdeu o marido para a
depressão e o álcool. Devair sucumbiu à tristeza de um passado traumático.

“Com tudo isso, eu sofri, mas também aprendi muito. Esse luto que a gente sente
não se acaba, está sempre voltando. Mas eu me sinto fortalecida para continuar,
um dia após o outro”, assegura. “Eu brinco um pouco com as pessoas para a vida
ficar mais light, né. É preciso.” E quem somos nós para duvidar de alguém que
passou pelo que dona Lourdes passou. “Quando eu me lembro da Leide, é uma dor
e um consolo ao mesmo tempo. É uma força que eu tenho.” Símbolo da tragédia de
Goiânia, o sorriso inocente de Leide das Neves perpetuou-se não só na lembrança de
sua mãe.

O Popular vem, nesses 35 anos, acompanhando tudo o que é relacionado ao


acidente com o Césio-137. De sua descoberta e os primeiros alertas sobre o perigo
que ameaçava a cidade, passando pelos trabalhos de descontaminação de áreas
atingidas e a construção do depósito dos resíduos radioativos em Abadia de Goiás,
até a luta das vítimas (oficiais ou não) por tratamentos e indenizações, o jornal
registrou todos os passos deste que foi o maior desastre do gênero no mundo. Em
cadernos e reportagens especiais, enfatizou a importância de aprender as lições
deixadas pela catástrofe.

n
104

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Leodegária
de Jesus
A nossa poeta negra
E
m 1889, apenas um ano após a assinatura da Lei Áurea, uma criança negra vinha
ao mundo em Caldas Novas. Aquela menina, batizada de Leodegária de Jesus em
homenagem a um santo de devoção do padre que a abençoou, enfrentaria um
período de transformações e desafios. Nesse contexto, ela teria um destaque raro
para a época. Nos últimos anos do século 19, depois de sua família ter morado em
Jataí e Rio Verde, ela chegou à cidade de Goiás, após seu pai, José Antônio de Jesus,
ser eleito deputado federal pelo Partido Republicano. E foi na então capital do
Estado que seu talento literário surgiu.

“Suas duas únicas publicações foram pioneiras na literatura feminina em Goiás.


A primeira delas é Corôa de Lyrios, publicada em 1906, quando ela tinha 17
anos”, informa a professora de literatura Goiandira Ortiz, que abriu uma livraria
na antiga Vila Boa que tem o nome de Leodegária, uma homenagem à poeta que
foi contemporânea e amiga de Cora Coralina, mas que acabou tendo sua obra
eclipsada pela autora da casa da ponte. “Leodegária de Jesus escreveu Corôa
de Lyrios entre os 14 e 15 anos. Ela tinha uma vida moderada, regulada pelos
costumes e padrões morais, como toda jovem de seu tempo.”
105

Quando seu segundo – e último – livro foi publicado, em 1928, ela morava em
Uberlândia. O título Orchideas, trabalho que foi resgatado há poucos anos em uma
edição artesanal realizada pelo Ateliê Tipográfico do CEGRAF, da UFG, mantém
o mesmo estilo do livro anterior. “São poemas com temáticas como amor, família,
natureza, dores por algum motivo e com a introdução de novos temas decorrentes
do vivido, como, por exemplo, a saudade da cidade de Goiás e da vida cultural vila-
boense; e ainda a morte do pai”, enumera Goiandira. “A voz lírica agora é de uma
mulher madura, que passou por acontecimentos difíceis em sua vida e assumiu a
Essa postura responsabilidade pela família”, acrescenta.
ativa é uma
“Suas duas únicas publicações foram pioneiras na literatura feminina em Goiás.
constante na
Merece um estudo aprofundado, que compreenda o seu contexto histórico-literário
biografia de e investigue com o devido cuidado o lugar que ocupou em uma geração de poetas
Leodegária. Ela mais velhos e boêmios, como Joaquim Bonifácio Gomes de Siqueira, Luís do
fez questão de Couto, Augusto Rios, Arlindo Costa. Todos escrevendo no mesmo tom romântico”,
avançar nos contextualiza Goiandira. Havia um clima cultural especial naquela época. Em 1907,
estudos, teve por exemplo, Leodegária formou com Cora Coralina, Rosa Santarém Godinho e
Alice Santana um grupo que participou do semanário A Rosa, iniciativa pioneira por
alguns versos
ter como público-alvo as mulheres e feita por mulheres.
publicados fora
de Goiás ainda Essa postura ativa é uma constante na biografia de Leodegária. Ela fez questão de
muito jovem, avançar nos estudos, teve alguns versos publicados fora de Goiás ainda muito jovem,
ajudou a cuidar ajudou a cuidar do pai doente e em Uberlândia fundou e dirigiu o Colégio São José,
do pai doente e além de escrever para jornais da cidade, algo ainda não muito comum para mulheres
naqueles tempos. O lançamento de seu segundo livro também foi viabilizado com
em Uberlândia
recursos próprios. Já morando em Belo Horizonte, manteve correspondência com
fundou e dirigiu Cora Coralina, a quem chamava de Anica, e voltou à cidade de Goiás em 1930 e
o Colégio São 1960, para visitar os conhecidos. Leodegária nunca se casou – teve um romance
José frustrado em Goiás na juventude – e morreu em 1978.

Sua memória tem sido revalorizada, com homenagens pela cidade de Goiás. Uma
delas é ideia de Elenizia da Mata, primeira vereadora negra da história da antiga
capital. “Pensamos na necessidade de fundarmos um Museu da Memória Negra
que levará o nome de Leodegária”, expõe. “Um espaço que abrigue histórias de
pessoas que foram capazes de contribuir com seus fazeres e saberes para que Goiás
seja reconhecida como berço da cultura goiana. O nome de Leodegária de Jesus
foi escolhido por ela ser uma mulher negra intelectual e poeta em Goiás no pós-
abolição, que se tornou expoente na educação, música, literatura, uma mulher negra
admirável ainda pouco conhecida pelos goianos.”

n
106

Walter Alves
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Leolídio di
Ramos Caiado
Todas as
margens do rio
C
ada palmo dos 2,6 mil quilômetros do Rio Araguaia foi percorrido por Leolídio
di Ramos Caiado. São incontáveis as vezes que ele navegou por aquelas águas, não
raramente visitando pedaços de Goiás e Mato Grosso em que ninguém havia posto
os pés antes. Explorar essa região se firmou em sua vida como uma espécie de
vocação desde 1945, quando, ainda muito jovem, integrou a histórica Expedição
Araguaia-Xingu, a convite do próprio Marechal Rondon, em uma das aventuras
que redesenhariam o mapa do Brasil e fariam o País marchar mais para o Oeste,
Amazônia adentro.

Nascido na cidade de Goiás, Leolídio carregava um sobrenome cheio de


simbolismo. Os Caiado foram ligados às oligarquias que governaram Goiás durante
a República Velha, mas Leolídio rompeu com a narrativa de que a família não se
importava muito com o meio ambiente. Ele, ao contrário, foi um dos responsáveis
pela implementação das primeiras políticas públicas relacionadas ao tema em
Goiás, desempenhando papel destacado na aprovação de leis que protegiam
107

ecossistemas do Estado. Uma delas foi a proibição da pesca profissional do Rio


Araguaia, em 1971.

Quando morreu em 10 de junho de 2008, Leolídio era uma das principais


referências para debates ambientais não só em Goiás, como também no Tocantins.
Aqui, ele criou a Secretaria Estadual do Meio Ambiente e lutou para que as
fiscalizações de combate a depredações e crimes ambientais fossem uma rotina e não
São apenas ações eventuais. Essa ideia surgiu ainda em 1948, quando assumiu o Serviço
de Caça e Pesca estadual, a convite do então governador Jerônimo Coimbra Bueno.
incontáveis as
Ele voltaria a ter funções semelhantes em outros governos, nos anos 1970 e 1990.
vezes que ele
navegou por Em 1989, Leolídio levou sua experiência na área para o Tocantins, ajudando a
aquelas águas, fundar o Instituto Natureza do Estado, a Naturatins. Sua preocupação manteve a
não raramente coerência por onde passou. Ele buscava a conscientização das pessoas quanto aos
visitando laços que as uniam com o meio ambiente, à preservação das fontes de água, das
matas ciliares, da fauna local. Esse aprendizado, Leolídio teve nas inúmeras vezes que
pedaços de
viu os homens da floresta e os ribeirinhos manterem uma relação sustentável com a
Goiás e Mato natureza, trazendo benefícios para todos os envolvidos.
Grosso em
que ninguém Em entrevista a O Popular publicada em 4 de junho de 2000, Leolídio fazia um
havia posto alerta. “Goiás evoluiu muito: abriram fazendas, construíram estradas, surgiram
os pés antes. cidades. Onde entra o progresso, entra a destruição.” Ideias que ele conseguiu
registrar em sete livros que escreveu sobre o assunto: Expedição Sertaneja Araguaia-
Explorar
Xingu, Ilha do Bananal – Drama do Oeste, Curichão da Saudade, Arapoema Norte-
essa região Goiás, Sul do Pará e – o derradeiro – Araguaia, O Rio da Vida. Em todos eles,
se firmou em Leolídio denunciava desmandos, mas também apontava e propunha soluções.
sua vida como
uma espécie Essas obras o levaram a integrar a Academia Goiana de Letras e a seção goiana
de vocação da União Brasileira de Escritores. Dedicado ao meio ambiente, Leolídio – irmão
do ex-governador Leonino Caiado, que administrou o Estado entre 1965 e 1969 e
também foi prefeito de Goiânia em um breve intervalo entre 1969 e 1970 – abordou
a temática de sua vida em livros de memórias, de registros históricos e de pesquisas
ambientais. “O resultado de tudo que se faz em ecologia é a longo prazo”, avisava
Leolídio, totalmente consciente sobre o futuro.

Em 2010, o então prefeito de Goiânia, Paulo Garcia, inaugurou um parque


ecológico com o nome de Leolídio di Ramos Caiado. Na solenidade, Garcia destacou
a postura que o homenageado teve em sua trajetória. “Ele não ficava no mero
denuncismo, mas partia para ações práticas.” É difícil mensurar quais foram todas as
consequências da persistência de Leolídio em defender seus ideais, em criar órgãos
ambientais de proteção, em deixar seu passado de caçador e pescador para trás e
defender “o outro lado”. Talvez só o Araguaia e outros patrimônios naturais possam
responder.
n
108

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Leopoldo de
Bulhões
O primeiro
ministro de Goiás
J
osé Leopoldo de Bulhões também trazia, entre seus sobrenomes, o peso dos
Jardim, uma das famílias protagonistas da política goiana no século 19 e na
República Velha. Ele era neto de um ex-presidente da Província de Goiás, José
Rodrigues Jardim, que, além disso, foi Senador do Império. O poder, portanto,
estava em seu DNA e este filho da cidade de Goiás, nascido em 1856, não fugiu
aos seus. Quando se formou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,
em São Paulo, em 1880, tinha suas ambições, mas não sabia que elas chegariam
tão longe.

Leopoldo de Bulhões, que hoje dá nome a uma cidade da Região Metropolitana


de Goiânia, continua a ser, 95 anos após sua morte, um dos políticos goianos a
ocupar cargos de maior relevância em nível nacional e uma das personalidades
do Estado que mais fizeram ouvir sua voz nos debates brasileiros. A partir do
momento em que foi eleito deputado federal pela primeira vez em 1882, suas
opiniões, que já tinham força no âmbito regional, ganharam ressonância no
109

parlamento, onde começou a se destacar e a ser uma personagem central.

Segundo um dossiê elaborado pelo Centro de Documentação da Fundação


Getúlio Vargas, Leopoldo de Bulhões, nos tempos da monarquia, já flertava com
ideais republicanos e liberais. Como deputado, participou ativamente da criação de
uma estrutura federativa para o Brasil, com a mudança do regime de governo, e se
colocou ao lado daqueles que apoiavam o fim da escravatura. Em 1885, foi reeleito
deputado com um discurso abolicionista e disseminava suas ideias por meio do
jornal Goiás, que havia fundado ao lado do irmão, Félix Bulhões.

Leopoldo Quando o destino de D. Pedro II e sua família foi selado, Leopoldo de Bulhões,
de Bulhões ao lado de nomes como Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, participou do Congresso
ajudou Liberal, no Rio de Janeiro. Em Goiás, sua ascendência só crescia e ele fundou no
Rodrigues Estado o Partido Republicano, mas a Proclamação da República lhe trouxe um revés.
Mudado o regime, perdeu o mandato de deputado, reconquistando-o em 1890 para
Alves a chegar
participar da legislatura que elaboraria uma nova Constituição. Ele integrou o seleto
à Presidência grupo de 21 parlamentares que deram redação final à nova Carta Magna.
da República.
Recebeu De temperamento forte e combativo, Leopoldo de Bulhões comprava brigas. Foi
em troca o opositor feroz de Deodoro da Fonseca e discordou da política econômica de Rui
Ministério da Barbosa. Todas essas ações o levaram a ser eleito para Presidente de Goiás (cargo que
correspondia ao de governador) em 1892, mas não assumiu, preferindo continuar no
Fazenda. Foi Rio de Janeiro. O cargo seguinte foi o de Senador. Convidado para ser ministro da
o primeiro Fazenda do governo de Prudente de Morais, Leopoldo de Bulhões, de novo, preferiu
goiano a a função parlamentar. Ainda muito jovem, chegou à Presidência do Senado.
assumir a
pasta. Naquela época, a nova geração dos Bulhões já havia formado uma verdadeira
oligarquia em Goiás, elegendo deputados e governos. Isso não evitou que sofressem
derrotas e traições. No início do século 20, Leopoldo de Bulhões era um dos
homens mais influentes do País e em breve teria nas mãos, efetivamente, os destinos
econômicos do Brasil. Em 1902, Leopoldo de Bulhões ajudou Rodrigues Alves a
chegar à Presidência da República. Recebeu em troca o Ministério da Fazenda. Foi o
primeiro goiano a assumir a pasta.

Nos anos seguintes, sua atenção voltou-se novamente para Goiás, onde liderou
uma revolução, a de 1909, para retirar do poder o inimigo Xavier de Almeida.
Depois dessa vitória, retornou ao Ministério da Fazenda, agora no governo Nilo
Peçanha. A parte final de sua vida foi marcada por novas vitórias nas urnas e
perseguições fora delas. Depois de se mudar para Petrópolis (RJ), decidiu se
aposentar da política e passou a escrever em jornais. Morreu na cidade serrana do
Rio em 1928 como um dos homens públicos mais poderosos de seu tempo.

n
110

vidas Mantovani Fernandes


narradas
pelo
POPULAR

Marconi
Perillo
Longevidade na
Casa Verde
“E
u morei aqui, da primeira vez, por 7 anos e 3 meses. Agora, mais 7 anos e 3 meses.
Sou um dos governadores a ocupar por mais tempo o Palácio das Esmeraldas, atrás
apenas de Pedro Ludovico.” No interior do Palácio das Esmeraldas, no final de seu
quarto mandato, em 2018, Marconi Perillo não escondia o orgulho que sentia com
essa contabilidade. Quando, em 1998, se lançou candidato a governador com cerca
de 3% das intenções de voto contra um oponente que ostentava mais de 70%, ele se
arriscou, sem saber ainda que protagonizaria a maior virada eleitoral da história do
Estado.

“Alguns sinais foram emitidos naquela eleição. Primeiro, subliminarmente, eu


vi em uma pesquisa divulgada em O POPULAR que Iris Rezende estava com mais
de 70% e nós com 3%, 4%. Mas nessa mesma pesquisa havia uma pergunta para a
qual pouca gente prestou atenção. A pergunta era: Você quer alternância de poder
em Goiás? E mais de 60% diziam que sim”, recordou Marconi. “Também havia uma
relação mal resolvida entre o Iris e o então governador Maguito Vilela. Se naquela
111

eleição o Maguito tivesse sido candidato, com certeza eu não teria sido”, revelou.

Já em 2018, antes de sofrer um revés nas urnas, perdendo a eleição para o Senado,
Marconi Perillo admitia que não era mais exatamente o mesmo homem de camisa
azul que percorrera o Estado de vinte anos antes. “Como você mesmo disse, são 20
anos. Vinte anos é tempo suficiente para burilar, amadurecer qualquer pessoa. Eu me
sinto mais calmo, muito mais disposto ao diálogo com todos, sem exceção. Eu me
sinto muito mais ponderado”, assegurava. “Eu tenho um pouco de irritação quando
alguma diretriz não é cumprida ou quando percebo má-fé. Isso me irrita muito”,
avisava.
Quando,
em 1998, Em março de 1978, o adolescente Marconi Perillo chegou a Goiânia, vindo da
se lançou pequena Palmeiras de Goiás, com apenas 15 anos de idade para estudar. “Embora
candidato a eu tenha nascido aqui, em frente à Catedral, no Hospital Maria Auxiliadora”, diz.
Naquele tempo, ele não pensava em política, mas algo importante em sua vida
governador
aconteceu. “Eu morei 3 anos e meio na casa de um primo, o Fernando Perillo, e
com cerca passei a conviver com os músicos, com os artistas plásticos. E fui sendo apresentado
de 3% das a um mundo mais global que eu não conhecia. Foi uma revolução cultural em minha
intenções de cabeça.”
voto contra
um oponente Ouvindo Clube da Esquina, tropicalistas e Beatles, o secundarista Marconi abriu
sua visão para outros temas. “Essa relação com muita gente da cultura me levou a
que ostentava outra reflexão, sobre o momento político vivido no País. Foi aí que comecei a me
mais de 70%, engajar em algumas lutas que eram fundamentais para a redemocratização do País.”
ele se arriscou, Ele prestou vestibular para Ciências Sociais na UFG, onde se tornou amigo de jovens
sem saber lideranças – vejam vocês – do PT e do PC do B. No curso, permaneceu por seis
ainda que meses, mas acabou indo para São Paulo fazer Engenharia Industrial Mecânica.
protagonizaria
De volta a Goiás em 1982, após ter feito campanha para Franco Montoro ao
a maior virada governo de São Paulo, Marconi entrou na política definitivamente. Trabalhando no
eleitoral da gabinete do então senador Henrique Santillo em Goiânia, logo se destacou e tornou-
história do se presidente da Juventude do PMDB. Quando Santillo elegeu-se governador, pela
Estado. primeira vez ele deu expediente no lugar que ocuparia por tanto tempo. “Trabalhei
com Santillo 4 anos. Ele era muito disciplinado, muito sério. Tenho uma foto dele
em meu outro gabinete.” O aprendizado o levou à Assembleia e ao Congresso como
deputado.

Em sua trajetória, Marconi teve embates, até com a imprensa. “Quando era
deputado e era retratado no jornal, era sempre positivo, porque eu era oposição.
E tive muito espaço em O POPULAR. Quando você passa para o outro lado, para
a posição de chefe de governo, aí são variadas as sensações”, reconheceu. “Muitas
vezes você considera que o que foi relatado é correto, muitas vezes você se sente
injustiçado. Acho que minha relação com o jornal é respeitosa e democrática”,
avaliava. “Ninguém contou melhor a história de Goiás nesses 80 anos que O
POPULAR”, finalizou.

n
112

vidas Diomício Gomes


narradas
pelo
POPULAR

Maria
Guilhermina
Vitalidade que a arte dá
E
m 1959, Maria Guilhermina ganhou o Prêmio da Bienal de Escultura de São
Paulo e ingressou definitivamente no cenário das artes plásticas brasileiras. No
ano seguinte, em 2 de junho de 1960, O POPULAR noticiou mais vitórias dessa
mineira de Conquista, que se mudou com toda a família para Goiânia. Seus
trabalhos eram premiados em um concurso promovido pela Escola Goiana de
Belas Artes, nas categorias pintura e escultura, sendo escolhidos por um júri
em que estavam nomes como o arquiteto Elder Rocha Lima, o também escultor
Gustav Ritter e o jornalista Ciro Lisita.

Desde então, já se passaram mais de seis décadas e sua obra permanece atual
e requisitada. Aos 90 anos de idade, seu grande ateliê ao ar livre, nas margens
do Ribeirão João Leite, ainda é um dos templos das artes plásticas em Goiás.
Um verdadeiro bosque que é seu refúgio. “São duas chácaras que eu comprei do
Altamiro de Moura Pacheco”, informou em 2018, lembrando um dos pioneiros
da nova capital. Primeiro em pedra e desde 1982 também em pau-brasil, ela
compõe obras que seduzem. “Tenho cerca de 890 esculturas em madeira e mais
de 1.300 em pedra”, espanta-se.
113

Quem a vê, uma senhora doce e miudinha, não pode suspeitar da força que tem,
nos sentidos figurativo e literal. Muitas das esculturas de Maria Guilhermina são
de grande porte. “Eu adquiri essa força com a arte. A escultura que está no lago
do Parque Flamboyant, por exemplo, pesa 13 toneladas. Quando a pedra chegou,
precisamos de um guindaste para colocá-la no ateliê. Quando ficou pronta, outro
guindaste precisou içá-la por cima do muro, porque não passava pelo portão de tão
grande que era”, recordou. “Às vezes é necessário um aparato especial para esculpi-
las.”

As peças menores também têm lugar de destaque, sobretudo a série de


pombas da paz estilizadas, uma de suas marcas. “Nunca repeti uma sequer.” Essa
experimentação se dá em um ambiente de sinergia com a natureza, onde a artista
plástica trabalha em companhia de muitos passarinhos que vão visitá-la enquanto
Essa cria. “Achei meu lugar”, define, referindo-se a um pequeno paraíso particular no
experimentação meio da cidade, que já recebeu visitas ilustres. Oscar Niemeyer, por exemplo, esteve
se dá em um lá três vezes, sempre admirado com as formas sinuosas do trabalho da escultora.
ambiente de
Trabalhos que podem ser contemplados em museus e coleções particulares nos
sinergia com Estados Unidos, Alemanha, Itália. Na França, ela expõe frequentemente, sempre
a natureza, com algo novo a mostrar. No Brasil, sua assinatura está nos museus de arte moderna
onde a artista de São Paulo e Rio de Janeiro e em espaços públicos. “Tenho esculturas na entrada
plástica trabalha do centro de reabilitação, o Crer, do Hospital de Urgências de Goiânia, no Shopping
em companhia Flamboyant, na Universidade Católica de Brasília, na reitoria da UFG”, menciona,
de muitos revelando ser uma das artistas plásticas mais disputadas do mercado.
passarinhos que Em todas elas, o apuro no acabamento é uma constante, mesmo que esse
vão visitá-la perfeccionismo custe um maior volume de trabalho. Quando esculpe na madeira,
enquanto cria. Maria Guilhermina não usa máquinas de ar comprimido, por exemplo. Isso exige
um esforço manual ainda maior, que ela realiza sem queixas. “Eu fui aprimorando
minha técnica com o tempo”, alegou. “Eu faço obras no formão e no macete”,
assinalou. Isso não quer dizer que seja avessa às novidades. “Visitei um ateliê em que
tudo é planejado, com máquinas modernas, para facilitar o trabalho do artista. Uma
maravilha.”

Em sua longa carreira, Maria Guilhermina já se reinventou algumas vezes.


Experimentou materiais, transformou seu estilo, pesquisou, estudou. Isso resulta
em um conjunto de obras diversificado e amplo. Durante um período de 12 anos, a
escultora e pintora manteve nas páginas de O Popular uma coluna de artes plásticas.
Foi uma forma que encontrou de compartilhar suas vivências no universo que tanto
domina e no qual exerce sua arte sob a sombra de árvores, sob a sinfonia de pássaros.
Elementos da natureza que Maria Guilhermina sempre soube explorar tão bem.

n
114

Yosikazu Maeda
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Marietta Telles
Machado
Mais que um nome
de biblioteca
M
arietta Telles Machado é um nome conhecido muito mais porque batiza centros
culturais e bibliotecas do que por sua obra literária e atuação em nome da
cultura. Várias pessoas leem seu nome, mas não sabem exatamente quem foi
essa mulher. Não deveria ser assim. Na segunda metade do século passado, ela
teve papel central no desenvolvimento de várias iniciativas que repercutiram
no futuro, como a formação de leitores, a preservação e organização de acervos
e o resgate histórico, por meio de suas crônicas, de personalidades de vulto em
Goiás.

A escritora nasceu na Fazenda Barreirão, no município de Hidrolândia, em


1934. Esse lugar bucólico, onde passou a infância e a adolescência, ajudou a
moldar seu imaginário, que incluía muitas imagens da natureza e as sensações
que a terra, a flora e a fauna poderiam estimular nas pessoas. Quando chegou
o tempo dos estudos, mudou-se para Goiânia, onde foi aluna do Colégio Santa
115

Clara, em Campinas, e do Liceu, no Centro. Já nesses lugares, Marietta começou a se


interessar pelas bibliotecas, sinalizando para a atividade em que teria tanto destaque
em sua vida.

“Ela foi uma pessoa que deu a vida para a biblioteca em Goiás e até em outros
estados”, reforça a escritora Ercília Macedo Eckel, que foi amiga próxima de
Marietta. “Ela foi convidada, quando ainda era bem jovem, pelo professor Colemar
Natal e Silva, para organizar as bibliotecas das faculdades que depois integrariam a
Universidade Federal de Goiás. Depois de fundada a UFG, foi ela quem montou a
A escritora Biblioteca Central da instituição, que na época ficava na Faculdade de Direito, ali na
nasceu na Praça Universitária”, relata. Marietta também estudou Direito na instituição.
Fazenda
Barreirão, no A mesma Praça Universitária abriga hoje uma biblioteca com o seu nome.
Marietta também é homenageada com sua assinatura no complexo cultural
município de localizado na Praça Cívica. Tamanho prestígio é mais do que justo. A escritora,
Hidrolândia, muito ligada à ambientação rural, não se reteve nessa temática e no volume
em 1934. Esse Narrativas do Quotidiano faz um grande mosaico de uma Goiânia em formação,
lugar bucólico, com cenas urbanas de uma cidade em nascimento. Cronista e contista de primeira, a
onde passou autora se destacou ainda por sua produção teatral, sobretudo para o público infantil.
a infância e a
Nessa seara, uma de suas obras mais representativas é o livro Teatro Para
adolescência, Crianças, publicado pela Editora da UFG e há muito tempo fora de catálogo. Nele,
ajudou a moldar Marietta cumpre tarefas simultâneas: ao mesmo tempo em que traz histórias cheias
seu imaginário, de lirismo e encantamento (ela chegou a ser comparada com a dramaturga Maria
que incluía Clara Machado), há a preocupação de se repassar ensinamentos sobre essa arte
muitas imagens delicada e que exige muita perícia. O trabalho é composto pelas peças A Traição Nas
da natureza e Terrinhas do Coelho, A Semente Mágica e Assembleia dos Capetinhas.
as sensações “Marietta era uma pessoa simples, humilde”, rememora Ercília. E também
que a terra, a dedicada ao bem público. Seus conhecimentos de literatura e sua larga experiência
flora e a fauna em bibliotecas a faziam ser muito requisitada para deixar acessíveis acervos em
poderiam instituições de Goiás e em cidades variadas, como São Luis, no Maranhão, Teresina,
estimular nas Manaus, Rio Branco, Belém. Viagens que resultavam em novos textos, que ela foi
pessoas. escrevendo e guardando. Apenas dois anos antes de sua morte, em 1987, a escritora
catalogou todos esses trabalhos e organizou uma coletânea, lançada postumamente.

Integrante do Grupo de Escritores Novos (GEN), que agitou o ambiente cultural


goiano nos anos 1960, Marietta Telles Machado também era ensaísta. Seus trabalhos
nesse gênero lhe valeram menções em volumes organizados por críticas literárias
como Heloísa Buarque de Holanda e Nelly Novaes Coelho. Com apenas 52 anos
de idade, um ataque cardíaco tirou a vida da escritora no auge de sua produção.
Quando o enfarte ocorreu, ela estava na mesma fazenda em que nascera, cercada da
mesma natureza que foi sua primeira inspiração.

n
116

Will Dias/Futura Press/Folha Press


vidas
narradas
pelo
POPULAR

Marília
Mendonça
A cantora das multidões
A
última postagem da cantora Marília Mendonça em seu perfil no Instagram, com
ela já dentro do avião naquele fatídico 5 de novembro de 2021, seria o derradeiro
registro da artista em vida. Na publicação, ela fala do final de semana de shows que
faria em Minas Gerais, a acompanhamos entrando na aeronave e lamentando não
poder aproveitar as delícias da cozinha mineira, mas tendo que se contentar com
uma refeição mais frugal. Sempre com o bom humor que marcou a personalidade
desta filha de Cristianópolis que se tornou um dos nomes mais populares da
música brasileira. Aquela despedida na rede social teve mais de 9 milhões e 300 mil
curtidas e recebeu mais de 850 mil comentários.

Esses números impressionantes não eram uma raridade na carreira de Marília.


No Instagram, ela tinha mais de 40 milhões de seguidores. No YouTube, mesmo
depois de sua morte precoce, ela vem batendo recordes em cima de recordes. Ela é
hoje a artista feminina que lidera a lista das que mais têm vídeos com mais de 100
milhões de visualizações, superando essa marca 58 vezes. Um de seus clipes, o da
canção Infiel, alcançou nada menos que 567 milhões de views na plataforma. Ao
todo, ela já soma mais de 14 bilhões de cliques e também pertence a Marília a live
mais assistida da história, com mais 3,3 milhões de pessoas acompanhando sua
117

apresentação simultaneamente, algo jamais superado.

Todos esses feitos só não são maiores que a saudade que a cantora, a mais ouvida
do Brasil em plataformas de áudio, deixou em seus incontáveis fãs. Com enorme
carisma, voz potente, muita personalidade e sorriso sempre aberto, ela saiu dos
bastidores, onde fez uma sólida carreira de compositora, e veio para a frente dos
palcos em 2015, quando iniciou sua trajetória de intérprete. O primeiro trabalho
nesse novo papel, depois de compor sucessos para duplas como Jorge & Mateus e
para cantores como Cristiano Araújo e Wesley Safadão, veio numa parceria com a
dupla Henrique & Juliano. A canção era Impasse e demonstrava que a sofrência seria
seu estilo, mas com inovações importantes.

Marília traduzia em suas obras um empoderamento feminino a que o universo


sertanejo, tão dominado por homens, não estava acostumado. Isso a fez se destacar
Marília e consolidou um movimento batizado de feminejo, com as mulheres fazendo um
traduzia em sucesso estrondoso, muito por conta da Marília cantora e compositora. Seu poder
de criação pôde ser constatado em projetos ambiciosos, como quando fez uma turnê
suas obras um
em todas as capitais brasileiras – que resultou no documentário do projeto Todos
empoderamento Os Cantos – e nos derradeiros trabalhos, com a dupla Maiara & Maraísa, no álbum
feminino a As Patroas, de 2020, parceria repetida com o disco As Patroas 35%, lançado apenas
que o universo vinte dias antes da tragédia.
sertanejo,
tão dominado A pandemia interrompeu o fluxo natural dos trabalhos, mas Marília não parava.
Continuou compondo e não se sabe quantas obras inéditas ela deixou. O acidente
por homens, aéreo nas proximidades da cidade mineira de Caratinga jogou o País em uma
não estava comoção nacional. Com apenas 26 anos, aquela mulher que arrastava multidões em
acostumado. seus shows e era recordista nos ambientes virtuais, a menina que começou a compor
suas primeiras músicas com apenas 12 anos de idade e que tinha no violão um
companheiro inseparável, calava-se bruscamente. Seu velório e enterro em Goiânia
atraíram milhares de pessoas. O Brasil viveu um luto coletivo naquele final de
semana e se perguntou a razão de tamanha injustiça.

Marília Mendonça deixou um filho pequeno e o irmão da cantora, João Gustavo,


também se lançou na carreira artística. A família da artista teve um bar em Goiânia
onde ela fez os primeiros ensaios de uma ascensão que ninguém poderia imaginar
que seria tão meteórica. Com canções como Eu Sei de Cor, Amante Não Tem Lar,
Supera, Troca de Calçada, Mal Feito e Presepada, ela conseguiu estabelecer uma
identificação profunda com muitas mulheres que viam em suas músicas uma espécie
de catarse, de desabafo. Quando morreu, Marília Mendonça era a cantora mais
popular do Brasil. E continuará a ser.

n
118

Vera de Carvalho

vidas
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POPULAR

Mauricinho
Hippie
Uma bicicleta
e um sorriso
E
ntre os anos 1960 e 1990, uma figura coloria Goiânia. Com peruca de tons
berrantes, óculos escuros, miçangas no pescoço e nos braços, camisetas que
convidavam à paz e ao amor e um sorriso do tamanho do mundo, Mauricinho
Hippie era um dos mais representativos personagens da cultura e da juventude
criativa daqueles tempos na cidade. Ele pedalava por todo lado, quase sempre
ao lado de gatos, que levava na cestinha da bicicleta, e cachorros, que vinha
puxando por coleiras. E os bichos estavam com os pelos pintados, tão coloridos e
vibrantes como o dono.

Este era Maurício Vicente Oliveira, hoje com mais de 80 anos de idade
e, infelizmente, com a saúde já fragilizada. Em 2018 fomos até sua antiga
residência, no Setor Aeroporto, mas ele não mora mais na casa escondidinha no
canto de uma praça. Está agora sob os cuidados de duas tias após o falecimento
da mãe. Em 2016, ele teve um sério problema pulmonar. Agora, nos últimos
meses de fevereiro e março, voltou a precisar ser internado no Hospital Geral
119

de Goiânia por algumas semanas. Sua memória está falhando e ele precisa tomar
remédios controlados.

Não conversamos, portanto, com ele, mas sua história fala por si. Filho de um
proprietário de terras no norte de Goiás, Mauricinho, desde cedo, mostrou-se
inquieto com convenções e normas que tolhessem sua criatividade. O mundo da
Todos dizem a cultura foi a saída para tal angústia. “Eu comecei com música e cheguei a fazer
mesma coisa: Escola de Belas Artes, mas não terminei não”, contou o próprio Mauricinho em
ele oxigenava uma reportagem para a TV UFG, em 2017. E foi por meio da arte, em várias de suas
expressões, que Mauricinho acabou se tornando o verdadeiro ícone de um tempo.
de cultura e
delicadeza os “Uma vez ele me contou que seu pai não gostava que ele mexesse com arte”, disse
ares pesados a O Popular, em 2016, o produtor, compositor, escritor e gestor cultural Carlos
de épocas em Brandão. “Foi uma das pessoas mais criativas desta cidade”, afirma o mesmo Brandão
que exercer a em um vídeo que está no canal de Pedro Augusto Diniz na plataforma YouTube e
liberdade era que registra a festa que Mauricinho ganhou dos amigos em 2011 para comemorar
seus 70 anos de vida. Todos dizem a mesma coisa: ele oxigenava de cultura e
um crime.
delicadeza os ares pesados de épocas em que exercer a liberdade era um crime.

“Ninguém me incentivou não. Foi vontade mesmo que eu tinha de fazer arte”,
revela ele nesta mesma reportagem da TV UFG. Uma vontade que extrapolou
fórmulas. Mauricinho ia para a rua e dela fazia seu palco para declamações de
poesia, shows musicais, performances corporais, discursos em prol do meio
ambiente e da vida, intervenções urbanas com seus trabalhos. Em um período
em que não se falava disso, foi atuante na defesa dos direitos dos homossexuais e
desafiava a sociedade conservadora com suas roupas exóticas e uma atitude que era
só dele.

Artista plástico talentoso, seu portfólio era ele mesmo. Uma verdadeira obra de
arte ambulante, que incentivava cada projeto dos amigos, prestigiava os eventos,
agitava o ambiente para obter adesão às causas da cultura e da sociedade. Desde
pequeno, porém, era um incompreendido. Annunziata Spencière, sobrinha da
musicista Belkiss Spencière, conta que sua tia “salvou” Mauricinho Hippie muitas
vezes. “Ele vinha correndo pela Tocantins e já gritando ‘Socorro, dona Belkiss’, e a
titia colocava ele para dentro de casa e espantava os moleques que jogavam pedras
nele”, recorda.

Sua atividade cultural ajudou na criação da Feira Hippie de Goiânia, que surgiu
espontaneamente na Avenida Goiás e que reunia pintores, artesãos, músicos. E lá
estavam Mauricinho e sua bicicleta. Aliás, Mauricinho estava em todo lugar, até
que um acidente na Rua 4, no Centro, em 1998, o tirou das ruas. Ele foi atropelado
com sua bicicleta por um ônibus e perdeu um pé. A prótese que passou a usar não
lhe devolveu a alegria de antes. Entrou em depressão e não mais usou suas roupas
coloridas. É melhor pensar nele sorrindo, distribuindo flores, dando vida a esta
cidade.

n
120

Weimer Carvalho
vidas
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Mauro
Borges
Um golpe em Goiás
S
aindo do Palácio das Esmeraldas, onde acabara de ser forçado a renunciar ao
cargo de governador de Goiás para o qual fora democraticamente eleito, Mauro
Borges pede calma à multidão reunida na Praça Cívica. Uma resistência armada
tornara-se inviável e um banho de sangue precisava ser evitado. Seu governo,
marcado por diversas inovações, chegava ao fim sob o peso da mão do governo
militar, que o governador aceitara, mas com o qual manteve uma relação tensa.
Com aviões dando rasantes sobre Goiânia e tropas de prontidão nos quartéis, era
hora de ceder.

A deposição de Mauro Borges em 26 de novembro de 1964 por parte do


primeiro presidente do regime militar instituído naquele mesmo ano, o marechal
Castelo Branco, é um dos momentos mais dramáticos da história política goiana,
protagonizado por uma das figuras mais proeminentes do Estado nas últimas
décadas. Filho de Pedro Ludovico Teixeira, homem que incorporou o poder em
Goiás durante 15 anos e que nesse período fundou Goiânia, Mauro conseguiu
construir seu próprio caminho, não fugindo dos embates e imprimindo um estilo
focado no planejamento de suas ações.
121

Filho e neto de políticos de destaque, esse destino parecia inevitavelmente


traçado, mas ele preferiu adiá-lo para seguir carreira no Exército. Na caserna, serviu
em postos no Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul (onde conheceu sua futura esposa,
Lourdes Estivallet) e no Paraná. Seu prestígio entre os pares de farda crescia, ao
mesmo tempo em que ampliava sua formação para a liderança em episódios de crise.
Ajudado pelo peso político do pai, conseguiu ser nomeado para a direção da Estrada
de Ferro Goyaz, em 1948. Iniciava ali sua primeira briga e surgiria seu estilo de gerir.
A deposição de
Mauro Borges A sede da companhia foi transferida de Araguari (MG) para Goiás, causando
em 26 de descontentamento entre os mineiros, mas selando a consolidação de Goiânia,
novembro de que passa a ser o ponto final dos trilhos em 1950. A decisão seria fundamental na
construção de Brasília, dez anos depois, já que um ramal foi puxado para Anápolis,
1964 por parte possibilitando mais facilidade de acesso ao Planalto Central. Não muito tempo
do primeiro depois, ele participaria do chamado “golpe preventivo”, liderado pelo Marechal Lott,
presidente do para garantir a posse do presidente eleito Juscelino Kubitschek, que desagradava
regime militar setores militares.
instituído
naquele mesmo Essa defesa da lei foi uma marca de coerência na trajetória política de Mauro
Borges. Eleito governador em 1960, no ano seguinte apoiou a chamada Rede da
ano, o marechal Legalidade, comandada por Leonel Brizola, então governador do Rio Grande do
Castelo Branco, Sul, para assegurar que o vice-presidente João Goulart assumisse a nação após
é um dos a renúncia do presidente Jânio Quadros. Sob sua administração, Goiás ganhou
momentos mais uma infraestrutura básica inédita. Seu governo foi marcado pelo planejamento a
dramáticos da longo prazo com seu notório Plano MB, inspirado no Plano de Metas de Juscelino
história política Kubitschek.
goiana “Ele fez um governo moderno. Pena que algumas coisas que deixou já
desapareceram, mas seu legado é grande para Goiás”, opina o escritor Geraldo
Coelho Vaz, que foi chefe de cerimonial do governo de Mauro. Ele estava no Palácio
das Esmeraldas quando Mauro Borges recebeu o ultimato para deixar o governo.
“Mauro não permitiu que houvesse resistência. Ele não queria sacrificar as pessoas
que o apoiavam”, explica. Soube-se, depois, que Mauro previra aquela quartelada e
até cogitou comprar armamentos para um possível sítio ao palácio, mas desistiu da
ideia.

O golpe militar contra João Goulart havia ocorrido em 1º de abril de 1964, mas
Mauro conseguira se equilibrar, obtendo até uma garantia no Supremo Tribunal
Federal de que não seria deposto. De nada adiantou diante do endurecimento do
regime. Ele e seus assessores foram perseguidos e denúncias foram fabricadas.
Com seus direitos políticos cassados, ele ficou sob estreita vigilância. Após a
redemocratização, Mauro Borges tentou voltar a ser governador, mas perdeu a
eleição de 1986 para Henrique Santillo. Morreu em 29 de março de 2013, aos 93 anos
de idade.
n
122

Wagnas Cabral
vidas
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Nabyh
Salum
De médico e fotógrafo...
A
ntônio Salum era um comerciante próspero do interior de Minas Gerais quando
chegou a Goiânia para averiguar os potenciais daquele novo mercado que nascia
com a construção de uma capital no meio do Cerrado. Hospedou-se no Grande
Hotel, na Avenida Goiás, e, por um acaso, ali mesmo se encontrou com o homem
mais importante do lugar. Pedro Ludovico logo o convidou para se estabelecer
por aqui, em seu esforço em atrair gente empreendedora para a cidade. Mostrou
ao negociante que o futuro estava sendo feito naquele instante e ofereceu uma
área a preço baixo.

O restante dessa história pode ser deduzida pelo sucesso alcançado pelos
filhos de Antônio. Um deles era Nabyh Salum, que marcaria seu nome na
história da Medicina em Goiás e ajudaria Goiânia a ser um polo reconhecido
na área. “Ele foi um pioneiro no campo da radiologia. O doutor Nabyh tem
uma importância enorme nesse sentido”, pondera o historiador Ubirajara Galli,
que auxiliou o médico a organizar e publicar um livro de memórias em 2012,
chamado Nabyh Salum: Revelações. “Ele não foi o primeiro a atuar nesse setor,
mas deu um impulso enorme.”
123

Formado em Medicina no campus da Praia Vermelha da antiga Universidade do


Brasil, atual Universidade Federal do Rio de Janeiro, o médico retornou a Goiânia
após fazer residência e especializar-se em radiologia. Com esse conhecimento
adquirido, passou a difundi-lo o quanto pôde. Ajudou a fundar a Faculdade de
Medicina da Universidade Federal de Goiás e dirigiu o Hospital das Clínicas,
chegando a concorrer ao cargo de reitor da instituição. “Ele ajudou a formar muitos
quadros em sua área”, destaca Ubirajara.

Segundo o historiador, Nabyh Salum trabalhou intensamente para que os serviços


de radiologia não ficassem concentrados apenas em Goiânia, onde ele abriu algumas
clínicas, sendo a mais famosa delas a São Matheus, no Setor Oeste. “Ele auxiliou que
A fama do
essas estruturas existissem em cidades como Rio Verde e Jataí, por exemplo.” Nabyh
rapaz que mostrou esse comprometimento com sua profissão trabalhando na fundação de
veio muito diversas entidades, como o Sindicato dos Médicos de Goiás, a Sociedade Goiana de
jovem de sua Radiologia e a Academia Goiana de Medicina.
Três Corações
para Goiânia “Ele teve uma atuação classista muito relevante”, assinala Ubirajara. “Ele ocupou
por oito mandatos a presidência da Associação Médica de Goiás e atuou bastante
era a de ser
para a construção de sua sede.” Esse terreno, que hoje abriga um gigantesco
um homem complexo empresarial e médico-hospitalar (outro projeto do qual participou), foi
obstinado, comprado por sua gestão em uma região que ainda não havia se valorizado, mas que
político, depois tornou-se uma das áreas mais nobres da capital. Seu tino estratégico o fez
inteligente e integrar-se também ao grupo que criou a cooperativa de médicos Unimed Goiânia.
planejado.
“O doutor Nabyh era amabilíssimo, um homem extremamente gentil”, elogia
Ubirajara Galli. Segundo ele, entre suas atividades estava a filantropia, que ele
praticava e não apenas pregava. “E sempre apoiou de maneira firme as causas
culturais.” Nos 36 anos em que lecionou Medicina na UFG, Nabyh Salum estimulou
que os conhecimentos de seus alunos não se restringissem a determinadas
habilidades e sim que se expandissem. Sua própria especialidade era encarada por
ele com leveza. Dizia que era um misto de medicina e fotografia.

Uma das marcas que ficaram de sua passagem foi a de ser solidário com os
colegas. Quando sabia que algum deles passava por dificuldades, tentava ajudá-lo
a resolver os problemas. Por ter essa identificação profunda com a profissão e seus
pares, tornou-se o homem a dirigir por mais tempo a Associação Médica. A fama
do rapaz que veio muito jovem de sua Três Corações para Goiânia era a de ser um
homem obstinado, político, inteligente e planejado. Nada lhe parecia impossível, não
fugia de nenhum desafio. Foram 60 anos de profissão. Morreu em 2016, aos 83 anos
de idade.

n
124

vidas
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Nelson
Piccolo
A pele que curamos
N
os momentos em que acidentes mudam dolorosa e dramaticamente a vida
das pessoas, ter algum alento faz toda a diferença. Para milhares de pessoas,
este alívio teve um nome: Nelson Piccolo. Referência mundial no tratamento
de queimaduras graves, este médico chegou a Goiás com um projeto que era
considerado um tanto louco por muitos de seus colegas. Estabeleceu-se aqui
e iniciou um trabalho inédito, que em 50 anos atendeu quase 350 mil pessoas.
Gente que estava em desespero e que, na maior parte das vezes, conseguiu
superar uma situação quase irreversível.

“Meu pai morava em Marília, interior de São Paulo, quando foi convidado
pelo Dr. Hugo Frota a se mudar para Goiânia em 1963”, conta o filho, que leva
o mesmo nome do patriarca e também é médico. Aliás, a família inteira foi
influenciada pelo Nelson pioneiro. “Seus filhos, eu, Mônica e Maria Thereza, e
agora seus netos, Ricardo, Silvia, Roberta, Nelson, Paulo e Natalia, continuam a
levar seu sonho à frente, implementando novas tecnologias e consolidando os
métodos e tratamentos estabelecidos e validados com o tempo”, contextualiza.
125

Quando se transferiu para Goiás, Nelson Piccolo já contava com certa


notoriedade por ser um dos poucos médicos de então a voltar seus esforços para
pessoas queimadas. Com esse conhecimento, abriu um serviço no Hospital das
Clínicas da UFG, algo raro no Brasil dos anos 1960. Depois de cinco anos na capital
goiana, Nelson Piccolo alcançou seu maior objetivo, criando uma unidade que se
especializasse no atendimento de emergência e tratamentos prolongados de pessoas
que tivessem porções significativas do corpo atingidas por queimaduras graves.
Depois de
cinco anos na “Ele sempre acreditou que o paciente com queimaduras deveria ser tratado
capital goiana, em uma instituição dedicada à área, com uma equipe multidisciplinar. Com essa
Nelson Piccolo intenção, através de seu pioneirismo, determinação e persistência, ele e minha mãe,
alcançou seu Emilia, abriram o Pronto-Socorro para Queimaduras em 1º de abril de 1968.” Dona
maior objetivo, Emilia, que faleceu em 2017, foi uma companheira incansável na concretização
desse sonho. Além do tratamento médico, havia a preocupação de acompanhar
criando uma socialmente as pessoas queimadas, com os cuidados que devem ser tomados nesses
unidade que se casos.
especializasse
no atendimento “Eles modificaram permanentemente o destino destas milhares de pessoas
de emergência que passaram a ter acesso especializado”, salienta Nelson Piccolo, que dirige uma
fundação com o nome do pai. Além de Goiânia, a família abriu um hospital
e tratamentos
semelhante em Brasília, sempre em busca de alternativas para que os procedimentos
prolongados médicos que realizam se aperfeiçoem. Um dos últimos resultados dessas pesquisas
de pessoas ininterruptas é o uso de peles de certos animais, como a rã, para que a regeneração
que tivessem das áreas afetadas pelos ferimentos seja mais rápida e as cicatrizes fiquem mais
porções discretas.
significativas
Procedimentos que hoje parecem simples e corriqueiros só foram consagrados
do corpo
a partir do trabalho de Nelson Piccolo. “Com o pensamento, então inusitado, de
atingidas por que o paciente com queimaduras deveria ter a sua ferida limpa e protegida com
queimaduras medicamentos tópicos adequados, ele estabeleceu o seu método de tratamento em
graves. que a ferida é completamente limpa e tratada com medicamentos que beneficiam a
evolução para a cura”, aponta o filho. Esse método evitou infecções e demoliu mitos
que pregavam o uso de toda sorte de substância para melhorar os ferimentos.

Informando e inovando, seu trabalho salvou muitas vidas e mudou culturas


arraigadas quanto às queimaduras que chegavam a ser temerárias. Trajetória que
gerou reconhecimento internacional. “Recebemos o Prêmio Tanner-Vandeput-
Boswick, oferecido pela International Burn Foundation, e a Comenda Everett Idirs
Evans, entregue pela Associação Americana de Queimaduras a um estrangeiro de
destaque mundial na área”, lista o filho de Nelson Piccolo. O pai morreu em 1988,
mas seus descendentes conseguiram manter e ampliar a importância de seu trabalho.

n
126

Simone Ala
vidas
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Neusa
Moraes
Escultora de
nossa identidade
T
rês homens seguram um grande bloco de pedra. Eles representam brancos, negros
e indígenas que ajudaram a moldar um Estado e seu povo. O Monumento às Três
Raças é o cartão-postal mais conhecido de Goiânia e revela o trabalho da escultora
Neusa Moraes, que teve grande influência nas artes plásticas em Goiás. “Ela foi um
grande exemplo pessoal e profissional. Uma referência para meu trabalho e minha
vida”, afirma o também escultor Júlio Valente, que trabalhou ao lado de Neusa por 25
anos e que manteve com ela uma relação de gratidão.

“Nós nos conhecemos quando ela foi jurada em dois concursos de que participei.
O primeiro foi na Escola Técnica Federal, onde eu estudava. O outro foi na
Casagrande Galeria de Arte”, relata o discípulo. Ele estava iniciando a carreira, com
as dificuldades inerentes dessa fase. “Eu não tinha ateliê. Foi ela quem me convidou
para dividir o espaço que tinha. A Neusa fazia suas obras no seu lado do ateliê e eu
fazia os meus trabalhos no meu canto. O gesto dela foi de muita generosidade. De
vez em quando, ela me convidava para fazer alguma obra ou encomenda, juntos.”
127

Júlio confirma que o Monumento às Três Raças – que na verdade deveria se


chamar Monumento a Goiânia – era a obra predileta da escultora. “Ela fez aquele
trabalho logo após chegar de São Paulo, onde se formou na Escola de Belas Artes.”
As grandes estátuas feitas em bronze que sustentam uma enorme pedra de granito
de 300 kg foram inauguradas no final de 1967, concebidas para simbolizar a força do
trabalho árduo na construção de uma nova cidade no meio do nada, homenageando
o trabalhador comum que fez de Goiânia uma realidade.

Sobrinha do arquiteto José Félix de Souza, Neusa Moraes foi criada pelo tio após
perder a mãe. A inspiração artística dentro de casa foi o suficiente para despertar sua
Neusa Moraes vocação para a área. Ao retornar a Goiânia depois de ganhar uma bolsa de estudos
era conhecida na capital paulista, Neusa chegou com um prestígio imenso, o que lhe valeu um
por testar convite para lecionar na Universidade Federal de Goiás. Na UFG, ajudou a formar
materiais em gerações de artistas goianos, sempre imprimindo uma marca de inquietação, seja na
sua produção. temática, seja na técnica que empregava.
Ferro,
Neusa Moraes era conhecida por testar materiais em sua produção. Ferro,
cerâmica, pau- cerâmica, pau-brasil, bronze, mogno, pedra-sabão. Nenhum elemento lhe era
brasil, bronze, estranho, de todos ela acreditava poder extrair algo a mais. “Aprendi muita coisa com
mogno, pedra- ela. Questões de perspectiva, de dimensão, de luz e sombra na escultura. Ela tinha
sabão. Nenhum muito conhecimento e sabia ensinar”, elogia Júlio. Segundo ele, o ateliê da artista
elemento lhe plástica era constantemente procurado por aprendizes que iam até lá em busca de
era estranho, informações, conselhos, dicas para seus trabalhos. “E ela atendia todo mundo.”
de todos ela Foi nesse mesmo espaço que Neusa acabou se envolvendo com uma obra que
acreditava lhe trouxe alguns desgostos. A estátua que mostra o fundador de Goiânia, Pedro
poder extrair Ludovico, sobre um cavalo e que está exposta na Praça Cívica consumiu noites de
algo a mais. sono da escultora no final de sua vida. “Eu ajudei a fazer o molde e acompanhei seu
processo de produção. Mas ainda havia retoques que a Neusa queria fazer. O molde,
que precisou ser desmembrado porque era muito grande, foi para São Paulo, mas ela
morreu um mês depois e não pôde concluir o trabalho como desejava”, diz Júlio.

Os acabamentos da obra couberam a Júlio, que sabia o que sua professora queria
fazer, mas que preferiu não interferir muito. “Havia algo a fazer no rabo do cavalo, na
mão de Pedro Ludovico, que ficou desproporcional. Mas isso só ela poderia fazer. Ela
tinha sua visão artística e isso precisa ser respeitado”, justifica o escultor. Se a cena de
Pedro Ludovico olhando o local onde Goiânia seria construída de fato aconteceu ou
não, isso tem importância menor. Se a estátua não tem a proporção ideal, paciência.
O que não se pode apagar é a importância da escultora Neusa Moraes.

n
128

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Nhanhá
do Couto
Os saraus de Nhanhá
E
m seu casarão colonial na cidade de Goiás, onde depois também funcionaria
o Fórum local, Maria Angélica da Costa Brandão recebia artistas para recitais
e saraus concorridos. A nata da cultura e da intelectualidade daqueles tempos
acorria à residência em que se respirava arte. Mas se você morasse na antiga
capital goiana naquela época, possivelmente não saberia dizer quem era Maria
Angélica. Todos a conheciam por Nhanhá do Couto. A esposa do odontólogo
Luiz do Couto Brandão foi uma figura proeminente na sociedade local e uma
pioneira em muitos sentidos.

“Nhanhá era filha de um maestro da igreja-mor de Ouro Preto, em Minas


Gerais. Ela tinha a musicalidade no DNA”, diz Annunziata Spencieri, bisneta da
musicista e que levou adiante essa tradição familiar. Uma das netas de Nhanhá
foi a também musicista Belkiss Spencieri, que teve a companhia da avó no
período que estudou piano no Rio de Janeiro. “Nhanhá e Luiz do Couto se
conheceram na igreja e se apaixonaram. Depois de se casarem, foram morar no
Rio de Janeiro, onde tiveram uma primeira filha, que morreu. Deprimido, o casal
quis vir para Goiás”, relata Annunziata.
129

Luís do Couto, que era tio da poeta Cora Coralina, também era um admirador
da boa música e fez de tudo para que Nhanhá se sentisse bem na nova cidade, o que
de fato aconteceu. Logo ela estava integrada à comunidade, promovendo eventos
culturais e agitando um pouco mais a vida artística da antiga Vila Boa. “Havia um
movimento interessante. Goiás já tinha pianos, por exemplo. Mas Nhanhá foi muito
importante para enriquecer ainda mais esse cenário”, enfatiza sua bisneta. Quando
mudou-se para Goiás, em 1901, Nhanhá contava com apenas 21 anos de idade.

Sua presença em Goiás na virada de um novo século teve grande poder simbólico.
Além de apoiar fortemente compositores locais, levou conhecimento musical a
Durante gerações que não tinham essa oportunidade até então. Fundou grupos escolares e
mais de duas pôde exercer sua outra vocação, a de educadora. Para Nhanhá do Couto, o ensino
décadas, a regular não deveria se dissociar do aprendizado no campo das artes. Um devia correr
pianista não em paralelo com o outro, complementando-se. Por isso, fez questão de expandir suas
deixou a iniciativas, levando seus saraus para outras cidades, como Vianópolis e Catalão.
vida cultural Os eventos promovidos por Nhanhá do Couto, que ela gostava de designar
da antiga como saraus artísticos, tornaram-se uma tradição na cidade de Goiás. Uma das
Vila Boa datas sagradas para essas celebrações era seu próprio aniversário. As pessoas já
parada e foi aguardavam as atrações todo dia 20 de agosto, quando a antiga capital goiana parava
fundamental em torno dos festejos na casa da aniversariante. Durante mais de duas décadas, a
para incutir pianista não deixou a vida cultural da antiga Vila Boa parada e foi fundamental
para incutir no imaginário local o amor pela música, que tantos frutos renderia
no imaginário posteriormente.
local o
amor pela A cidade ficou um tanto órfã quando Nhanhá do Couto, por questões familiares,
música, que se transferiu primeiro para Belo Horizonte e depois para o Rio de Janeiro. Sua saída
tantos frutos coincidiu com a mudança da capital goiana, que lançou a cidade de Goiás em uma
espécie de depressão, sobretudo nos campos cultural e educacional. Em 1938, ela
renderia
também se mudou para Goiânia, onde morou por 4 anos, antes de fixar residência
definitivamente no Rio, onde morreu em 1945. Sua morte, paradoxalmente, levou
muitos de seus alunos a conceber projetos em sua homenagem, reavivando a cena
artística.

Nhanhá e Luis do Couto formavam um casal à frente de seu tempo. Eles tiveram
três filhas, todas com nomes de deusas: Hebe, que se casou com um bisneto do
inconfidente Alvarenga Peixoto, Diana, mãe de Belkiss, e Ceres. Em 1980, no
centenário de nascimento de Nhanhá do Couto, O Popular entrevistou duas delas,
Diana e Ceres. “Mãezinha tinha um espírito dinâmico. Era alegre e gostava de
trabalhar junto aos jovens”, disseram. Já Belkiss revelou na reportagem o maior
sonho da pioneira. “Ela queria fundar um conservatório de música.” A neta realizou
o projeto da avó.

n
130

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Otavinho
Arantes
Tudo em nome do teatro
O
teatro entrou na vida de Otavinho Arantes quando Padre Pelágio, nos anos 1940,
o convidou a participar de peças religiosas na antiga igreja do Divino Pai Eterno,
em Trindade, sua terra natal. O bichinho da arte o mordeu e seu organismo e sua
alma transformaram-se definitivamente. Até o final da vida, em 1991, quando
foi atropelado em Brasília, onde estava atrás de verbas para seus projetos, esse
diretor, ator e produtor não abriu mão de sonhar, mesmo quando todas as
dificuldades pudessem desestimulá-lo, mesmo quando todas as circunstâncias
trabalhassem contra suas ideias.

A prova maior disso é o Teatro Inacabado, que fica nas proximidades do


Lago das Rosas, em Goiânia, uma obra a que Otavinho dedicou quase toda sua
vida. A construção, realizada com muito sacrifício e com o auxílio de diversas
iniciativas de amigos, é um emblema do teatro de resistência. Uma postura
cuja semente foi plantada nas montagens feitas com os estudantes do Liceu de
Goiânia, onde nasceu a Agremiação Goiana de Teatro (AGT). Uma forma que
Otavinho encontrou para exercitar sua arte com liberdade, pouco dinheiro e
muita vontade.
131

“O legado que ele nos deixou é muito grande. Ele é composto também pelas
pessoas que ele formou, profissionais que depois viriam a criar suas próprias
companhias, seus grupos teatrais”, contextualiza Norval Berbari, presidente da
Federação de Teatro de Goiás (FETEG). “Otavinho foi uma das maiores referências
do teatro em Goiás e ainda hoje seu nome é muito lembrado no cenário nacional.
Pessoas importantes se recordam do seu trabalho”, atesta Hamilton Amorim, que foi
diretor da Fundação Otavinho Arantes, que cuidava do maior sonho do dramaturgo.
Esse ideal O Teatro Inacabado teve sua programação aberta com a peça O Pagador de
permaneceu Promessas, de Dias Gomes, e passaria, com o decorrer do tempo, a ser um local de
após sua morte reunião, de engajamento, de fervor. “O acervo fotográfico que o Teatro Inacabado
por meio da tem mostra Otavinho com nomes de peso das artes cênicas nacionais, como
Fundação Fernanda Montenegro, Rosamaria Murtinho, Fernando Torres e muitos, muitos
mais. Esse pessoal, quando vinha a Goiânia, se encontrava com ele”, acrescenta
Otavinho
Hamilton. Certa vez, uma campanha publicitária em prol do Teatro Inacabado foi
Arantes, estrelada por Eva Wilma.
que, mesmo
com dinheiro Otavinho sempre buscou os recursos onde eles estivessem. Nos anos 1970,
escasso, convenceu o então governador Irapuan Costa Júnior a reformar o Teatro Goiânia,
conseguia joia da arquitetura da capital e que andava abandonado na época. Depois, batalhou
incansavelmente por verbas para suas montagens no Teatro Inacabado, que incluíam
manter o ações de democratização da arte e de inclusão social por meio do teatro. Esse ideal
local em permaneceu após sua morte por meio da Fundação Otavinho Arantes, que, mesmo
funcionamento. com dinheiro escasso, conseguia manter o local em funcionamento.

Na década passada, o Teatro Inacabado foi totalmente reformado e ganhou


diversos equipamentos que há muito tempo eram pedidos. Essa obra revitalizou o
lugar, mas não havia condições de manter o espaço. Ao final de várias reuniões e
negociações, um conselho deliberou que a Fundação Otavinho Arantes deveria ser
extinta e o prédio repassado para outra entidade. Esta, então, deveria continuar os
trabalhos desenvolvidos, incluindo aquele junto a moradores de rua, uma vez que o
prédio chegou a ser usado como mocó, abrigo de menores em situação de risco.

Atualmente, o Teatro Inacabado está inativo. Otavinho Arantes, que tanto esforço
despendeu para que isso não acontecesse, estaria arrasado, mas não resignado.
Não era de sua personalidade entregar os pontos, deixar por isso mesmo. Quando
fundou o Teatro Inacabado, ele retirou uma invasão do terreno, drenou a área nas
proximidades do Córrego Capim Puba, ergueu estruturas de tábua e se endividou
para concretizar o que achava certo e necessário. Enfrentou incêndios e enchentes.
Enfrentou censuras e desgostos. Enfrentou tudo e todos em nome do teatro.
n
132

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Octo
Marques
Um artista injustiçado
E
le empresta o nome ao centro cultural localizado no Edifício Parthenon Center,
no Centro de Goiânia, onde antes ficava o Museu de Arte Contemporânea.
Apesar desta homenagem, o artista plástico Octo Marques não goza do destaque
que mereceria, caindo num injusto ostracismo, dado o nível de qualidade de seu
trabalho. “A obra dele está desaparecendo”, alerta o também artista plástico Elder
Rocha Lima. M mesmo não tendo sido um amigo próximo de seu conterrâneo da
cidade de Goiás, Elder tornou-se uma das poucas vozes a se levantar em defesa
do legado do pintor.

Nascido na antiga Vila Boa em 1915, Octo foi um homem entristecido no


decorrer de uma vida cheia de criações, mas passada no quase total anonimato.
Habitante do Largo do Moreira, era uma figura conhecida na antiga capital
goiana, mas sua forma simples de se vestir e agir, além do vício no álcool, não
o levaram a frequentar altas rodas, a ser paparicado pelos mais abastados, a ser
incensado na sociedade. Isso tudo colaborou para que portas fossem fechadas e o
devido valor aos seus quadros igualmente singelos, mas de técnica apurada, não
fosse dado.
133

“Infelizmente o alcoolismo o prejudicou muito”, reconhece Elder Rocha Lima.


“Apesar de parecer muito simplório, essa imagem não correspondia à verdade. Ele
publicou livros, era um erudito. Foi um homem que pintou a ingenuidade que nos
traz um gosto muito especial. Flertou com o naïf, mas também não era exatamente
isso”, descreve. Elder se lembra de uma vez quando, ainda criança, entrou na casa
de Octo Marques e se encantou com suas telas. “Talvez aquele episódio tenha sido
definidor para que eu seguisse o caminho que segui. Fiquei maravilhado com seus
quadros.”

Trabalhos que falavam muito intimamente ao imaginário que a cidade fornecia.


Se Octo Octo Marques sabia como ninguém pintar seu casario, suas cenas bucólicas, as
pedras seculares de suas ruas, as igrejas de tanta fé e incontáveis histórias. “Ele tinha
Marques
essa ligação muito estreita com a cidade. Seu pai era compositor e sua mãe, dona
preferia se Santinha Marques, era cantora”, conta Elder, que escreveu um livro sobre seu colega
enraizar em de ofício, chamado Octo Marques: Trajetória de Um Artista. “Escrevi o livro porque
sua cidade precisava fazer algo por sua obra. Tinha esse débito com ele.”
natal, isso não
quer dizer que Parte da tristeza que Octo Marques demonstrava no semblante – e isso fica visível
quando vemos suas imagens – pode ser creditada à ausência de reconhecimento
padecesse de que teve em vida. Ainda que seus quadros remetessem a um encantamento raro,
bairrismo. Seu havia a certeza de que não era aceito em certos círculos a que um talento como o
habitat eram dele deveria dar ingresso imediato. Modesto, não procurava se mostrar na mídia.
os caminhos Isso reforçou o estereótipo de que era um homem extremamente recluso, de poucos
tortuosos que amigos, que preferia submergir em sua própria criação. Isso não parece ter sido uma
tão bem soube opção.
pintar, mesmo Se Octo Marques preferia se enraizar em sua cidade natal, isso não quer dizer que
que esse mesmo padecesse de bairrismo. Seu habitat eram os caminhos tortuosos que tão bem soube
lugar lhe fosse pintar, mesmo que esse mesmo lugar lhe fosse tantas vezes hostil. Simbolizando
tantas vezes um tipo de vida que respeita certa toada vagarosa, em que as pessoas ainda se
hostil. cumprimentam nas portas das residências, em que o homem do campo e seus
animais integram a paisagem urbana de um espaço que tantos vestígios guarda do
passado, ele produziu telas que se revelam, hoje, registros de uma Goiás que não
pode se perder.

Octo Marques morreu em 1988 e só depois de sua partida algumas das obras
que deixou começaram a se valorizar um pouco, mas ainda não o quanto merecem.
Mergulhado no vício, passou seus últimos dias solitário, convivendo com as debilidades
de um corpo que por décadas fora castigado. Sua única salvação ainda era a arte, seu
talento em estado bruto que conseguia, a duras penas, comercializar esporadicamente,
garantindo-lhe a sobrevivência. “Esses trabalhos estão nas mãos de alguns
colecionadores. É um patrimônio que precisava ser recuperado”, pondera Elder.

n
134

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Padre
Pelágio
O venerável de Trindade
U
m dossiê encaminhado ao Vaticano tenta convencer a Igreja Católica que um
religioso nascido na Alemanha, na aldeia de Hausen am Thann em 9 de setembro
de 1878, e que morreu na Santa Casa de Goiânia em 23 de novembro de 1961,
era capaz – e ainda é – de promover milagres. Os feitos realizados por Padre
Pelágio Sauter e que não encontrariam explicação científica estão sob análise,
sobretudo o caso da jovem Maria Lúcia Miranda, vítima da doença degenerativa
esclerodermia sistêmica e que teria encontrado sua cura pelas mãos do sacerdote
que viveu em Trindade.

É um processo longo e complexo, que foi iniciado em 1997 por determinação


de Dom Antônio Ribeiro de Oliveira e que tem no padre Clóvis de Jesus Bovo
seu vice-postulador. Por mais de 20 anos, ele, que escreveu uma biografia de
Pelágio, encampou pesquisas e ações para viabilizar, primeiro a beatificação,
depois a eventual canonização. Hoje com 94 anos de idade, Clóvis, em sua
empreitada, foi à Alemanha para falar com parentes do religioso, traduzindo
documentos para diversos idiomas e até providenciando exames médicos para
comprovar o pretenso milagre.
135

No imaginário popular, o reconhecimento da Igreja seria a consagração de uma


crença e de um sentimento já assumido por muitos fiéis. “Onde ele chegava, virava
uma festa”, afirmou Padre Clóvis a O POPULAR em 2010. Uma simpatia que se
transformou em comoção quando aconteceu sua morte, quase 60 anos atrás. E o
problema é justamente esse. Já faz muito tempo que o padre que viveu por 47 anos
em Goiás morreu. Já não é todo mundo que se lembra que foi ele quem consolidou a
devoção ao Divino Pai Eterno, ampliando a Romaria a Trindade.

Atendendo em Trindade e na Matriz de Campinas – naquela época, os dois


Há uma templos tinham uma ligação ainda mais estreita –, Padre Pelágio se notabilizou
expectativa pela atenção que dava a enfermos e pessoas pobres, visitando comunidades menos
grande por assistidas, promovendo campanhas de ajuda. Uma das versões é de que ele, já com 84
anos de idade, tomou uma chuva muito forte na volta de uma dessas peregrinações,
parte dos
o que teria fragilizado sua saúde. Seu corpo foi enterrado no Cemitério Santana e o
redentoristas, túmulo passou a ser ponto de reuniões de fieis que acreditavam em seus milagres.
que aprovaram
os trâmites Com tanto movimento – correu até uma história de que da terra brotava água
para levar ao capaz de curar diversos males –, decidiu-se transferir seus restos mortais para a
Vaticano o Matriz de Campinas. Em 2014, Padre Pelágio foi declarado “venerável”, uma etapa
obrigatória no processo de beatificação de um religioso. Esse ato reconhece que se
processo de
trata de um “servo de Deus”, que observou a três virtudes: fé, esperança e caridade.
beatificação de Nessa nova condição, a urna foi mudada de lugar mais uma vez, indo para a Igreja
Padre Pelágio, Santíssimo Redentor, em Trindade.
de que haja o
reconhecimento Durante todo esse tempo, não pararam de chegar relatos – alguns mais
do religioso detalhados, outros menos – de curas que são atribuídas a Padre Pelágio. Esses
testemunhos superam os 200, até agora. Há uma expectativa grande por parte dos
como beato.
redentoristas, que aprovaram os trâmites para levar ao Vaticano o processo de
beatificação de Padre Pelágio, de que haja o reconhecimento do religioso como
beato. Para chegar ao posto de santo da Igreja Católica, outro milagre, além daquele
avaliado na beatificação, precisaria ser acatado como legítimo pela Santa Sé.

Padre Pelágio foi chamado para dar a bênção nas máquinas de O POPULAR
quando o jornal mudou de sede e modernizou seu equipamento gráfico. Era uma
praxe chamar o sacerdote mais importante da cidade para tais ocasiões. Ele esteve
em alguns dos momentos cruciais da formação da cidade e foi uma das pontes mais
sólidas entre o bairro de Campinas e a outra parte de Goiânia, que orbitava em torno
da Praça Cívica. Em seu velório, compareceram cerca de 100 mil pessoas. Nunca um
religioso foi tão popular quanto aquele alemão que adotou Goiânia e Trindade para
professar sua fé.

n
136

vidas Hélio de Oliveira


narradas
pelo
POPULAR

Pedro
Ludovico
Ele refez seu tempo
O
pai, João Teixeira Álvares, era membro da Academia Nacional de Medicina. Isso
orientou a carreira do filho, Pedro Ludovico, nascido na cidade de Goiás em
1891. No início do século 20, ele foi para o Rio de Janeiro estudar a profissão que
lhe era destinada e abraçou a medicina em seu retorno a Goiás, em 1916, quando
passou a morar em Bela Vista. Mas havia um outro vírus na história e que tinha
pouco a ver com bisturis e esparadrapos. Era o vírus da política. Ao adquiri-lo, a
vida do jovem Pedro nunca mais seria a mesma. Nem a de Goiás. E ele daria vida
a Goiânia.

Casando-se com Gercina Borges, filha do senador estadual Antônio Martins


Borges, um poderoso fazendeiro do sudoeste de Goiás, Pedro se transferiu para
Rio Verde, onde fez oposição à oligarquia caiadista que dominava a política
estadual na República Velha. “A dissidência surgida em Rio Verde iria extravasar
do âmbito regional para o estadual. Não se tratava de figura de retórica a
afirmação dos oposicionistas de que estavam dispostos a combater o caiadismo,
‘em caso extremo, pelas armas’”, escreve a historiadora Lena Castello Branco no
livro Poder e Paixão: A Saga dos Caiado.
137

Entre os anos de 1924 e 1930, Pedro Ludovico liderou intensa articulação contra
o poderio dos Caiado, criando jornais que atacavam o governo e planejando ações
dentro e fora do Estado. Segundo um dossiê da Fundação Getúlio Vargas, Pedro
manteve contatos, em 1929, com líderes daquela que seria a Revolução de 1930,
como o governador de Minas Gerais, Antônio Carlos de Andrada. Quando a revolta
contra o governo de Washington Luís estourou, ele seguiu para Minas e ao retornar a
Rio Verde, foi preso. Conduzido à cidade de Goiás, o destino lhe fez uma surpresa.

Getúlio Vargas havia conquistado o poder, marchando sobre a capital, Rio de


Janeiro. Exilado, Washington Luís era a imagem do fim da República Velha. Um
Mas havia um fim que também significava o término do ciclo dos Caiado. O prisioneiro Pedro
outro vírus Ludovico tornara-se, assim, o novo líder goiano, efetivado como interventor do
na história Estado por Getúlio. Era a senha para implementar seu mais ambicioso projeto.
e que tinha Pedro tiraria a capital da cidade de Goiás, construindo uma nova. Em 1933, lançou
pouco a ver a pedra fundamental de Goiânia, após mexer minuciosamente as peças políticas no
tabuleiro.
com bisturis e
esparadrapos. Esvaziar a antiga Vila Boa de poder, ainda que fosse sua terra natal, era
Era o vírus da fundamental para Pedro Ludovico. Ele desidratava as oligarquias, que continuavam
política. Ao fortes economicamente. Escolher os arredores de Campinas para erguer Goiânia,
adquiri-lo, a preterindo Bonfim (hoje Silvânia), foi uma estratégia para não dividir o poder com
vida do jovem o então bispo Dom Emanuel Gomes de Oliveira, que havia mudado o bispado para
lá. Segundo o promotor e historiador Jales Guedes, pesquisador dos detalhes da
Pedro nunca
mudança da capital, Pedro implantou um grande personalismo em sua gestão. Ele
mais seria a era o poder.
mesma. Nem a
de Goiás. E ele E o foi por muitas décadas. O fundador de Goiânia governou o Estado até 1945,
daria vida a caindo junto com seu protetor, Getúlio Vargas. Mas logo passou a ganhar eleições
Goiânia. para o Senado, mantendo influência política e ajudando a eleger um sobrinho e um
filho para o cargo que ocupara. Um dos fundadores do Partido Social Democrático
em Goiás, só perdeu o status de cacique político quando seu mandato foi cassado
pelo regime militar, em 1968, no Ato Institucional Nº 5. Foi alvo do mesmo regime
que já havia derrubado do poder Mauro Borges, seu filho, em 1964.

A aura conquistada como fundador de Goiânia nunca desapareceu. A casa de


Pedro Ludovico, na Rua Dona Gercina Borges, no Centro, hoje um museu, era
polo de encontros políticos, de conversas e homenagens. Quando saía à rua para
ir ao cinema, uma predileção sua, Pedro era parado para ser cumprimentado. Na
garagem, ainda está seu velho Chevrolet com ares de desbravador. Faz justiça ao
dono, um político personalista, mas corajoso. Goiânia existe também por esse
destemor. Pedro, montado em seu cavalo no monumento que há na Praça Cívica,
nos lembra disso diariamente.

n
138

Ricardo Rafael

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Pompeu
de Pina
O comandante
das Cavalhadas
Q
uando mouros e cristãos se digladiavam, numa guerra santa que remetia a
combates imemoriais de uma Europa em que duas expressões de fé tentavam
se eliminar mutuamente, o bailado dos cavaleiros em azul e vermelho era
acompanhado com total atenção por alguém ansioso para que nada desse errado.
Diferente das lutas entre os exércitos de católicos e as tropas muçulmanas, esse
encontro não tinha sangue, não gerava mortes, mas, como no passado, possuía
um comandante. Ele se chamava Pompeu de Pina, o homem que estimulou como
ninguém a cultura de Pirenópolis.

“Ele acompanhava tudo o que saía nos jornais, como O POPULAR, a respeito
da cidade e de suas festas. Fazia recortes e arquivava. Boa parte desse material ele
levou para o museu que fundou, em nossa antiga casa”, relata uma de suas filhas,
Séfora de Pina. Seu principal interesse se concentrava na cultura da cidade, que
defendia com unhas e dentes. “Foram mais de 40 anos dedicados a essa causa,
metade da vida dele”, contabiliza a filha. Nessa jornada, Pompeu de Pina tornou-
139

se uma referência pelos espaços que ocupou e as iniciativas que teve.

Foi ele um dos primeiros a perceber que o patrimônio histórico do antigo


Arraial do Meia Ponte precisava de uma proteção efetiva e não apenas simbólica.
Todos sabiam da beleza e da relevância de várias igrejas da cidade, por exemplo,
construções centenárias e que contavam parte crucial da história goiana, mas
elas não estavam tombadas. Pompeu de Pina, com sua experiência de advogado e
familiarizado com as burocracias de órgãos públicos, tomou essa missão para si e
Pompeu de conseguiu que muitos desses templos religiosos ganhassem salvaguarda da lei.
Pina também
participou da Além disso, Pompeu de Pina também participou da fundação e do fortalecimento
de diversas entidades culturais em Pirenópolis, como a Academia de Letras, a
fundação e do Comissão de Folclore e a Conferência de Nossa Senhora do Rosário da Sociedade
fortalecimento São Vicente de Paulo. Muitas das irmandades religiosas da cidade, que remetem a
de diversas tradições de séculos passados, também contaram com seu apoio. Outro cargo de
entidades destaque que ocupou foi a direção do Teatro Sebastião Pompeu de Pina, o principal
culturais em da cidade e que levava o nome de um antepassado seu.
Pirenópolis,
Os Pompeu de Pina, desde o século 19, são uma das famílias mais tradicionais
como a da cidade. Um de seus patriarcas, Sebastião Pompêo (com ê) de Pina, foi intendente
Academia e juiz municipal em Pirenópolis, mas lançava um olhar todo especial para o campo
de Letras, a das artes. Ele construiu o teatro que hoje leva seu nome, após receber a doação do
Comissão de terreno por parte de Sebastião José de Siqueira, ainda em 1889. A obra demorou 12
Folclore e a anos para ficar pronta e naqueles primeiros tempos, o próprio Sebastião Pompêo se
incumbia de produzir vários dos espetáculos em cartaz, já que também era ator e
Conferência de
coreógrafo.
Nossa Senhora
do Rosário da Essa paixão pela cultura foi herdada por diversos descendentes do clã. Entre
Sociedade São seus membros, a família conta com vários cantores, escritores, diretores, artistas
Vicente de plásticos. Os museus da cidade, como o das Cavalhadas, também costumam ter
Paulo. um Pina em sua administração. “Meu pai possuía esse amor e nos ensinou a fazer,
a cuidar”, afirma Séfora, filha de Pompeu de Pina. Como se fosse uma missão dada
pelo sobrenome que carregava, ele, como a própria filha diz, “participava de tudo”.
Chegou a receber presidentes da República para conceder honrarias da cidade.

Outra paixão de Pompeu de Pina era o futebol. Ele também se dava a tarefa de
organizar campeonatos amadores em Pirenópolis. Parecia ser contra toda e qualquer
falta de movimento. Queria que a cidade vibrasse e por isso também ajudou a pensar
o Canto da Primavera, principal festival do calendário cultural local. Pirenópolis
foi crescendo, atraindo turistas por seu patrimônio e suas lindas cachoeiras e sendo
mais e mais frequentada por gente de todo o Brasil. Até o fim da vida, em 2014,
Pompeu de Pina lutou para que esse progresso não destruísse a história.

n
140

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Regina
Lacerda
Com o folclore na alma
A
palavra “pioneira” cabe bem para definir Regina Lacerda. Afinal, ela foi a pessoa
que mobilizou um número imenso de documentos, narrativas orais, costumes
populares para fazer um amplo panorama de uma riqueza, material e imaterial,
que estava se perdendo pelos rincões goianos. Em uma tese de doutorado
defendida da Universidade de Brasília (UnB), a pesquisadora Mônica Martins
da Silva destaca que essa mulher nascida nas margens do Rio Vermelho foi
fundamental para a recuperação de boa parte da memória histórica e cultural do
Estado.

De acordo com o levantamento, Regina recuperou, via uma produção escrita


sistematizada, “os primeiros trabalhos sobre o folclore de Goiás, produzidos
ainda no início do século XX, ampliando a concepção do folclore e criando
novos enredos apropriados às demandas de seu tempo”. Em outra investigação,
esta feita por Guilherme Oliveira na Universidade Federal de Goiás, é destacado
que Regina Lacerda, em livros como Papa Ceia – Notícias do Folclore Goiano,
publicado em 1968, trabalhou com pequenas notas que, unidas, compuseram um
conjunto valioso e único sobre o tema.
141

No título Folclore Brasileiro: Goiás, que foi publicado pelo Ministério da


Educação e pela Fundação Nacional de Artes, Regina Lacerda revelou as motivações
mais profundas de ter dedicado sua vida a essa área. Ela demonstrou seu intenso
interesse por compreender melhor os encontros étnicos, culturais, antropológicos
que formaram nossa sociedade, sobretudo a goiana, com seus hibridismos entre
matrizes indígena, negra e bandeirante, grupos que aqui moravam ou que vieram
explorar o território. Dessas conexões, muitas vezes nada pacíficas, surgiram ritos,
hábitos, crenças.
Ela demonstrou
Cada um desses elementos estava sob o olhar atento da folclorista, emoldurado
seu intenso por óculos de grandes aros. Regina Lacerda, personalidade conhecida de uma antiga
interesse por Vila Boa que já não era capital do Estado e que buscava respostas que pudessem,
compreender ao menos, valorizar sua herança do passado, foi central no resgate dessa narrativa
melhor os que acabara de ser desprezada. E o fazia de um modo não academicista. Gostava de
encontros investir no lúdico, na sedução da palavra e no jogo de imagens para não só repassar
suas mensagens, mas também criar identidade com elas.
étnicos,
culturais, Dessa forma, compunha poemas para descrever, por exemplo, as mulheres que
antropológicos levavam latas d’água na cabeça a caminho do Rio Vermelho, onde lavariam roupas
que formaram nas pedras. Quando publicou, em 1954, o volume de versos Pitanga: Poesias, muitos
nossa acharam que seu mote poético não trazia nada além de uma ode à natureza, um
sociedade, deslumbramento com o meio ambiente. Na verdade, era um ensaio para alcançar o
verdadeiro objetivo, que ficou mais evidente com Vila Boa: Folclore, livro que saiu
sobretudo
em 1957 e inaugurou seus estudos mais sólidos daquele universo que a cercava.
a goiana,
com seus Quando essa obra foi reeditada, em 1977, ampliada e atualizada e já com o título
hibridismos Vila Boa: Folclore e História, Regina Lacerda era uma autora mais madura e se
entre matrizes tornara referência nos estudos da área. Sua maior virtude talvez tenha sido a de não
indígena, negra ceder a voz apenas a quem já a detinha, mas também a personagens comumente
desprezados, como mulheres pobres e negras. Esses poços de sabedoria tinham
e bandeirante
muito a dizer sobre nossas tradições, mas jamais haviam sido ouvidas. Regina não
as ignorou. Pelo contrário, as valorizou e, com isso, construiu uma obra múltipla,
diversa e inédita.

Nas cantorias goianas, Regina Lacerda encontrou valiosos traços de memórias


já quase apagadas. Na culinária, identificou matizes de origens praticamente
desconhecidas. Nas rezas e festas, extraiu o que havia de mais genuíno no povo.
Uma das fundadoras da Comissão Goiana de Folclore, fez esforços para popularizar
esses debates. Personagens deixaram de ser exóticos para ganharem encantamento e
relevância, sem preconceitos. Nascida em 1919 e falecida em 1998, Regina Lacerda
percorreu o século 20 nos mostrando que o presente e o passado estão unidos.

n
142

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Rosarita
Fleury
A mulher que nos uniu
A
inda jovem, Rosarita Fleury se dirigia a uma casa na cidade de Goiás, onde
repetia o bater de teclas em velhas máquinas de escrever: ASDF, ASDF, ASDF.
Primeiro com a mão esquerda, depois com a direita, ela ia ganhando destreza
na arte de escrever por meio da datilografia em um curso oferecido na antiga
capital goiana por dois irmãos, Joaquim e Jaime Câmara. Filha de Heitor
Moraes Fleury, que viria a ser o primeiro juiz de Direito de Goiânia, a menina
ia tomando cada vez mais intimidade com a palavra, aquela que seria sua
companheira de toda a vida.

A mesma palavra que fez desta mulher nascida em 1913 uma pioneira na
literatura goiana, abrindo espaços antes fechados. “Quando era criança, ela
gostava das histórias de tempos passados contadas pelos velhos ex-escravos, tias
e avós; aprendeu modinhas antigas tocadas e cantadas por seus pais. Inteligente
e observadora, trocou cedo as brincadeiras pelo livro”, informa a filha da autora,
Maria Elizabeth Fleury Teixeira. O sonho de ser escritora estava ali, mas era cedo
para realizá-lo. Rosarita veio estudar no Colégio Santa Clara, em Campinas, antes
da construção de Goiânia.
143

Quando voltou a Goiás – época das aulas de datilografia –, estudou também


piano, pintura e artes domésticas. Essa segunda temporada na antiga Vila Boa
terminou quando toda a família veio morar em uma Goiânia com apenas dois
anos de existência. “Rosarita abraça Goiânia com a força de sua alma poética. O
isolamento, a tristeza, a saudade, o desamor, tudo a incentiva a escrever, poetar e
sonhar sempre. Fez da poesia e literatura seu objetivo maior de vida”, afirma a filha
Beth. “Ela, com sua alma poética, buscava nas horas vazias e insípidas a inspiração
para seus versos”, acrescenta.

Em Goiânia, Rosarita encontrou companhia e identificação em um grupo que


se formou em torno da então primeira-dama do Estado, Dona Gercina Borges.
O sonho de “Rodeava-se de amigos e amigas do ‘bando da alegria’. Idealizou saraus, apoiou Dona
ser escritora Gercina em encontros beneficentes, festas juninas e daí surgiu a Santa Casa. Criaram
estava ali, o clube cultural ‘Que me importa?’. Fizeram o Baile do Livro, arrecadando 78
mas era cedo volumes e uma estante, início da primeira Biblioteca, no Departamento de Imprensa
para realizá- e Propaganda, dirigido por Joaquim Câmara Filho”, assinala Beth.
lo. Rosarita
Depois de se casar com o primo Jerônimo Augusto Fleury Curado, Rosarita
veio estudar ficou onze anos longe de Goiânia, período em que morou em diversas cidades.
no Colégio Nesse tempo, não deixou que sua imaginação literária morresse. Pelo contrário, ela
Santa Clara, a amadureceu. “Com três filhos pequenos, resolveu colocar no papel toda a história
em Campinas, que conseguira idealizar com suas leituras e experiências. Surgiu o livro Elos da
antes da Mesma Corrente, que, lançado em início de 1958, ganhou o Prêmio Julia Lopes de
Almeida, da Academia Brasileira de Letras, em 1959”, ressalta a filha.
construção de
Goiânia. Aquela foi a primeira vez que um escritor de Goiás foi agraciado com um
prêmio da ABL. Sessenta anos depois, o romance ainda é considerado um dos mais
relevantes já escritos em Goiás, o que deu prestígio a Rosarita para levar adiante seus
projetos. Um deles foi a criação, em 1969, da Academia Feminina de Letras e Artes
de Goiás (Aflag), ao lado de nomes como Nelly Alves de Almeida e Ana Braga. O
prédio que sedia a instituição ganhou o nome de Rosarita, que em 1983 lançou outro
livro de destaque, o romance Sombras em Marcha: A Vivência da Fuga.

Autora do livro de memórias Rosarita Fleury – Minha Mãe, Beth Fleury chama
a atenção para uma coincidência. “O dia 14 de março, Dia da Poesia, marca a
passagem da minha mãe para sua vida espiritual. Escolha dela ou foi o destino a
lhe pregar uma peça, justo no dia que sempre comemorou em alegres encontros
poéticos na Aflag?”, cogita. No Dia da Poesia de 1993, Rosarita partia deixando um
legado importante. Em seu romance mais famoso, ela mostra que o universo rural e
o da aristocracia são, em última análise, “elos da mesma corrente”. Estamos, enfim,
todos ligados.

n
144

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Santa
Dica
Uma santa polêmica
“P
odemos falar de Santa Dica em dois aspectos principais. O mais evidente deles
é seu lado místico. O outro é o diferencial de que foi uma mulher que, vivendo
no tempo em que viveu, conseguiu ser muito ativa, até mesmo na política.” O
jornalista Márcio Venício, repórter e apresentador da TV Anhanguera, fala com
propriedade sobre uma das figuras mais surpreendentes da história goiana.
Produtor e diretor do documentário Santa Dica, ele envolveu-se totalmente na
narrativa de uma trajetória de vida improvável e que, mesmo hoje, é cercada de
alguns mistérios.

Tudo começou na Fazenda Mozondó, a cerca de 40 km de distância de


Pirenópolis, onde Benedita Cipriano Gomes nasceu em 1903. Nesse mesmo
lugar, quando contava apenas 7 anos de idade, uma doença a levou à beira
da morte. Sua recuperação, considerada milagrosa, iniciou um mito, que foi
reforçado na década de 1920. Pouco mais de uma adolescente, ela ganhou a
alcunha de santa e passou a exercer influência na região. “Eram verdadeiras
romarias. Há poucos registros confiáveis, mas calcula-se que até 20 mil pessoas
tenham chegado a se reunir naquele povoado”, diz Márcio.
145

Em seu centro de atendimento, Dica dizia receber auxílio de entidades para curas
e rituais. “Mas ela não era uma espírita kardecista”, explica o documentarista. “Ela
tinha transes que impressionavam muita gente.” Aquele movimento messiânico
passou a incomodar poderosos de então. Coronéis e chefes políticos viam em Santa
Dica um obstáculo e até mesmo uma ameaça. “Era muito perto de Pirenópolis
e de Jaraguá, que tinham força política grande”, contextualiza o jornalista. Uma
campanha difamatória contra a curandeira foi iniciada, em que todas as armas eram
válidas.

“As romarias que iam para Lagolândia, o povoado onde Santa Dica atendia,
chegaram a rivalizar com a romaria de Trindade. Isso contrariou a Igreja, que não
poupou ataques à benzedeira. Cheguei a achar uma edição de um informativo
O governo de católico com ofensas pesadas contra ela”, relata Márcio Venício. Com tantos inimigos
Brasil Caiado influentes, o inevitável aconteceu. O governo de Brasil Caiado mandou tropas
mandou tropas sitiarem o povoado. Parentes e colaboradores de Dica se prepararam para a guerra.
sitiarem o Bastou um disparo para que houvesse o ataque, que deixou, oficialmente, três vítimas
povoado. letais.
Parentes e
Aquele que deveria ser o fim da mulher mais poderosa do Estado naquela época
colaboradores ajudou, na verdade, a alimentar as lendas em torno dela. O povo repete até hoje
de Dica se a história de que as balas direcionadas a Santa Dica ricocheteavam sem acertá-la.
prepararam Ela teria o corpo fechado. Outra versão jura que boa parte dos seguidores da líder
para a guerra. messiânica fugiu porque, com seus poderes, ela teria colocado uma sucuri de vigia
Bastou um no ribeirão nos fundos de seu refúgio para que os soldados não pudessem perseguir
disparo para os inimigos. Ela mesma, porém, acabou presa, mas não por muito tempo.
que houvesse “Ela foi encarcerada na cadeia de Goiás, onde hoje é o Museu das Bandeiras,
o ataque, mas quando saiu, conheceu o jornalista Mário Mendes, que a afastou daqui por
que deixou, um tempo. Ela, porém, voltou para cá e começou a ter, aí sim, grande influência
oficialmente, política”, narra Márcio. “Em 1932, ela chegou a formar um destacamento para lutar
três vítimas na Revolução Constitucionalista de São Paulo. Daí por diante, em razão da aura que
manteve, era muito procurada por políticos do Estado que iam atrás de seu apoio.
letais.
Atesta-se que até Juscelino Kubitschek reuniu-se com ela certa vez”, acrescenta.

Nos anos 1960, mudou-se para Goiânia, onde morreu em 1970. “O centro
que ela fundou continuou a funcionar.” Márcio Venício, em seu documentário,
entrevistou uma das filhas de Dica. “Eu havia visitado Lagolândia no domingo e
na segunda peguei uma pauta trivial em Goiânia. Quando cheguei à casa da fonte
que entrevistaria, vi a mesma foto de Dica que havia visto no centro. A mulher se
apresentou como filha dela e disse que aceitaria colaborar porque sua mãe a havia
autorizado a fazer o filme. É meio inexplicável, né?” Mais um mistério na conta de
Santa Dica.
n
146

Lailson Duarte
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Seu
Donca
Andarilho da natureza
“S
eu pai foi para Aruanã”, disse dona Verônica Xavier Vieira para uma filha. A
resposta que recebeu a deixou atônita. “Sim, veio a pé.” O ano era 1990 e Antônio
Firmino de Lima, o seu Donca, não se fez de rogado e cumpriu cerca de 320
quilômetros, sozinho, caminhando pelas estradas, fazendo o trajeto que passa
pela cidade de Itapirapuã. “Nessa primeira vez, ele foi sem estrutura alguma. E
também não avisou ninguém que ia fazer isso. A gente só ficou sabendo quando
ele chegou lá”, conta a mulher que ficou casada com esse pioneiro por 48 anos, até
seu falecimento.

Seu Donca morreu aos 74 anos, em 2003. “O mais espantoso é que ele foi
enterrado no dia 5 de junho, exatamente o Dia Mundial do Meio Ambiente”,
aponta Francisca Rocha Ferreira, uma de suas filhas. A família sente orgulho pela
iniciativa que o pai criou e que se transformou em um dos projetos ambientais
mais conhecidos de Goiás. A sua ida a pé a Aruanã, cidade em que morou e que
amava, passou a ser anual. Em 1990, ele levou 3 dias e meio para percorrer o
trajeto. “Ele repetiu em 1991, indo agora por Faina e Araguapaz. Nesse ano, já
teve uma mudança”, relata a filha.
147

“O jornal O Popular ficou sabendo de suas caminhadas até Aruanã e colocou uma
kombi para acompanhá-lo, fazendo assim a cobertura da peregrinação. Em 1992, já
havia toda uma estrutura, com nutricionistas e tudo. Um amplo destaque foi dado e
assim nascia a Caminhada Ecológica”, retoma Francisca. Seu Donca ganhou não só
notoriedade, como também muita companhia. Várias pessoas passaram a querer ir
com ele, participar dessa empreitada que nasceu despretensiosamente. Uma seletiva
foi organizada para escolher o grupo que comporia a caravana.

O sentido da Caminhada Ecológica é mostrar, ano após ano, durante a temporada


O sentido da de férias do Rio Araguaia, como o meio ambiente vem sendo degradado ao longo
Caminhada do tempo. Os participantes, ao passarem pelas cidades, vão distribuindo material
de conscientização, mobilizando as comunidades em torno da importância da
Ecológica é
preservação da natureza. Ao mesmo tempo, registram as depredações e crimes
mostrar, ano ambientais que encontram pelo caminho, como desmatamentos e queimadas. Os
após ano, animais mortos, geralmente atropelados nas rodovias, também são expostos.
durante a
temporada Até 1998, seu Donca permaneceu firme no projeto, indo, já com quase 70 anos
de férias do de idade, até sua querida Aruanã com a Caminhada. “Ele foi um aventureiro que
adorava a natureza”, descreve Francisca. “Quando tinha 27 anos de idade, ele chegou
Rio Araguaia,
a Aruanã. E chegou justamente descendo o Rio Araguaia de barco. Naquela época, o
como o meio rio era navegável. Ele vinha da Amazônia, onde chegou a ser seringueiro no meio da
ambiente floresta”, acrescenta. Seu Donca, porém, não nasceu na região Norte. Sua terra natal
vem sendo era o Sítio Pocinhos, na cidade de Tabira, sertão pernambucano.
degradado ao
longo do tempo. A experiência com as Caminhadas Ecológicas transformou seu Donca em um
símbolo. Essas vivências foram registradas em quatro livros: Meus Caminhos e Meu
Viver, Meus Novos Caminhos, História de Xinguara e Seus Pioneiros e Andarilhos da
Natureza. Testemunhos que falam de sua devoção pelo meio ambiente e denotam a
importância de tratar o assunto sistematicamente. “Ele tinha pouco banco de escola,
mas era muito culto. Tinha a sabedoria que a vida lhe deu”, alega a filha.

Quem olhasse para seu Donca poderia achar que era um homem até certo ponto
frágil. Grande engano. Além da Caminhada Ecológica, ele, literalmente, andou
por outras bandas. “Durante 12 anos, participou da Corrida de São Silvestre”,
revela a viúva Verônica. “Tivemos 7 filhos, 6 deles se criaram. Depois que Donca
morreu, comecei a ter netos e bisnetos”, anuncia, orgulhosa. O homem que iniciou
a Caminhada Ecológica também teria o mesmo sentimento se aqui estivesse. Um
orgulho que também sentiu todas as vezes que calçou seu tênis e rumou a pé para
Aruanã.

n
148

vidas Fábio Lima


narradas
pelo
POPULAR

Siron
Franco
Eterna Revolução
de Si Mesmo
“A
primeira vez que estive nas páginas de O POPULAR foi ali por 1966, 1967,
quando eu desenhava para o jornal o personagem Zorro.” As lembranças de Siron
Franco em relação ao veículo de comunicação que nunca deixou de acompanhar
sua carreira datam de uma época em que o artista plástico era apenas um
adolescente, dando os primeiros passos em sua arte. “Depois, fazia retratos de
pessoas da sociedade para a coluna social da Maria José”, recorda, lembrando-
se de uma das jornalistas que ajudaram a estabelecer esse espaço na imprensa
goiana. “Pô, faz muito tempo.”

É, Siron, faz muito tempo. Mas esse tempo também transformou os sonhos do
rapazote nascido na cidade de Goiás e criado no Bairro Popular, em Goiânia, em
realidade. Reconhecido nacional e internacionalmente por seus trabalhos, Siron
Franco é grato aos estímulos recebidos naquela época. Época em que conheceu
Célia Câmara – esposa de Jaime Câmara –, mecenas e articuladora cultural
que fez história. “Ela teve um papel muito importante para toda uma geração.
149

E O Popular esteve sempre conosco. Em 1968, ele noticiou meu primeiro prêmio,
conquistado na Bahia”, relembra.

Quatro anos depois, em seu Suplemento Literário, O POPULAR dedicou


uma ampla reportagem ao trabalho do jovem Siron Franco. “O artista precisa
acreditar em sua realidade”, dizia ele. Um lema que levou para toda sua trajetória.
Combativo, ostentou bandeiras muito antes de se tornarem palavras da moda. No
meio ambiente, falou, por meio de suas telas e esculturas, da devastação do Cerrado.
No campo dos direitos humanos, denunciou o extermínio da cultura indígena e a
No meio violência urbana. Cerrou fileiras contra o preconceito gerado pelo acidente com o
ambiente, Césio-137, em Goiânia.
falou, por meio
de suas telas Em sua opinião, é impossível não vincular a arte com a sociedade, em seus
desafios, suas mazelas e suas virtudes. “Hoje, por exemplo, vivemos um período
e esculturas, de trevas. Houve um retrocesso. Falta mobilização contra isso”, alega. “Eu conheci
da devastação grandes pensadores deste País, convivi com gente do porte de Darcy Ribeiro e tantos
do Cerrado. outros. Hoje não há mais pessoas assim. Nunca vi este País como agora. Falta o tripé
No campo básico: educação, saúde e justiça”, critica. Opiniões que são a cara de um homem que
dos direitos nunca se furtou a participar do debate, nem sempre com intervenções populares.
humanos,
Provocar, aliás, é parte de seu perfil. Sua arte é, por essência, incômoda, levando a
denunciou o refletir sobre questões não muito fáceis. Ao longo da carreira, em grandes exposições
extermínio ou em instalações colocadas em espaços públicos, Siron se posicionou como alguém
da cultura que tem o que dizer e merece ser ouvido. Algumas de suas séries ficaram notórias
indígena e pelo poder de traduzir inquietações, desejos, medos e esperanças. Na série Césio,
a violência mostrou o horror da radiação e a dor de suas vítimas. Na série Peles, abordou a
urbana. sensualidade de corpos e texturas. Em Fábulas do Horror, o terror é o grande mote.

Aos 74 anos de idade, todas essas fases daquele que é o artista plástico goiano
mais conhecido e prestigiado na atualidade foram registradas pelas páginas do
jornal que, ele mesmo reconhece, integra sua vida profissional e pessoal. “A arte em
Goiás produziu gente de grande talento no decorrer do tempo e O POPULAR teve
muito a ver com isso, sempre incentivando todos nós”, elogia. Artista cuja marca
maior é a inovação formal, Siron Franco é múltiplo. Uma de suas produções mais
representativas é a série de quadros Metamorfoses. Mudar para sobreviver.

Desde a conquista de um prêmio na Bienal de Arte de São Paulo, em 1975,


que lhe deu a possibilidade de morar e aprimorar sua técnica no exterior, o nome
Siron Franco não deixou mais de figurar entre os mais destacados da arte brasileira
contemporânea. Suas obras já estiveram nos principais museus do País e em alguns
templos sagrados da arte no exterior. Seu refúgio, porém, continua a ser o famoso
ateliê que montou em Aparecida de Goiânia, onde experimenta e cria. Um processo
ininterrupto, profícuo, compromissado com a revolução de si mesmo.

n
150

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Taylor e José Modesto


Oriente / Olavo e
Othelo Tormin
Dom Quixotes dos livros
D
uas histórias se confundem e se complementam no cenário da literatura em Goiás
a partir dos anos 1950. Uma é a da Editora Oriente, liderada por dois irmãos
idealistas e amantes da cultura, Taylor e José Modesto. Eles fundaram um selo
editorial que teve enorme impacto na produção literária do Estado. A outra é a do
Bazar Oió, a livraria que marcou época em Goiânia a partir de 1951, sendo um
verdadeiro point intelectual da jovem capital do Estado, então com 18 anos de
idade. À frente deste espaço estavam outros dois irmãos, Olavo e Othelo Tormin.

Essas duas iniciativas possibilitaram que a cena literária na cidade conhecesse


um período de ouro, em que grupos de escritores contavam com apoio, mesmo
com todas as dificuldades inerentes à área, para produzir e divulgar seus trabalhos.
“Os irmãos Oriente, na valentia, foram os precursores da indústria artesanal do
livro em Goiás. Eles trouxeram a linotipo para cá e foram desbravadores de uma
política editorial e do comércio do livro no Estado”, assegura o escritor e jornalista
151

Gabriel Nascente, que conviveu com Taylor e José Modesto por muitos anos.

O primeiro livro de Gabriel, Os Gatos, de 1966, foi publicado pela Editora


Oriente. Para o poeta, estar naquele momento junto aos amigos foi um privilégio.
“Eu acompanhava aquilo tudo de muito perto. Eles faziam os livros em um barracão
na esquina da Rua 82 com a Av. 85, na Praça Cívica, nos fundos de onde hoje é o
Instituto Histórico e Geográfico de Goiás”, rememora. Uma biblioteca foi montada
no local em homenagem aos dois. “Eles morreram precocemente em um período
muito curto entre um e outro. Com eles morreu todo aquele projeto”, lamenta o
escritor.
O Bazar Oió
marcou seu Os mais de 300 títulos que levaram o selo da Editora Oriente foram
tempo ao se comercializados no Bazar Oió, que ficava no coração do Centro de Goiânia, perto da
tornar o lugar Praça do Bandeirante. “Ali eles promoviam lançamentos, saraus. Jorge Amado veio
onde, em a Goiânia e lançou livro lá. José Mauro de Vasconcelos autografou a obra Meu Pé
meados dos de Laranja Lima no Bazar Oió. Membros da Academia Brasileira de Letras vinham
à cidade e lançavam seus livros lá. Antes, o lugar do escritor era a livraria e o Bazar
anos 1950, Oió cumpriu esse papel. Era o grande salão do glamour literário em Goiás”, define
Bernardo Élis Gabriel.
autografou
os primeiros A perseguição da ditadura militar desestimulou Olavo Tormin, que estava na
exemplares vanguarda do negócio da livraria, a continuar seu trabalho de formiguinha na área.
do volume de Na obra Bazar Oió, A Ditadura Contra a Livraria, Lúcia Tormin Mollo, neta de
Olavo e que defendeu uma dissertação de mestrado na Universidade de Brasília
contos Ermos (UnB) sobre a história da livraria, conta vários desses episódios, sobretudo as
e Gerais, obra- dificuldades que seus avós enfrentaram para suportar a pressão dos militares que
prima que viam o lugar como uma espécie de antro de subversivos.
tanta influência
exerceria na O Bazar Oió marcou seu tempo ao se tornar o lugar onde, em meados dos anos
literatura 1950, Bernardo Élis autografou os primeiros exemplares do volume de contos Ermos
e Gerais, obra-prima que tanta influência exerceria na literatura brasileira. Já em
brasileira. 1965, a livraria sediou a estreia na literatura de Cora Coralina, que apresentava
ao público seu primeiro livro, Poemas dos Becos de Goiás e Estórias Mais. “Eles
editaram o primeiro informativo cultural da cidade, o Jornal Oió”, lembra Gabriel
Nascente. A primeira edição, em 1957, anunciava a morte da poeta Gabriela Mistral.

A Editora Oriente e o Bazar Oió nasceram de utopias e pereceram diante de


realidades duras. A livraria, durante o regime militar, foi muito estigmatizada. Pensar
era muito perigoso naqueles tempos. Acabou fechando as portas em 1974. Já o selo
editorial sucumbiu diante do próprio temperamento dos irmãos Oriente. “Eles
tinham uma boemia literária intensa. E a administração era, digamos, quixotesca”,
compara Gabriel Nascente. Ficaram os livros, ainda encontrados em sebos, de
autores como José Godoy Garcia, Marieta Telles Machado, Maria Helena Chein...

n
152

Weimer Carvalho
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Tia

Ela conhecia cada
palmo de Goiás
“Q
uando Goiás ganhou o título de reconhecimento de Patrimônio da Humanidade,
foi uma gritaria por todo lado. A gente aqui na pousada gritava tanto de alegria.
Tinha foguetes pela cidade inteira, os sinos de todas as igrejas tocando. Foi uma
beleza.” Esta era uma das memórias mais preciosas de Antolinda Borges, mais
conhecida como Tia Tó. Poucas figuras foram tão conhecidas na antiga Vila Boa
quanto Tia Tó. Ela parecia onipresente naquelas ruas de pedra, entre os casarios
de fachada colonial e quintais a perder de vista. Onde se ia na cidade de Goiás,
alguém dava notícia dela.

Essa popularidade se deveu a uma intensa atividade na antiga capital goiana.


A conquista do título de Patrimônio da Humanidade, concedido pela Unesco,
foi apenas um dos momentos em que a biografia daquela mulher que chegou aos
89 anos de idade se confundiu com a história do lugar em que passou a morar
quando tinha apenas 4 anos. “Eu nasci em Itaberaí, mas vim para cá muito cedo.
E não sei o que me faz ter esse amor todo pela cidade, mas eu tenho. Quando fico
153

dois ou três dias fora, já é sofrimento. Digo que as pedras de Goiás são os filhos que
eu não tive”, revelou, em 2018.

Tia Tó chegou a Goiás em um momento traumático para a antiga sede do poder


estadual. O ano era 1936 e a cidade penava com a perda de prestígio, de recursos, de
quase tudo. A transferência da capital para uma Goiânia em construção estava em
pleno vigor e eram muitas as pessoas que abandonavam a terra de tantas tradições
para tentar a sorte e correr atrás de oportunidades nas proximidades de Campinas,
lugar escolhido por Pedro Ludovico para concretizar seu maior projeto. A família de
Com Antolinda Borges trilhou o caminho inverso.
personalidade
forte e espírito “Goiás foi muito massacrada naqueles tempos. A mudança da capital foi terrível
em vários sentidos. A cidade começou a ser menosprezada e isso demorou bastante
inegável de
para mudar”, analisava Tia Tó. Ela participou ativamente da luta para reverter
liderança, esse quadro. Com personalidade forte e espírito inegável de liderança, foi uma
foi uma das das articuladoras para fazer da Procissão do Fogaréu, ritual da Semana Santa que
articuladoras recolocou Goiás no mapa nacional das celebrações, uma atração religiosa e turística.
para fazer Ela costumava organizar os farricocos no Quartel do 20 e até passar a ferro seus
da Procissão trajes coloridos.
do Fogaréu,
Esse empenho vinha de longe. Ainda nos anos 1950, Tia Tó comemorou o
ritual da tombamento da cidade de Goiás como Patrimônio Histórico e Artístico Nacional.
Semana Santa Essa medida foi um divisor de águas, já que possibilitou uma maior presença de
que recolocou órgãos de preservação por lá e protegeu centenas de imóveis de uma destruição
Goiás no mapa quase certa. “Ali começou esse processo de revitalização de Goiás, mas ainda bem
nacional das devagar”, lembrava. Tia Tó reconhecia que só no final da década de 1990, sua amada
Goiás ganhou mais corpo para romper o novo século como uma joia do passado
celebrações.
cravada no Cerrado goiano.

Iniciativas como a criação do Festival Internacional de Vídeo e Cinema


Ambiental, o Fica, festivais literários e gastronômicos, apresentações de concertos
de câmara e de música sacra nas igrejas centenárias, obras de recuperação de locais
históricos, mudança na iluminação pública e campanhas de divulgação das belezas
locais fizeram toda a diferença. Além disso, a fama nacional da poeta Cora Coralina
e sua charmosa Casa da Ponte, a revitalização de museus e o apoio a festejos, como o
Carnaval de Marchinhas, deram maior movimento às ruas estreitas de Vila Boa.

Tia Tó, de maneira mais clara ou mais discreta, esteve presente em cada uma
dessas ações. Até o final da vida, ela não parou, participando da organização dos
eventos que marcaram os 20 anos da conquista do título da Unesco. Por muito
tempo administrou o Museu da Boa Morte, que abriga o maior número de obras do
artista plástico Veiga Vale, e comandou uma pousada. Seu olhar também permanecia
atento. Em junho de 2021, ela estava em Goiânia para tratar problemas cardíacos,
quando sofreu um AVC. Internada na UTI de um hospital da capital, morreu dois
dias depois.

n
154

Sebastião Nogueira

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Toniquinho
de Jataí
A pergunta que
fundou Brasília
“J
á que Vossa Excelência está anunciando o propósito de cumprir integralmente
a Constituição, queria saber se, eleito fosse, construiria a capital do Brasil no
Planalto Central, conforme nela consta.” Lá do meio da multidão, a voz se
levantou. Lá em cima do palanque, o candidato a presidente estacou. E agora, o
que responder? Dizer que não construiria e desmentir-se na frente do povo sobre
uma promessa que acabara de assumir? Ou manter-se firme e encarar um dos
maiores desafios que um chefe da nação poderia enfrentar em seu mandato?

Os destinos de Antônio Soares Neto, um jovem que acabara de se formar


em Direito, e Juscelino Kubitschek de Oliveira, o ex-governador de Minas
Gerais que se propunha a administrar o Brasil, se encontraram no dia 4 de abril
de 1955. JK viera a Goiás abrir oficialmente sua campanha à Presidência da
República e escolheu Jataí para sediar o primeiro comício. “Todos discursaram
e depois houve o momento em que ele abriu as perguntas para o povo. Por uma
155

inspiração feliz, acredito eu, resolvi fazer a pergunta”, relatava Antônio, conhecido
como Toniquinho de Jataí.

“Eu havia acabado de estudar Direito aqui em Goiânia e havia lido muito a
Constituição. Resolvi então perguntar sobre a transferência da capital, que estava
prevista na lei. Quando fiz a pergunta, percebi que Juscelino se assustou, ficou meio
surpreendido. Mas logo depois ele respondeu que sim, que daquele momento em
diante a construção da nova capital seria um de seus objetivos principais, caso fosse
eleito”, recordava Toniquinho, um ano antes de morrer, em 2019, aos 94 anos. JK,
várias vezes, relatou essa história, ainda que historiadores relativizem a importância
do episódio ocorrido.
Juscelino
assumiu essa No livro Brasília Kubitschek de Oliveira, o historiador Ronaldo Costa Couto
missão como sugere que JK já havia tomado a decisão de transferir a capital para o centro do País
candidato e a antes de chegar a Jataí. A ideia já estaria entre as cogitações de Juscelino quando
designou como ele foi deputado constituinte em 1946. A Carta Magna que sai desse parlamento é a
que estabelece que a transferência, planejada desde os primeiros anos da República,
“meta-síntese”,
quando para cá veio a Missão Cruls, com o objetivo de delimitar o quadrilátero em
dentro de seu que seria situado o Distrito Federal, era uma obrigação constitucional.
conhecido
Programa de Os então constituintes JK e Israel Pinheiro (que comandaria as obras de Brasília),
Metas. Foi uma além de parlamentares goianos (entre os quais estava Pedro Ludovico), teriam
decisão ousada articulado a inclusão da exigência dessa transferência na Constituição, mas sem
estabelecer prazos. Juscelino assumiu essa missão como candidato e a designou
e que teria
como “meta-síntese”, dentro de seu conhecido Programa de Metas. Foi uma decisão
deixado seus ousada e que teria deixado seus próprios aliados surpresos e desconfortáveis, já que
próprios aliados eles mesmos temiam que aquela atitude afundaria o governo.
surpresos e
desconfortáveis O ex-presidente, porém, sempre referendava a versão de Toniquinho, de que
teria sido a pergunta em Jataí que mudara seu programa de governo, nunca tendo
confirmando a hipótese de que anunciaria a mudança do centro do poder federal
independentemente do que aconteceu no comício na cidade goiana. “No dia da
inauguração de Brasília, eu fui e me apresentei a JK, lembrando-o sobre a pergunta
que fiz. Ele me chamou para cima do palanque, me recebeu muito bem e eu o
acompanhei em várias solenidades da inauguração”, repetia Toniquinho.

Funcionário do Fisco estadual, Toniquinho, que nasceu em Jataí, tornou-se uma


espécie de celebridade nacional com o ocorrido. Quando JK foi candidato a senador
por Goiás, eles se reencontraram. “Eu me tornei seu cabo eleitoral. E com muito
orgulho”, atestava. “Juscelino era um homem humilde, havia nascido em uma família
pobre e sabia o que era enfrentar dificuldades. Eu só guardo lembranças boas dele,
não só daquele dia em Jataí”, garantia Toniquinho, pai de 5 filhos e avô de…. “Ih, já
passam dos 10 netos. Vou precisar contar”, admitia o avô que fez história.

n
156

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Veiga
Valle
Embaixador do
barroco em Goiás
O
s salões da antiga Igreja da Boa Morte, hoje transformada em um dos museus
mais visitados da cidade de Goiás, estão povoados de grandes estátuas de
madeira e gesso atribuídas a um artista plástico sobre o qual paira uma aura de
mistério. Ele é José Joaquim da Veiga Valle, que nasceu em Pirenópolis, viveu
entre os anos de 1806 e 1874 e por muito tempo foi quase um anônimo. As obras
sacras que teria esculpido eram conhecidas, mas não ganhavam a devida atenção,
espalhadas em altares de igrejas de Goiás e Mato Grosso. Isso começou a mudar
em 1940.

Neste ano, o pintor carioca João José Réscala redescobriu Veiga Valle como
um dos grandes expoentes do que a crítica especializada chama de barroco
tardio. E assim, aquele homem sobre o qual há pouca documentação e que não
foi tão incensado assim em vida por seu trabalho, tornou-se um dos pioneiros
das artes plásticas em Goiás e louvado como exímio santeiro. “Ele é o principal
157

escultor do século 19 que temos”, afirma Elder Camargo dos Passos, especialista na
obra do artista e autor do estudo Veiga Valle – Seu Ciclo Criativo. “Antes dele, quase
não havia nada.”

O Museu da Boa Morte tem o maior acervo do grande representante do barroco


em Goiás, com 35 esculturas e uma pintura. Autodidata, ele se dedicou a esculpir,
sobretudo, santos, sob forte influência da arte portuguesa. No ano 2000, uma
mostra em São Paulo, com cenografia de Bia Lessa, mostrou para o Brasil o estilo
deste homem que, tudo indica, levou uma vida simples. Em entrevista a O Popular
naquela ocasião, Elder Camargo explicava que a técnica do artista plástico era
Uma das complexa, unindo diversos elementos em suas composições.
características
que faz as “Nos mantos dos santos, o artista imprimia uma profusão de detalhes e uma
esculturas de rica policromia, inspirado nos desenhos da prataria e das louças francesas e
inglesas e nos paramentos e nos tecidos adamascados vindos da Itália, de Portugal
Veiga Valle e da Espanha para as igrejas de Vila Boa, onde ele passou a maior parte de sua
serem tão vida”, indicava. “Após esculpir a peça, ele aplicava uma base de gesso e em cima
especiais é dela colava folhetas de ouro importadas da Alemanha. Sobre a base dourada, era
sua técnica de feita a aplicação das camadas de tintas na coloração que desejava”, acrescentou o
modelagem. especialista.
Em seu livro
Não se trata, portanto, de uma produção artística instintiva, como às vezes é dito
sobre o artista sobre o seu trabalho. “Sua arte tinha uma singularidade muito forte”, defende Elder.
do século 19, Atributos que encantaram o público na mostra paulista, que quase não aconteceu
Elder Camargo por conta de uma série de polêmicas que eclodiram na época. A retirada, mesmo
salienta que temporária, das imagens sacras das igrejas onde estavam na cidade de Goiás não
boa parte agradou grupos de católicos, que protestaram. Algumas das peças foram excluídas da
das obras são exposição em consequência dessa pressão.
em cedro, Uma das características que faz as esculturas de Veiga Valle serem tão especiais é
uma madeira sua técnica de modelagem. Em seu livro sobre o artista do século 19, Elder Camargo
considerada salienta que boa parte das obras são em cedro, uma madeira considerada macia,
macia, perfumada e durável. Ao invés de trabalhar sobre um tronco único, o que seria mais
perfumada e comum, Veiga Valle preferia lidar com peças menores, com as quais fazia braços e
durável. pernas de suas estátuas para depois articulá-las, encaixando umas nas outras. Isso,
segundo o pesquisador, revela um possível conhecimento de anatomia por parte do
escultor.

Todos esses elementos incluíram o nome de Veiga Valle no rol dos grandes
artistas sacros nacionais. As pesquisas realizadas até agora sinalizam para a
influência de um religioso sobre o trabalho do artista. Algumas versões apontam
para o padre Manoel Amâncio da Luz, outras para o sacerdote José Joaquim Pereira
da Veiga. Mesmo envolvido com uma atividade marginalizada em seu tempo, Veiga
Valle teve prestígio suficiente para desposar a filha do presidente da província. Com
Joaquina Porfíria ele teve 8 filhos. Sua antiga residência, no Largo do Rosário, ainda
pertence à família.

n
158

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Venerando de
Freitas Borges
O prefeito que não
gostava de ladrão
C
hamado a uma audiência, Venerando de Freitas Borges aguardou por cerca
de 15 minutos até seu anfitrião aparecer. “Trajava terno de linho 120, sapato
branco com biqueira marrom e me perguntou: ‘Por acaso é o senhor o professor
Venerando?’ Sem rodeios, como é do seu feitio, declarou Pedro Ludovico:
‘Chamei-o aqui para convidá-lo para o cargo de prefeito de Goiânia. Aceita?’”
E assim ocorreu o primeiro encontro entre o criador da nova capital e o
homem que iria administrá-la pela primeira vez. Eles ainda não se conheciam
pessoalmente, mas escreveriam a história juntos.

A narrativa dessa reunião foi feita pelo próprio Venerando de Freitas Borges
em edição de O POPULAR do dia 24 de outubro de 1975. Na ocasião, Goiânia
completava 42 anos e as memórias dos bastidores de sua fundação permaneciam
vivas para seu primeiro prefeito. Ao ouvir a pergunta se aceitava a incumbência,
Venerando respondeu ao interventor de Goiás com sinceridade. “Depende”,
159

disse. “Não sou político e preciso saber as condições”, explicou. “Tenho uma”, rebateu
Pedro Ludovico. “Não roube na Prefeitura.” Ao que Venerando replicou: “Não gosto
de ladrão.”

“Meu avô tinha esse estilo franco”, reforça o neto de Venerando, Guilherme de
Freitas Souza. “Ele não aceitava cabresto e deixou isso claro logo no primeiro contato
com Pedro Ludovico. Mas também era um homem extremamente leal. Depois os
dois se tornaram amigos e todos os dias meu avô ia tomar café com o doutor Pedro
na casa dele. Nos tempos da ditadura militar, que chamavam de revolução, ambos
permaneceram solidários ao Juscelino Kubitschek e gostavam de falar mal de quem
detinha o poder na época.”

Cordial e Quando era jovem, Guilherme conviveu bastante com o avô e o acompanhava
em algumas viagens. “Nós conversávamos muito. Ele gostava de enfatizar que
contundente, tinha um sono tranquilo quando colocava a cabeça no travesseiro.” Mesmo diante
Venerando de das dificuldades dos primeiros tempos, Venerando não esmoreceu. “Não havia
Freitas Borges financiamento para construir Goiânia. Fizeram com o que havia no caixa do
angariou enorme governo. E era uma dificuldade imensa para conseguir mão de obra. Meu avô, como
respeito junto à prefeito, morava em um casebre nas margens do córrego Botafogo e despachava
população, coisa debaixo de uma árvore.”
rara hoje em dia A carreira política, porém, não era o maior orgulho de Venerando de Freitas
quando se fala Borges. “Ele se realizava como professor. Ele lecionou contabilidade na Escola
de políticos. Sua Técnica de Comércio de Goiás. Tanto que todos o chamavam de professor, mais que
faceta pública de prefeito”, aponta Guilherme. Ele diverte-se com outra curiosidade do avô. “Ele
era só uma detestava homem que pintava o cabelo. Acreditava que a pessoa devia se orgulhar
de um homem dos cabelos brancos que tinha. E quando via um conhecido que havia feito isso,
expressava sua desaprovação na hora, na cara da pessoa. Não deixava para depois.”
surpreendente.
Cordial e contundente, Venerando de Freitas Borges angariou enorme respeito
junto à população, coisa rara hoje em dia quando se fala de políticos. Sua faceta
pública era só uma de um homem surpreendente. “Meu avô jogou bola”, revela
Guilherme. “Claro que fez isso num âmbito amador. Foi um dos fundadores do time
do Goiânia Futebol Clube e jogou num tempo em que o juiz ia para o campo com
revólver na cintura para se proteger”, contextualiza. A grande arma de Venerando
sempre foi, por outro lado, a firmeza de caráter, expressa sem escândalos.

Dos seis filhos que teve, viu cinco partirem. “Essas perdas abalaram muito meu
avô. Um deles morreu com 23 anos. Era um gênio. Outra foi vítima de câncer com
apenas 32 anos de idade. Até um genro de que ele gostava muito também morreu
em um avião que desapareceu no Oceano Pacífico. No fim, ele ajudou a criar duas de
suas netas”, relata Guilherme. Isso o ensinou a não valorizar demais coisas pequenas
da vida. Na política, por exemplo, era um conciliador. Sabia que as disputas eram
vãs, que no final não tinham tanto sentido. As pessoas, sim, essas valiam a pena.

n
160

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Vicente
Rebouças
Pelos caminhos de Goiás
F
icaram famosas as viagens que Vicente Rebouças Câmara, por estradas precárias
e em condições até temerárias, fazia pelo interior goiano levando notícias. Era
literalmente isso. Quando ele e seus irmãos Joaquim Câmara Filho e Jaime
Câmara fundaram o jornal O POPULAR, coube a ele percorrer Goiás de ponta a
ponta atrás de assinaturas para o informativo, encontrando clientes, anunciantes
e estabelecendo rotas de distribuição. Mesmo que fosse em carrocerias de
caminhão, Vicente Rebouças ia aos rincões mais longínquos, sem desanimar.

Vicente Rebouças teve importante participação no crescimento da empresa.


Pessoa simples, era um negociante nato e tinha o dom da boa prosa. Não
havia ninguém estranho para aquele homem criado no Nordeste e que exercia
certo magnetismo sobre seus interlocutores. Gostava de estar no meio dos
funcionários, interagindo com todos, sem distinção. Nunca quis ocupar cargos
oficiais e não era muito visto em eventos sociais. Esses papéis couberam aos
dois irmãos de quem era sócio. Seu habitat era outro e nele transitou com
desenvoltura ímpar.
161

Quando sumia Goiás adentro, compreendia como poucos o espírito de quem


encontrava. Não havia tempo ruim em seu caminho. Preguiça era uma palavra
que desconhecia. Isso foi crucial para fazer do jornal da família um informativo
conhecido em cada região goiana, mesmo naquelas em que um veículo de
comunicação jamais havia chegado antes. As populações que estavam em áreas mais
isoladas foram integradas a um novo sistema de informações, a novas lógicas de
consumo, a dados inéditos sobre a própria terra em que viviam.

Essas incursões de Vicente Rebouças pelas áreas mais remotas de Goiás também
Não havia possibilitavam que o próprio jornal pudesse conhecer melhor o Estado que
ninguém propunha retratar. Ir ao lugar não deixava de ser uma espécie de reportagem sobre os
estranho para pontos visitados, uma maneira de ver e sentir os problemas dessas regiões, os anseios
que brotavam da população. Vicente, ótimo ouvinte e bom de conversa, aferia essa
aquele homem temperatura, sentindo na pele os problemas de infraestrutura, como a ausência de
criado no estradas em boas condições e outros benefícios, males que acometiam um Estado
Nordeste e que ainda atrasado.
exercia certo
magnetismo Quando estava em Goiânia, ele se hospedava no Grande Hotel, onde passou
sobre seus a morar, residindo ali até bem próximo da data de sua morte, em 4 de fevereiro
de 1973, aos 76 anos de idade. A jornalista Cileide Alves, autora de um trabalho
interlocutores. biográfico sobre Joaquim Câmara Filho, em sua apuração ouviu alguns testemunhos
Gostava de de parentes que demonstram o quanto Vicente Rebouças, com seu jeito espontâneo,
estar no sabia conquistar as pessoas. “Os sobrinhos adoravam aquele tio porque ele distribuía
meio dos ingressos de cinema para quem o ajudasse nos trabalhos do jornal”, revela.
funcionários,
interagindo Solteiro, Vicente Rebouças não teve filhos e sua parte na empresa foi distribuída
entre os irmãos e sobrinhos após sua morte. Todos testemunharam o quanto de
com todos, sem sua vida foi dedicada ao jornal, com ele indo para a linha de frente na gráfica,
distinção. onde ajudava os funcionários a imprimir O POPULAR. Muitas vezes, com
seu temperamento expansivo, incumbia-se de negociar com fornecedores e
distribuidores, sendo um persistente cobrador de dívidas e compromissos não
cumpridos. Para uma empresa iniciante, era essencial não levar calotes. E Vicente
Rebouças não deixava isso acontecer.

Vicente Rebouças foi um dos últimos dos filhos do casal Joaquim Rebouças de
Oliveira Câmara e Maria Melquíades de Miranda Câmara, conhecida como Dona
Iaiá, a chegar a Goiás, ao lado da irmã Tacy. Eles vieram em 1938 e encontraram
o clã Câmara não mais na cidade de Goiás. Joaquim Câmara havia sido nomeado
prefeito de Pires do Rio por Pedro Ludovico. Foi também naquele ano que O
POPULAR ganhou as ruas. Ano em que Vicente Rebouças encontrou um novo
objetivo maior em sua vida, ao qual se dedicou intensamente até o fim.

n
162

Simone Ala
vidas
narradas
pelo
POPULAR

Wanderley
Magalhães
O garoto da bicicleta
“E
le sentia uma felicidade muito grande quando via seu nome no jornal, falando
das conquistas importantes que havia obtido.” A lembrança é de Tonny
Magalhães, irmão daquele que é considerado o maior nome do ciclismo em
Goiás, Wanderley Magalhães. Essa felicidade era própria de um atleta que
começou sua carreira brincando na rua, despretensiosamente. “Meu pai, quando
éramos meninos, deu uma bicicleta de presente de Natal para cada irmão, eu, o
Wanderley e o Paulo”, relata Tonny. “A partir dali, a gente sempre arrumava um
motivo para pedalar por aí.”

O vírus de competição foi inoculado na família também por acaso. “Alguns


amigos nossos nos chamaram para um passeio ciclístico na Vila São José.
Quando chegamos lá, era um campeonato, em que o pessoal dava três voltas
em um circuito. Resolvemos participar mesmo assim. Foi dessa forma que
começamos, picados pelo mosquitinho da bicicleta”, brinca Tonny. O pai dos
três rapazes gostou da novidade e passou a incentivá-los. “Ele dizia sempre que
poderíamos fazer o que escolhêssemos, mas que tínhamos que fazer bem-feito,
fosse o que fosse.”
163

Essa determinação foi levada a sério por todos e não demorou para que os
três irmãos começassem a chamar a atenção nesse universo esportivo. “Foi uma
época muito difícil no Brasil para praticar o ciclismo e começamos a entender que
precisávamos buscar um auxílio fora, inclusive em termos de equipamento”, conta
Tonny. Com apenas 15 anos de idade, Wanderley Magalhães passou a se destacar,
participando de provas fora de Goiás e obtendo resultados surpreendentes. “Ele foi
campeão de uma temporada em que disputou 38 provas num intervalo de 3 meses”,
lembra o irmão.
Aos 16 anos,
já integrava a Esses feitos se multiplicaram em uma carreira que levou o ciclista goiano ao topo.
Equipe Caloi, a Aos 16 anos, já integrava a Equipe Caloi, a mais cobiçada do ciclismo brasileiro na
mais cobiçada época. Durante 15 anos, ele esteve onde todo esportista da modalidade gostaria
do ciclismo de estar. Entre suas conquistas estão a de tricampeão da prova 9 de Julho, em São
Paulo, a mais importante do calendário nacional. Também faturou o primeiro
brasileiro na
lugar em uma edição do Rutas de América, competição que reúne atletas de todo
época. Durante o continente, e do GP Hollain, na França. Foram mais de 70 vitórias no Velho
15 anos, ele Continente.
esteve onde
todo esportista Seus maiores êxitos, porém, foram em jogos internacionais. No Jogos Pan-
da modalidade Americanos de Havana, em Cuba, em 1991, ele subiu ao pódio com a medalha de
bronze. Nessa época, Wanderley já havia sido eleito o melhor ciclista estrangeiro em
gostaria de atividade na Europa – ele e seus irmãos assinaram contratos para correr em equipes
estar. da Bélgica, por exemplo – e tinha uma Olimpíada no currículo, a de Seul, em 1988.
Aqueles anos marcaram o auge do atleta. Em 1992, ele pôde participar de mais uma
edição dos Jogos Olímpicos, em Barcelona, mas com um gosto ainda mais especial.

“Minha maior lembrança dele foi aquela experiência em Barcelona, em que


estávamos juntos vivendo aquele sonho”, diz, nostálgico, o irmão Tonny. Ambos
se classificaram para competir entre os melhores do mundo e levaram o pai junto,
já que Ancelmo Fernandes Azevedo, influenciado pelos filhos, passou a respirar o
esporte. “Nós dois, irmãos, naqueles dias de Vila Olímpica… Nossa, foi inesquecível.”
E não pensem que foram a passeio. Em Barcelona, Wanderley Magalhães obteve o
melhor resultado da história do ciclismo nacional em Olimpíadas, ficando em 12º
lugar.

O menino que gostava de bicicletas e tornou-se um grande campeão, chegando a


disputar 11 campeonatos mundiais da modalidade, aposentou-se em 1994 e passou
a ser um incentivador do esporte. Ao lado dos irmãos, criou provas e eventos para
estimular a paixão pelo pedal em novas gerações. Esse trabalho foi precocemente
interrompido pela descoberta de um câncer, doença contra a qual lutou por um
longo período, até falecer em 28 de março de 2006. “O mais legal é que ainda
lembram muito dele. Fizemos muitos amigos no mundo todo. Isso é o que vale”,
consola-se Tonny.

n
164

vidas Walter Alves


narradas
pelo
POPULAR

Washington
Novaes
O homem que pautou
o meio ambiente
E
m 1980, milhões de brasileiros puderam ver, em horário nobre da Globo, algo
inédito na TV brasileira. Passava na telinha um universo desconhecido para a
esmagadora maioria, um mundo feito de água, árvores e gente. Naquela noite, o
Globo Repórter exibiu um documentário chamado Amazônia: A Pátria da Água,
dirigido pelo jornalista Washington Novaes. “Não era só a visão da Amazônia
como natureza intocada, como um paraíso intocado, mas um território também
povoado por várias populações e comunidades”, explica o cineasta Pedro Novaes,
filho de Washington e que foi seu parceiro em vários projetos.

Aquele foi o primeiro trabalho de maior visibilidade de Washington Novaes


na área em que se tornaria uma referência nacional. Dois anos depois daquele
projeto, ele se mudou, com toda a família, para Goiânia, topando o desafio
de dirigir uma antológica redação do jornal Diário da Manhã, experiência
de arrojo jornalístico que durou pouco. Ele retornou, então, para os grandes
documentários, tendo a natureza como pauta. Em 1984, Washington foi para a
165

mais icônica reserva indígena do País e lá produziu Xingu: A Terra Mágica, para a
TV Manchete. Segundo Pedro Novaes, essa aventura mudou a visão de mundo de
seu pai.

“Ele voltou de lá marcado, transformado pelo contato, pelo conhecimento que


travou com as comunidades indígenas”, relata o filho. “Ele via nos indígenas uma
espécie de referência em relação às possibilidades humanas, de que a gente pode ser
diferente, pode se relacionar com a natureza de maneira melhor, que podemos nos
“Ele sempre relacionar uns com os outros de formas mais harmônicas, menos desiguais, menos
buscou violentas”, explica. “Ele tentava entender essa relação entre ser humano e meio
conexões do ambiente, como isso se dava no Brasil. Era um olhar muito interessante que levava
para a TV.” Ele retornou ao Xingu em 2006, agora com o filho Pedro, para registrar
jornalismo
os mesmos lugares que havia percorrido mais de 20 anos antes.
com outras
linguagens Dessa viagem resultou o documentário Xingu: Terra Ameaçada, exibido pela
justamente TV Cultura. “Era um projeto que ele tinha vontade de fazer e a gente realizou. Eu
para tentar cuidei da produção e foi uma experiência marcante”, conta Pedro. A tiracolo estava
sensibilizar um antigo companheiro de viagens, o artista plástico Siron Franco, que fez várias
parcerias com Washington em materiais exibidos na TV Cultura, entre os quais a
e fazer um
Série Caminhos da Sobrevivência, sobre o Pantanal. Gilberto Gil, Yamandú Costa
público maior e Egberto Gismonti compuseram trilhas para seus programas. “Ele sempre buscou
se interessar conexões do jornalismo com outras linguagens justamente para tentar sensibilizar e
pelo fazer um público maior se interessar pelo conteúdo”, afirma.
conteúdo”
“São documentários jornalísticos, mas com a preocupação de abordar os assuntos
de formas lúdicas, com outras linguagens, elementos que tornassem o formato
menos frio”, aponta Pedro. “No começo, ele pagou o preço de não ser ouvido com a
devida atenção ou de causar estranheza. Mas ele virou um consultor na área de meio
ambiente, uma pessoa procurada para elaborar documentos de políticas públicas,
passou a atuar como conselheiro de organizações não-governamentais que tinham
como missão trabalhar com o meio ambiente e os povos indígenas. Depois acabou
sendo, durante dois anos, secretário de Meio Ambiente em Brasília”, recorda.

Durante esse tempo, Washington Novaes nunca se afastou de Goiás. Mesmo


trabalhando em São Paulo e viajando pelo Brasil para fazer suas reportagens
especiais, o jornalista manteve sua residência em Goiânia e aqui os filhos do segundo
casamento, Pedo e João Novaes, se envolveram com as grandes paixões do pai:
audiovisual e meio ambiente. Ele teve outros dois filhos, Guilherme e Marcelo, do
primeiro casamento. Ele morou por anos em uma espaçosa chácara perto do campus
da UFG, no Conjunto Itatiaia, e por aqui fez amigos fiéis, como o escritor Carmo
Bernardes, com quem tinha longas e deliciosas prosas. Washington morreu em 2020,
aos 86 anos, no Estado que escolheu para viver.

n
166

vidas
narradas
pelo Weimer Carvalho
POPULAR

Zacharias
Calil
A ousadia que
salvou vidas
E
m 1999, o cirurgião pediátrico conheceu as pacientes que mudariam a sua
história e seriam um marco da medicina em Goiás. Ainda bebês, as meninas
Larissa e Lorraine, depois de uma luta intensa pela vida logo após nascer,
chegavam ao Hospital Materno-Infantil, em Goiânia, em uma situação muito
complicada. Unidas pela bacia e parte do tronco, elas compartilhavam diversos
órgãos vitais, tinham apenas três pernas e uma série de complicações a resolver.
Ao ver o quadro, o médico Zacharias Calil deu a resposta que menos se poderia
esperar naquela ocasião.

“Eu resolvi que ia operar aquelas meninas, que ia fazer algo completamente
inédito até aquele momento”, recorda o cirurgião. “Não sei o que passou na
minha cabeça naquela hora. Se você pensar, eu tinha 40 anos de idade e estava
disposto a realizar um procedimento em um local que não tinha estrutura
alguma para aquilo.” Ao lado de uma equipe multidisciplinar, que incluía um
167

grupo de cirurgiões igualmente especializados e animados, ele estava pronto para


entrar para a história. A decisão era até temerária, mas valia a pena arriscar. O olhar
das meninas pedia isso.

“Esse procedimento não tem uma especialidade. Para você ter uma ideia,
não tínhamos nem aparelho de ressonância magnética para fazer uma imagem
detalhada das meninas. Fomos guiados pela nossa experiência do dia-a-dia, do
cotidiano”, revela. A cirurgia de separação das crianças durou 10 horas, em que a
perícia dos profissionais mostrou-se fundamental. “A anestesia, por exemplo, era um
problema. Como dar a dose certa para dois organismos que, porém, estavam unidos,
A partir compartilhando até o metabolismo um do outro?”
daquele dia de
As soluções foram sendo encontradas. O centro cirúrgico passou por adaptações
julho do ano físicas para as necessidades daquela operação. “Nós mudamos tudo porque tudo
2000, Goiânia era diferente”, atesta Zacharias. O que parecia impossível, porém, realizou-se.
entrou no “Poderíamos ter enviado a Larissa e a Lorraine para um centro médico em São Paulo
mapa como um ou no exterior, mas nós fizemos tudo aqui. Fomos a primeira equipe a realizar esse
dos principais procedimento em todo o Centro-Oeste.” As pacientes sobreviveram. Lorraine, por
locais do outros motivos, faleceu aos 7 anos. Larissa é hoje uma moça e quer fazer medicina.
mundo a A partir daquele dia de julho do ano 2000, Goiânia entrou no mapa como um
realizar esse dos principais locais do mundo a realizar esse tipo delicado e raro de procedimento
tipo delicado cirúrgico. “Muitas pessoas, de várias partes, vieram até Goiânia para saber como
e raro de fazemos tais operações. Já fomos tema de reportagens em vários jornais do Brasil
procedimento e da Europa e até de um documentário do Discovery Channel.” Em mais de duas
décadas, a equipe já realizou dezenas de cirurgias de separação de irmãos siameses,
cirúrgico.
com alta taxa de sucesso nas intervenções.

“O risco sempre existe. Cada caso é um caso. Não podemos falar nem mesmo
de uma técnica de separação porque cada paciente exige determinado tipo de
procedimento. A dificuldade é sempre enorme. As equipes, inclusive, variam, de
acordo com os problemas que encontramos”, informa o médico. Isso, porém, nunca
o intimidou. “Todos os envolvidos gostam de fazer o que fazem. Todos se dedicam
para que o resultado seja o melhor possível e se sentem gratificados por salvar e
melhorar a vida dessas pessoas. Nossa taxa de sucesso é acima da média”, comemora.

No decorrer dessas mais de duas décadas, O POPULAR acompanhou de perto


todos os casos em que crianças siamesas chegaram a Goiânia, vindas de várias partes
do Brasil, com a esperança de uma cirurgia bem-sucedida. O final da maior parte
desses dramas tem sido feliz graças à dedicação e à competência de um grupo de
profissionais que se tornou conhecido mundialmente. “Temos sempre um plano
B ou C para que tudo corra bem. Cada um dá o melhor de si”, pontua Zacharias
Calil. A notoriedade que conquistou levou o cirurgião à carreira política. Hoje ele é
deputado federal.

n
168

vidas Cristina Cabral


narradas
pelo
POPULAR

Zezé di Camargo
& Luciano
Os filhos de Francisco
A
cena é conhecida. O pai vai até um orelhão e, depois de ter gastado o que tinha
no bolso para comprar fichas, ele liga repetidamente para uma emissora de rádio
de Goiânia. “Eu queria ouvir a música É o Amor”, pede. Ele e todos os amigos
e colegas de trabalho fazem o mesmo por dias seguidos. E assim, nesse esforço
pessoal, Francisco Camargo conseguiu que a música fosse uma das mais pedidas
na programação e, consequentemente, executada para milhares de pessoas
sintonizadas. E aos poucos, a canção foi caindo no gosto do povo. O desfecho,
sabemos qual foi.

O filme Dois Filhos de Francisco, que conta essa história, é uma das
produções de maior bilheteria na história do cinema nacional (mais de 5 milhões
de espectadores). Nele, a trajetória da dupla Zezé di Camargo & Luciano é refeita,
desde a zona rural de Pirenópolis, onde a família morava, até chegarem à fama.
Um itinerário repleto de desafios. “Eu tive um contratempo porque meu filho
(Wellington) sofreu uma paralisia e eu sofri um acidente no engenho em que
trabalhava. Resolvi mudar para Goiânia de um dia pro outro”, contou Francisco,
em entrevista à Rede Globo.
169

A produção detalha como, desde pequenos, os filhos de Francisco, um amante


da música caipira, eram estimulados a cantar, em casa ou em público. Uma tradição
que começou com Mirosmar, o verdadeiro nome de Zezé di Camargo, e Emival, um
de seus irmãos. Nos anos 1970, eles formaram a primeira dupla do músico goiano,
chamada Camargo e Camarguinho. Uma tragédia familiar pôs fim a esta primeira
tentativa de conquistar os palcos. Emival, que era um ano mais novo que Zezé,
morreu precocemente, com apenas 11 anos de idade, num acidente de carro.

Foi o maior hiato na carreira do primogênito de seu Francisco e dona Helena,


a mãe da dupla. Zezé di Camargo foi apresentado a alguns instrumentos musicais
ainda muito cedo. Aos 7 anos tocava gaita. Aos 11, dominou o acordeão. Nos anos
1970, ele integrou a formação do trio Os Caçulas do Brasil e depois compôs nova
A decisão dupla com Deoclides José da Silva, batizada de Neilton e Mirosmar, mas que durou
de Zezé di apenas um ano. Neilton morreu em Aparecida de Goiânia em 2012. Em 1975, outra
Camargo em oportunidade surgiu e ele se juntou a Aerovaldo Batista da Silva para formar a dupla
dar uma chance Zazá & Zezé.
ao caçula
A parceria durou 11 anos e fez certo sucesso regional. Zazá & Zezé se
mostrou-se
apresentavam em shows pelo interior e cantavam em programas locais de TV. A
iluminada. experiência deu a Zezé di Camargo mais segurança para cantar e compor. Seu
A dupla foi destino, porém, estava traçado dentro de casa. O caçula, Luciano Camargo, que
formada em quando a família veio para Goiânia era apenas um bebê, admirava o irmão e insistiu
1991 em um para cantar ao seu lado. Com uma diferença de idade de 11 anos, o menino fazia de
momento em tudo para ser notado pelo irmão mais velho, que já era artista.
que o sertanejo
A decisão de Zezé di Camargo em dar uma chance ao caçula mostrou-se
estava em iluminada. A dupla foi formada em 1991 em um momento em que o sertanejo
ascensão estava em ascensão com o surgimento de Leandro & Leonardo e os sucessos de
Chitãozinho & Xororó. O primeiro hit foi justamente É O Amor, que estourou
definitivamente quando se tornou tema de uma novela da Rede Globo, em 1992.
A partir daí, sucederam-se sucessos como Você Vai Ver, No Dia Em Que Saí de
Casa e a regravação de Menina Veneno. Zezé logo figurou entre os mais lucrativos
compositores do Brasil.

Em dezembro de 1998, a família da dupla passou por um drama. Uma quadrilha


sequestrou um dos irmãos dos cantores, Wellington Camargo, mantendo-o
em cativeiro por 94 dias, o que mobilizou o País. Ferido, ele foi libertado e os
criminosos, presos. No campo artístico, os irmãos conquistaram mercados no
exterior e foram gravados por nomes como Maria Bethânia. A filha mais velha
de Zezé, Wanessa Camargo, também entrou no mundo da música. A carreira
prosseguiu, com alguns desentendimentos públicos, mas que não interromperam
essa parceria entre os filhos de Francisco.
n
170

vidas
narradas
pelo
POPULAR

Zoroastro
Artiaga
O divulgador do sertão
E
m 6 de dezembro de 1970, O POPULAR publicou aquela que é uma das
entrevistas mais reveladoras do professor Zoroastro Artiaga. Fazendo as
perguntas, um grupo composto pelos escritores Marieta Telles Machado, Bariani
Ortencio, José Godoy Garcia, Miguel Jorge, Anatole Ramos e Ada Curado, além
da folclorista Regina Lacerda e do editor Taylor Oriente, do Bazar Oió. Nas
respostas, o já veterano pesquisador da Geologia, da História, da Antropologia
de Goiás faz um apanhado de seu amplo trabalho e diz que “desejava servir
muito mais ao nosso querido Estado”.

É até difícil imaginar como ele poderia ter feito mais, uma vez que Zoroastro
Artiaga, em variados campos de conhecimento, foi um pioneiro em terras
goianas. “Ele foi o primeiro a escrever sobre geociências em Goiás”, enfatiza
Giovana Galvão Tavares, professora do Mestrado em Sociedade, Tecnologia
e Meio Ambiente da UniEvangélica, de Anápolis, e que defendeu uma tese de
doutorado na Unicamp sobre esse personagem importante no desenvolvimento
goiano. “Seus trabalhos falam bastante da geologia econômica de Goiás, tratando
de minérios, vegetação”, cita.
171

Esse conhecimento foi adquirido nos anos que Zoroastro serviu ao que é
hoje o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nesse ofício, ele foi
um dos responsáveis, por exemplo, por percorrer todo o Estado mapeando seus
detalhes geográficos, suas regiões mais desconhecidas. “O governo Getúlio Vargas
determinou que os municípios brasileiros só poderiam ser reconhecidos como tais
se definissem seus limites. Houve um esforço nacional para fazer essas delimitações.
Em Goiás, parte dessa tarefa coube a Zoroastro”, explica Giovana.

Segundo a pesquisadora, uma das estratégias de Zoroastro era colocar em voga


É até difícil os temas com que lidava. “Ele foi um pioneiro no jornalismo. Suscitava discussões
imaginar como e envolvia personalidades conhecidas. Sabia fazer barulho”, relata a professora. Em
ele poderia dois momentos, esse talento de Zoroastro ficou evidente. Durante a Segunda Guerra
ter feito mais, Mundial, ele levantou um debate sobre a existência de urânio em Goiás. “Em um
texto na revista Oeste, ele avisa que havia estrangeiros vindo a Goiás e levando
uma vez que
riquezas minerais usadas na fabricação de armas, como urânio e quartzo”, pontua
Zoroastro Giovana.
Artiaga, em
variados Em outro momento, quando é decidido que a capital federal deixaria de ser o
campos de Rio de Janeiro e que uma nova sede seria instalada no interior do Brasil, Zoroastro
conhecimento, defendeu com veemência que o novo Distrito Federal ficasse em terras goianas.
“Minas Gerais estava pleiteando que a capital fosse para o Triângulo Mineiro porque
foi um pioneiro o lugar delimitado pela Missão Cruls para ser a capital não teria água suficiente.
em terras Ele se volta contra isso, provando o contrário”, sublinha a pesquisadora. Ao mesmo
goianas. tempo em que digladiava com temas públicos, Zoroastro não descuidava de seus
estudos.

Na entrevista a O POPULAR, o professor afirma: “Todos os meus pequenos


conhecimentos sobre Geografia se baseiam em pesquisas realizadas in loco”. Esses
“pequenos conhecimentos” incluem uma série de publicações que deram norte aos
estudos da área na região. Um legado que ele repassou a vários aprendizes que o
tiveram como professor de Geografia e Física na então Universidade de Goiás. A
História também lhe despertava grande interesse. Zoroastro fez amplas pesquisas
nessa disciplina, falando de povos indígenas, do papel da Igreja e de tradições
folclóricas.

Natural de Itaberaí, cidade onde ainda em 1905, com 14 anos de idade, fundou
um pequeno jornal (O Repórter), Zoroastro Artiaga tornou-se nome de museu
quando ainda estava vivo, chegando a dirigir o espaço. O local, que fica na Praça
Cívica, foi criado em 1946 para abrigar o acervo da Exposição Permanente de
Goiás, realizada em 1942, no Batismo Cultural de Goiânia. Aquela entrevista a O
POPULAR foi uma das últimas que o homem de múltiplas facetas concedeu. Ele
morreria pouco mais de um ano depois. Entrou para a história como o “divulgador
do sertão”.

n
172

vidas
narradas
pelo
POPULAR

EDIÇÃO
Silvana Bittencourt
Fabrício Cardoso

REPORTAGEM
Rogério Borges

EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA
Weimer Carvalho

ARTE
André Rodrigues
Luiz Antena

CAPA
Arte sobre foto de Cristina Cabral

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