Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
narradas
pelo
POPULAR
ROGÉRIO
BORGES
2
vidas
narradas
pelo
POPULAR 1 Alberto Rassi ............................................. 4
2 Altamiro de Moura Pacheco........................... 6
3 Amália Hermano......................................... 8
4 Amado Batista ......................................... 10
5 Ana Maria Pacheco .................................... 12
6 Antônio Poteiro ........................................ 14
7 Attilio Correa Lima.................................... 16
8 Bariani Ortencio ....................................... 18
9 Basileu França ......................................... 20
10 Belkiss Spenciére...................................... 22
11 Bernardo Élis........................................... 24
12 Bernardo Sayão ........................................ 26
13 Boogarins ............................................... 28
14 Carmo Bernardes ...................................... 30
15 Célia Câmara........................................... 32
16 Cici Pinheiro ........................................... 34
17 Coimbra Bueno ........................................ 36
18 Colemar Natal e Silva ................................ 38
19 Cora Coralina ......................................... 40
20 Coronel Hipopota ..................................... 42
21 Cristiana Toscano..................................... 44
22 Dom Pedro Casaldáliga ............................... 46
23 Dom Fernando Gomes ................................ 48
24 Dom Tomás Balduíno.................................. 50
25 Egídio Turchi e Celenita Turchi...................... 52
26 Elder Rocha Lima...................................... 54
27 Família Matteucci ..................................... 56
28 Fernandão .............................................. 58
29 Frei Nazareno Confaloni ............................. 60
30 Geraldo Faria .......................................... 62
31 Geraldinho ............................................. 64
32 Goiandira do Couto ................................... 66
33 Gustav Ritter........................................... 68
34 Hélio de Oliveira ...................................... 70
35 Henrique Rodovalho .................................. 72
36 Hugo de Carvalho Ramos ............................ 74
37 Iris Rezende ............................................ 76
38 Jaime Câmara ......................................... 78
39 Janildes Fernandes.................................... 80
40 Jesco Von Puttkamer ................................. 82
3
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Alberto
Rassi
O sobrenome
da Medicina
E
m Goiás, quando se fala na família Rassi, a associação com a área da Medicina é
imediata. Não dá para ser diferente. Este sobrenome é ligado ao pioneirismo na
área, sobretudo em Goiânia, onde batiza hospitais e conta muito da história que faz
de Goiás um centro de referência em diversas especialidades. E tudo começou com
viagens por oceanos, decisões tomadas com determinação e vocações inegáveis para
investir existências inteiras a curar o outro. O primeiro membro do clã a se dedicar à
área foi Alberto Rassi, um dos filhos mais velhos de Abrão e Mariana.
“Meu avô nasceu em uma cidade do Líbano, Cheikn-Taba, que na época pertencia
à Síria”, relata o também médico Alberto Rassi Filho. No momento em que o mundo
estava conturbado, Abrão migrou, ainda criança, para a Espanha e, em seguida, para
Cuba, onde ficou por um período, voltando ao Líbano algum tempo depois. “Ele se
casou com minha avó e retornaram a Cuba, onde nasceram os seis primeiros filhos,
inclusive meu pai”, conta Alberto. Quando decidiram vir para o Brasil, já haviam
nascido, além de Alberto Rassi, Salvador, Leonardo, Luís, Glória e Aurora.
5
“Eles deveriam ter descido em Santos, mas houve um problema e o porto estava
fechado. Acabaram aportando no Rio de Janeiro, sem conhecerem ninguém”, diz
Alberto. A única referência que tinham era uma comunidade libanesa oriunda da
mesma região da família e que morava em uma pequena cidade do interior. Os
trilhos da estrada de ferro terminavam nela: Vianópolis. Goiás entrava em cena.
“Aqui nasceram os outros filhos, os tios João, Fued, Raul, Anis e Afif ”, elenca Alberto.
Seu pai foi o primeiro a ir para o Rio de Janeiro, em 1940, cursar Medicina, mas isso
não foi simples.
“Meu pai foi cursar o que corresponderia hoje ao Ensino Médio em São Paulo,
mas chegando lá viu seus primos estudarem e quis fazer isso. Um irmão do meu
Este sobrenome avô decidiu ajudá-lo, mas o plano inicial era que ele voltasse a Vianópolis para
é ligado ao ser alfaiate.” Não voltou, formou-se médico e ainda possibilitou que outro de seus
pioneirismo irmãos, Luiz, fizesse o mesmo caminho. “Meu pai, antes de voltar, aperfeiçoou
na área, sua formação no Hospital das Clínicas de São Paulo, que já era um modelo para o
Brasil.” Quando retornou a Goiás, Alberto Rassi já encontrou a família instalada em
sobretudo Goiânia.
em Goiânia,
onde batiza Começava uma nova saga. “Ele recebeu um apoio muito grande do Dr. Mário
hospitais e da Costa Galvão, de quem acabou comprando o Instituto Médico-Cirúrgico de
conta muito da Campinas. Logo ele rebatizou o hospital para Casa de Saúde Dr. Rassi”, informa
história que Alberto Rassi Filho. Com o tempo, novos membros da família, como Anis Rassi,
passaram a entrar na área. Uma nova unidade foi construída perto do Lago das
faz de Goiás Rosas e ganhou o nome de Hospital Rassi. Em 1963, o local foi vendido para o
um centro de Instituto de Previdência do Estado e se tornou o Hospital Geral de Goiânia (HGG).
referência
em diversas “Com isso, meu pai construiu o Hospital São Salvador. Foi dentro desse hospital,
especialidades. trabalhando, atendendo, que meu pai faleceu em 1997, aos 82 anos de idade”,
recorda o filho. “Meu pai era de um tempo em que o médico fazia de tudo, em que
não havia tantas especialidades. A formação precisava ser ampla.” Provavelmente,
Alberto Rassi, o pai, não poderia imaginar que seu exemplo seria seguido por tantos
integrantes da família. “Já estamos na terceira geração de médicos. Acredito que
entre os Rassi existam mais de 100 médicos, mas não tenho certeza”, comenta o filho.
n
6
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Altamiro de
Moura Pacheco
O homem das
terras de Goiânia
Q
uem pega a estrada que liga Goiânia a Brasília, passa, logo ao sair da capital goiana,
por uma enorme área verde, onde está o lago que deverá, no futuro, abastecer a zona
metropolitana de água. Esse verdadeiro pulmão natural, com quase 3.200 hectares,
leva o nome do antigo proprietário da fazendona onde a gigantesca porção de
Cerrado nativo foi preservada. É o Parque Ecológico Altamiro de Moura Pacheco,
homenagem a uma das personalidades que ajudaram a moldar os destinos do Estado
a partir de meados do século passado.
e distribuía entre outros fazendeiros para que melhorassem seus rebanhos”, relata o
pesquisador.
“Existe até uma carta pessoal enviada por Juscelino Kubitschek mostrando sua
Nascido em gratidão pelo trabalho do Altamiro. E ele fez todo esse esforço gratuitamente, porque
ele via na construção de Brasília uma grande oportunidade de desenvolvimento do
Bela Vista em Estado. Altamiro chegou a participar da comissão que criou a Novacap, empresa que
1896, Altamiro ficou incumbida das obras de Brasília”, informa Antônio Caldas. “Ele gostava muito
Pacheco de viajar. Esteve em várias partes do mundo. Altamiro foi um homem que se fez
primeiramente sozinho. Ele ficou órfão de pai ainda muito cedo.”
cursou
Nascido em Bela Vista em 1896, Altamiro Pacheco primeiramente cursou
Farmácia
Farmácia na cidade de Goiás e depois se formou médico na antiga Faculdade de
na cidade Medicina Fluminense, em Niterói. Quando isso aconteceu, ele já era um homem um
de Goiás e pouco mais velho que a média de idade dos universitários. Sua opção foi retornar
depois se para a sua cidade, montando uma farmácia por lá. Quando Goiânia se consolidava
formou médico como um novo centro urbano, mudou-se para a cidade que seu colega médico Pedro
na antiga Ludovico Teixeira fundara e aqui criou o Instituto Médico-Cirúrgico.
Faculdade
A fazenda de Altamiro Pacheco percorria as margens do Ribeirão João Leite até
de Medicina desembocar no Rio Meia Ponte. “Ele vendeu várias chácaras e doou áreas. Uma
Fluminense, em delas foi a destinada para a construção do aeroporto de Goiânia. Mas ele fez duas
Niterói. exigências”, revela Antônio Caldas. “A primeira é que deveria ser um aeroporto
internacional. A segunda é sobre o nome. A mãe dele se chamava Genoveva. Por isso
o aeroporto se chama Aeroporto Santa Genoveva, como uma homenagem. E isso
também vale para o nome do bairro e do hospital que também estão onde antes era a
fazenda.”
Antônio conta uma curiosidade sobre Altamiro. “Na barra do João Leite com o
Meia Ponte, havia uma grande árvore. Há uma foto dele com o primeiro prefeito,
Venerando de Freitas Borges, tentando abraçar essa árvore. Um dia ele discutiu com
um homem que pescava com bomba no local e ele não gostava. Para se vingar, o
homem colocou fogo na árvore. Aquilo abalou seu Altamiro.” Amante da natureza e
da cultura, ele, pouco antes de morrer, aos 100 anos de idade, doou seu imóvel, com
a ampla biblioteca. Também vendeu a preço baixo a área do Parque Ecológico.
n
8
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Amália
Hermano
A dama das orquídeas
Q
uando o tempo ajudava, Amália Hermano e seu marido, Maximiano da Matta
Teixeira, subiam numa velha Rural que encarava qualquer tipo de estrada e sumiam
no mundo. O destino? Os ermos do Cerrado. O objetivo? Caçar tesouros. “Eles
percorriam todo o Estado de Goiás e o que hoje é o Tocantins. Iam até o fim do
mundo atrás das orquídeas”, revela o geógrafo Bento Fleury Curado, que conviveu
com a escritora durante muitos anos, atuando como secretário, datilógrafo e
organizador de seus trabalhos. “Eu a conheci assim, enquanto ela procurava as
flores.”
Quando era pequeno, Bento vivia em uma fazenda nas proximidades da cidade
de Goiás. Certo dia, o casal chegou à propriedade para explorar o terreno em busca
de orquídeas. “Mais tarde, quando já morava em Goiânia, nós nos reencontramos.”
A paixão de Amália havia crescido ainda mais. “Ela catalogou a maior parte das
orquídeas do Cerrado e até encontrou uma espécie nova, que foi batizada com seu
nome. É a Cattleya Nobilior Amaliae, que ela encontrou na Serra Dourada”, informa
9
Bento. Esse conjunto valioso de informações foi resgatado após sua morte.
n
10
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Amado
Batista
O Rei das rádios
E
m mais de 45 anos de carreira, já são 35 milhões de discos vendidos. Uma marca
que poucos artistas podem ostentar. Ainda mais se considerarmos que o mercado
de discos sofreu o maior revés de sua história nos últimos 15 anos e que o cantor e
compositor goiano Amado Batista, o dono deste feito, sempre precisou enfrentar
muita resistência para ter seu trabalho reconhecido por parte da crítica. Se bem que
ele não parece dar muita importância para o que falam sobre sua produção. Ele está
interessado mesmo é se suas composições continuam a fazer o sucesso popular de
sempre.
O gênero escolhido foi o romântico, tal qual Roberto Carlos. A música ficou ainda
mais próxima de sua vida quando Amado Batista tornou-se representante de uma
gravadora de âmbito regional, a Chororó. Não foi por meio dela que ele conseguiu
alcançar o tão almejado sucesso nacional, mas o selo lhe propiciou a estreia no
mundo artístico e o primeiro ensaio de projeção na cena em que desejava ingressar.
Em 1975, lançou seu primeiro compacto duplo, que não teve muita repercussão. No
ano seguinte, com a canção Desisto, a história foi diferente.
Nos anos A música começou a ser tocada nas rádios e o jovem Amado Batista chamou a
seguintes, atenção. Isso permitiu que a Chororó investisse em um LP, o disco Amado Batista
Amado Batista Canta o Amor. Com farta cabeleira crespa e uma camisa bem ao estilo anos 1970 –
gola gigantesca e estampas –, o cantor fazia pose de galã na capa. Funcionou. Com
colecionou
canções como É Um Sonho Esta Vida, Borboletas, Cativo e Meu Pressentimento, ele
marcas e saltou do patamar de cantor conhecido regionalmente para um nome com potencial
recordes. para girar as engrenagens do mercado fonográfico. Hora de ampliar horizontes.
Com os discos
Dinamite do O primeiro contrato nacional foi assinado com a gravadora Continental, que na
Amor, Escuta, época reunia boa parte dos campeões de vendas de discos no Brasil. Sua carreira foi,
então, direcionada para atender uma parcela do púbico ávida por ídolos populares
Eu Sou Seu
e românticos. Suas canções deveriam atender essa demanda. Em 1979, a canção
Fã, gravações O Fruto do Nosso Amor o fez superar a marca de 1 milhão de discos vendidos.
ao vivo e Sementes de Amor, O Amor Não É Só de Rosas, Um Pouco de Esperança. Os títulos
coletâneas, dos discos nessa época dão o tom de suas canções de amor e dor de cotovelo.
o cantor
raramente Sua carreira passou a ser associada a um consumo mais popular, o que não é
incorreto. Em certa época, Amado Batista foi conhecido como o “rei das empregadas
deixou de
domésticas”, alusão que continha uma carga pretensamente pejorativa, mas que
vender mais aludia a algo que se comprovava. As rádios tocavam suas músicas com enorme
de um milhão frequência e não só as empregadas domésticas, como todos aqueles que costumavam
de discos por ou podiam ouvir a programação das estações, eram públicos fieis do cantor. Sua
trabalho nos popularidade se espalhou por todo o Brasil. Enfim, trilhava o mesmo caminho do
anos 1980 e ídolo Roberto.
1990.
Nos anos seguintes, Amado Batista colecionou marcas e recordes. Com os discos
Dinamite do Amor, Escuta, Eu Sou Seu Fã, gravações ao vivo e coletâneas, o cantor
raramente deixou de vender mais de um milhão de discos por trabalho nos anos
1980 e 1990. Também se tornou um campeão de shows. Sua relação com Goiás
nunca se desfez. Pelo contrário. Ainda hoje ele mantém uma casa em Goiânia e
é proprietário de uma fazenda em Goianápolis. Quando completou 40 anos de
carreira, em 2015, gravou um disco e fez uma turnê. E constatou que continua
Amado.
n
12
Cristina Cabral
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Ana Maria
Pacheco
Arte universal
É
impossível olhar para uma obra da artista plástica Ana Maria Pacheco e ficar
impassível. Suas esculturas e suas telas são poderosas demais para que passemos
incólumes por seus traços e formas. Nelas, como a própria autora diz, há “a condição
humana, suas tragédias, seus sofrimentos, seus mistérios e epifanias”. Sentimentos
que movem todos nós e que essa goiana há décadas radicada em Londres sabe
traduzir em expressões que se gravam na memória, que podem até perturbar o sono,
mas que trazem reflexões profundas sobre nossa própria existência.
“Eu iniciei meus estudos de Artes Visuais na então Escola de Belas Artes da
Universidade Católica de Goiás”, relata Ana Maria. “A escola tinha um caráter
muito especial. A memória que tenho deste período é sempre prazerosa. Dois
nomes sempre estarão comigo: Maria de Castro e o professor Luiz Curado, pela
dedicação e interesse que eles sempre demonstraram.” Ela também investiu em
outras artes, formando-se em Música na Universidade Federal de Goiás, área em
que posteriormente, em meados dos anos 1960, se pós-graduou no Rio de Janeiro,
tornando-se professora logo em seguida.
decisão que mudaria os rumos de sua vida e, consequentemente, de sua arte. “Fui
para a Inglaterra como bolsista do British Council da Slade School of Fine Arte.
Tinha a ambição de morar no exterior. Perceber a visão de mundo do colonizador,
uma relação dialeticamente oposta à nossa”, declarou Ana Maria, em entrevista
concedida ao POPULAR em 2012, quando fez uma grande exposição de seus
trabalhos na Pinacoteca de São Paulo, um dos templos maiores das artes plásticas no
Brasil.
Seus trabalhos Hoje, dez anos depois, Ana Maria tem uma visão consolidada sobre esses quase
não passaram 50 anos residindo no Velho Continente. “A condição de trabalho na Europa não
despercebidos é fácil, sobretudo para estrangeiros. Mas acredito que as dificuldades existem
no circuito das em qualquer lugar, se há um desejo de criar algo que tenha um significado além
artes plásticas do modismo ou ganho financeiro”, avalia. Nessas cinco décadas, Ana Maria se
naturalizou cidadã inglesa – há quem até se esqueça, ao apresentá-la, que ela
da Europa,
nasceu no Brasil. Mas Ana enfatiza que quando se mudou, já tinha uma formação
simplesmente acadêmica consolidada.
o maior, mais
tradicional e Seus trabalhos não passaram despercebidos no circuito das artes plásticas da
mais seletivo Europa, simplesmente o maior, mais tradicional e mais seletivo do mundo. Baseada
do mundo. na Inglaterra, pôde fazer com que suas obras rompessem fronteiras. Alemanha,
Estados Unidos, Japão, Noruega. São muitos os países em que instituições, como
Baseada na museus e centros culturais, adquiriram suas esculturas, quadros, gravuras em que
Inglaterra, mescla elementos variados, resultando em peças que às vezes são de um realismo
pôde fazer espantoso, às vezes de uma simbologia intrigante, sem que um caminho exclua o
com que outro.
suas obras
rompessem Com mais de 40 exposições individuais e quase 80 participações em mostras
coletivas em quatro continentes, Ana Maria Pacheco amealhou um currículo
fronteiras. impressionante. O crítico de arte Julian Bell, no livro Uma Nova História da Arte,
Alemanha, elenca o nome da goiana entre os mais relevantes da área nos últimos séculos. Ao
Estados lado dela, só há mais um brasileiro: ninguém menos que Aleijadinho, nome que teria
Unidos, Japão, ecos nos trabalhos em madeira da artista. Falando da instalação Terra Sem Retorno,
Noruega. Bell disse que “a obra provocou no público uma aguda e avassaladora emoção
religiosa”.
Ao falar com O POPULAR para esta reportagem, em 2016, Ana Maria Pacheco
estava em Paris, trabalhando no ateliê de um amigo. Com familiares em Goiânia, ela
retorna regularmente à sua terra natal. “Manter viva a fonte de origem é fundamental
em qualquer processo criativo”, argumenta. “Minha infância e juventude são
embutidas de imagens, experiências que são únicas. É como um rio profundo onde
mergulho e sempre descubro tesouros infindáveis. Portanto, sou goiana e Goiás vive
dentro de mim.” Goiana que ganhou o mundo, e que o mundo ganhou.
n
14
Zuhair Mohamad
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Antônio
Poteiro
Doce inocência colorida
C
om cores fortes na palheta à sua frente, Antônio Poteiro deixava a imaginação
fluir. Sem ter ido assistir à apresentação das Cavalhadas de Pirenópolis, pintou
como ninguém a encenação do embate entre mouros e cristãos na cidade histórica
goiana. Sem precisar frequentar festas juninas, ilustrava-as com vivacidade em telas
que pareciam animadas. As manifestações religiosas do interior, as procissões e as
romarias surgiam em suas telas com o poder de transmitir o espírito poderoso desses
momentos. Tudo na chamada arte naïf, com sua singeleza e seu encantamento.
“Calculamos que meu pai tenha produzido mais de 3.400 peças”, informa
Américo Poteiro, filho do artista plástico e que seguiu a carreira do pai. “Nós criamos
uma fundação em 2011 para cuidar desse acervo. Aqui temos mais de 100 trabalhos
dele e cerca de 300 obras de outros artistas que ele foi ganhando no decorrer da
vida.” Um patrimônio artístico e tanto que permanece no antigo ateliê de Poteiro no
Jardim América, onde ele mantinha uma produção sem interrupções. Quem fosse
visitá-lo em seu amplo refúgio tinha muitas chances de testemunhá-lo em ação.
Já radicado Poteiro nunca teve um perfil de prima donna, de um artista badalado. Sua vida
em Goiânia, explica isso. Depois de duas tentativas frustradas de manter uma fábrica de cerâmica,
para onde se Antônio Batista de Souza (seu nome de batismo) passou uma temporada entre
mudou em indígenas na Ilha do Bananal. Um ponto de virada em sua estética. Já radicado em
Goiânia, para onde se mudou em 1957, adotou o apelido de Poteiro, referência aos
1957, adotou potes de barro que vendia pela cidade. Nos anos 1970 e 1980, era possível comprar
o apelido essas peças diretamente do artista em uma banca na antiga Feira Hippie, no Centro.
de Poteiro,
referência aos Nessa época, sua fama estava em ascensão. Aconselhado por amigos, como a
potes de barro folclorista Regina Lacerda e o pintor Siron Franco, começou a assinar obras, como
que vendia bonecos e peças decorativas. Suas temáticas giram em torno de elementos da
natureza, de pessoas simples, de animais que conquistam nosso afeto. O amarelo
pela cidade. vibrante dos girassóis, o show de tonalidades alegres de vilas imaginárias, as cenas
Nos anos bucólicas de um cotidiano do interior que narram modos de vida em extinção.
1970 e 1980, Poteiro soube unir uma técnica nata a um conjunto de elementos que se casaram à
era possível perfeição com seu estilo.
comprar
essas peças “Hoje, o mundo está mais atualizado. As informações correm e acredito que
exista mais pessoas interessadas em uma arte como a do meu pai. Ele vem sendo
diretamente do valorizado gradativamente. A pintura dele é muito alegre e bonita. Todos gostam
artista em uma de ver”, avalia Américo. Segundo o filho do artista plástico, a fama do pai já corre
banca na antiga por várias partes do mundo. Exposições de seus quadros e esculturas em argila têm
Feira Hippie, no sido realizadas com frequência em centros como São Paulo, Brasília e Recife. “Agora
Centro. precisamos tomar cuidado com as falsificações. Por isso estamos certificando as
obras”, afirma.
n
16
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Attilio Correa
Lima
O arquiteto do
novo tempo
A
o chegar a Paris em 1927 para usufruir de uma bolsa de estudos que havia ganho
em um prêmio do Salão Nacional de Belas Artes, Attilio Corrêa Lima, filho de um
renomado escultor e com um diploma de arquiteto debaixo do braço, estava prestes
a retraçar seu destino. Na capital francesa, teve contato com técnicas inovadoras
de construção, com artistas que transpiravam criatividade e com um ambiente
totalmente propício a experimentações. Decidiu que não mais faria o curso na
Escola Moderna Polithécnica. Preferia matricular-se no Instituto de Urbanismo.
Sábia decisão.
“Ele rompe com o paradigma formal francês porque acreditava que uma cidade
não poderia ser concebida apenas em um desenho. Ela precisava interagir com seu
ambiente”, aponta a arquiteta Anamaria Diniz, principal especialista do País na obra
de Attilio Corrêa Lima. No final de 2017, ela lançou a obra O Itinerário Pioneiro
do Urbanista Attilio Corrêa Lima, dividida nos volumes Percursos e Cartas, fruto
de uma ampla pesquisa em nível de doutorado e pós-doutorado sobre o perfil
profissional e pessoal do homem que planejou Goiânia.
n
18
Zuhair Mohamad
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Bariani
Ortencio
Seu nome é folclore
A
biblioteca da casa de desenho modernista em que o escritor Waldomiro Bariani
Ortencio mora, em plena Praça Cívica, é uma verdadeira arca do tesouro. Títulos
raros, exemplares com dedicatória de nomes como Guimarães Rosa, coleções há
muito fora do catálogo. Nesse lugar, o veterano pesquisador dos nossos costumes e
nosso folclore sente-se à vontade. Sabe onde está cada volume, recorda-se de cada
episódio testemunhado, conta seus causos, ouvidos ou vividos. Este é o homem que,
prestes a fazer 99 anos de idade, não deixa de hastear a bandeira da preservação da
cultura.
Os interesses de suas pesquisas são vastos. Ele transita pela literatura, música,
culinária, futebol, política. Nome respeitado e reverenciado em vários setores,
Bariani tem mais de 50 livros lançados, em que demonstra sua maneira de encarar
o mundo que o cerca: com curiosidade. Característica que mantém desde muito
cedo, quando se mudou com apenas 15 anos de idade para Goiânia, vindo da cidade
paulista de Igarapava, que fica na fronteira com Minas Gerais. Ele chegou à nova
capital no mesmo ano que a primeira edição de O POPULAR era publicada na
cidade.
pelo Dr. Joaquim Câmara Filho, que o meu avô, Fioravante Bariani, transferiu-
se com toda a família para cá, montando uma serraria de desdobrar madeira,
tornando-se a primeira indústria urbana de Goiânia, a Serraria Bariani”, recorda o
escritor. As trajetórias do jornal e desse paulista de múltiplos talentos correram em
paralelo. Por mais de 20 anos, entre 1991 e 2012, ele foi cronista fixo de O Popular,
compartilhando vivências e histórias de alguém que viu (e foi) muita coisa.
n
20
Cristina Cabral
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Basileu
França
Um mestre, com carinho
U
ma escola com formação completa, em que além das disciplinas regulares e
tradicionais, os alunos tinham acesso a outras habilidades, a campos diversos de
conhecimento. Era nesse sentido que o educador Basileu Toledo França direcionou
seu trabalho. Mais, direcionou sua vida. “Nos anos 1950, em Goiânia, ele fundou
o Instituto França, onde os alunos tinham acesso a esportes, jogos, brincadeiras,
gincanas, escotismo e onde ele promovia a leitura de livros junto à criançada. Havia
almoço e estudo dirigido para quem ficava em período integral”, diz seu filho, José
Manuel França.
De acordo com os três filhos, o pai adorava contar passagens de sua infância em
Jataí. Histórias que ele narrava com um sabor todo especial. Sua terra natal, aliás,
nunca saiu de seu coração. “A homenagem em vida que mais o comoveu foi em sua
querida Jataí, quando inauguraram um Centro Cultural que recebeu o seu nome”,
assegura José Manuel. Em 2003, após ficar viúvo da esposa, a também professora
Ada Gomes França, e convalescendo de uma doença grave, o professor Basileu
faleceu. Ficou a memória de um professor que soube fazer a diferença na vida de
seus alunos.
n
22
Ênio Tavares
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Belkiss
Spenciére
A dama do piano
E
m seu belo sobrado na Avenida Tocantins, onde morou desde um tempo em
que Goiânia vivia em outro ritmo, a musicista Belkiss Spenciére tinha um
belíssimo piano Steinway de cauda inteira, um instrumento maravilhoso e raro
em Goiânia. Nele, ela deu aulas para alunos e parentes. Nele, costumava dar
luxuosas mostras de seu talento para visitas especiais ou reuniões sociais. Com
ele, com muitos outros pianos que passaram por suas delicadas mãos, a neta da
também pianista Nhanhá do Couto fez história na música em Goiás e expressou
uma personalidade doce e singular.
“Eu tive uma ligação muito próxima com tia Belkiss, comparável à de uma
mãe com uma filha”, diz, saudosa, a sobrinha Anunziata Spenciére, professora de
literatura e musicista – o talento parece estar mesmo no sangue da família. “Ela
sempre se preocupava com as outras pessoas. Eu ainda me impressiono como ela
conseguia arranjar tempo para ajudar todo mundo. Sempre tinha uma atenção
especial com todos.” Um comportamento que não se limitava às pessoas de sua
convivência habitual. Dona Belkiss, como era conhecida, voltava seus olhos para
várias áreas.
23
“Tia Belkiss deu muito apoio ao teatro, às artes plásticas, fazia campanhas para
ajudar projetos. Ela sempre recebia pedidos nesse sentido e tentava atender todos”,
recorda Anunziata. “Ela possuía uma capacidade enorme para arregimentar pessoas
em torno de causas. Isso acontecia porque desfrutava de um prestígio imenso com
todas as áreas da sociedade.” Foi com esse espírito empreendedor e criativo que ela
reuniu forças para realizar um grande sonho de sua avó. Após uma fase de estudos
no Rio de Janeiro, Belkiss retornou a Goiânia para fazer algo inédito na cidade.
n
24
Marisa de Sousa
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Bernardo
Élis
Tradutor do
homem e do sertão
F
ilho de peixe, peixinho é. Sim, o ditado é batido, mas se enquadra à perfeição a
Bernardo Élis. Ganhador de dois Prêmios Jabuti, o mais importante da literatura
brasileira, e único escritor goiano a ingressar na Academia Brasileira de Letras,
esse goiano de Corumbá tinha em casa um exemplo e tanto. Érico Curado,
pai de Bernardo, foi o introdutor de movimentos literários importantes em
Goiás, como o Parnasianismo e o Simbolismo, e integrou a Academia Goiana
de Letras. Desde cedo, portanto, um certo menino tinha à sua disposição um
universo enorme de erudição.
Aos 13 anos de idade, Bernardo fez o caminho natural daquela época, saindo
de sua pequena Corumbá e indo estudar na capital, a cidade de Goiás. A profissão
que escolheu foi a de advogado, formando-se em Direito, e chegou a trabalhar
como escrivão de polícia em Anápolis antes de mergulhar definitivamente nas
letras. Desde a adolescência, escrevia pequenos contos inspirados em autores de sua
preferência, como Machado de Assis e Eça de Queiroz. Em 1944, faria sua estreia
definitiva com os contos de Ermos e Gerais, um livro seminal em vários sentidos.
25
Editado pelo prestigiado selo José Olympio, do Rio de Janeiro, a obra de Élis
logo tornou-se assunto nas rodas literárias. Naquela época, a então capital federal
concentrava boa parte da vida cultural brasileira e o autor goiano passou a ser
conhecido (e lido) por nomes de peso. Um deles foi ninguém menos que João
Guimarães Rosa. Eles dialogaram e se influenciaram mutuamente em alguma
medida. Os sertões e o Cerradão de Goiás e Minas Gerais estavam nas obras de
ambos, mas com abordagens universais, falando profundamente do ser humano e
suas contradições.
n
26
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Bernardo
Sayão
O mito do Oeste
N
a estrada que abria, ele morreu. Em janeiro de 1959, Bernardo Sayão trabalhava nas
obras da Rodovia Belém-Brasília quando uma árvore que estava sendo retirada caiu
e o atingiu. A fatalidade foi um emblema para um homem que dedicou boa parte de
sua vida a fazer conexões, a ligar as pessoas por caminhos que não existiam. “Tem
ares de uma tragédia grega”, pondera o historiador Sandro Dutra, que pesquisou
a vida de Sayão para escrever o livro No Oeste, A Terra e o Céu: A Expansão da
Fronteira Agrícola no Brasil Central. “Ali começa a nascer seu mito.”
Bernardo Sayão era um carioca da gema, que gostava de natação e foi atleta.
Formado em Agronomia, decidiu que o litoral onde nascera não era exatamente o
lugar em que gostaria de viver. Preferia se embrenhar pelo interior do Brasil e isso foi
fundamental para ele e para as regiões às quais se dedicou. “Ele vai ter sua história
totalmente relacionada ao Centro-Oeste e ao Norte do País”, pontua Sandro, que é
professor da UEG e da UniEvangélica, de Anápolis, e foi pesquisador visitante da
Universidade da Califórnia (EUA). Isso fez Sayão ser chamado de “desbravador”.
Sandro Dutra enfatiza que mesmo Bernardo Sayão tendo sido personagem central
na chamada “Marcha para o Oeste”, patrocinada pelo governo Getúlio Vargas, a
imagem de um homem que desbravava os sertões – termo que era evitado na época
27
porque era considerado pejorativo – só lhe foi associada após a morte. “Em um livro
sobre o neobandeirismo, publicado por Cassiano Ricardo, o autor fala de Cândido
Rondon e até de Juscelino Kubitschek como esses novos ‘bandeirantes’ do País, mas
não cita Sayão. Mas as circunstâncias de sua morte mudaram isso.”
“Até a década de 1930, Goiás ainda era um Estado muito pecuarista. Era
impensável que essa região fosse um celeiro agrícola. Nesse sentido, Sayão teve
um papel precursor. Em 1943, ele inaugura um aeroporto de cargas em Anápolis
para transportar tais produtos. Isso será fundamental na construção de Brasília”,
destaca Sandro. O escritor norte-americano John dos Passos, no livro O Brasil
em Movimento, conta seu encontro com Sayão. Em 1947, a revista Time faz uma
reportagem com ele. “Acho que deveria ter um reconhecimento maior do que tem”,
opina o historiador.
n
28
Valéria Pacheco
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Boogarins
Os quatro
meninos de Goiânia
D
ez anos é um período longo o suficiente para adquirir experiência, mas também
pode ser um intervalo curto diante do sucesso amealhado, das conquistas realizadas,
da influência exercida em sua área de atuação. Para a banda Boogarins, as duas
leituras são válidas. Benke Ferraz, Fernando Almeida e Raphael Vaz, juntos desde
o início, têm dez anos inesquecíveis para contar. Hans Castro, o outro integrante
da formação inicial, deu lugar a Ynaiã Benthroldo, que ingressou no grupo de rock
psicodélico em 2014. Juntos, têm derrubado uma barreira atrás da outra.
“Desde moleques, todos nós íamos aos shows dos festivais de rock que
aconteciam em Goiânia. Acho que essa cena roqueira na cidade está inteiramente
ligada à nossa trajetória”, afirma Benke. “Eu e o Dinho [Fernando] nos conhecemos
no Instituto Federal Goiano, onde estudávamos. O restante da banda chegou a partir
dessa cena rock. Eles tocavam em outras bandas.” Em entrevista ao POPULAR
concedida em 2013, Benke admite que a ideia inicial sequer era formar uma banda.
Ele e Dinho se reuniam para gravar aleatoriamente, tirar um som sem maiores
pretensões.
29
n
30
Lailson Duarte
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Carmo
Bernardes
A sabedoria do sertanejo
“E
screverei enquanto tiver vivência”, avisava Carmo Bernardes na edição de 1º de
outubro de 1972. E cumpriu a promessa. Quando morreu em 1996, o escritor deixou
um legado literário, sociológico e antropológico que foi construído até os limites de
suas forças. Herança preciosa que só alguém com muita, mas muita vivência seria
capaz de amealhar. “Ele não media esforços para fazer o que queria”, define sua neta,
a veterinária Ana Flávia Bernardes de Oliveira. “Com ele, aprendi a falar o que penso
e a correr atrás do que desejo. Ele era assim e fazia isso defendendo a natureza e a
vida.”
n
32
Sheila Leal
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Célia
Câmara
Uma verdadeira mecenas
Q
uando Maria Célia Câmara morreu em 28 de setembro de 1998, ela deixou uma
multidão de órfãos. Ela, que teve um filho biológico – Jaime Câmara Júnior –,
adotara gerações de artistas de Goiás ou que aqui vieram construir suas carreiras,
incentivando, adquirindo obras, organizando exposições, dando visibilidade aos
trabalhos. Desde que iniciou sua atuação como marchand, a mais prestigiada da
capital goiana e uma das de maior renome no Brasil, nenhum grande nome das artes
plásticas do Estado ficou sem sua avaliação e auxílio, sobretudo quando ainda eram
desconhecidos.
Quando Jaime Câmara foi eleito deputado federal nos anos 1970, Célia instalou-
se em Brasília, sedimentando uma ponte sólida nas artes entre a capital federal e
Goiânia. Com isso, pôde ampliar as possibilidades dos artistas sob seus cuidados.
E eles foram muitos. Antônio Poteiro, Siron Franco, Amaury Menezes. Todos eles
tiveram em Célia Câmara um esteio e um estímulo, o que ficou ainda mais forte
quando ela abriu, em 1972, a Casa Grande Galeria de Arte, espaço nobre para
mostras coletivas e individuais, para lançamentos de projetos e outras iniciativas
culturais.
Assim, Célia
Câmara foi Ficaram famosos seus concursos de Novos Talentos, em que identificava quem
fundamental na estava fazendo bons trabalhos, mas ainda não havia tido uma oportunidade. Essa
ação promoveu uma interação mais orgânica entre artistas que surgiam e os que já
carreira de uma
estavam consolidados no mercado, enriquecendo o trabalho de todos. Assim, Célia
lista extensa Câmara foi fundamental na carreira de uma lista extensa de artistas plásticos: Cléber
de artistas Gouvêa, DJ Oliveira, Roos, Cléia Costa, Isa Costa, Elder Rocha Lima, Alexandre
plásticos: Cléber Liah, Omar Souto, Juca de Lima, Selma Parreira e Gilvan Cabral, entre muitos
Gouvêa, DJ outros.
Oliveira, Roos,
A ligação estreita dessa mulher incansável com o meio artístico-cultural goiano
Cléia Costa, Isa
foi definitivamente selada com a criação da Fundação Jaime Câmara, em 1995,
Costa, Elder oportunidade em que o jornal O Popular completava 57 anos de existência. Para
Rocha Lima, além da cultura, a nova entidade, sem fins lucrativos e de utilidade pública, nasceu
Alexandre Liah, atuando em diversas áreas. Além de forte apoio a ideias no campo da cultura, que
Omar Souto, passavam pela inclusão, formação de público e diversidade de ideias, a Fundação
Juca de Lima, Jaime Câmara também tinha forte presença em projetos de educação e saúde.
Selma Parreira
Antes disso, no início dos anos 1980, Célia Câmara foi pioneira em outro aspecto.
e Gilvan Cabral, Pessoa forte e de atuação independente, ela acreditava que a mulher deveria ter
entre muitos protagonismo na sociedade, ditar seus próprios destinos e combater preconceitos e
outros. estereótipos. Por isso, ao lado da jornalista Glória Drummond, que trabalhava em
O Popular, concebeu e colocou no ar o programa Mulher, em 1981, em que todos
esses temas eram debatidos abertamente. Isso era inédito em Goiás e foi uma das
primeiras atrações do gênero no País, ficando no ar por seis anos.
n
34
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Cici
Pinheiro
A dona da história
“F
oi a partir do meu trabalho que as pessoas passaram a acreditar na qualidade da
televisão goiana”, costumava dizer Floracy Alves Pinheiro, lembrada ainda hoje
pelo nome Cici, uma verdadeira desbravadora das artes cênicas em Goiás. “Ela era
muito poderosa nesse aspecto”, confirma Antenor Pinheiro, sobrinho e filho adotivo
da teatróloga, cineasta e atriz que, a partir de 1949, revolucionou o meio artístico
estadual e estabeleceu conexões com o que se fazia na área em outros lugares.
Uma longa e árdua caminhada que gerou muitos frutos, mas também diversas
frustrações.
“Tia Cici era uma mulher forte e contraditória”, descreve Antenor. “Ao mesmo
tempo que era uma pessoa muito à frente de seu tempo, que desafiava a sociedade
em termos comportamentais, politicamente era uma conservadora”, ri o sobrinho
que, juntamente com seus irmãos, foi criado pela tia protetora. Rígida na educação
das crianças, era também bastante exigente no trabalho e não dava folga na luta para
viabilizar seus projetos. “Ela teve muitos embates com o poder público ao longo da
carreira. Tentava levar a arte para a população, como instrumento libertador.”
Essa visão de mundo a fez ir atrás de seus sonhos muito cedo. Sua estreia foi na
35
Cici enveredou Em 1952, Cici já estava no ar no prestigiado Teleteatro da TV Tupi, em São Paulo,
pelo cinema, e encenava uma peça de Nelson Rodrigues. Após voltar a Goiás, trouxe inovações,
como a ousadia de colocar nos palcos de Goiânia um beijo na boca, na montagem
produzindo
da peça Deslumbramento. Seus vínculos com o teatro paulista continuaram e
o filme O ela retornou para integrar-se ao elenco do Teatro Brasileiro de Comédia (TBC),
Ermitão de dividindo a coxia com Cacilda Becker, Walmor Chagas, Augusto Boal e Flávio
Muquém. Rangel. Com esse know how, Cici alçou voo ainda mais corajoso: produzir TV ao
Pelo currículo vivo em Goiás.
que formou,
Isso aconteceu em 1965, quando assinou A Família Brodie, levada ao ar pela TV
passou a ser Anhanguera. É a primeira telenovela goiana da história, com duração de 3 meses.
uma referência O sucesso foi arrebatador, o que ajudou a conquistar público para seus projetos
na área em no teatro. Dois anos depois, nova experimentação. Cici enveredou pelo cinema,
Goiás, o que produzindo o filme O Ermitão de Muquém. Pelo currículo que formou, passou a ser
a estimulou uma referência na área em Goiás, o que a estimulou a encampar outras iniciativas,
a encampar como a criação de grupos teatrais e a inauguração de espaços. Com os amigos
sempre por perto.
outras
iniciativas, “Nossa casa era muito frequentada por artistas daqui e de fora”, recorda Antenor.
como a criação “João Benio e Otavinho Arantes eram muito próximos dela. Tia Cici também lançou
de grupos nomes como Stepan Nercessian, Thelma Reston, Françoise Forton”, enumera. “E ela
teatrais e a recebia muitas visitas. Rolando Boldrin, Dina Sfat, Márcia de Windsor, Ziembinski,
inauguração de todos eles, quando vinham a Goiânia, faziam questão de reencontrá-la.” Um
prestígio que Cici empregava na montagem de temporadas de peças infantis com
espaços. entrada gratuita. “Eu mesmo fui ator em várias delas”, revela Antenor.
Os anos 1980 foram complicados para a teatróloga. Com o País em crise e pouca
atenção à cultura, ela ficou ressentida com tantas dificuldades. “Não pude fazer
tudo o que queria porque estou numa terra de bugres”, queixou-se certa vez. “Ela
reclamava que em Goiás, as pessoas valorizavam muito mais os bois e a soja que
a arte”, referenda Antenor. Sua última peça ocupou o palco em 1989. Era Gimba,
O Presidente dos Valentões. Três anos depois, a maior realizadora que o teatro de
Goiás já possuiu saía de cena, sem ver uma política cultural séria e abrangente ser
implementada.
n
36
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Coimbra
Bueno
Ele ergueu Goiânia
Q
uando Jerônimo Coimbra Bueno recebeu o diploma de Engenharia, com
especialização em Urbanismo, pela Universidade do Brasil, no Rio de Janeiro, a
decisão de realizar a obra que lhe tornaria notório estava sendo tomada. O ano de
1933 seria fundamental para Goiânia e para o homem que tocaria as obras de sua
construção. “Ele cuidou de toda a execução naquele primeiro momento”, pontua o
jornalista Hélio Rocha, que pesquisou sobre a vida do empreiteiro, que trabalhava ao
lado do irmão, Abelardo Coimbra Bueno.
“Naqueles tempos, eram poucas as empresas que conseguiam aceitar esse tipo de
encomenda. Mas os irmãos Coimbra Bueno se interessaram”, diz Hélio. Nascidos em
Rio Verde, filhos de um poderoso comerciante e fazendeiro, havia ligações entre os
engenheiros e o fundador da nova capital, que também começou sua vida política no
sudoeste goiano. “Durante as obras, eles não receberam diversos pagamentos. Pedro
Ludovico deu em troca amplas áreas de Goiânia para saldar os débitos. Áreas que
são hoje, exatamente, os setores Coimbra e Bueno”, informa Hélio Rocha.
arquiteto Attílio Corrêa Lima, contratado para desenhar o projeto da nova capital.
Já no ano seguinte, os dois, que nunca se deram bem, se desentenderam de vez,
fazendo Attílio abandonar o trabalho. Com isso, houve inúmeras modificações
no plano urbanístico original, sendo o mais radical a construção do Setor Sul, já a
cargo de outro profissional, Armando de Godoy.
n
38
Cristina Cabral
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Colemar
Natal e Silva
Disseminador de ideias
P
oucas pessoas em Goiás poderiam se orgulhar de ter fundado tantas instituições de
importância no Estado e participar tão ativamente da história de seu tempo quanto o
professor Colemar Natal e Silva. Por muitos foi chamado de “disseminador de ideias”.
Por outros foi qualificado de “semeador do futuro”. Quando vemos em perspectiva
todo o legado por ele deixado, fica difícil discordar dessas definições. Seu espírito
desbravador, principalmente nos campos da educação e da política, lhe valeram a
imagem de um dos homens mais centrais nos destinos goianos no século 20.
Homem de confiança de Pedro Ludovico, Colemar foi escalado para algumas das
missões de maior destaque daquele período. Ele integrou a comissão que, em tese,
39
definiu o local onde seria construída a nova capital goiana. Sua presença aumentou
a legitimidade do grupo de notáveis destacado para essa tarefa, ainda que pesquisas
recentes comprovem que a região que abrigaria Goiânia já estava definida antes do
relatório final da comissão. Também coube a Colemar, já como Procurador-Geral do
Estado, encerrar a disputa por fronteiras entre Goiás e Minas Gerais.
n
40
Hélio Nunes
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Cora
Coralina
A moradora da
famosa casa
P
Fale em Goiás e surgirá um nome: “é a terra de Cora Coralina”, dirão,
provavelmente. Essa associação é cada vez mais imediata. Se a conversa girar em
torno da antiga Vila Boa, então, será inescapável mencionar uma certa casa caiada de
branco, na beira de um rio, ao lado de uma ponte. Ali viveu Ana Lins dos Guimarães
Peixoto Bretas, poeta e doceira, um dos nomes mais festejados da literatura brasileira
nas últimas décadas. Com seus poemas simples, sem maiores formalismos, a
imagem da senhora simples encanta cada vez mais o público por seu lirismo com
sabor da terra.
“Cora Coralina era uma pessoa muito interessante. Passava a maior parte do
tempo aqui, na cozinha”, mostra Marlene Velasco, diretora do Museu Casa de
Cora, instituição que ocupa o antigo imóvel da poeta, um casarão centenário que
pertenceu à família da escritora por gerações. O imenso quintal nos fundos da
residência é o lugar onde ainda está plantado um variado pomar, fonte de matéria-
prima saborosa para os doces mais famosos da antiga capital goiana. “Não sou
41
uma ex-doceira. Sou uma doceira e considero melhores os meus doces que meus
versos”, escreveu Cora.
n
42
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Coronel
Hipopota
Chacrinha do
Cerradão
O
programa era uma grande farra. Nos antigos estúdios da TV Anhanguera, um
senhor corpulento comandava ao vivo uma verdadeira balbúrdia, em que frutas da
feira se misturavam a cantores em busca de 15 segundos de fama. Tudo regido pelo
Coronel Hipopota, nome artístico de Maximiliano Carneiro, filho de pais libaneses,
nascido em Araguari (MG). Com A República Livre do Cerradão, líder absoluto de
audiência nas tardes de sábado, esse homem tornou-se o nosso Chacrinha, a figura
que usava de carisma, autenticidade e um pouco de anarquia para falar com o povo.
A casa era muito movimentada. Vários artistas, sabendo onde ele morava,
apareciam por lá para pedir uma chance, mostrar o que sabiam fazer e, quem sabe,
ganhar um espaço em um dos programas mais assistidos da época. “As duplas
sertanejas iam lá em casa para que ele pudesse avaliar se entrariam ou não no ar. Eu
me lembro de Zazá e Zezé cantando e tocando sanfona para papai ouvir. Zezé é o
Zezé di Camargo, que no início fazia dupla com seu outro parceiro, o Zazá”, conta
Jane. “Meu pai ficava até de madrugada pensando como incrementar o programa.”
Além de lidar de forma tão intensa com seu público, o Coronel Hipopota tinha
uma paixão ardente pelo Vila Nova Futebol Clube. “Era colorado doente”, diverte-se
Jane. Já em Minas, seu time era o Uberaba. O homão, porém, ficava amedrontado
com chuvas fortes. “Morria de medo”, resume a filha. Jane considera que teve um
pai amoroso, que colocava a família acima de tudo e que tinha adoração pelos três
netos que ganhou. “Mas quando ficava nervoso, meu Deus, era melhor sair de baixo”,
completa. “Mas a raiva dele era passageira.” Já sua imagem, essa imortalizou-se.
n
44
Douglas Schinatto
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Cristiana
Toscano
A inimiga dos vírus
O
câmpus da Universidade de Yale, uma das mais importantes do mundo, viu uma
história de amor nascer mais de cinco décadas atrás. Vicente, vindo do interior
paulista e filho de italianos, foi para os EUA fazer um pós-doutorado em Química.
Lá, conheceu Patrícia, norte-americana que cursava seu mestrado em Enfermagem.
Eles se apaixonaram, se casaram, tiveram os dois primeiros filhos por lá e decidiram
prosseguir no Brasil as suas vidas. Ambos sabiam que por aqui havia a necessidade
da atuação de quem pudesse fazer a diferença na ciência e na saúde. No novo lar,
nasceram mais dois filhos, entre os quais Cristiana Toscano, uma das maiores
autoridades mundiais em vacinação atualmente.
“Acho que herdei tudo isso dos meus pais”, brinca Cristiana, que representa
esse duplo esforço (ciência e saúde), sobretudo nos últimos anos, combatendo a
Covid-19. Professora da UFG há mais de dez anos, quando se mudou para Goiânia
acompanhando o marido engenheiro que é daqui, Cristiana integrou os comitês de
crise para a pandemia em Goiânia e Goiás, além de ser membro da Câmara Técnica
de Apoio de Imunização, figurando como única latino-americana a estar no Grupo
Estratégico Internacional de Experts em Vacinas e Vacinação da Organização
45
A alta mortalidade de pessoas por tétano, uma doença prevenível com vacina,
chamou sua atenção para a importância da imunização, área em que é destaque
internacional. Mãe de dois filhos, ela consegue conciliar as várias facetas de sua vida.
“Para manter a sanidade, a gente precisa priorizar as coisas que fazem a vida valer a
pena. Família, relacionamentos, pessoas que lhe são próximas. Isso é fundamental
para atravessarmos as crises”, aconselha. “Tenho que ter esperança para continuar
levantando todo dia.” A cultura é algo que lhe dá ânimo. Além da música, Cristiana
sabe apreciar a boa literatura. “E também adoro História, para não repetirmos os
mesmos erros do passado”, conclui.
n
46
Cristina Cabral
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Dom Pedro
Casaldáliga
O destemido
bispo do povo
O
Bispo do Povo. Esse título não existe na hierarquia da Igreja Católica, mas deveria,
ainda que fosse para conferi-lo a d. Pedro Casaldáliga, um homem que mostrou
de maneira intensa como o sacerdócio pode estar ao lado dos mais necessitados,
dos mais desassistidos, dos mais perseguidos. Há meio século, aquele homem de
aspecto frágil foi uma fortaleza em um meio hostil. No final dos anos 1960, ele veio
da Espanha para o Brasil e escolheu se embrenhar no interior do País em busca de
quem precisava de sua ajuda. Em 1971, tornou-se bispo da Prelazia de São Félix do
Araguaia.
“Eu o conheci logo que chegou e fui trabalhar com ele no Mato Grosso assim que
se tornou bispo”, recorda Antônio Canuto, ex-padre ligado à Comissão Pastoral da
Terra e à Teologia da Libertação, tendência de esquerda que parte do clero brasileiro
seguiu e ampliou, tendo d. Pedro como um de seus expoentes mais destacados. Ao
assumir o cargo, o religioso lançou a carta pastoral Uma Igreja da Amazônia em
47
Sua última aparição pública foi em 2016, quando participou da Romaria dos
Mártires, evento que o próprio d. Pedro criou nos anos 1980 para chamar a atenção
para os mortos nos conflitos agrários da Amazônia. Acompanhando-o em sua
cadeira de rodas estavam trabalhadores sem-terra, indígenas. Também estava a
lembrança do padre João Bosco Burnier, que foi executado em 1976, dentro de uma
delegacia de um distrito de Barra do Garças, na frente de d.Pedro, que tentou conter
o assassino. O Bispo do Povo partiu em 8 de agosto de 2020, aos 92 anos de idade.
n
48
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Dom Fernando
Gomes
Vida sem medo
e sem violência
Q
uando todos se calaram, ele falou. E falou alto, com sua voz possante. Nos anos de
chumbo do regime militar instalado em 1964, em pleno governo do general Médici,
o arcebispo de Goiânia, Dom Fernando Gomes dos Santos, publicou a carta pastoral
Como Vemos a Situação da Igreja em Face do Atual Regime, em que lançava críticas
duríssimas, e até então impensáveis naquele 1973, contra a ditadura. “A base mais
forte do sistema está na força das armas que dispõe de todos os meios para fazer o
povo suportá-lo”, alegou. Ali, ele marcou uma posição histórica e inspiradora.
Aquele Dom Fernando de 1957 era bem diferente do bispo que enfrentou os
militares em 1973. “A grande virada, a meu ver, foi sua preparação para as mudanças
implementadas pelo Concílio Vaticano II”, explicou o padre Alaor, que morreu
em 2020, vítima da Covid. A forte revisão das normas da Igreja Católica, que
demandaram debates entre 1962 e 1965, aproximou a instituição do povo, retirando
Esse era seu barreiras e simplificando ritos, além de lançar um olhar mais atento aos problemas
jeito de ser: sociais dos fiéis. “No início, Fernando resistiu, mas depois, bem assessorado, foi se
convencendo da importância daquele momento.”
sólido nos
argumentos, Dom Fernando havia estudado em Roma em sua juventude, quando saiu de
contundente Patos, interior da Paraíba, para se tornar um religioso de carreira precoce. Durante
nas falas, o Concílio, reunido no palácio Domus Mariae e participando de quatro das sessões
determinado nas principais, impressionou seus colegas de batina com elogiadas intervenções. “Ele
ações. Quando passou a ser citado nos corredores do Vaticano”, destacou Alaor. Ainda jovem para
os padrões eclesiais, ele já havia ocupado o posto de bispo de Aracaju e liderava uma
ainda estava arquidiocese próxima à capital federal. Seu prestígio estava em alta.
na capital
sergipana, Esse era seu jeito de ser: sólido nos argumentos, contundente nas falas,
organizou determinado nas ações. Quando ainda estava na capital sergipana, organizou uma
uma reunião reunião de bispos, ao lado de Dom Hélder Câmara, para afinar os discursos e
de bispos, ao fortalecer a posição da Igreja. Esse encontro foi a semente da Conferência Nacional
dos Bispos do Brasil, entidade da qual quase foi o primeiro presidente. “Dom Agnelo
lado de Dom Rossi acabou ganhando a disputa e se tornou também arcebispo de São Paulo. Mas
Hélder Câmara, Juscelino Kubitschek conheceu Fernando nessa época e uma simpatia mútua surgiu”,
para afinar informou Alaor.
os discursos
e fortalecer “Ele veio para Goiânia por acaso”, revelou o padre, que esteve ao lado do
a posição da arcebispo até sua morte e escrevia uma biografia sobre ele. “JK pediu que Dom
Fernando fosse arcebispo de Brasília, mas em 1957 não havia nada lá, nem igreja.
Igreja. Foi quando criaram a Arquidiocese de Goiânia e o instalaram aqui, onde havia mais
condições.” E aqui ficou até sua morte, desempenhando um papel especial. “Ele
apoiou fortemente as comunidades eclesiais de base, acolheu missionários, como
Dom Pedro Casaldáliga, aproximou a Igreja da realidade do trabalhador e criou a
UCG.”
n
50
Wildes Barbosa
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Dom Tomás
Balduíno
O bispo da terra
D
om Tomás Balduíno rasgava os céus de Goiás, Mato Grosso e Tocantins com certa
frequência. O bispo emérito da Cidade de Goiás, arquidiocese de que cuidou por
muitos anos e a partir da qual promoveu uma verdadeira revolução na ala mais
progressista da Igreja brasileira, tinha brevê de piloto e não se incomodava em subir
em seu pequeno avião e rumar para alguns dos locais mais remotos e perigosos
dessas regiões. “Pilotei até 83 anos de idade. No meu aviãozinho, eu voei este Brasil
inteiro”, declarou a O POPULAR em dezembro de 2012, quando completou 90 anos
de vida.
“Certa vez, fui ao enterro do padre Rodolfo Lunkenbein, que trabalhava entre os
índios bororos, no Mato Grosso, e que havia sido assassinado na missão”, lembrou
ele, na entrevista a O Popular. “Muito tempo depois, um jornalista de Brasília pediu
para eu dizer onde estava naquela data, em 1976. Disse que estava no funeral. Ele
perguntou onde eu deveria estar se não tivesse ido ao enterro. Disse que estaria
numa paróquia, que prefiro não dizer o nome. Um documento a que o repórter teve
acesso mostrava que havia um plano para me matar naquele dia, naquela paróquia.”
Homem culto – tinha uma biblioteca com 2 mil volumes – e que acreditava que
o sacerdócio se exerce no meio das pessoas mais pobres, Dom Tomás Balduíno
angariou respeito até entre aqueles que dele discordavam. Ele se assumia como um
homem de esquerda, mas não para defender partidos ou pessoas específicas. “Sou
de uma esquerda que valoriza a participação dos pobres nas decisões importantes,
que tem esperança de um amanhã melhor.” Até o final de sua vida, aos 91 anos, foi
coerente com seus ideais, gostemos deles ou não.
n
52
Simone Ala
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Egídio Turchi e
Celenita Turchi
O casal que
amava a docência
U
m vestígio do sotaque italiano ainda transparecia na fala de Egídio Turchi. Já o bom
humor, o espírito otimista, a fala fácil e envolvente, essas características o professor
Egídio, como ficou conhecido, manteve de sua querida San Benedetto in Alpe, aldeia
próxima a Florença. A casa de sua família era um imóvel histórico, conhecido por ter
hospedado em 1290 o poeta Dante Alighieri, autor da Divina Comédia. Sobre Dante,
aliás, o professor Egídio adorava dar aulas, em que demonstrava toda sua paixão pela
docência, atividade que cumpriu por mais de 50 anos.
“Meu pai veio para Goiânia em 1944 e lecionou em quase todos os colégios.
Em 1948, foi nomeado para o Liceu de Goiânia”, relata a também professora Zaíra
Turchi, filha de Egídio e de outra docente, Celenita Turchi. O casamento entre
os dois foi realizado em 1951 e consolidou a mudança dos rumos da vida de um
homem que veio ao Brasil evangelizar. Após estudar em Turim, Egídio integrou-
se em uma missão religiosa em Cuiabá. A falta de vocação para ser padre logo
53
se manifestou e ele decidiu vir para Goiás. “Desde o primeiro dia que pisei nesta
terra, sabia que viveria aqui o resto da vida”, declarou, para uma reportagem de O
POPULAR sobre seus 90 anos.
“Uma lembrança dos meus avós era a certeza de que iam me solucionar as
dúvidas da escola e do mundo. Meu avô sempre me contava as coisas que estavam
no jornal, mas, no fim, me contava a história do mundo, o que ele estava vendo das
coisas”, lembra o neto João. “Com minha avó era o texto. O primeiro texto com que
ganhei prêmio, quem corrigiu foi ela”, diz o neto, que também é escritor e mais uma
pessoa que teve a paixão pela palavra despertada pelo casal Turchi.
n
54
Ricardo Rafael
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Elder Rocha
Lima
“Minha cabeça é boa.
Então, continuo”
O
nome de Elder Rocha Lima se confunde com as discussões sobre arte em Goiás
nas últimas décadas. “Eu me lembro de uma grande reportagem em O POPULAR
sobre uma exposição que fiz lá nos anos 1970”, rememora. Sim, mas antes disso ele
já figurava na cena cultural goiana, sendo jurado de concursos, apresentando suas
obras, revelando novos projetos. E esse ritmo parece ser o mesmo tantas décadas
depois. “Tenho 90 anos, meu filho”, disse, em 2018, sem timbre de tristeza em uma
voz ainda jovial. Homem experiente, hoje com 94 anos, que não abre mão de ser
lúdico.
“Eu comecei a pintar por volta de 1960, mas antes eu já nutria verdadeira paixão
pelo desenho”, revela. “Acho que o desenho é uma espécie de arte espontânea. Já
nascemos com essa capacidade. Tenho netos e montei uma pequena coleção dos
desenhos que eles fazem. É uma maravilha. Acho que demorei 40 anos aprendendo
como pintar como uma criança.” O ato de se deslumbrar diante da vida e do mundo
55
é, talvez, uma das maiores virtudes de seus trabalhos. O Cerrado e suas belezas
naturais, seus matizes e seus cenários inspiram Elder a seguir na arte, sempre
revigorado.
“Vendo meus quadros mais antigos, eu percebo que não mudei muito durante
todo esse tempo. Sou um pintor figurativo. Até tentei fazer algo mais abstrato, mas
me dei mal”, reconhece. “Eu me peguei instintivamente desenhando e pintando o
Cerrado, em uma época em que preocupações ambientais não eram prioridades.
“Meu trabalho Meu trabalho é uma grande homenagem ao Cerrado, essa maravilha que corre o
é uma grande risco de desaparecer. O agronegócio está ameaçando esse patrimônio natural. Há
muitos meliantes do Cerrado, políticos que o destroem por dinheiro”, indigna-se.
homenagem ao
Cerrado, essa No intuito de conseguir ver partes do Cerrado ainda preservadas, Elder costuma
maravilha ir ao Parque dos Pireneus, na região de Pirenópolis e Corumbá de Goiás, onde ainda
que corre encontra paisagens que o remetem a um passado quando a região não havia sofrido
o risco de tanto com a ação humana. “Eu passo um tempo em Brasília, mas estou sempre
desaparecer. percorrendo essas áreas. Estou construindo um novo ateliê, organizando o acervo
que tenho”, informou, em 2018. As quase nove décadas e meia de vida não parecem
O agronegócio
pesar. “Tenho bastante pique. Minha saúde é boa, minha cabeça é boa. Então,
está continuo.”
ameaçando
esse Com essa disposição toda, não é de admirar que o artista plástico esteja sempre
patrimônio com novidades. Ele já lançou sete livros em sua carreira, em que faz um verdadeiro
natural. memorial de suas paisagens prediletas. Os casarios de Pirenópolis e da cidade de
Goiás ganham destaque nesse conjunto. No livro Guia Sentimental da Cidade
Há muitos
de Pirenópolis, por meio de desenhos e pinturas, Elder Rocha Lima reconstrói
meliantes episódios formadores do antigo Arraial do Meia-Ponte. Em Guia Afetivo da Cidade
do Cerrado, de Goiás, ele percorre caminho semelhante pelas ruas de pedra da antiga Vila Boa.
políticos que o
destroem por Ex-professor de Arquitetura, Elder sabe como poucos reconhecer a arte que
dinheiro” tantas vezes está oculta em centros urbanos. Desses traçados, ele consegue extrair
o belo, o espírito daquele lugar. Em 2006, fez uma grande exposição na cidade de
Goiás abordando justamente esses aspectos. Naquele ano, Elder foi o principal
homenageado da edição do Festival de Vídeo e Cinema Ambiental, o FICA. Para
retribuir, apresentou uma série de telas em que a junção entre arquitetura colonial
e meio ambiente, que ajudou a cidade a conquistar o título de Patrimônio da
Humanidade, era ressaltada.
Seu processo criativo, porém, é paciente. Elder não gosta de pintar em escala
industrial. “Acho ótimo deixar o trabalho descansando. Vou vendo os defeitos e
retocando. Na hora que estou pintando, não tenho a perspectiva exata do que quero”,
declarou ele naquela ocasião, em 2006. Na época, ele revelou seu lema profissional:
“Se você quiser ser universal, pinte sua aldeia”. A aldeia de Elder Rocha Lima
pode ser Pirenópolis, pode ser a cidade de Goiás, podem ser montanhas, veredas,
chapadões do Cerrado goiano. Cenários que ele pinta como ninguém.
n
56
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Família
Matteucci
O horror de um crime
E
m uma manhã de dezembro de 1957, Goiânia viveu um dia de terror. A cidade, que
contava com apenas 24 anos de existência, deparou-se com uma cena de violência
ainda inédita para seus habitantes. Em uma casa da Rua 74, no antigo Bairro Popular,
moradores e policiais descobriam uma cena macabra. Na residência moravam o
casal Wanderley Mateucci, sua mulher, Lourdes de Sá, e cinco filhos, entre 9 meses e
6 anos de idade. Naquela manhã, a vizinhança acordou com a notícia de que os pais
e quatro de suas cinco crianças haviam sido massacrados a machadadas.
Aquela que ainda é uma das piores e mais cruéis chacinas da história da capital
é, até hoje, rodeada de mistérios. O escritor Miguel Jorge, que escreveu o livro
Veias e Vinhos baseado na tragédia dos Mateucci, não se arrisca a dizer como tudo
se deu. “Para fazer o livro, eu li os oito volumes do processo no fórum, entrevistei
testemunhas, fui à penitenciária três vezes para falar com o suposto assassino e não
consegui respostas definitivas”, reconhece. “Parece que há muito medo em torno do
assunto, tantos anos depois do que aconteceu.”
57
Miguel Jorge diz que os arquivos do jornal O POPULAR também foram fonte para
sua pesquisa. A capa do dia seguinte à descoberta dos corpos trazia o massacre em
destaque. Por muitos dias, Goiânia não falou em outra coisa. A polícia, pressionada,
tinha que solucionar o crime o mais rapidamente possível para que a tranquilidade da
população voltasse. Talvez hoje, a chacina entraria para as absurdas estatísticas de crimes
com que estamos acostumados. Em 1957, era diferente. A morte brutal de quase toda
uma família deixou uma cicatriz no imaginário da capital.
n
58
Cristiano Borges
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Fernandão
Um craque
que não morre
Q
uando a queda do helicóptero no dia 7 de junho de 2014 tirou a vida do artilheiro
Fernandão, sua mãe perdia o filho único e um grande amigo. Quando falou
conosco sobre a tragédia, quase 4 anos depois do acidente, dona Marli Ribeiro da
Costa estava mais forte ao recordar o que viveu ao lado de seu maior orgulho. A
dor continuava, mas já compartilhava espaço com uma saudade em que conseguia
até se lembrar de episódios engraçados, conseguia até sorrir e agradecer por ter
dado à luz uma pessoa que esteve em sua vida por 36 anos, dando-lhe três netos e
momentos inesquecíveis.
“As lembranças deles são muitas. Não dá nem para saber quais são as maiores”,
responde Marli. Logo em seguida, porém, as narrativas começam a brotar
naturalmente. “Quando tinha cerca de 16 anos, o Fernando ficou três dias sem ir
treinar. Ele estava subindo para a categoria profissional. Daí o Raimundo Queiroz,
dirigente do Goiás, foi lá em casa e pediu para chamar o Fernando. Conversou
com ele o convenceu a voltar. Quando saiu, o Fernando me deu um abraço e
começou a chorar. Dizia que não era jogador profissional, que não daria conta. E
eu dizia que era sim.”
59
Marli sempre foi um esteio para o craque. Competitivo como todo campeão,
Fernandão odiava perder. “Quando isso acontecia, ele chegava irritado em casa e se
trancava no quarto e era melhor deixar ele quieto.” Quando o filho era mais jovem
ainda, porém, ela precisou interferir algumas vezes. “Um dia, fui ver um jogo dele no
Centro de Treinamento. Ele tinha uns 14 anos. Uma hora, ele fez falta e foi expulso.
Saiu do campo indignado, entrou no carro e me abraçou, muito nervoso. Eu fui
acalmando ele devagar. Ainda bem que, no final das contas, o time dele ganhou.”
Depois de Toda a força dada pela mãe nos momentos mais complicados transformou-se em
gratidão. Ídolo do Goiás, Fernandão, depois de jogar no exterior, foi contratado pelo
revelado pelo
Internacional, de Porto Alegre. Na capital gaúcha, conheceu suas maiores glórias.
Goiás em 1995, “Quando eles ganharam a Libertadores em cima do São Paulo, eu entrei em um
caiu nas graças corredor comprido lá no Estádio Beira-Rio. Abri uma porta e vi o Fernando, que
da torcida do abriu os braços e veio em minha direção. Ele me deu um abraço forte, longo e disse:
Verdão, onde ‘é pra senhora, mãe’. Nunca mais vou esquecer aquela cena.”
jogou até 2001,
Para Marli, o filho que partiu cedo demais foi “um presente de Deus”. Aquela
ganhando cinco
mesma ligação estreita foi transferida para a neta Tainá. “Ela me dá muita força para
campeonatos continuar, para aguentar a falta dele. E ela é a cara do pai.” Com os gêmeos Enzo e
goianos. Eloá, a avó tinha menos contato na época da entrevista. Hoje, Marli faz das próprias
Mudou-se para recordações maneiras de se fortalecer. “A solidariedade, o carinho que vi nas torcidas
a França, onde foi lindo. Eu percebi que não era só eu que estava sofrendo com a morte dele.
defendeu o Milhares de pessoas no Beira-Rio também sentiam muita dor.”
Olympique de Fernandão, quando morreu, iniciava uma nova carreira, a de comentarista de
Marselha e o TV. Experiência ele tinha de sobra para falar de futebol. Depois de revelado pelo
Toulouse. Goiás em 1995, caiu nas graças da torcida do Verdão, onde jogou até 2001, ganhando
cinco campeonatos goianos. Mudou-se para a França, onde defendeu o Olympique
de Marselha e o Toulouse. “Uma vez, ele teve um choque de cabeça num jogo. Me
ligaram dizendo que ele tinha sofrido traumatismo craniano. Fiquei louca. Dois dias
depois, estava na França cuidando dele”, relembra Marli.
Voltou ao Brasil para virar mito dos colorados do Rio Grande do Sul. Era
o capitão do time nas conquistas da primeira Libertadores da América e do
Campeonato Mundial Interclubes, batendo o poderoso Barcelona, em 2006. Em
sua carreira, marcou um dos gols mais bonitos da história do Serra Dourada com
a camisa do Goiás, uma bicicleta perfeita, com a bola no ângulo num jogo contra
o Bahia. Também fez o gol número mil do confronto entre Inter e Grêmio. Uma
estátua em sua homenagem foi erguida na frente do novo Beira-Rio. Para emoção e
gratidão de dona Marli.
n
60
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Frei Nazareno
Confaloni
O italiano mais
goiano de todos
O
ano era 1950 e Goiânia engatinhava. Goiás ainda sofria o trauma da transferência da
capital e o Estado, como um todo, só era convidativo para quem se dispusesse a ser
pioneiro em um lugar onde as benesses da modernidade não haviam chegado. Um
religioso italiano, porém, não se intimidou e aceitou o imenso desafio de plantar aqui
uma semente mais duradoura de arte. E justamente de uma arte revolucionária e
vanguardista. “Eu brinco que Frei Nazareno Confaloni é a Semana de Arte Moderna
de Goiás”, compara PX Silveira, pesquisador e biógrafo desse dominicano corajoso.
Convidado por Dom Cândido Penso para pintar o interior da Igreja Nossa
Senhora do Rosário, na cidade de Goiás, frei Nazareno Confaloni não só terminou
o serviço no prazo de um ano e meio, como decidiu ficar. “Ele nunca mais voltou.
Interessante é que Dom Cândido não o convidou para se transferir para a então
chamada Prelazia do Bananal, esta foi uma decisão exclusiva de Confaloni. Ele até
viajava à Itália, mas só em visitas rápidas. A casa dele passou a ser Goiás”, informa
61
PX, autor do livro Conhecer Confaloni, que refaz a trajetória deste homem de traços
fortes.
No olhar de um São Francisco que parece nos encarar na alma, na cena dos
apóstolos com Cristo, na simbolização do Espírito Santo, Confaloni extrapola o
motivo religioso que o guia e mergulha em uma arte que, em técnica e expressão,
não fica devendo a contemporâneos seus, como Cândido Portinari. Os rostos
levemente borrados e os cenários cuidadosamente compostos inspiraram gerações
de artistas e encantaram pessoas em diversos espaços. Este é Frei Nazareno
Confaloni, o italiano mais goiano que já tivemos, o homem que trouxe o
modernismo nas artes para seu novo lar.
n
62
Cristiano Borges
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Geraldo
Faria
Mestre dos mestres
E
le gostava de escrever de madrugada. O silêncio ao redor lhe inspirava. “Acordo com
as ideias e coloco no papel. Durante a madrugada dá vontade de escrever, quando
começo a pensar na humanidade”, declarou Geraldo Faria em uma reportagem
publicada no POPULAR em fevereiro de 2011. Naquela ocasião, ele estava lançando
o livro Janelas da Liberdade, volume composto por crônicas e poemas, em que a
criatividade do professor que ensinou e estimulou tantas pessoas a amar o idioma
pátrio e sua literatura era apresentada com a mesma paixão que dedicou à docência.
“Ele inventava novos jeitos de ensinar, inventava formas para passar o conteúdo
e as regras de Português e Gramática”, impressiona-se seu filho, o jornalista e
psicanalista Paulo Alexandre Faria Campos. “Ele estimulava a leitura em seus alunos
usando jornais, cartoons, revistas em quadrinhos. Isso criava uma empatia. As
pessoas passavam a gostar de aprender.” Estratégias que parecem banais hoje em
dia, mas que foram inovações quando o professor do Colégio Aplicação da UFG
começou a adotá-las, em um tempo em que não havia internet e outras parafernálias.
“Uma outra característica sua era estimular os alunos a falar, a terem raciocínio
próprio. Em cada redação que meu pai corrigia, ele colocava um comentário sobre
o que o aluno havia escrito, sobre o pensamento e as ideias deles. Apontava os erros
63
que mereciam atenção, mas deixava que os alunos expressassem seu cotidiano,
contassem suas vivências”, diz Paulo. Essa comunicação direta entre o professor
Geraldo e suas inúmeras turmas pôde ser comprovada em janeiro de 2018, quando o
veterano mestre morreu, aos 80 anos de idade, de parada cardíaca.
n
64
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Geraldinho
Os causos que
Goiás amava ouvir
U
m cigarrinho de palha sempre à mão, um jeito doce de brincar com o palavreado
do homem do campo e uma risada inconfundível. Quem viveu em Goiás
na década de 1980, certamente se deparou, em algum momento, com essa
figura carismática, que arrebatava plateias de todas as classes sociais e idades.
Geraldinho Nogueira era uma espécie de xodó do Estado, talvez por exatamente
simbolizar muito de nossa cultura mais genuína, de uma simplicidade que caíra
de moda, mas que ainda guardávamos em nossa memória afetiva, em nossas
raízes mais profundas.
O contador de causos mais famoso que Goiás já teve foi descoberto por acaso
pelo publicitário Hamilton Carneiro, apresentador do programa Frutos da Terra,
na época exibido pela TV Anhanguera. “Em 1983, eu comecei a fazer reportagens
externas para o programa, para falar de hábitos e costumes do Estado. Um dia,
em Bela Vista, eu e minha equipe pousamos em uma fazenda e eles me falaram
do Geraldinho, que era um senhor que fazia trabalhos braçais, mas que contava
histórias engraçadas na frente de um bar em troca de uma pinguinha que lhe
davam”, relata.
65
Hamilton foi até lá antes das 9h da manhã, porque foi avisado que se chegasse
mais tarde, poderia encontrar Geraldinho já um pouco alterado pela bebida. “De
início, ele ficou meio tímido, mas logo que me deu bom dia, eu fiquei impressionado
com sua força. E foi quando ele me contou o famoso causo da bicicleta, que se
tornou uma de suas marcas registradas”, recorda o apresentador. Esta é sua história
mais famosa que narra como ele tentou “domar” uma bicicleta, levando alguns
Entre sua tombos. “Eu não vou aprumar no lombo dela não”, dizia Geraldinho, entre risadas
descoberta sonoras.
artística e
sua morte, Era um talento em estado bruto, que precisava ser lapidado, mas não muito. “Ele
não poderia deixar de ser quem era, aquela autenticidade. Ele precisava preservar
Geraldinho
isso”, salienta Hamilton Carneiro, que o levou ao seu programa. Sucesso imediato,
viveu uma que logo foi transferido para a publicidade. “Ele fez algumas propagandas da antiga
década fora Caixego, mas só em momentos especiais, escolhidos a dedo. Fizemos 4 peças com
do anonimato. ele: na Nova República, em 1985, na promulgação da Constituinte e na separação do
Sua saborosa Tocantins, em 1988, e quando Sarney quis mais um ano de mandato, em 1989.”
risada se calou
Um show foi montado para que ele pudesse mostrar essa cultura do interior
em 1993, poucos
no teatro. Trova, Prosa e Viola contava, além de Geraldinho, com Hamilton
dias antes de Carneiro, traduzindo em versos a sabedoria da roça, e a dupla André & Andrade,
completar 80 interpretando clássicos da moda de viola. Nesse entremeio, Geraldinho ficou
anos. Dez anos conhecido em todo o País ao se apresentar no palco do programa Som Brasil,
depois de seu apresentado por Lima Duarte nas manhãs de domingo da Globo. “Eles chegaram a
falecimento, nos oferecer um contrato para que fôssemos atração fixa, mas o programa acabou
saindo do ar”, lamenta Hamilton.
foi lançado um
segundo volume “Lotávamos o Teatro Goiânia com o espetáculo e gravamos um disco do show.
de Trova, Prosa Foi um fenômeno de público”, relembra o publicitário. Fama que trouxe recursos
e Viola. para a vida de dificuldades do contador de causos. “Eu e a dupla André & Andrade
combinamos que a bilheteira seria destinada ao Geraldinho, para que ele pudesse
viver mais confortavelmente. Ele ganhou uma boa quantia naquela época e até
comprou casas em Bela Vista, mas a família era grande e logo começaram a
acontecer desavenças. Acho que sobrou pouca coisa depois que ele morreu”, diz
Hamilton.
Entre sua descoberta artística e sua morte, Geraldinho viveu uma década fora do
anonimato. Sua saborosa risada se calou em 1993, poucos dias antes de completar
80 anos. Dez anos depois de seu falecimento, foi lançado um segundo volume de
Trova, Prosa e Viola. Ficou a imagem daquele senhor de roupa puída, chapéu gasto,
proseando na frente de uma casa de pau-a-pique, num quintalzão de terra batida. Ali
era seu habitat, seu meio, onde estava feliz. E quando estava no palco ou na frente da
TV, ele transportava todos nós para aquele que era o seu cenário original.
n
66
Walter Alves
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Goiandira do
Couto
Arte em grãos
E
m 1969, O POPULAR noticiou “a grande descoberta de Goiandira do Couto”.
Na reportagem, é abordada a mudança no estilo da artista plástica, “a pintura em
areia, pela qual vem se dedicando ultimamente”. Esta é uma das facetas – talvez a
mais criativa delas – de uma mulher que sempre esteve na vanguarda de projetos
que ecoam até hoje. “É impossível dissociar o trabalho de Goiandira da cidade de
Goiás”, atesta a historiadora Raquel Miranda Barbosa, professora da UEG e que
defendeu uma tese de doutorado na UFG sobre a vida e a obra de Goiandira.
Sua arte, que Filha do poeta, advogado e historiador Luís do Couto, Goiandira, ainda que tenha
passou por nascido em Catalão, herdou do pai quase que a missão de zelar apaixonadamente
uma radical pela cidade de Goiás, a terra que foi seu verdadeiro berço. O caminho que escolheu
transformação para fazer isso foi a do patrimônio cultural. “Acredito que o tombamento da cidade
como Patrimônio da Humanidade, em 2001, foi o fechamento desse ciclo de lutas em
em meados
que Goiandira teve um papel muito grande”, pondera Raquel Miranda. “De algum
dos anos modo, ela tinha esse horizonte futuro quando começou a defender a cidade.”
1960, passou
a ser uma Sua arte, que passou por uma radical transformação em meados dos anos 1960,
das melhores passou a ser uma das melhores ilustrações dessa vitória. Ela, que antes pintava em
ilustrações óleo sobre tela, encontrou nas areias coloridas da Serra Dourada uma original forma
de expressão. De grão em grão, surgiram os casarões coloniais, as ruas de pedra, os
dessa vitória.
monumentos, as montanhas e bosques, o Rio Vermelho de sua Goiás, em quadros
Ela, que antes que começaram a ser conhecidos em todo o Brasil e também no exterior. “Ela era
pintava em autodidata. Aprendeu tudo sozinha”, salienta a pesquisadora Raquel.
óleo sobre tela,
encontrou nas Não só as paisagens, mas também as tradições populares do Carnaval e da
areias coloridas Semana Santa foram inspirações no mosaico multicor de obras que não só
representavam a cultura de um povo, mas também lançavam um alerta ambiental.
da Serra
As areias do Cerrado que resultavam naqueles quadros precisavam ser protegidas;
Dourada uma a Serra Dourada merecia mais apreço e carinho. Fundando associações culturais
original forma e ligas de artistas, Goiandira conseguia aglutinar talentos em torno de um projeto
de expressão. maior, que incluía não só contemplação, mas a empatia com sua terra e sua gente.
A artista plástica viveu o bastante para ver muitos de seus sonhos serem
realizados. Goiás foi protegida, destruída por uma enchente e reconstruída; sua
arte ganhou reconhecimento; a velha capital renasceu para todo o Brasil. E quem
ia à antiga Vila Boa parava, quase obrigatoriamente, no ateliê de Goiandira, onde
podia encontrar uma arte única e vital e uma simpatia incomparável na autora de
tais maravilhas minuciosamente construídas. Em 2011, aos 95 anos de idade, ela se
despediu, deixando como herança quase que uma pequena lenda. Um conto da fada
das areias.
n
68
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Gustav
Ritter
O nômade que
achou Goiânia
A
ntes de chegar a Goiânia para ficar, um alemão inquieto e talentoso percorreu,
literalmente, meio mundo. Nascido em Hamburgo em 1904, Henning Gustav Ritter
era um apaixonado pela arte, mas primeiro testou seus talentos na marcenaria.
Tendo cursado a Escola de Artes Lerchenfeld, na Alemanha, seus trabalhos
tiveram como primeira influência as tendências que vigoravam em sua terra após
a Primeira Guerra Mundial. A paixão pela madeira atiçou sua curiosidade e o
fez buscar novidades bem longe de casa. E com 21 anos, aportou no Brasil pela
primeira vez.
Sua primeira morada por aqui foi na cidade de Esteio, no Rio Grande do Sul. A
colônia alemã local o fez se sentir em casa pelos quatro anos que viveu no sul do
Brasil. No final dos anos 1920, voltou para a Alemanha para completar os estudos,
mas seu país já não era o mesmo. O nacionalismo exacerbado, alimentado pela
crise econômica causada pelas sanções impostas à Alemanha após a Primeira
69
Professor diligente, Gustav Ritter era descrito como um “homem de fino trato”.
Foi também um incentivador da cultura e deixou isso de herança para dois de seus
filhos, que fazem suas incursões pelas artes plásticas. Seu grande legado, porém, foi
ensinar suas refinadas técnicas escultórias, que incluíam um domínio perfeito da
tridimensionalidade, o que dava vigor impressionante às suas obras. Ritter morreu
em 1979 em Goiânia e no ano seguinte sua obra obteve reconhecimento nacional,
quando foi exposta na 11ª Bienal de Arte de São Paulo.
n
70
Sebastião Nogueira
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Hélio de
Oliveira
A saga de um
leitor da luz
Q
uando Juscelino Kubitschek pousou no Cerradão goiano para visitar, pela primeira
vez, o local onde construiria Brasília, o presidente teve uma surpresa. Acreditando
que só encontraria mato bravo ao sair do avião, ele se deparou com um homem e
uma máquina fotográfica. “Mas até aqui tem jornalista?”, perguntou JK, incrédulo.
Tinha, sim senhor. Seu nome era Hélio de Oliveira e fora incumbido, pelo jornal
O POPULAR, de registrar o momento histórico. “Pois então capriche, porque você
vai tirar a foto do presidente da República na nova capital do Brasil.”
Esta é uma das muitas histórias de um senhor que levou boa parte da história
de Goiânia, de Goiás – e, de quebra, de Brasília também – na memória. “Quando
o Juscelino disse aquilo para mim, eu olhei para um lado, olhei para o outro e
só vi mato. Então eu pensei: ‘esse homem é maluco chamar isso aqui de capital’”,
detalhou Hélio, em entrevista a O POPUlAR, em 2018. Algumas décadas depois,
ao receber o título de Cidadão Brasiliense, Hélio contou esse episódio. “O pessoal lá
71
não gostou muito, mas aí eu disse: ‘bendita maluquice a de Juscelino, que acreditou e
construiu essa maravilha que é Brasília’”.
Hélio de Oliveira, que era dono do maior e melhor acervo fotográfico de Goiás
(mais de 100 mil itens) e testemunhou a história por meio de suas lentes, sabia como
funciona os melindres humanos. Se não fosse assim, não teria permanecido 40 anos
acompanhando governadores como fotógrafo oficial do governo. “Fui o primeiro
fotógrafo do Palácio”, sublinhou, sem se esquecer que também foi o primeiro
fotógrafo fixo de um serviço informativo em Goiás. “Fui até a sede do POPULAR
e conversei com o Câmara Filho. Ele disse que eu ia cumprir uma pauta e que se
gostassem do serviço, eu ficaria.”
A primeira pauta do jornalista Hélio de Oliveira foi averiguar como iam as obras
A primeira de construção da Usina do Rochedo, no Rio Meia-Ponte, perto de Piracanjuba.
pauta do “Naquela época, a pessoa fazia tudo. Fui fotografar, mas também fiz entrevistas e
jornalista redigi a matéria. Acho que eles gostaram do resultado, já que trabalhei no jornal
por 10 anos.” Era um tempo bem diferente. “Todo o material era meu e o jornal não
Hélio de
tinha estrutura para revelar os filmes, por exemplo. Muitas vezes fiz isso em casa.”
Oliveira foi Fotografar na época de Hélio de Oliveira era algo muito mais braçal e difícil que
averiguar como hoje.
iam as obras
de construção “Minha primeira câmera foi uma Voigtlander, que só tirava 8 fotos por filme,
da Usina do em negativos 6 x 9. A gente tirava as fotos e só na revelação ia ver se havia prestado
ou não”, descreveu. Depois ele teve uma Rolleiflex, que tirava até 12 fotos. “Mas eu
Rochedo, no
sempre dava um jeito de tirar 13”, emendou o veterano fotógrafo. “Muitas vezes, eu
Rio Meia- ia a eventos com caixas de lâmpadas para os flashes. Toda hora tinha que trocar as
Ponte, lâmpadas queimadas.” Quando morreu em 2020, aos 90 anos, ele estava aposentado
perto de do ofício há 20 anos, mas tecia críticas aos novos tempos. “Hoje qualquer um pode
Piracanjuba. ser fotógrafo”, disparou.
n
72
Diomício Gomes
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Henrique
Rodovalho
Um corpo que não cansa
A
coreografia remetia a voos amplos. E acertou na mosca. Em 1988, um rapaz
formado em Artes Marciais e Educação Física pela Eseffego mudou os rumos da
própria vida e investiu em algo que não se fazia em Goiás. “Goiânia demorou um
pouquinho para entender totalmente a proposta. Éramos ovelhas negras. Para o
público, aquele espetáculo era inovador”, testemunha Henrique Rodovalho, um dos
nomes que fundaram a Quasar Cia de Dança. O primeiro trabalho, como todos os
outros que viriam a seguir na história do grupo, foi concebido por ele. Asas era o
nome.
“Aqui havia uma tribo de vanguarda que acreditou em nosso trabalho e nesse
sentido, vocês, do jornal O POPULAR, foram importantes para mostrar o que
queríamos propor”, afirma. “Desde o início tivemos esse apoio de setores da
imprensa, que faziam cobertura cultural. A Quasar também nasceu nessa parceria.
Todos os nossos espetáculos contaram com esse auxílio, com essa divulgação, com
essa ajuda na compreensão de nossas mensagens.” E a companhia foi tomando
corpo, se expandindo, se profissionalizando e ganhando o mundo.
Em 34 anos
de história, a Em 34 anos de história, a Quasar montou quase 30 espetáculos, que envolveram
Quasar montou mais de 80 bailarinos e bailarinas, que se sucederam em diversas gerações. Alguns
quase 30 tornaram-se nomes de relevo na cena da dança brasileira, dirigindo outras
espetáculos, companhias e pavimentando suas trajetórias como coreógrafos. Outros foram trilhar
caminhos no exterior. Tiveram a melhor vitrine para isso. A Quasar fez diversas
que envolveram turnês internacionais, apresentando-se em 26 países, participando de vários festivais.
mais de 80 O projeto cresceu e gerou frutos, como a Quasar Jovem, que formava bailarinos.
bailarinos e
bailarinas, que “Agora estamos fazendo uma pausa”, comentou Rodovalho, em 2018. A perda de
se sucederam patrocínios e o enxugamento de editais para a área levaram a companhia a uma crise
em diversas financeira que a obrigou a interromper suas atividades temporariamente. O espaço
que tinham para ensaiar precisou ser devolvido e o grupo chegou a ser desfeito,
gerações. Alguns mas retornou com novas criações, superando até o desafio da pandemia. Entre os
tornaram- trabalhos mais recentes estão a remontagem de Sobre Isto, Meu Corpo Não Cansa e
se nomes de A Lenda das Cataratas, além de promover a mostra de dança Paralelo 16.
relevo na
cena da dança Momentos de reconstrução exigiram de Henrique Rodovalho um esforço criativo.
brasileira, Fases não tão boas parecem servir de combustível para um profissional obstinado,
que construiu algo muito sólido onde antes não havia muito em que se apoiar. Em
dirigindo outras todo esse tempo, metamorfosear-se tornou-se uma prática a quem é constantemente
companhias e desafiado. O coreógrafo mais premiado que Goiás já teve não abre mão de sua
pavimentando condição de definir os rumos da carreira, os parâmetros de sua arte. Foi assim que a
suas trajetórias Quasar ganhou um Prêmio Mambembe e foi agraciada com honrarias no exterior.
como
coreógrafos. Coreografias como Estudos (1989), Não Perturbe (1992), Quadros (1994), Versus
(1994), Registro (1997) e Divíduo (1998) inovaram na linguagem e propuseram
ousadias na essência da leitura corporal que se via no palco. Em espetáculos como
O+ (2004), Só Tinha que Ser Com Você (2005) e Coreografia Para Ouvir (2005),
provaram que outras linguagens cênicas se casavam à perfeição com a dança. Com
Céu na Boca (2009) e No Singular (2012), aposta na abstração e na memória. Por
trás de todos esses trabalhos esteve Henrique Rodovalho, um homem que deu um
passo além.
n
74
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Hugo de
Carvalho Ramos
O senhor do sertão
O
s ermos dos sertões eram sua matéria-prima. Com uma prosa fluente e sedutora,
ele revelou um universo que para muitos era completamente alheio, desconhecido.
Nos contos do livro Tropas e Boiadas, publicado pela Revista dos Tribunais, no Rio
de Janeiro, em 1917, o escritor Hugo de Carvalho Ramos elabora narrativas que
mergulham profundamente na cultura, na mentalidade, nos hábitos, nos conflitos e
nos cenários de um Goiás quase arcaico, que ainda padecia de enorme isolamento. É
o panorama de um tempo e um espaço que ele soube registrar como ninguém.
A projeção que Tropas e Boiadas teve nas décadas de 1910 e 1920 se deveu ao
75
fato de ter sido lançado no Rio de Janeiro, centro efervescente da cultura nacional
de então. Os autores que desejavam ser conhecidos precisavam orbitar naquela
atmosfera, onde se encontravam os grandes escritores brasileiros e as principais
editoras e livrarias. Nascido em 1895 e filho de um juiz, até os 17 anos Hugo morou
na antiga Vila Boa. A infância e adolescência passadas ao lado do pai, com o qual
viajava pelos rincões do Estado, moldaram o imaginário que veio explorar em seus
contos.
No ano seguinte à sua morte, Monteiro Lobato lançou uma segunda edição
de Tropas e Boiadas por sua editora. O livro, assim, sobreviveu ao autor por um
período e foi lido por gente do quilate do modernista Mário de Andrade. “Mario
chega a afirmar que a obra é exigência cultural para quem quer conhecer a realidade
brasileira”, destaca Lázaro. Depois disso, ganhou edições esporádicas, tratamento
injusto para título tão seminal de toda uma tradição literária brasileira. Impressiona
como sua leitura ainda se mostra atual, falando de desgraças que persistem em nossa
sociedade.
n
76
Iris
Rezende
Política na alma
N
os anos 1960, um jovem prefeito ganhou destaque nacional com um regime de
trabalho diferente em suas obras. Ele reunia uma multidão e fazia com que todo
mundo pegasse no pesado. Os mutirões levaram Iris Rezende Machado, na casa
dos 30 anos, a se transformar em uma influente liderança política do Estado.
“Quando os militares me cassaram em 1969, eu já estava com a campanha para
governador na rua. A eleição seria no ano seguinte e eu já tinha até slogan: ‘Bom
Pra 70’”, recordou ele, em entrevista dada em 2018, ocupando o mesmo cargo de 50
anos antes.
Com uma energia incomum para um homem que tinha 84 anos de idade, Iris
Rezende relembrou em detalhes um passado que se confundia com a história de
Goiás no último meio século. Governador em dois mandatos, prefeito de Goiânia
em quatro oportunidades, senador, ministro de Estado em dois governos diferentes,
homem que havia despertado paixões e ódios, suas vivências eram detalhadas
com gestos largos, inflexões na voz e frases de efeito. “Quando fui governador,
asfaltei quase 5 vezes mais estradas que todos os outros que me antecederam. Fiz as
máquinas roncarem.”
77
A carreira política de Iris Rezende foi marcada por vitórias e derrotas, mas nunca
por ostracismo. Seu maior hiato na vida pública foram os 10 anos em que teve seus
direitos políticos cassados, entre 1969 e 1979. “Eles não tinham motivos. Eu não era
dado a subversão. O ato causou incômodo até nos meios militares”, confidenciou.
Formado em Direito, Iris dedicou-se nesse período à advocacia, atuando
constantemente em tribunais de júri, onde sua verve não passou despercebida.
“Eu convidei dois desembargadores que haviam sido aposentados pelo golpe para
montarmos o escritório.”
Norte que precisou ser reencontrado após a surpreendente derrota para o governo
em 1998. Iris precisou se reerguer, depois de perder também uma vaga no Senado
em 2002, voltando às origens, à Prefeitura de Goiânia, em 2004. Nos anos seguintes,
conquistaria três mandatos. E em seu gabinete, não faltava um tradicional pão de
queijo. “Ele é feito com leite das vacas da raça gir que crio em Guapó. É uma beleza”,
garantia. “Sei fazer tudo na roça, de tirar leite a manejar machado, a ferramenta mais
exigente que tem.” Iris morreu em 2021, após um AVC, aos 88 anos de idade.
n
78
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Jaime
Câmara
Com os olhos no futuro
A
vinda dos irmãos Câmara para Goiás foi um marco em muitos sentidos. A família,
formada no Rio Grande do Norte, encontrou no Centro-Oeste brasileiro, sobretudo
em uma nova capital que surgia no meio do Cerrado, oportunidades de realizar
projetos grandiosos, de prosperar e imprimir sua marca. O Estado, agitado por
uma mudança política profunda com a Revolução de 1930 e o fim da República
Velha, incentivava empreendedores dispostos a modernizá-lo. Goiânia, ainda em
construção, abriu espaço para novos projetos que lhe dessem sustentação.
Foi justamente o caçula dos irmãos, Jaime Câmara, que revelou maior tino para
os negócios. Logo ao chegar à cidade de Goiás, em 1933, começou a trabalhar e,
apoiado por Joaquim Câmara Filho, iniciou o que seria um dos mais importantes
grupos de comunicação do País. Já em 1935, fundou sua primeira tipografia na
antiga capital goiana. A Tipografia Popular foi a responsável por publicar um jornal
em miniatura, chamado Vossa Senhoria, e um informativo de cunho mais político,
A Razão. O empreendimento também era uma papelaria.
79
O futuro, porém, não estava lá. Não demorou para que todos migrassem para
Goiânia. Joaquim Câmara Filho tinha enorme prestígio junto a Pedro Ludovico,
o que garantiu apoio político para a transferência. Em 3 de abril de 1938, já com a
participação de Vicente Rebouças, editaram o primeiro número de O Popular, que
saiu com 3 mil exemplares, custando $500 réis, algo como 50 centavos na época.
Enquanto Jaime Câmara gerenciava a empresa como um todo, Vicente Rebouças
cuidava da parte comercial e Joaquim Câmara lidava com as questões editoriais.
Antes situado em uma sede modesta perto do Córrego Botafogo, depois instalado
em um prédio em estilo art déco em plena Avenida Goiás – um dos primeiros
Ele também teve edifícios com mais de dois pavimentos construídos na nova capital e que hoje é
relevância em um patrimônio histórico – o jornal O Popular foi um marco para a cidade que
setores sociais nascia. Em breve, os serviços da gráfica, a única que existia em Goiânia até então,
passaram a ser demandados por clientes de outros estados. Os negócios da família
e em espaços
expandiram-se e, com a morte precoce dos irmãos, coube a Jaime Câmara manter a
empresariais, empresa.
sempre
lutando pelo Com visão estratégica, Jaime Câmara percebeu que um grupo de comunicação
desenvolvimento deveria diversificar sua atuação. Em 1961, a Rádio Anhanguera, hoje Rádio Daqui,
do Estado. foi incorporada ao grupo. Dois anos depois, em 1963, o empresário deu um passo
ousado, apostando na nova mídia que conquistava o público nacional: a televisão.
No trato
Surgia a TV Anhanguera, que nasceu dois anos antes da própria Rede Globo, da
pessoal, ficou a qual se tornaria afiliada e retransmissora em Goiás, incluindo o território que hoje
lembrança de um compreende o Tocantins.
homem solícito e
pronto a ajudar A carreira política do irmão mais velho Joaquim Câmara, que foi prefeito de
quem precisasse. Paracatu (MG), Pires do Rio e Anápolis, inspirou Jaime Câmara. No dia 19 de
outubro de 1958, a capa de O Popular trazia na manchete sua eleição para prefeito
de Goiânia, com 17.018 votos. Ele já havia ocupado as secretarias de Agricultura e
de Viação e Obras Públicas do Estado. Mais tarde, elegeu-se suplente de deputado
federal, assumindo o mandato em duas oportunidades. O Ato Institucional Nº 5,
editado pela ditadura militar em 1968, cassou os direitos políticos de Jaime Câmara
em 1969.
n
80
Wildes Barbosa
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Janildes
Fernandes
Pedaladas em família
O
primeiro membro da família a subir em uma bicicleta, motivado por uma
irresistível paixão pelo esporte, foi o irmão mais velho, Neilson. A partir dele,
todo um clã redesenhou seu destino e imprimiu o sobrenome Fernandes na
história do esporte. “Eu comecei quando tinha 14 anos. Ele me incentivava. Eu
ia assistir as competições dele e gostava que eu pedalasse também. Foi aí que eu
tomei gosto pelo ciclismo. Ele me levou de corpo e alma”, diz Janildes Fernandes,
primeira mulher a conquistar uma medalha na modalidade para o Brasil em Jogos
Panamericanos.
Aos 41 anos, Janildes Fernandes parece ter muito fôlego ainda. Baseada em
Goiânia, ela conta com uma ampla experiência, incluindo o período que passou
no exterior. “Eu corri em uma das equipes de ciclismo mais importantes do
mundo e pedalei ao lado de pessoas que eram medalhistas olímpicos, que haviam
conquistado títulos mundiais.” Esse know how sempre foi empregado para
organizar sua rotina de treinos, as estratégias com suas irmãs para as provas, para
conseguir patrocínios, o que sempre é um desafio a mais.
n
82
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Jesco von
Puttkamer
Genuíno pele vermelha
A
alvura da pele mudou de cor várias vezes no decorrer do tempo. Às vezes ela era de
um vermelho intenso, castigada pelo sol inclemente do interior brasileiro. Às vezes
ficava mais parda, nos longos períodos em que cuidava da revelação do material
que captara. Às vezes ganhava as tonalidades da terra, com a qual costumava
se misturar para senti-la melhor. Salpicado de barro ou coberto de poeira, o
documentarista, cinegrafista e fotógrafo Jesco von Puttkamer não media esforços
para estar onde acreditava que deveria estar, para adicionar ao seu acervo uma
imagem a mais.
Sua maior contribuição ainda estava por vir. Depois de chegar a vender frutas em
um entreposto atacadista que existia no Setor Bueno – ele mesmo as produzia em
uma chácara que tinha na região –, Jesco foi acompanhar, no final dos anos 1950, a
construção de um novo Brasil. No canteiro de obras de Brasília, mostrou todo o seu
talento como fotógrafo e documentarista. O banco de imagens que deixou sobre o
nascimento da nova capital federal no Cerrado goiano é único. Esse trabalho o levou
a integrar-se aos projetos Marcha Para o Oeste e Operação Bananal.
Jesco imergiu
Com essas novas funções, Jesco participou de dezenas de expedições pelo interior
na cultura do Brasil ao lado de indigenistas, como os irmãos Villas-Bôas, que buscavam
dos cinta- estabelecer e estreitar contatos com diversos povos indígenas. Esses encontros
largas, dos foram brilhantemente documentados por ele. “A obra de Jesco revela arte, poesia,
nambiquaras, sentimentos e fatos”, resume Maria Eugênia Brandão, coordenadora do Núcleo de
dos indígenas Documentação Audiovisual do Instituto Goiano de Pré-História e Antropologia da
PUC Goiás. Esse espaço guarda todo o legado de Jesco, que doou seu acervo para
que viviam
consultas e pesquisas.
na região do
Alto Xingu. E É um patrimônio de valor incalculável. Mais de 10 mil páginas de diários e
viu nelas algo anotações e cerca de 200 mil fotos, além de inúmeros filmes, integram a mais
para além da completa coleção existente sobre os contatos do homem branco com os indígenas
estranheza. brasileiros. “O legado é grandioso em termos qualitativos e quantitativos. Ele
capturou imagens fotográficas em diferentes suportes. Testemunhou momentos
históricos da política indigenista brasileira e fotografou com obsessão o índio
brasileiro em sua originalidade cultural”, observa Maria Eugênia.
Jesco imergiu na cultura dos cinta-largas, dos nambiquaras, dos indígenas que
viviam na região do Alto Xingu. E viu nelas algo para além da estranheza. “Sua
obra documental constitui-se em fonte histórica-antropológica permitindo leituras
multidisciplinares”, reforça a pesquisadora Maria Eugênia. Estudiosos de todo o País
têm buscado no acervo de Jesco na PUC Goiás a fonte primária de suas pesquisas. O
curta-metragem Bubula: O Cara Vermelha, do professor Luís Eduardo Jorge, lançado
em 1999, revela a importância deste alemão para a cultura nacional. Jesco morreu
em 1994.
n
84
vidas
narradas
pelo
POPULAR
João
Bennio
O pai do cinema goiano
J
oão Bennio viveu entre paixões ardentes. Como homem de teatro e cinema,
atuando ou dirigindo, trazia à tona vidas que compunham uma espécie de tradução
de sua personalidade inquieta. Outra era a culinária. Dono de um restaurante,
adorava levar os amigos para lá, onde conversavam e, não raramente, criavam em
comunhão. “Quando quis conhecê-lo, me deram o endereço de seu restaurante.
Ficava na Rua Cruz Alta, Jardim Novo Mundo. Era o ponto de encontro dos
artistas”, relembra o cineasta, Eudaldo Guimarães, que tem participação relevante
na realização do Fica.
Convivendo de perto com Bennio, ele aprendeu muito. “Eu trabalho com
cinema desde os 14 anos de idade e, quando estava atuando em uma agência de
publicidade, tive contato com o trabalho do João Bennio. Achei fantástico. Fui
procurá-lo e quando me viu na porta do restaurante dele, me convidou para comer
uma feijoada. Estava deliciosa.” Ali nascia uma amizade que durou até o final da
vida do diretor de obras que, com o tempo, ganharam um ar cult. “São filmes que,
com certeza, plantaram a semente do cinema em Goiás. É o pai do cinema goiano”,
diz Eudaldo.
85
“Quase todo mundo que esteve envolvido com cinema em Goiás entre os anos
1960 e 1980 tiveram em Bennio uma referência”, acredita Eudaldo. Alguns anos
atrás, um trecho de O Azarento viralizou nas redes sociais e resgatou seu nome
de certo esquecimento. As imagens mostram o centro de Goiânia nos anos 1970,
revelando uma cidade já quase perdida na memória de seus próprios habitantes.
Quando morreu, em 1984, Bennio ainda sonhava com um cinema e um teatro para
todos e com a força dessas expressões artísticas. Que seu sonho sobreviva sempre.
n
86
João
Malandro
Ele carregou
Goiânia inteira
P
or décadas, João Alves dos Santos, ou simplesmente João Malandro, integrou a
paisagem urbana de Goiânia. Atrás de um volante, bonachão e tranquilo, parava
nos pontos de ônibus sem pressa, cumprimentava todos com educação e afeto
e deixava quem não tinha dinheiro para pagar fazer a viagem mesmo assim.
“Muita gente andou de graça comigo. Lá atrás, o Iris Rezende andou comigo
no meu ônibus. Depois, o Marconi Perillo, quando era menino, também andou
comigo. Conheço todo mundo”, orgulha-se o motorista aposentado.
Aos 95 anos de idade, João Malandro não faz uma “viagem oficial” pelas ruas
da capital já há duas décadas e meia, tempo que não foi suficiente para apagá-lo
do imaginário de gerações que subiram as escadas de seus “carros”, sobretudo
na linha entre o Terminal do Dergo, na Avenida Anhanguera, e a Praça
Universitária, atravessando bairros populosos, como o Setor Coimbra, o Setor
Oeste e o Centro. Por isso a identificação tão grande com os estudantes. Alunos
de colégios e universidades entravam no ônibus e viam João Malandro, com a
87
Além da direção de seus ônibus, uma outra paixão moveu João Malandro desde
sempre: o futebol. Ele chegou a ser considerado um dos torcedores-símbolos da
equipe do Goiás. “Eu ajudei a fundar aquele time”, explica. “E ajudei a fundar o Vila
Nova também”, completa. Opa, como é que é? “Sim, sou torcedor do Goiás, mas
tenho muito carinho pelo Vila. Tive proximidade com diretorias de lá. Antigamente,
eu saía pela cidade com os livros-de-ouro para arrecadar doações para comprar
chuteira, calção. Eu levava os livros do Goiás e do Vila juntos. Arrecadava dinheiro
para os dois.”
n
88
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Joaquim
Câmara Filho
Vocação para
o pioneirismo
O
que o jornalismo e a agronomia têm em comum? Bom, talvez uma das melhores
maneiras de responder a essa questão seja consultar a biografia de um homem
que soube unir bem o espírito das duas áreas, cultivando para colher depois.
Ele se chamava Joaquim Câmara Filho, um dos fundadores do jornal O
POPULAR e da empresa familiar que depois viria a ser o Grupo Jaime Câmara.
Sua principal característica era o destemor em abraçar iniciativas que exigiam
coragem, enfrentando obstáculos e adversidades diante dos quais a maioria das
pessoas recuaria.
do Nordeste. Câmara Filho, como ficou conhecido, chegou a Goiás em 1928, mas
antes fez um longo périplo.
Indo primeiro para o Recife, onde estudou Direito, esse verdadeiro empreendedor
mostrou pendor pela terra a cultivar – e por novas terras a descobrir. Ele ingressou
na Escola Superior de Agricultura e Engenharia São Bento. Um curso que só iria
terminar em Minas Gerais, para onde se mudou após se envolver em questões
políticas no âmbito estudantil. Aliás, a política também estava em seu sangue desde
jovem. Formado na Escola de Agricultura e Pecuária, partiu para o Paraná, onde
havia maior necessidade de mão de obra especializada. Lá, se destacou e conseguiu
A primeira um cargo federal.
vez que seu
nome foi parar O fato de presenciar tantas desigualdades sociais entre o Sul onde morava e o
Nordeste onde nascera inquietou Joaquim Câmara que, em 1924, tentou ingressar
na imprensa
na lendária Coluna Prestes, que na ocasião atravessava o território paranaense. As
nacional teve coisas não saíram como o planejado, as tropas do capitão Isidoro Dias, a serviço da
um motivo coluna, se dispersaram e Joaquim Câmara precisou se refugiar. O local escolhido
inusitado. foi o que hoje é o entorno de Brasília. Em Planaltina, Luziânia, Formosa, seu tino
Ele descobriu empresarial se revelou como nunca e ele vendeu terrenos do que seria o Distrito
que havia Federal.
fragmentos da
A primeira vez que seu nome foi parar na imprensa nacional teve um motivo
queda de um inusitado. Ele descobriu que havia fragmentos da queda de um meteorito nos
meteorito nos arredores de Luziânia, que se chamava Santa Luzia. Dono dessa informação,
arredores de começou a propagandear o fato em jornais do Rio de Janeiro, como O Globo. Esse
Luziânia, que episódio, relatado na biografia Câmara Filho, Um Revoltoso que Promoveu Goiás,
se chamava escrita pelo jornalista José Asmar, demonstra o enorme talento que Joaquim Câmara
tinha em colocar fatos em evidência na mídia, o que seria fundamental em seu
Santa Luzia.
futuro.
Dono dessa
informação, Em 1930, com a eclosão da Revolução que derrubou a Primeira República,
começou a Joaquim Câmara lutou ao lado das forças revoltosas e, quando elas saíram vitoriosas,
propagandear foi convidado pelo interventor Pedro Ludovico para trabalhar em Goiás. Começava
o fato em ali uma amizade que duraria até a morte do jornalista. Em 1932, voltou a pegar em
armas, comandando as tropas goianas para combater os paulistas na Revolução
jornais do Rio
Constitucionalista. Depois que a atmosfera se acalmou, ao lado dos irmãos Vicente
de Janeiro, Rebouças e Jaime Câmara, que chegaram em 1933, ele começou a publicar o próprio
como O Globo. jornal.
n
90
Diomício Gomes
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Joaquim
Jayme
Mãos que
nunca paravam
E
les eram jovens em 1970 e todos os sonhos, todas as utopias de um mundo
melhor estavam em pleno viço. Nas portas do Palácio La Moneda, sede do
governo chileno, milhares de pessoas esperavam a aparição do presidente eleito,
o socialista Salvador Allende, que logo saiu na sacada para saudar o povo que
o elegera. Nas primeiras filas da multidão, quatro mãos agitavam em direção
ao líder político. Duas delas eram chilenas, as de Mitzi Segovia. As outras
duas eram brasileiras. Mãos que se agitavam de alegria e pelas quais tanta arte
passaria em seus movimentos.
foi. “As pessoas não têm noção das vitórias, das lutas, do que passamos em nome de
ideais e da cultura. Foi muito duro”, resume.
n
92
José
Hidasi
Uma vida na natureza
E
ra uma vez um homem que amava os bichos. Não, espera aí... Vamos recomeçar.
Existiu um homem que amou – muito – os bichos. E não importa que
estivessem vivos ou mortos, ele os amava assim mesmo, incondicionalmente.
Seu nome era José Hidasi, nascido em 1926 em Macó, no sul da Hungria.
Formado na Escola Superior de História Natural e Geografia, lutou na 2ª Guerra
Mundial pelo exército húngaro como segundo-tenente. Após o conflito, morou
na Alemanha e França, onde se formou em Ciências Naturais. E este homem fez
um trabalho único no mundo.
n
94
vidas
narradas Cristina Cabral
pelo
POPULAR
José J.
Veiga
Criador incrível,
incríveis criaturas
Q
uando escreveu os contos de Os Cavalinhos de Platiplanto, José J. Veiga já
somava mais de 40 anos de idade. Sua experiência nos 44 anos vividos até aquele
momento era de fazer inveja a muita gente. Nascido em 1915 em Corumbá de
Goiás, aos 11 mudou-se para a cidade de Goiás para continuar seus estudos no
famoso Liceu da então capital do Estado. Aos 18 anos, arrumava suas malas em
direção ao Rio de Janeiro, onde cursaria Direito na Faculdade Nacional. Aos 31,
embarcou para Londres, onde atuaria como redator e tradutor do serviço da
BBC em português.
Essa jornada voltaria a ter o Rio de Janeiro como cenário, para onde retornou
e foi jornalista em importantes publicações da época, como os jornais O Globo,
Tribuna da Imprensa e Jornal do Brasil. Só depois de tudo isso, decidiu que
poderia ser escritor. E começou com uma obra que recuperava sua história,
em que ele pôde reviver o passado. “Ele escreve como se fosse uma criança
narrando”, sublinha o historiador Ramir Curado, de Corumbá de Goiás, um fã e
95
“Ele não gostava de classificações. Ele tinha a impressão que isso amarrava sua
obra”, avisa o historiador Ramir. Mesmo respeitando essa ressalva, é difícil não o
ombrear com esses nomes. Quando José J. Veiga ressuscita Antônio Conselheiro em
A Casca da Serpente ou cria um universo sombrio e disruptivo em Aquele Mundo
de Vasabarros, esse escritor goiano se supera na força de sua prosa. “A crítica social
sempre esteve presente em sua literatura”, acrescenta o pesquisador. “Ele conciliou o
regional com o universal.” E universal ficou.
n
96
vidas
Cristina Cabral
narradas
pelo
POPULAR
José Júlio
Rosenthal
Com Goiânia no coração
E
m 29 de setembro de 1987, o físico nuclear Valter Mendes levou seu contador
Geiger, aparelho usado para medir índices de radiação, até a sede da Vigilância
Sanitária, no Setor Aeroporto, em Goiânia, atendendo a um chamado. Antes de
entrar no prédio, ele viu que a medição dava índices muito acima dos aceitáveis.
Ele trocou o equipamento e o índice continuava nas alturas. Foi quando percebeu
que a situação era muito grave e fez contato com a Comissão Nacional de Energia
Nuclear (Cnen). Uma autoridade mundial no assunto foi acionada. Um acidente
com Césio-137 ocorrera.
n
98
vidas
narradas
pelo
POPULAR
José
Porfírio
O camponês que
desafiou o sistema
E
m 7 junho de 1973, a história conhecida da vida do ex-deputado José Porfírio de
Souza se perde. Foi nessa data que ele, lendário líder de uma revolta camponesa
de moldes inéditos no Brasil, ocorrida nos municípios de Trombas e Formoso,
no norte goiano, sumiu do mapa. A última informação que se tem é que, após
ser liberado de um quartel em Brasília, onde estava preso, ele se dirigiu para
a rodoviária do Plano Piloto. Não se sabe até hoje se pegou ou não o ônibus
que gostaria. Provavelmente não. Nunca mais se soube dele. É oficialmente um
desaparecido político.
conhecido, começou a ser traçado pela ousadia com que conduziu uma revolta
improvável.
Porfírio foi levado direto para Brasília, onde permaneceu detido no Comando
Militar do Planalto, até ser colocado em liberdade no dia em que sumiu. De acordo
com a Secretaria Nacional de Direitos Humanos, dois de seus filhos também foram
perseguidos. Um deles, Mané Porfírio, que militava ao lado do pai, foi preso em 1973
e permaneceu encarcerado no DOI-Codi do Rio Janeiro até 1977, sendo torturado
em todo esse período. Durvalino foi capturado e torturado aos 17 anos. Teve
transtornos mentais e desapareceu de um hospital onde estava internado, em 1973.
n
100
Leandro &
Leonardo
Pense neles
“P
erguntaram pra mim, se ainda gosto dela. Respondi, tenho ódio, e morro de amor
por ela.” Fala a verdade, duvido que você não tenha cantarolado a canção Entre
Tapas e Beijos ao ler os primeiros versos de um dos grandes sucessos inaugurais
da dupla goiana Leandro & Leonardo. No final da década de 1980, um fenômeno
tomou as rádios e emissoras de TV do País. Dois irmãos iniciavam uma trajetória
meteórica no cenário musical nacional, revigorando um gênero depreciado por
muitos críticos, mas adorado pelo povão.
“Eu fiz parte de uma mudança radical na música sertaneja”, declarou Leonardo,
em uma entrevista exclusiva a O Popular em 2013, quando, em uma pesquisa
qualitativa encomendada pelo jornal, a maior parte dos entrevistados indicou o
cantor como o representante típico do “jeito goiano de ser”. “Quando surgiram
Leandro & Leonardo com Entre Tapas e Beijos, canção de um goiano chamado
Nilton Lamas, a gente recebia críticas pra caramba. Depois veio Pense em Mim e já
veio contrato com a Rede Globo para apresentar uma Terça Nobre”, recordou.
O cantor prosseguiu com sua carreira solo e manteve o sucesso com outros
projetos. Em 2012, um de seus filhos, Pedro Leonardo, que também era cantor,
sofreu um grave acidente de carro e ficou entre a vida e a morte. Novamente
Leonardo pôde constatar o apreço dos fãs em seus momentos mais difíceis. Leonardo
tornou-se também empresário de novos artistas. Luís José da Costa e Emival Eterno
da Costa, Leandro & Leonardo, os irmãos que colhiam tomate, que foram atendentes
de farmácia e se tornaram ídolos de um País. É ou não é uma história e tanto?
n
102
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Leide das
Neves
A inocência que
o brilho apagou
E
m 26 de outubro de 1987, Goiânia estava de luto e assustada. Em caixões revestidos
de chumbo e acondicionados em caixas de madeira de lei, chegavam à cidade os
corpos das duas primeiras vítimas fatais do acidente com a substância radioativa
Césio-137. Eram a menina Leide das Neves Ferreira, 8 anos, e sua tia, Maria
Gabriela Ferreira, a pessoa que percebeu que algo muito grave era causado pelo
material azul que brilhava no escuro. Foi um dia de horror, em que a dor da perda
foi agravada pela ignorância e violência de manifestantes que chegaram a apedrejar
o cortejo.
caixão onde sua filha jazia, um invólucro que pesava 700 kg por conta dos materiais
de proteção contra a radiação.
Hoje, com 72 anos – “mas com cabeça de 18”, ela brinca –, Lourdes é uma
mulher que, mesmo enfrentando suas dores durante todo esse tempo, ainda tem
uma saudade imensurável da filha caçula que perdeu. “Quando foram os 30 anos
do acidente e da morte da Leide, eu até falei com algumas pessoas, dei entrevistas.
Mas daí comecei a passar mal. Pensei que ia enfartar e percebi que eu também tinha
que cuidar da minha saúde”, relatou em 2018. Saúde que esteve por um fio naquela
sucessão de acontecimentos que marcariam não só sua vida, mas a história do País.
“Cada pessoa que teve contato com o césio de alguma forma teve sintomas
diferentes. Teve gente que teve dor de cabeça; outros, diarreia. Eu tive sangramento.”
Mulher de Devair Alves Ferreira, o dono do ferro-velho onde a cápsula de césio
do aparelho de radiologia foi definitivamente aberta, Lourdes mantém cristalinas
“Quando eu as lembranças do que aconteceu três décadas e meia atrás. “Sou uma sobrevivente”,
me lembro define-se. E ela está certa. Talvez ninguém que esteve tão próximo às gramas mortais
da Leide, é do Césio-137 tenha escapado de seus piores efeitos quanto esta mãe de outros dois
uma dor e um filhos.
consolo ao
“Agora eu tenho netos e bisnetos, acredita?” Sim, seus planos de vida são de longo
mesmo tempo.
prazo. “Quero ser tataravó”, diverte-se. Uma família que teve continuidade com seus
É uma força outros dois filhos, Lucélia e Lucimar, que não tiveram a chance de ter a irmã Leide
que eu tenho.” das Neves em suas vidas adultas. Lourdes parece incorporar aquele ditado popular
imortalizado num samba famoso: Deus dá o frio conforme o cobertor. E o cobertor
dessa mulher miudinha mostra-se imenso. Em 2003, ela perdeu o marido para a
depressão e o álcool. Devair sucumbiu à tristeza de um passado traumático.
“Com tudo isso, eu sofri, mas também aprendi muito. Esse luto que a gente sente
não se acaba, está sempre voltando. Mas eu me sinto fortalecida para continuar,
um dia após o outro”, assegura. “Eu brinco um pouco com as pessoas para a vida
ficar mais light, né. É preciso.” E quem somos nós para duvidar de alguém que
passou pelo que dona Lourdes passou. “Quando eu me lembro da Leide, é uma dor
e um consolo ao mesmo tempo. É uma força que eu tenho.” Símbolo da tragédia de
Goiânia, o sorriso inocente de Leide das Neves perpetuou-se não só na lembrança de
sua mãe.
n
104
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Leodegária
de Jesus
A nossa poeta negra
E
m 1889, apenas um ano após a assinatura da Lei Áurea, uma criança negra vinha
ao mundo em Caldas Novas. Aquela menina, batizada de Leodegária de Jesus em
homenagem a um santo de devoção do padre que a abençoou, enfrentaria um
período de transformações e desafios. Nesse contexto, ela teria um destaque raro
para a época. Nos últimos anos do século 19, depois de sua família ter morado em
Jataí e Rio Verde, ela chegou à cidade de Goiás, após seu pai, José Antônio de Jesus,
ser eleito deputado federal pelo Partido Republicano. E foi na então capital do
Estado que seu talento literário surgiu.
Quando seu segundo – e último – livro foi publicado, em 1928, ela morava em
Uberlândia. O título Orchideas, trabalho que foi resgatado há poucos anos em uma
edição artesanal realizada pelo Ateliê Tipográfico do CEGRAF, da UFG, mantém
o mesmo estilo do livro anterior. “São poemas com temáticas como amor, família,
natureza, dores por algum motivo e com a introdução de novos temas decorrentes
do vivido, como, por exemplo, a saudade da cidade de Goiás e da vida cultural vila-
boense; e ainda a morte do pai”, enumera Goiandira. “A voz lírica agora é de uma
mulher madura, que passou por acontecimentos difíceis em sua vida e assumiu a
Essa postura responsabilidade pela família”, acrescenta.
ativa é uma
“Suas duas únicas publicações foram pioneiras na literatura feminina em Goiás.
constante na
Merece um estudo aprofundado, que compreenda o seu contexto histórico-literário
biografia de e investigue com o devido cuidado o lugar que ocupou em uma geração de poetas
Leodegária. Ela mais velhos e boêmios, como Joaquim Bonifácio Gomes de Siqueira, Luís do
fez questão de Couto, Augusto Rios, Arlindo Costa. Todos escrevendo no mesmo tom romântico”,
avançar nos contextualiza Goiandira. Havia um clima cultural especial naquela época. Em 1907,
estudos, teve por exemplo, Leodegária formou com Cora Coralina, Rosa Santarém Godinho e
Alice Santana um grupo que participou do semanário A Rosa, iniciativa pioneira por
alguns versos
ter como público-alvo as mulheres e feita por mulheres.
publicados fora
de Goiás ainda Essa postura ativa é uma constante na biografia de Leodegária. Ela fez questão de
muito jovem, avançar nos estudos, teve alguns versos publicados fora de Goiás ainda muito jovem,
ajudou a cuidar ajudou a cuidar do pai doente e em Uberlândia fundou e dirigiu o Colégio São José,
do pai doente e além de escrever para jornais da cidade, algo ainda não muito comum para mulheres
naqueles tempos. O lançamento de seu segundo livro também foi viabilizado com
em Uberlândia
recursos próprios. Já morando em Belo Horizonte, manteve correspondência com
fundou e dirigiu Cora Coralina, a quem chamava de Anica, e voltou à cidade de Goiás em 1930 e
o Colégio São 1960, para visitar os conhecidos. Leodegária nunca se casou – teve um romance
José frustrado em Goiás na juventude – e morreu em 1978.
Sua memória tem sido revalorizada, com homenagens pela cidade de Goiás. Uma
delas é ideia de Elenizia da Mata, primeira vereadora negra da história da antiga
capital. “Pensamos na necessidade de fundarmos um Museu da Memória Negra
que levará o nome de Leodegária”, expõe. “Um espaço que abrigue histórias de
pessoas que foram capazes de contribuir com seus fazeres e saberes para que Goiás
seja reconhecida como berço da cultura goiana. O nome de Leodegária de Jesus
foi escolhido por ela ser uma mulher negra intelectual e poeta em Goiás no pós-
abolição, que se tornou expoente na educação, música, literatura, uma mulher negra
admirável ainda pouco conhecida pelos goianos.”
n
106
Walter Alves
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Leolídio di
Ramos Caiado
Todas as
margens do rio
C
ada palmo dos 2,6 mil quilômetros do Rio Araguaia foi percorrido por Leolídio
di Ramos Caiado. São incontáveis as vezes que ele navegou por aquelas águas, não
raramente visitando pedaços de Goiás e Mato Grosso em que ninguém havia posto
os pés antes. Explorar essa região se firmou em sua vida como uma espécie de
vocação desde 1945, quando, ainda muito jovem, integrou a histórica Expedição
Araguaia-Xingu, a convite do próprio Marechal Rondon, em uma das aventuras
que redesenhariam o mapa do Brasil e fariam o País marchar mais para o Oeste,
Amazônia adentro.
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Leopoldo de
Bulhões
O primeiro
ministro de Goiás
J
osé Leopoldo de Bulhões também trazia, entre seus sobrenomes, o peso dos
Jardim, uma das famílias protagonistas da política goiana no século 19 e na
República Velha. Ele era neto de um ex-presidente da Província de Goiás, José
Rodrigues Jardim, que, além disso, foi Senador do Império. O poder, portanto,
estava em seu DNA e este filho da cidade de Goiás, nascido em 1856, não fugiu
aos seus. Quando se formou na Faculdade de Direito do Largo de São Francisco,
em São Paulo, em 1880, tinha suas ambições, mas não sabia que elas chegariam
tão longe.
Leopoldo Quando o destino de D. Pedro II e sua família foi selado, Leopoldo de Bulhões,
de Bulhões ao lado de nomes como Rui Barbosa e Joaquim Nabuco, participou do Congresso
ajudou Liberal, no Rio de Janeiro. Em Goiás, sua ascendência só crescia e ele fundou no
Rodrigues Estado o Partido Republicano, mas a Proclamação da República lhe trouxe um revés.
Mudado o regime, perdeu o mandato de deputado, reconquistando-o em 1890 para
Alves a chegar
participar da legislatura que elaboraria uma nova Constituição. Ele integrou o seleto
à Presidência grupo de 21 parlamentares que deram redação final à nova Carta Magna.
da República.
Recebeu De temperamento forte e combativo, Leopoldo de Bulhões comprava brigas. Foi
em troca o opositor feroz de Deodoro da Fonseca e discordou da política econômica de Rui
Ministério da Barbosa. Todas essas ações o levaram a ser eleito para Presidente de Goiás (cargo que
correspondia ao de governador) em 1892, mas não assumiu, preferindo continuar no
Fazenda. Foi Rio de Janeiro. O cargo seguinte foi o de Senador. Convidado para ser ministro da
o primeiro Fazenda do governo de Prudente de Morais, Leopoldo de Bulhões, de novo, preferiu
goiano a a função parlamentar. Ainda muito jovem, chegou à Presidência do Senado.
assumir a
pasta. Naquela época, a nova geração dos Bulhões já havia formado uma verdadeira
oligarquia em Goiás, elegendo deputados e governos. Isso não evitou que sofressem
derrotas e traições. No início do século 20, Leopoldo de Bulhões era um dos
homens mais influentes do País e em breve teria nas mãos, efetivamente, os destinos
econômicos do Brasil. Em 1902, Leopoldo de Bulhões ajudou Rodrigues Alves a
chegar à Presidência da República. Recebeu em troca o Ministério da Fazenda. Foi o
primeiro goiano a assumir a pasta.
Nos anos seguintes, sua atenção voltou-se novamente para Goiás, onde liderou
uma revolução, a de 1909, para retirar do poder o inimigo Xavier de Almeida.
Depois dessa vitória, retornou ao Ministério da Fazenda, agora no governo Nilo
Peçanha. A parte final de sua vida foi marcada por novas vitórias nas urnas e
perseguições fora delas. Depois de se mudar para Petrópolis (RJ), decidiu se
aposentar da política e passou a escrever em jornais. Morreu na cidade serrana do
Rio em 1928 como um dos homens públicos mais poderosos de seu tempo.
n
110
Marconi
Perillo
Longevidade na
Casa Verde
“E
u morei aqui, da primeira vez, por 7 anos e 3 meses. Agora, mais 7 anos e 3 meses.
Sou um dos governadores a ocupar por mais tempo o Palácio das Esmeraldas, atrás
apenas de Pedro Ludovico.” No interior do Palácio das Esmeraldas, no final de seu
quarto mandato, em 2018, Marconi Perillo não escondia o orgulho que sentia com
essa contabilidade. Quando, em 1998, se lançou candidato a governador com cerca
de 3% das intenções de voto contra um oponente que ostentava mais de 70%, ele se
arriscou, sem saber ainda que protagonizaria a maior virada eleitoral da história do
Estado.
eleição o Maguito tivesse sido candidato, com certeza eu não teria sido”, revelou.
Já em 2018, antes de sofrer um revés nas urnas, perdendo a eleição para o Senado,
Marconi Perillo admitia que não era mais exatamente o mesmo homem de camisa
azul que percorrera o Estado de vinte anos antes. “Como você mesmo disse, são 20
anos. Vinte anos é tempo suficiente para burilar, amadurecer qualquer pessoa. Eu me
sinto mais calmo, muito mais disposto ao diálogo com todos, sem exceção. Eu me
sinto muito mais ponderado”, assegurava. “Eu tenho um pouco de irritação quando
alguma diretriz não é cumprida ou quando percebo má-fé. Isso me irrita muito”,
avisava.
Quando,
em 1998, Em março de 1978, o adolescente Marconi Perillo chegou a Goiânia, vindo da
se lançou pequena Palmeiras de Goiás, com apenas 15 anos de idade para estudar. “Embora
candidato a eu tenha nascido aqui, em frente à Catedral, no Hospital Maria Auxiliadora”, diz.
Naquele tempo, ele não pensava em política, mas algo importante em sua vida
governador
aconteceu. “Eu morei 3 anos e meio na casa de um primo, o Fernando Perillo, e
com cerca passei a conviver com os músicos, com os artistas plásticos. E fui sendo apresentado
de 3% das a um mundo mais global que eu não conhecia. Foi uma revolução cultural em minha
intenções de cabeça.”
voto contra
um oponente Ouvindo Clube da Esquina, tropicalistas e Beatles, o secundarista Marconi abriu
sua visão para outros temas. “Essa relação com muita gente da cultura me levou a
que ostentava outra reflexão, sobre o momento político vivido no País. Foi aí que comecei a me
mais de 70%, engajar em algumas lutas que eram fundamentais para a redemocratização do País.”
ele se arriscou, Ele prestou vestibular para Ciências Sociais na UFG, onde se tornou amigo de jovens
sem saber lideranças – vejam vocês – do PT e do PC do B. No curso, permaneceu por seis
ainda que meses, mas acabou indo para São Paulo fazer Engenharia Industrial Mecânica.
protagonizaria
De volta a Goiás em 1982, após ter feito campanha para Franco Montoro ao
a maior virada governo de São Paulo, Marconi entrou na política definitivamente. Trabalhando no
eleitoral da gabinete do então senador Henrique Santillo em Goiânia, logo se destacou e tornou-
história do se presidente da Juventude do PMDB. Quando Santillo elegeu-se governador, pela
Estado. primeira vez ele deu expediente no lugar que ocuparia por tanto tempo. “Trabalhei
com Santillo 4 anos. Ele era muito disciplinado, muito sério. Tenho uma foto dele
em meu outro gabinete.” O aprendizado o levou à Assembleia e ao Congresso como
deputado.
Em sua trajetória, Marconi teve embates, até com a imprensa. “Quando era
deputado e era retratado no jornal, era sempre positivo, porque eu era oposição.
E tive muito espaço em O POPULAR. Quando você passa para o outro lado, para
a posição de chefe de governo, aí são variadas as sensações”, reconheceu. “Muitas
vezes você considera que o que foi relatado é correto, muitas vezes você se sente
injustiçado. Acho que minha relação com o jornal é respeitosa e democrática”,
avaliava. “Ninguém contou melhor a história de Goiás nesses 80 anos que O
POPULAR”, finalizou.
n
112
Maria
Guilhermina
Vitalidade que a arte dá
E
m 1959, Maria Guilhermina ganhou o Prêmio da Bienal de Escultura de São
Paulo e ingressou definitivamente no cenário das artes plásticas brasileiras. No
ano seguinte, em 2 de junho de 1960, O POPULAR noticiou mais vitórias dessa
mineira de Conquista, que se mudou com toda a família para Goiânia. Seus
trabalhos eram premiados em um concurso promovido pela Escola Goiana de
Belas Artes, nas categorias pintura e escultura, sendo escolhidos por um júri
em que estavam nomes como o arquiteto Elder Rocha Lima, o também escultor
Gustav Ritter e o jornalista Ciro Lisita.
Desde então, já se passaram mais de seis décadas e sua obra permanece atual
e requisitada. Aos 90 anos de idade, seu grande ateliê ao ar livre, nas margens
do Ribeirão João Leite, ainda é um dos templos das artes plásticas em Goiás.
Um verdadeiro bosque que é seu refúgio. “São duas chácaras que eu comprei do
Altamiro de Moura Pacheco”, informou em 2018, lembrando um dos pioneiros
da nova capital. Primeiro em pedra e desde 1982 também em pau-brasil, ela
compõe obras que seduzem. “Tenho cerca de 890 esculturas em madeira e mais
de 1.300 em pedra”, espanta-se.
113
Quem a vê, uma senhora doce e miudinha, não pode suspeitar da força que tem,
nos sentidos figurativo e literal. Muitas das esculturas de Maria Guilhermina são
de grande porte. “Eu adquiri essa força com a arte. A escultura que está no lago
do Parque Flamboyant, por exemplo, pesa 13 toneladas. Quando a pedra chegou,
precisamos de um guindaste para colocá-la no ateliê. Quando ficou pronta, outro
guindaste precisou içá-la por cima do muro, porque não passava pelo portão de tão
grande que era”, recordou. “Às vezes é necessário um aparato especial para esculpi-
las.”
n
114
Yosikazu Maeda
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Marietta Telles
Machado
Mais que um nome
de biblioteca
M
arietta Telles Machado é um nome conhecido muito mais porque batiza centros
culturais e bibliotecas do que por sua obra literária e atuação em nome da
cultura. Várias pessoas leem seu nome, mas não sabem exatamente quem foi
essa mulher. Não deveria ser assim. Na segunda metade do século passado, ela
teve papel central no desenvolvimento de várias iniciativas que repercutiram
no futuro, como a formação de leitores, a preservação e organização de acervos
e o resgate histórico, por meio de suas crônicas, de personalidades de vulto em
Goiás.
“Ela foi uma pessoa que deu a vida para a biblioteca em Goiás e até em outros
estados”, reforça a escritora Ercília Macedo Eckel, que foi amiga próxima de
Marietta. “Ela foi convidada, quando ainda era bem jovem, pelo professor Colemar
Natal e Silva, para organizar as bibliotecas das faculdades que depois integrariam a
Universidade Federal de Goiás. Depois de fundada a UFG, foi ela quem montou a
A escritora Biblioteca Central da instituição, que na época ficava na Faculdade de Direito, ali na
nasceu na Praça Universitária”, relata. Marietta também estudou Direito na instituição.
Fazenda
Barreirão, no A mesma Praça Universitária abriga hoje uma biblioteca com o seu nome.
Marietta também é homenageada com sua assinatura no complexo cultural
município de localizado na Praça Cívica. Tamanho prestígio é mais do que justo. A escritora,
Hidrolândia, muito ligada à ambientação rural, não se reteve nessa temática e no volume
em 1934. Esse Narrativas do Quotidiano faz um grande mosaico de uma Goiânia em formação,
lugar bucólico, com cenas urbanas de uma cidade em nascimento. Cronista e contista de primeira, a
onde passou autora se destacou ainda por sua produção teatral, sobretudo para o público infantil.
a infância e a
Nessa seara, uma de suas obras mais representativas é o livro Teatro Para
adolescência, Crianças, publicado pela Editora da UFG e há muito tempo fora de catálogo. Nele,
ajudou a moldar Marietta cumpre tarefas simultâneas: ao mesmo tempo em que traz histórias cheias
seu imaginário, de lirismo e encantamento (ela chegou a ser comparada com a dramaturga Maria
que incluía Clara Machado), há a preocupação de se repassar ensinamentos sobre essa arte
muitas imagens delicada e que exige muita perícia. O trabalho é composto pelas peças A Traição Nas
da natureza e Terrinhas do Coelho, A Semente Mágica e Assembleia dos Capetinhas.
as sensações “Marietta era uma pessoa simples, humilde”, rememora Ercília. E também
que a terra, a dedicada ao bem público. Seus conhecimentos de literatura e sua larga experiência
flora e a fauna em bibliotecas a faziam ser muito requisitada para deixar acessíveis acervos em
poderiam instituições de Goiás e em cidades variadas, como São Luis, no Maranhão, Teresina,
estimular nas Manaus, Rio Branco, Belém. Viagens que resultavam em novos textos, que ela foi
pessoas. escrevendo e guardando. Apenas dois anos antes de sua morte, em 1987, a escritora
catalogou todos esses trabalhos e organizou uma coletânea, lançada postumamente.
n
116
Marília
Mendonça
A cantora das multidões
A
última postagem da cantora Marília Mendonça em seu perfil no Instagram, com
ela já dentro do avião naquele fatídico 5 de novembro de 2021, seria o derradeiro
registro da artista em vida. Na publicação, ela fala do final de semana de shows que
faria em Minas Gerais, a acompanhamos entrando na aeronave e lamentando não
poder aproveitar as delícias da cozinha mineira, mas tendo que se contentar com
uma refeição mais frugal. Sempre com o bom humor que marcou a personalidade
desta filha de Cristianópolis que se tornou um dos nomes mais populares da
música brasileira. Aquela despedida na rede social teve mais de 9 milhões e 300 mil
curtidas e recebeu mais de 850 mil comentários.
Todos esses feitos só não são maiores que a saudade que a cantora, a mais ouvida
do Brasil em plataformas de áudio, deixou em seus incontáveis fãs. Com enorme
carisma, voz potente, muita personalidade e sorriso sempre aberto, ela saiu dos
bastidores, onde fez uma sólida carreira de compositora, e veio para a frente dos
palcos em 2015, quando iniciou sua trajetória de intérprete. O primeiro trabalho
nesse novo papel, depois de compor sucessos para duplas como Jorge & Mateus e
para cantores como Cristiano Araújo e Wesley Safadão, veio numa parceria com a
dupla Henrique & Juliano. A canção era Impasse e demonstrava que a sofrência seria
seu estilo, mas com inovações importantes.
n
118
Vera de Carvalho
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Mauricinho
Hippie
Uma bicicleta
e um sorriso
E
ntre os anos 1960 e 1990, uma figura coloria Goiânia. Com peruca de tons
berrantes, óculos escuros, miçangas no pescoço e nos braços, camisetas que
convidavam à paz e ao amor e um sorriso do tamanho do mundo, Mauricinho
Hippie era um dos mais representativos personagens da cultura e da juventude
criativa daqueles tempos na cidade. Ele pedalava por todo lado, quase sempre
ao lado de gatos, que levava na cestinha da bicicleta, e cachorros, que vinha
puxando por coleiras. E os bichos estavam com os pelos pintados, tão coloridos e
vibrantes como o dono.
Este era Maurício Vicente Oliveira, hoje com mais de 80 anos de idade
e, infelizmente, com a saúde já fragilizada. Em 2018 fomos até sua antiga
residência, no Setor Aeroporto, mas ele não mora mais na casa escondidinha no
canto de uma praça. Está agora sob os cuidados de duas tias após o falecimento
da mãe. Em 2016, ele teve um sério problema pulmonar. Agora, nos últimos
meses de fevereiro e março, voltou a precisar ser internado no Hospital Geral
119
de Goiânia por algumas semanas. Sua memória está falhando e ele precisa tomar
remédios controlados.
Não conversamos, portanto, com ele, mas sua história fala por si. Filho de um
proprietário de terras no norte de Goiás, Mauricinho, desde cedo, mostrou-se
inquieto com convenções e normas que tolhessem sua criatividade. O mundo da
Todos dizem a cultura foi a saída para tal angústia. “Eu comecei com música e cheguei a fazer
mesma coisa: Escola de Belas Artes, mas não terminei não”, contou o próprio Mauricinho em
ele oxigenava uma reportagem para a TV UFG, em 2017. E foi por meio da arte, em várias de suas
expressões, que Mauricinho acabou se tornando o verdadeiro ícone de um tempo.
de cultura e
delicadeza os “Uma vez ele me contou que seu pai não gostava que ele mexesse com arte”, disse
ares pesados a O Popular, em 2016, o produtor, compositor, escritor e gestor cultural Carlos
de épocas em Brandão. “Foi uma das pessoas mais criativas desta cidade”, afirma o mesmo Brandão
que exercer a em um vídeo que está no canal de Pedro Augusto Diniz na plataforma YouTube e
liberdade era que registra a festa que Mauricinho ganhou dos amigos em 2011 para comemorar
seus 70 anos de vida. Todos dizem a mesma coisa: ele oxigenava de cultura e
um crime.
delicadeza os ares pesados de épocas em que exercer a liberdade era um crime.
“Ninguém me incentivou não. Foi vontade mesmo que eu tinha de fazer arte”,
revela ele nesta mesma reportagem da TV UFG. Uma vontade que extrapolou
fórmulas. Mauricinho ia para a rua e dela fazia seu palco para declamações de
poesia, shows musicais, performances corporais, discursos em prol do meio
ambiente e da vida, intervenções urbanas com seus trabalhos. Em um período
em que não se falava disso, foi atuante na defesa dos direitos dos homossexuais e
desafiava a sociedade conservadora com suas roupas exóticas e uma atitude que era
só dele.
Artista plástico talentoso, seu portfólio era ele mesmo. Uma verdadeira obra de
arte ambulante, que incentivava cada projeto dos amigos, prestigiava os eventos,
agitava o ambiente para obter adesão às causas da cultura e da sociedade. Desde
pequeno, porém, era um incompreendido. Annunziata Spencière, sobrinha da
musicista Belkiss Spencière, conta que sua tia “salvou” Mauricinho Hippie muitas
vezes. “Ele vinha correndo pela Tocantins e já gritando ‘Socorro, dona Belkiss’, e a
titia colocava ele para dentro de casa e espantava os moleques que jogavam pedras
nele”, recorda.
Sua atividade cultural ajudou na criação da Feira Hippie de Goiânia, que surgiu
espontaneamente na Avenida Goiás e que reunia pintores, artesãos, músicos. E lá
estavam Mauricinho e sua bicicleta. Aliás, Mauricinho estava em todo lugar, até
que um acidente na Rua 4, no Centro, em 1998, o tirou das ruas. Ele foi atropelado
com sua bicicleta por um ônibus e perdeu um pé. A prótese que passou a usar não
lhe devolveu a alegria de antes. Entrou em depressão e não mais usou suas roupas
coloridas. É melhor pensar nele sorrindo, distribuindo flores, dando vida a esta
cidade.
n
120
Weimer Carvalho
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Mauro
Borges
Um golpe em Goiás
S
aindo do Palácio das Esmeraldas, onde acabara de ser forçado a renunciar ao
cargo de governador de Goiás para o qual fora democraticamente eleito, Mauro
Borges pede calma à multidão reunida na Praça Cívica. Uma resistência armada
tornara-se inviável e um banho de sangue precisava ser evitado. Seu governo,
marcado por diversas inovações, chegava ao fim sob o peso da mão do governo
militar, que o governador aceitara, mas com o qual manteve uma relação tensa.
Com aviões dando rasantes sobre Goiânia e tropas de prontidão nos quartéis, era
hora de ceder.
O golpe militar contra João Goulart havia ocorrido em 1º de abril de 1964, mas
Mauro conseguira se equilibrar, obtendo até uma garantia no Supremo Tribunal
Federal de que não seria deposto. De nada adiantou diante do endurecimento do
regime. Ele e seus assessores foram perseguidos e denúncias foram fabricadas.
Com seus direitos políticos cassados, ele ficou sob estreita vigilância. Após a
redemocratização, Mauro Borges tentou voltar a ser governador, mas perdeu a
eleição de 1986 para Henrique Santillo. Morreu em 29 de março de 2013, aos 93 anos
de idade.
n
122
Wagnas Cabral
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Nabyh
Salum
De médico e fotógrafo...
A
ntônio Salum era um comerciante próspero do interior de Minas Gerais quando
chegou a Goiânia para averiguar os potenciais daquele novo mercado que nascia
com a construção de uma capital no meio do Cerrado. Hospedou-se no Grande
Hotel, na Avenida Goiás, e, por um acaso, ali mesmo se encontrou com o homem
mais importante do lugar. Pedro Ludovico logo o convidou para se estabelecer
por aqui, em seu esforço em atrair gente empreendedora para a cidade. Mostrou
ao negociante que o futuro estava sendo feito naquele instante e ofereceu uma
área a preço baixo.
O restante dessa história pode ser deduzida pelo sucesso alcançado pelos
filhos de Antônio. Um deles era Nabyh Salum, que marcaria seu nome na
história da Medicina em Goiás e ajudaria Goiânia a ser um polo reconhecido
na área. “Ele foi um pioneiro no campo da radiologia. O doutor Nabyh tem
uma importância enorme nesse sentido”, pondera o historiador Ubirajara Galli,
que auxiliou o médico a organizar e publicar um livro de memórias em 2012,
chamado Nabyh Salum: Revelações. “Ele não foi o primeiro a atuar nesse setor,
mas deu um impulso enorme.”
123
Uma das marcas que ficaram de sua passagem foi a de ser solidário com os
colegas. Quando sabia que algum deles passava por dificuldades, tentava ajudá-lo
a resolver os problemas. Por ter essa identificação profunda com a profissão e seus
pares, tornou-se o homem a dirigir por mais tempo a Associação Médica. A fama
do rapaz que veio muito jovem de sua Três Corações para Goiânia era a de ser um
homem obstinado, político, inteligente e planejado. Nada lhe parecia impossível, não
fugia de nenhum desafio. Foram 60 anos de profissão. Morreu em 2016, aos 83 anos
de idade.
n
124
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Nelson
Piccolo
A pele que curamos
N
os momentos em que acidentes mudam dolorosa e dramaticamente a vida
das pessoas, ter algum alento faz toda a diferença. Para milhares de pessoas,
este alívio teve um nome: Nelson Piccolo. Referência mundial no tratamento
de queimaduras graves, este médico chegou a Goiás com um projeto que era
considerado um tanto louco por muitos de seus colegas. Estabeleceu-se aqui
e iniciou um trabalho inédito, que em 50 anos atendeu quase 350 mil pessoas.
Gente que estava em desespero e que, na maior parte das vezes, conseguiu
superar uma situação quase irreversível.
“Meu pai morava em Marília, interior de São Paulo, quando foi convidado
pelo Dr. Hugo Frota a se mudar para Goiânia em 1963”, conta o filho, que leva
o mesmo nome do patriarca e também é médico. Aliás, a família inteira foi
influenciada pelo Nelson pioneiro. “Seus filhos, eu, Mônica e Maria Thereza, e
agora seus netos, Ricardo, Silvia, Roberta, Nelson, Paulo e Natalia, continuam a
levar seu sonho à frente, implementando novas tecnologias e consolidando os
métodos e tratamentos estabelecidos e validados com o tempo”, contextualiza.
125
n
126
Simone Ala
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Neusa
Moraes
Escultora de
nossa identidade
T
rês homens seguram um grande bloco de pedra. Eles representam brancos, negros
e indígenas que ajudaram a moldar um Estado e seu povo. O Monumento às Três
Raças é o cartão-postal mais conhecido de Goiânia e revela o trabalho da escultora
Neusa Moraes, que teve grande influência nas artes plásticas em Goiás. “Ela foi um
grande exemplo pessoal e profissional. Uma referência para meu trabalho e minha
vida”, afirma o também escultor Júlio Valente, que trabalhou ao lado de Neusa por 25
anos e que manteve com ela uma relação de gratidão.
“Nós nos conhecemos quando ela foi jurada em dois concursos de que participei.
O primeiro foi na Escola Técnica Federal, onde eu estudava. O outro foi na
Casagrande Galeria de Arte”, relata o discípulo. Ele estava iniciando a carreira, com
as dificuldades inerentes dessa fase. “Eu não tinha ateliê. Foi ela quem me convidou
para dividir o espaço que tinha. A Neusa fazia suas obras no seu lado do ateliê e eu
fazia os meus trabalhos no meu canto. O gesto dela foi de muita generosidade. De
vez em quando, ela me convidava para fazer alguma obra ou encomenda, juntos.”
127
Sobrinha do arquiteto José Félix de Souza, Neusa Moraes foi criada pelo tio após
perder a mãe. A inspiração artística dentro de casa foi o suficiente para despertar sua
Neusa Moraes vocação para a área. Ao retornar a Goiânia depois de ganhar uma bolsa de estudos
era conhecida na capital paulista, Neusa chegou com um prestígio imenso, o que lhe valeu um
por testar convite para lecionar na Universidade Federal de Goiás. Na UFG, ajudou a formar
materiais em gerações de artistas goianos, sempre imprimindo uma marca de inquietação, seja na
sua produção. temática, seja na técnica que empregava.
Ferro,
Neusa Moraes era conhecida por testar materiais em sua produção. Ferro,
cerâmica, pau- cerâmica, pau-brasil, bronze, mogno, pedra-sabão. Nenhum elemento lhe era
brasil, bronze, estranho, de todos ela acreditava poder extrair algo a mais. “Aprendi muita coisa com
mogno, pedra- ela. Questões de perspectiva, de dimensão, de luz e sombra na escultura. Ela tinha
sabão. Nenhum muito conhecimento e sabia ensinar”, elogia Júlio. Segundo ele, o ateliê da artista
elemento lhe plástica era constantemente procurado por aprendizes que iam até lá em busca de
era estranho, informações, conselhos, dicas para seus trabalhos. “E ela atendia todo mundo.”
de todos ela Foi nesse mesmo espaço que Neusa acabou se envolvendo com uma obra que
acreditava lhe trouxe alguns desgostos. A estátua que mostra o fundador de Goiânia, Pedro
poder extrair Ludovico, sobre um cavalo e que está exposta na Praça Cívica consumiu noites de
algo a mais. sono da escultora no final de sua vida. “Eu ajudei a fazer o molde e acompanhei seu
processo de produção. Mas ainda havia retoques que a Neusa queria fazer. O molde,
que precisou ser desmembrado porque era muito grande, foi para São Paulo, mas ela
morreu um mês depois e não pôde concluir o trabalho como desejava”, diz Júlio.
Os acabamentos da obra couberam a Júlio, que sabia o que sua professora queria
fazer, mas que preferiu não interferir muito. “Havia algo a fazer no rabo do cavalo, na
mão de Pedro Ludovico, que ficou desproporcional. Mas isso só ela poderia fazer. Ela
tinha sua visão artística e isso precisa ser respeitado”, justifica o escultor. Se a cena de
Pedro Ludovico olhando o local onde Goiânia seria construída de fato aconteceu ou
não, isso tem importância menor. Se a estátua não tem a proporção ideal, paciência.
O que não se pode apagar é a importância da escultora Neusa Moraes.
n
128
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Nhanhá
do Couto
Os saraus de Nhanhá
E
m seu casarão colonial na cidade de Goiás, onde depois também funcionaria
o Fórum local, Maria Angélica da Costa Brandão recebia artistas para recitais
e saraus concorridos. A nata da cultura e da intelectualidade daqueles tempos
acorria à residência em que se respirava arte. Mas se você morasse na antiga
capital goiana naquela época, possivelmente não saberia dizer quem era Maria
Angélica. Todos a conheciam por Nhanhá do Couto. A esposa do odontólogo
Luiz do Couto Brandão foi uma figura proeminente na sociedade local e uma
pioneira em muitos sentidos.
Luís do Couto, que era tio da poeta Cora Coralina, também era um admirador
da boa música e fez de tudo para que Nhanhá se sentisse bem na nova cidade, o que
de fato aconteceu. Logo ela estava integrada à comunidade, promovendo eventos
culturais e agitando um pouco mais a vida artística da antiga Vila Boa. “Havia um
movimento interessante. Goiás já tinha pianos, por exemplo. Mas Nhanhá foi muito
importante para enriquecer ainda mais esse cenário”, enfatiza sua bisneta. Quando
mudou-se para Goiás, em 1901, Nhanhá contava com apenas 21 anos de idade.
Sua presença em Goiás na virada de um novo século teve grande poder simbólico.
Além de apoiar fortemente compositores locais, levou conhecimento musical a
Durante gerações que não tinham essa oportunidade até então. Fundou grupos escolares e
mais de duas pôde exercer sua outra vocação, a de educadora. Para Nhanhá do Couto, o ensino
décadas, a regular não deveria se dissociar do aprendizado no campo das artes. Um devia correr
pianista não em paralelo com o outro, complementando-se. Por isso, fez questão de expandir suas
deixou a iniciativas, levando seus saraus para outras cidades, como Vianópolis e Catalão.
vida cultural Os eventos promovidos por Nhanhá do Couto, que ela gostava de designar
da antiga como saraus artísticos, tornaram-se uma tradição na cidade de Goiás. Uma das
Vila Boa datas sagradas para essas celebrações era seu próprio aniversário. As pessoas já
parada e foi aguardavam as atrações todo dia 20 de agosto, quando a antiga capital goiana parava
fundamental em torno dos festejos na casa da aniversariante. Durante mais de duas décadas, a
para incutir pianista não deixou a vida cultural da antiga Vila Boa parada e foi fundamental
para incutir no imaginário local o amor pela música, que tantos frutos renderia
no imaginário posteriormente.
local o
amor pela A cidade ficou um tanto órfã quando Nhanhá do Couto, por questões familiares,
música, que se transferiu primeiro para Belo Horizonte e depois para o Rio de Janeiro. Sua saída
tantos frutos coincidiu com a mudança da capital goiana, que lançou a cidade de Goiás em uma
espécie de depressão, sobretudo nos campos cultural e educacional. Em 1938, ela
renderia
também se mudou para Goiânia, onde morou por 4 anos, antes de fixar residência
definitivamente no Rio, onde morreu em 1945. Sua morte, paradoxalmente, levou
muitos de seus alunos a conceber projetos em sua homenagem, reavivando a cena
artística.
Nhanhá e Luis do Couto formavam um casal à frente de seu tempo. Eles tiveram
três filhas, todas com nomes de deusas: Hebe, que se casou com um bisneto do
inconfidente Alvarenga Peixoto, Diana, mãe de Belkiss, e Ceres. Em 1980, no
centenário de nascimento de Nhanhá do Couto, O Popular entrevistou duas delas,
Diana e Ceres. “Mãezinha tinha um espírito dinâmico. Era alegre e gostava de
trabalhar junto aos jovens”, disseram. Já Belkiss revelou na reportagem o maior
sonho da pioneira. “Ela queria fundar um conservatório de música.” A neta realizou
o projeto da avó.
n
130
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Otavinho
Arantes
Tudo em nome do teatro
O
teatro entrou na vida de Otavinho Arantes quando Padre Pelágio, nos anos 1940,
o convidou a participar de peças religiosas na antiga igreja do Divino Pai Eterno,
em Trindade, sua terra natal. O bichinho da arte o mordeu e seu organismo e sua
alma transformaram-se definitivamente. Até o final da vida, em 1991, quando
foi atropelado em Brasília, onde estava atrás de verbas para seus projetos, esse
diretor, ator e produtor não abriu mão de sonhar, mesmo quando todas as
dificuldades pudessem desestimulá-lo, mesmo quando todas as circunstâncias
trabalhassem contra suas ideias.
“O legado que ele nos deixou é muito grande. Ele é composto também pelas
pessoas que ele formou, profissionais que depois viriam a criar suas próprias
companhias, seus grupos teatrais”, contextualiza Norval Berbari, presidente da
Federação de Teatro de Goiás (FETEG). “Otavinho foi uma das maiores referências
do teatro em Goiás e ainda hoje seu nome é muito lembrado no cenário nacional.
Pessoas importantes se recordam do seu trabalho”, atesta Hamilton Amorim, que foi
diretor da Fundação Otavinho Arantes, que cuidava do maior sonho do dramaturgo.
Esse ideal O Teatro Inacabado teve sua programação aberta com a peça O Pagador de
permaneceu Promessas, de Dias Gomes, e passaria, com o decorrer do tempo, a ser um local de
após sua morte reunião, de engajamento, de fervor. “O acervo fotográfico que o Teatro Inacabado
por meio da tem mostra Otavinho com nomes de peso das artes cênicas nacionais, como
Fundação Fernanda Montenegro, Rosamaria Murtinho, Fernando Torres e muitos, muitos
mais. Esse pessoal, quando vinha a Goiânia, se encontrava com ele”, acrescenta
Otavinho
Hamilton. Certa vez, uma campanha publicitária em prol do Teatro Inacabado foi
Arantes, estrelada por Eva Wilma.
que, mesmo
com dinheiro Otavinho sempre buscou os recursos onde eles estivessem. Nos anos 1970,
escasso, convenceu o então governador Irapuan Costa Júnior a reformar o Teatro Goiânia,
conseguia joia da arquitetura da capital e que andava abandonado na época. Depois, batalhou
incansavelmente por verbas para suas montagens no Teatro Inacabado, que incluíam
manter o ações de democratização da arte e de inclusão social por meio do teatro. Esse ideal
local em permaneceu após sua morte por meio da Fundação Otavinho Arantes, que, mesmo
funcionamento. com dinheiro escasso, conseguia manter o local em funcionamento.
Atualmente, o Teatro Inacabado está inativo. Otavinho Arantes, que tanto esforço
despendeu para que isso não acontecesse, estaria arrasado, mas não resignado.
Não era de sua personalidade entregar os pontos, deixar por isso mesmo. Quando
fundou o Teatro Inacabado, ele retirou uma invasão do terreno, drenou a área nas
proximidades do Córrego Capim Puba, ergueu estruturas de tábua e se endividou
para concretizar o que achava certo e necessário. Enfrentou incêndios e enchentes.
Enfrentou censuras e desgostos. Enfrentou tudo e todos em nome do teatro.
n
132
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Octo
Marques
Um artista injustiçado
E
le empresta o nome ao centro cultural localizado no Edifício Parthenon Center,
no Centro de Goiânia, onde antes ficava o Museu de Arte Contemporânea.
Apesar desta homenagem, o artista plástico Octo Marques não goza do destaque
que mereceria, caindo num injusto ostracismo, dado o nível de qualidade de seu
trabalho. “A obra dele está desaparecendo”, alerta o também artista plástico Elder
Rocha Lima. M mesmo não tendo sido um amigo próximo de seu conterrâneo da
cidade de Goiás, Elder tornou-se uma das poucas vozes a se levantar em defesa
do legado do pintor.
Octo Marques morreu em 1988 e só depois de sua partida algumas das obras
que deixou começaram a se valorizar um pouco, mas ainda não o quanto merecem.
Mergulhado no vício, passou seus últimos dias solitário, convivendo com as debilidades
de um corpo que por décadas fora castigado. Sua única salvação ainda era a arte, seu
talento em estado bruto que conseguia, a duras penas, comercializar esporadicamente,
garantindo-lhe a sobrevivência. “Esses trabalhos estão nas mãos de alguns
colecionadores. É um patrimônio que precisava ser recuperado”, pondera Elder.
n
134
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Padre
Pelágio
O venerável de Trindade
U
m dossiê encaminhado ao Vaticano tenta convencer a Igreja Católica que um
religioso nascido na Alemanha, na aldeia de Hausen am Thann em 9 de setembro
de 1878, e que morreu na Santa Casa de Goiânia em 23 de novembro de 1961,
era capaz – e ainda é – de promover milagres. Os feitos realizados por Padre
Pelágio Sauter e que não encontrariam explicação científica estão sob análise,
sobretudo o caso da jovem Maria Lúcia Miranda, vítima da doença degenerativa
esclerodermia sistêmica e que teria encontrado sua cura pelas mãos do sacerdote
que viveu em Trindade.
Padre Pelágio foi chamado para dar a bênção nas máquinas de O POPULAR
quando o jornal mudou de sede e modernizou seu equipamento gráfico. Era uma
praxe chamar o sacerdote mais importante da cidade para tais ocasiões. Ele esteve
em alguns dos momentos cruciais da formação da cidade e foi uma das pontes mais
sólidas entre o bairro de Campinas e a outra parte de Goiânia, que orbitava em torno
da Praça Cívica. Em seu velório, compareceram cerca de 100 mil pessoas. Nunca um
religioso foi tão popular quanto aquele alemão que adotou Goiânia e Trindade para
professar sua fé.
n
136
Pedro
Ludovico
Ele refez seu tempo
O
pai, João Teixeira Álvares, era membro da Academia Nacional de Medicina. Isso
orientou a carreira do filho, Pedro Ludovico, nascido na cidade de Goiás em
1891. No início do século 20, ele foi para o Rio de Janeiro estudar a profissão que
lhe era destinada e abraçou a medicina em seu retorno a Goiás, em 1916, quando
passou a morar em Bela Vista. Mas havia um outro vírus na história e que tinha
pouco a ver com bisturis e esparadrapos. Era o vírus da política. Ao adquiri-lo, a
vida do jovem Pedro nunca mais seria a mesma. Nem a de Goiás. E ele daria vida
a Goiânia.
Entre os anos de 1924 e 1930, Pedro Ludovico liderou intensa articulação contra
o poderio dos Caiado, criando jornais que atacavam o governo e planejando ações
dentro e fora do Estado. Segundo um dossiê da Fundação Getúlio Vargas, Pedro
manteve contatos, em 1929, com líderes daquela que seria a Revolução de 1930,
como o governador de Minas Gerais, Antônio Carlos de Andrada. Quando a revolta
contra o governo de Washington Luís estourou, ele seguiu para Minas e ao retornar a
Rio Verde, foi preso. Conduzido à cidade de Goiás, o destino lhe fez uma surpresa.
n
138
Ricardo Rafael
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Pompeu
de Pina
O comandante
das Cavalhadas
Q
uando mouros e cristãos se digladiavam, numa guerra santa que remetia a
combates imemoriais de uma Europa em que duas expressões de fé tentavam
se eliminar mutuamente, o bailado dos cavaleiros em azul e vermelho era
acompanhado com total atenção por alguém ansioso para que nada desse errado.
Diferente das lutas entre os exércitos de católicos e as tropas muçulmanas, esse
encontro não tinha sangue, não gerava mortes, mas, como no passado, possuía
um comandante. Ele se chamava Pompeu de Pina, o homem que estimulou como
ninguém a cultura de Pirenópolis.
“Ele acompanhava tudo o que saía nos jornais, como O POPULAR, a respeito
da cidade e de suas festas. Fazia recortes e arquivava. Boa parte desse material ele
levou para o museu que fundou, em nossa antiga casa”, relata uma de suas filhas,
Séfora de Pina. Seu principal interesse se concentrava na cultura da cidade, que
defendia com unhas e dentes. “Foram mais de 40 anos dedicados a essa causa,
metade da vida dele”, contabiliza a filha. Nessa jornada, Pompeu de Pina tornou-
139
Outra paixão de Pompeu de Pina era o futebol. Ele também se dava a tarefa de
organizar campeonatos amadores em Pirenópolis. Parecia ser contra toda e qualquer
falta de movimento. Queria que a cidade vibrasse e por isso também ajudou a pensar
o Canto da Primavera, principal festival do calendário cultural local. Pirenópolis
foi crescendo, atraindo turistas por seu patrimônio e suas lindas cachoeiras e sendo
mais e mais frequentada por gente de todo o Brasil. Até o fim da vida, em 2014,
Pompeu de Pina lutou para que esse progresso não destruísse a história.
n
140
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Regina
Lacerda
Com o folclore na alma
A
palavra “pioneira” cabe bem para definir Regina Lacerda. Afinal, ela foi a pessoa
que mobilizou um número imenso de documentos, narrativas orais, costumes
populares para fazer um amplo panorama de uma riqueza, material e imaterial,
que estava se perdendo pelos rincões goianos. Em uma tese de doutorado
defendida da Universidade de Brasília (UnB), a pesquisadora Mônica Martins
da Silva destaca que essa mulher nascida nas margens do Rio Vermelho foi
fundamental para a recuperação de boa parte da memória histórica e cultural do
Estado.
n
142
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Rosarita
Fleury
A mulher que nos uniu
A
inda jovem, Rosarita Fleury se dirigia a uma casa na cidade de Goiás, onde
repetia o bater de teclas em velhas máquinas de escrever: ASDF, ASDF, ASDF.
Primeiro com a mão esquerda, depois com a direita, ela ia ganhando destreza
na arte de escrever por meio da datilografia em um curso oferecido na antiga
capital goiana por dois irmãos, Joaquim e Jaime Câmara. Filha de Heitor
Moraes Fleury, que viria a ser o primeiro juiz de Direito de Goiânia, a menina
ia tomando cada vez mais intimidade com a palavra, aquela que seria sua
companheira de toda a vida.
A mesma palavra que fez desta mulher nascida em 1913 uma pioneira na
literatura goiana, abrindo espaços antes fechados. “Quando era criança, ela
gostava das histórias de tempos passados contadas pelos velhos ex-escravos, tias
e avós; aprendeu modinhas antigas tocadas e cantadas por seus pais. Inteligente
e observadora, trocou cedo as brincadeiras pelo livro”, informa a filha da autora,
Maria Elizabeth Fleury Teixeira. O sonho de ser escritora estava ali, mas era cedo
para realizá-lo. Rosarita veio estudar no Colégio Santa Clara, em Campinas, antes
da construção de Goiânia.
143
Autora do livro de memórias Rosarita Fleury – Minha Mãe, Beth Fleury chama
a atenção para uma coincidência. “O dia 14 de março, Dia da Poesia, marca a
passagem da minha mãe para sua vida espiritual. Escolha dela ou foi o destino a
lhe pregar uma peça, justo no dia que sempre comemorou em alegres encontros
poéticos na Aflag?”, cogita. No Dia da Poesia de 1993, Rosarita partia deixando um
legado importante. Em seu romance mais famoso, ela mostra que o universo rural e
o da aristocracia são, em última análise, “elos da mesma corrente”. Estamos, enfim,
todos ligados.
n
144
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Santa
Dica
Uma santa polêmica
“P
odemos falar de Santa Dica em dois aspectos principais. O mais evidente deles
é seu lado místico. O outro é o diferencial de que foi uma mulher que, vivendo
no tempo em que viveu, conseguiu ser muito ativa, até mesmo na política.” O
jornalista Márcio Venício, repórter e apresentador da TV Anhanguera, fala com
propriedade sobre uma das figuras mais surpreendentes da história goiana.
Produtor e diretor do documentário Santa Dica, ele envolveu-se totalmente na
narrativa de uma trajetória de vida improvável e que, mesmo hoje, é cercada de
alguns mistérios.
Em seu centro de atendimento, Dica dizia receber auxílio de entidades para curas
e rituais. “Mas ela não era uma espírita kardecista”, explica o documentarista. “Ela
tinha transes que impressionavam muita gente.” Aquele movimento messiânico
passou a incomodar poderosos de então. Coronéis e chefes políticos viam em Santa
Dica um obstáculo e até mesmo uma ameaça. “Era muito perto de Pirenópolis
e de Jaraguá, que tinham força política grande”, contextualiza o jornalista. Uma
campanha difamatória contra a curandeira foi iniciada, em que todas as armas eram
válidas.
“As romarias que iam para Lagolândia, o povoado onde Santa Dica atendia,
chegaram a rivalizar com a romaria de Trindade. Isso contrariou a Igreja, que não
poupou ataques à benzedeira. Cheguei a achar uma edição de um informativo
O governo de católico com ofensas pesadas contra ela”, relata Márcio Venício. Com tantos inimigos
Brasil Caiado influentes, o inevitável aconteceu. O governo de Brasil Caiado mandou tropas
mandou tropas sitiarem o povoado. Parentes e colaboradores de Dica se prepararam para a guerra.
sitiarem o Bastou um disparo para que houvesse o ataque, que deixou, oficialmente, três vítimas
povoado. letais.
Parentes e
Aquele que deveria ser o fim da mulher mais poderosa do Estado naquela época
colaboradores ajudou, na verdade, a alimentar as lendas em torno dela. O povo repete até hoje
de Dica se a história de que as balas direcionadas a Santa Dica ricocheteavam sem acertá-la.
prepararam Ela teria o corpo fechado. Outra versão jura que boa parte dos seguidores da líder
para a guerra. messiânica fugiu porque, com seus poderes, ela teria colocado uma sucuri de vigia
Bastou um no ribeirão nos fundos de seu refúgio para que os soldados não pudessem perseguir
disparo para os inimigos. Ela mesma, porém, acabou presa, mas não por muito tempo.
que houvesse “Ela foi encarcerada na cadeia de Goiás, onde hoje é o Museu das Bandeiras,
o ataque, mas quando saiu, conheceu o jornalista Mário Mendes, que a afastou daqui por
que deixou, um tempo. Ela, porém, voltou para cá e começou a ter, aí sim, grande influência
oficialmente, política”, narra Márcio. “Em 1932, ela chegou a formar um destacamento para lutar
três vítimas na Revolução Constitucionalista de São Paulo. Daí por diante, em razão da aura que
manteve, era muito procurada por políticos do Estado que iam atrás de seu apoio.
letais.
Atesta-se que até Juscelino Kubitschek reuniu-se com ela certa vez”, acrescenta.
Nos anos 1960, mudou-se para Goiânia, onde morreu em 1970. “O centro
que ela fundou continuou a funcionar.” Márcio Venício, em seu documentário,
entrevistou uma das filhas de Dica. “Eu havia visitado Lagolândia no domingo e
na segunda peguei uma pauta trivial em Goiânia. Quando cheguei à casa da fonte
que entrevistaria, vi a mesma foto de Dica que havia visto no centro. A mulher se
apresentou como filha dela e disse que aceitaria colaborar porque sua mãe a havia
autorizado a fazer o filme. É meio inexplicável, né?” Mais um mistério na conta de
Santa Dica.
n
146
Lailson Duarte
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Seu
Donca
Andarilho da natureza
“S
eu pai foi para Aruanã”, disse dona Verônica Xavier Vieira para uma filha. A
resposta que recebeu a deixou atônita. “Sim, veio a pé.” O ano era 1990 e Antônio
Firmino de Lima, o seu Donca, não se fez de rogado e cumpriu cerca de 320
quilômetros, sozinho, caminhando pelas estradas, fazendo o trajeto que passa
pela cidade de Itapirapuã. “Nessa primeira vez, ele foi sem estrutura alguma. E
também não avisou ninguém que ia fazer isso. A gente só ficou sabendo quando
ele chegou lá”, conta a mulher que ficou casada com esse pioneiro por 48 anos, até
seu falecimento.
Seu Donca morreu aos 74 anos, em 2003. “O mais espantoso é que ele foi
enterrado no dia 5 de junho, exatamente o Dia Mundial do Meio Ambiente”,
aponta Francisca Rocha Ferreira, uma de suas filhas. A família sente orgulho pela
iniciativa que o pai criou e que se transformou em um dos projetos ambientais
mais conhecidos de Goiás. A sua ida a pé a Aruanã, cidade em que morou e que
amava, passou a ser anual. Em 1990, ele levou 3 dias e meio para percorrer o
trajeto. “Ele repetiu em 1991, indo agora por Faina e Araguapaz. Nesse ano, já
teve uma mudança”, relata a filha.
147
“O jornal O Popular ficou sabendo de suas caminhadas até Aruanã e colocou uma
kombi para acompanhá-lo, fazendo assim a cobertura da peregrinação. Em 1992, já
havia toda uma estrutura, com nutricionistas e tudo. Um amplo destaque foi dado e
assim nascia a Caminhada Ecológica”, retoma Francisca. Seu Donca ganhou não só
notoriedade, como também muita companhia. Várias pessoas passaram a querer ir
com ele, participar dessa empreitada que nasceu despretensiosamente. Uma seletiva
foi organizada para escolher o grupo que comporia a caravana.
Quem olhasse para seu Donca poderia achar que era um homem até certo ponto
frágil. Grande engano. Além da Caminhada Ecológica, ele, literalmente, andou
por outras bandas. “Durante 12 anos, participou da Corrida de São Silvestre”,
revela a viúva Verônica. “Tivemos 7 filhos, 6 deles se criaram. Depois que Donca
morreu, comecei a ter netos e bisnetos”, anuncia, orgulhosa. O homem que iniciou
a Caminhada Ecológica também teria o mesmo sentimento se aqui estivesse. Um
orgulho que também sentiu todas as vezes que calçou seu tênis e rumou a pé para
Aruanã.
n
148
Siron
Franco
Eterna Revolução
de Si Mesmo
“A
primeira vez que estive nas páginas de O POPULAR foi ali por 1966, 1967,
quando eu desenhava para o jornal o personagem Zorro.” As lembranças de Siron
Franco em relação ao veículo de comunicação que nunca deixou de acompanhar
sua carreira datam de uma época em que o artista plástico era apenas um
adolescente, dando os primeiros passos em sua arte. “Depois, fazia retratos de
pessoas da sociedade para a coluna social da Maria José”, recorda, lembrando-
se de uma das jornalistas que ajudaram a estabelecer esse espaço na imprensa
goiana. “Pô, faz muito tempo.”
É, Siron, faz muito tempo. Mas esse tempo também transformou os sonhos do
rapazote nascido na cidade de Goiás e criado no Bairro Popular, em Goiânia, em
realidade. Reconhecido nacional e internacionalmente por seus trabalhos, Siron
Franco é grato aos estímulos recebidos naquela época. Época em que conheceu
Célia Câmara – esposa de Jaime Câmara –, mecenas e articuladora cultural
que fez história. “Ela teve um papel muito importante para toda uma geração.
149
E O Popular esteve sempre conosco. Em 1968, ele noticiou meu primeiro prêmio,
conquistado na Bahia”, relembra.
Aos 74 anos de idade, todas essas fases daquele que é o artista plástico goiano
mais conhecido e prestigiado na atualidade foram registradas pelas páginas do
jornal que, ele mesmo reconhece, integra sua vida profissional e pessoal. “A arte em
Goiás produziu gente de grande talento no decorrer do tempo e O POPULAR teve
muito a ver com isso, sempre incentivando todos nós”, elogia. Artista cuja marca
maior é a inovação formal, Siron Franco é múltiplo. Uma de suas produções mais
representativas é a série de quadros Metamorfoses. Mudar para sobreviver.
n
150
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Gabriel Nascente, que conviveu com Taylor e José Modesto por muitos anos.
n
152
Weimer Carvalho
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Tia
Tó
Ela conhecia cada
palmo de Goiás
“Q
uando Goiás ganhou o título de reconhecimento de Patrimônio da Humanidade,
foi uma gritaria por todo lado. A gente aqui na pousada gritava tanto de alegria.
Tinha foguetes pela cidade inteira, os sinos de todas as igrejas tocando. Foi uma
beleza.” Esta era uma das memórias mais preciosas de Antolinda Borges, mais
conhecida como Tia Tó. Poucas figuras foram tão conhecidas na antiga Vila Boa
quanto Tia Tó. Ela parecia onipresente naquelas ruas de pedra, entre os casarios
de fachada colonial e quintais a perder de vista. Onde se ia na cidade de Goiás,
alguém dava notícia dela.
dois ou três dias fora, já é sofrimento. Digo que as pedras de Goiás são os filhos que
eu não tive”, revelou, em 2018.
Tia Tó, de maneira mais clara ou mais discreta, esteve presente em cada uma
dessas ações. Até o final da vida, ela não parou, participando da organização dos
eventos que marcaram os 20 anos da conquista do título da Unesco. Por muito
tempo administrou o Museu da Boa Morte, que abriga o maior número de obras do
artista plástico Veiga Vale, e comandou uma pousada. Seu olhar também permanecia
atento. Em junho de 2021, ela estava em Goiânia para tratar problemas cardíacos,
quando sofreu um AVC. Internada na UTI de um hospital da capital, morreu dois
dias depois.
n
154
Sebastião Nogueira
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Toniquinho
de Jataí
A pergunta que
fundou Brasília
“J
á que Vossa Excelência está anunciando o propósito de cumprir integralmente
a Constituição, queria saber se, eleito fosse, construiria a capital do Brasil no
Planalto Central, conforme nela consta.” Lá do meio da multidão, a voz se
levantou. Lá em cima do palanque, o candidato a presidente estacou. E agora, o
que responder? Dizer que não construiria e desmentir-se na frente do povo sobre
uma promessa que acabara de assumir? Ou manter-se firme e encarar um dos
maiores desafios que um chefe da nação poderia enfrentar em seu mandato?
inspiração feliz, acredito eu, resolvi fazer a pergunta”, relatava Antônio, conhecido
como Toniquinho de Jataí.
“Eu havia acabado de estudar Direito aqui em Goiânia e havia lido muito a
Constituição. Resolvi então perguntar sobre a transferência da capital, que estava
prevista na lei. Quando fiz a pergunta, percebi que Juscelino se assustou, ficou meio
surpreendido. Mas logo depois ele respondeu que sim, que daquele momento em
diante a construção da nova capital seria um de seus objetivos principais, caso fosse
eleito”, recordava Toniquinho, um ano antes de morrer, em 2019, aos 94 anos. JK,
várias vezes, relatou essa história, ainda que historiadores relativizem a importância
do episódio ocorrido.
Juscelino
assumiu essa No livro Brasília Kubitschek de Oliveira, o historiador Ronaldo Costa Couto
missão como sugere que JK já havia tomado a decisão de transferir a capital para o centro do País
candidato e a antes de chegar a Jataí. A ideia já estaria entre as cogitações de Juscelino quando
designou como ele foi deputado constituinte em 1946. A Carta Magna que sai desse parlamento é a
que estabelece que a transferência, planejada desde os primeiros anos da República,
“meta-síntese”,
quando para cá veio a Missão Cruls, com o objetivo de delimitar o quadrilátero em
dentro de seu que seria situado o Distrito Federal, era uma obrigação constitucional.
conhecido
Programa de Os então constituintes JK e Israel Pinheiro (que comandaria as obras de Brasília),
Metas. Foi uma além de parlamentares goianos (entre os quais estava Pedro Ludovico), teriam
decisão ousada articulado a inclusão da exigência dessa transferência na Constituição, mas sem
estabelecer prazos. Juscelino assumiu essa missão como candidato e a designou
e que teria
como “meta-síntese”, dentro de seu conhecido Programa de Metas. Foi uma decisão
deixado seus ousada e que teria deixado seus próprios aliados surpresos e desconfortáveis, já que
próprios aliados eles mesmos temiam que aquela atitude afundaria o governo.
surpresos e
desconfortáveis O ex-presidente, porém, sempre referendava a versão de Toniquinho, de que
teria sido a pergunta em Jataí que mudara seu programa de governo, nunca tendo
confirmando a hipótese de que anunciaria a mudança do centro do poder federal
independentemente do que aconteceu no comício na cidade goiana. “No dia da
inauguração de Brasília, eu fui e me apresentei a JK, lembrando-o sobre a pergunta
que fiz. Ele me chamou para cima do palanque, me recebeu muito bem e eu o
acompanhei em várias solenidades da inauguração”, repetia Toniquinho.
n
156
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Veiga
Valle
Embaixador do
barroco em Goiás
O
s salões da antiga Igreja da Boa Morte, hoje transformada em um dos museus
mais visitados da cidade de Goiás, estão povoados de grandes estátuas de
madeira e gesso atribuídas a um artista plástico sobre o qual paira uma aura de
mistério. Ele é José Joaquim da Veiga Valle, que nasceu em Pirenópolis, viveu
entre os anos de 1806 e 1874 e por muito tempo foi quase um anônimo. As obras
sacras que teria esculpido eram conhecidas, mas não ganhavam a devida atenção,
espalhadas em altares de igrejas de Goiás e Mato Grosso. Isso começou a mudar
em 1940.
Neste ano, o pintor carioca João José Réscala redescobriu Veiga Valle como
um dos grandes expoentes do que a crítica especializada chama de barroco
tardio. E assim, aquele homem sobre o qual há pouca documentação e que não
foi tão incensado assim em vida por seu trabalho, tornou-se um dos pioneiros
das artes plásticas em Goiás e louvado como exímio santeiro. “Ele é o principal
157
escultor do século 19 que temos”, afirma Elder Camargo dos Passos, especialista na
obra do artista e autor do estudo Veiga Valle – Seu Ciclo Criativo. “Antes dele, quase
não havia nada.”
Todos esses elementos incluíram o nome de Veiga Valle no rol dos grandes
artistas sacros nacionais. As pesquisas realizadas até agora sinalizam para a
influência de um religioso sobre o trabalho do artista. Algumas versões apontam
para o padre Manoel Amâncio da Luz, outras para o sacerdote José Joaquim Pereira
da Veiga. Mesmo envolvido com uma atividade marginalizada em seu tempo, Veiga
Valle teve prestígio suficiente para desposar a filha do presidente da província. Com
Joaquina Porfíria ele teve 8 filhos. Sua antiga residência, no Largo do Rosário, ainda
pertence à família.
n
158
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Venerando de
Freitas Borges
O prefeito que não
gostava de ladrão
C
hamado a uma audiência, Venerando de Freitas Borges aguardou por cerca
de 15 minutos até seu anfitrião aparecer. “Trajava terno de linho 120, sapato
branco com biqueira marrom e me perguntou: ‘Por acaso é o senhor o professor
Venerando?’ Sem rodeios, como é do seu feitio, declarou Pedro Ludovico:
‘Chamei-o aqui para convidá-lo para o cargo de prefeito de Goiânia. Aceita?’”
E assim ocorreu o primeiro encontro entre o criador da nova capital e o
homem que iria administrá-la pela primeira vez. Eles ainda não se conheciam
pessoalmente, mas escreveriam a história juntos.
A narrativa dessa reunião foi feita pelo próprio Venerando de Freitas Borges
em edição de O POPULAR do dia 24 de outubro de 1975. Na ocasião, Goiânia
completava 42 anos e as memórias dos bastidores de sua fundação permaneciam
vivas para seu primeiro prefeito. Ao ouvir a pergunta se aceitava a incumbência,
Venerando respondeu ao interventor de Goiás com sinceridade. “Depende”,
159
disse. “Não sou político e preciso saber as condições”, explicou. “Tenho uma”, rebateu
Pedro Ludovico. “Não roube na Prefeitura.” Ao que Venerando replicou: “Não gosto
de ladrão.”
“Meu avô tinha esse estilo franco”, reforça o neto de Venerando, Guilherme de
Freitas Souza. “Ele não aceitava cabresto e deixou isso claro logo no primeiro contato
com Pedro Ludovico. Mas também era um homem extremamente leal. Depois os
dois se tornaram amigos e todos os dias meu avô ia tomar café com o doutor Pedro
na casa dele. Nos tempos da ditadura militar, que chamavam de revolução, ambos
permaneceram solidários ao Juscelino Kubitschek e gostavam de falar mal de quem
detinha o poder na época.”
Cordial e Quando era jovem, Guilherme conviveu bastante com o avô e o acompanhava
em algumas viagens. “Nós conversávamos muito. Ele gostava de enfatizar que
contundente, tinha um sono tranquilo quando colocava a cabeça no travesseiro.” Mesmo diante
Venerando de das dificuldades dos primeiros tempos, Venerando não esmoreceu. “Não havia
Freitas Borges financiamento para construir Goiânia. Fizeram com o que havia no caixa do
angariou enorme governo. E era uma dificuldade imensa para conseguir mão de obra. Meu avô, como
respeito junto à prefeito, morava em um casebre nas margens do córrego Botafogo e despachava
população, coisa debaixo de uma árvore.”
rara hoje em dia A carreira política, porém, não era o maior orgulho de Venerando de Freitas
quando se fala Borges. “Ele se realizava como professor. Ele lecionou contabilidade na Escola
de políticos. Sua Técnica de Comércio de Goiás. Tanto que todos o chamavam de professor, mais que
faceta pública de prefeito”, aponta Guilherme. Ele diverte-se com outra curiosidade do avô. “Ele
era só uma detestava homem que pintava o cabelo. Acreditava que a pessoa devia se orgulhar
de um homem dos cabelos brancos que tinha. E quando via um conhecido que havia feito isso,
expressava sua desaprovação na hora, na cara da pessoa. Não deixava para depois.”
surpreendente.
Cordial e contundente, Venerando de Freitas Borges angariou enorme respeito
junto à população, coisa rara hoje em dia quando se fala de políticos. Sua faceta
pública era só uma de um homem surpreendente. “Meu avô jogou bola”, revela
Guilherme. “Claro que fez isso num âmbito amador. Foi um dos fundadores do time
do Goiânia Futebol Clube e jogou num tempo em que o juiz ia para o campo com
revólver na cintura para se proteger”, contextualiza. A grande arma de Venerando
sempre foi, por outro lado, a firmeza de caráter, expressa sem escândalos.
Dos seis filhos que teve, viu cinco partirem. “Essas perdas abalaram muito meu
avô. Um deles morreu com 23 anos. Era um gênio. Outra foi vítima de câncer com
apenas 32 anos de idade. Até um genro de que ele gostava muito também morreu
em um avião que desapareceu no Oceano Pacífico. No fim, ele ajudou a criar duas de
suas netas”, relata Guilherme. Isso o ensinou a não valorizar demais coisas pequenas
da vida. Na política, por exemplo, era um conciliador. Sabia que as disputas eram
vãs, que no final não tinham tanto sentido. As pessoas, sim, essas valiam a pena.
n
160
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Vicente
Rebouças
Pelos caminhos de Goiás
F
icaram famosas as viagens que Vicente Rebouças Câmara, por estradas precárias
e em condições até temerárias, fazia pelo interior goiano levando notícias. Era
literalmente isso. Quando ele e seus irmãos Joaquim Câmara Filho e Jaime
Câmara fundaram o jornal O POPULAR, coube a ele percorrer Goiás de ponta a
ponta atrás de assinaturas para o informativo, encontrando clientes, anunciantes
e estabelecendo rotas de distribuição. Mesmo que fosse em carrocerias de
caminhão, Vicente Rebouças ia aos rincões mais longínquos, sem desanimar.
Essas incursões de Vicente Rebouças pelas áreas mais remotas de Goiás também
Não havia possibilitavam que o próprio jornal pudesse conhecer melhor o Estado que
ninguém propunha retratar. Ir ao lugar não deixava de ser uma espécie de reportagem sobre os
estranho para pontos visitados, uma maneira de ver e sentir os problemas dessas regiões, os anseios
que brotavam da população. Vicente, ótimo ouvinte e bom de conversa, aferia essa
aquele homem temperatura, sentindo na pele os problemas de infraestrutura, como a ausência de
criado no estradas em boas condições e outros benefícios, males que acometiam um Estado
Nordeste e que ainda atrasado.
exercia certo
magnetismo Quando estava em Goiânia, ele se hospedava no Grande Hotel, onde passou
sobre seus a morar, residindo ali até bem próximo da data de sua morte, em 4 de fevereiro
de 1973, aos 76 anos de idade. A jornalista Cileide Alves, autora de um trabalho
interlocutores. biográfico sobre Joaquim Câmara Filho, em sua apuração ouviu alguns testemunhos
Gostava de de parentes que demonstram o quanto Vicente Rebouças, com seu jeito espontâneo,
estar no sabia conquistar as pessoas. “Os sobrinhos adoravam aquele tio porque ele distribuía
meio dos ingressos de cinema para quem o ajudasse nos trabalhos do jornal”, revela.
funcionários,
interagindo Solteiro, Vicente Rebouças não teve filhos e sua parte na empresa foi distribuída
entre os irmãos e sobrinhos após sua morte. Todos testemunharam o quanto de
com todos, sem sua vida foi dedicada ao jornal, com ele indo para a linha de frente na gráfica,
distinção. onde ajudava os funcionários a imprimir O POPULAR. Muitas vezes, com
seu temperamento expansivo, incumbia-se de negociar com fornecedores e
distribuidores, sendo um persistente cobrador de dívidas e compromissos não
cumpridos. Para uma empresa iniciante, era essencial não levar calotes. E Vicente
Rebouças não deixava isso acontecer.
Vicente Rebouças foi um dos últimos dos filhos do casal Joaquim Rebouças de
Oliveira Câmara e Maria Melquíades de Miranda Câmara, conhecida como Dona
Iaiá, a chegar a Goiás, ao lado da irmã Tacy. Eles vieram em 1938 e encontraram
o clã Câmara não mais na cidade de Goiás. Joaquim Câmara havia sido nomeado
prefeito de Pires do Rio por Pedro Ludovico. Foi também naquele ano que O
POPULAR ganhou as ruas. Ano em que Vicente Rebouças encontrou um novo
objetivo maior em sua vida, ao qual se dedicou intensamente até o fim.
n
162
Simone Ala
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Wanderley
Magalhães
O garoto da bicicleta
“E
le sentia uma felicidade muito grande quando via seu nome no jornal, falando
das conquistas importantes que havia obtido.” A lembrança é de Tonny
Magalhães, irmão daquele que é considerado o maior nome do ciclismo em
Goiás, Wanderley Magalhães. Essa felicidade era própria de um atleta que
começou sua carreira brincando na rua, despretensiosamente. “Meu pai, quando
éramos meninos, deu uma bicicleta de presente de Natal para cada irmão, eu, o
Wanderley e o Paulo”, relata Tonny. “A partir dali, a gente sempre arrumava um
motivo para pedalar por aí.”
Essa determinação foi levada a sério por todos e não demorou para que os
três irmãos começassem a chamar a atenção nesse universo esportivo. “Foi uma
época muito difícil no Brasil para praticar o ciclismo e começamos a entender que
precisávamos buscar um auxílio fora, inclusive em termos de equipamento”, conta
Tonny. Com apenas 15 anos de idade, Wanderley Magalhães passou a se destacar,
participando de provas fora de Goiás e obtendo resultados surpreendentes. “Ele foi
campeão de uma temporada em que disputou 38 provas num intervalo de 3 meses”,
lembra o irmão.
Aos 16 anos,
já integrava a Esses feitos se multiplicaram em uma carreira que levou o ciclista goiano ao topo.
Equipe Caloi, a Aos 16 anos, já integrava a Equipe Caloi, a mais cobiçada do ciclismo brasileiro na
mais cobiçada época. Durante 15 anos, ele esteve onde todo esportista da modalidade gostaria
do ciclismo de estar. Entre suas conquistas estão a de tricampeão da prova 9 de Julho, em São
Paulo, a mais importante do calendário nacional. Também faturou o primeiro
brasileiro na
lugar em uma edição do Rutas de América, competição que reúne atletas de todo
época. Durante o continente, e do GP Hollain, na França. Foram mais de 70 vitórias no Velho
15 anos, ele Continente.
esteve onde
todo esportista Seus maiores êxitos, porém, foram em jogos internacionais. No Jogos Pan-
da modalidade Americanos de Havana, em Cuba, em 1991, ele subiu ao pódio com a medalha de
bronze. Nessa época, Wanderley já havia sido eleito o melhor ciclista estrangeiro em
gostaria de atividade na Europa – ele e seus irmãos assinaram contratos para correr em equipes
estar. da Bélgica, por exemplo – e tinha uma Olimpíada no currículo, a de Seul, em 1988.
Aqueles anos marcaram o auge do atleta. Em 1992, ele pôde participar de mais uma
edição dos Jogos Olímpicos, em Barcelona, mas com um gosto ainda mais especial.
n
164
Washington
Novaes
O homem que pautou
o meio ambiente
E
m 1980, milhões de brasileiros puderam ver, em horário nobre da Globo, algo
inédito na TV brasileira. Passava na telinha um universo desconhecido para a
esmagadora maioria, um mundo feito de água, árvores e gente. Naquela noite, o
Globo Repórter exibiu um documentário chamado Amazônia: A Pátria da Água,
dirigido pelo jornalista Washington Novaes. “Não era só a visão da Amazônia
como natureza intocada, como um paraíso intocado, mas um território também
povoado por várias populações e comunidades”, explica o cineasta Pedro Novaes,
filho de Washington e que foi seu parceiro em vários projetos.
mais icônica reserva indígena do País e lá produziu Xingu: A Terra Mágica, para a
TV Manchete. Segundo Pedro Novaes, essa aventura mudou a visão de mundo de
seu pai.
n
166
vidas
narradas
pelo Weimer Carvalho
POPULAR
Zacharias
Calil
A ousadia que
salvou vidas
E
m 1999, o cirurgião pediátrico conheceu as pacientes que mudariam a sua
história e seriam um marco da medicina em Goiás. Ainda bebês, as meninas
Larissa e Lorraine, depois de uma luta intensa pela vida logo após nascer,
chegavam ao Hospital Materno-Infantil, em Goiânia, em uma situação muito
complicada. Unidas pela bacia e parte do tronco, elas compartilhavam diversos
órgãos vitais, tinham apenas três pernas e uma série de complicações a resolver.
Ao ver o quadro, o médico Zacharias Calil deu a resposta que menos se poderia
esperar naquela ocasião.
“Eu resolvi que ia operar aquelas meninas, que ia fazer algo completamente
inédito até aquele momento”, recorda o cirurgião. “Não sei o que passou na
minha cabeça naquela hora. Se você pensar, eu tinha 40 anos de idade e estava
disposto a realizar um procedimento em um local que não tinha estrutura
alguma para aquilo.” Ao lado de uma equipe multidisciplinar, que incluía um
167
“Esse procedimento não tem uma especialidade. Para você ter uma ideia,
não tínhamos nem aparelho de ressonância magnética para fazer uma imagem
detalhada das meninas. Fomos guiados pela nossa experiência do dia-a-dia, do
cotidiano”, revela. A cirurgia de separação das crianças durou 10 horas, em que a
perícia dos profissionais mostrou-se fundamental. “A anestesia, por exemplo, era um
problema. Como dar a dose certa para dois organismos que, porém, estavam unidos,
A partir compartilhando até o metabolismo um do outro?”
daquele dia de
As soluções foram sendo encontradas. O centro cirúrgico passou por adaptações
julho do ano físicas para as necessidades daquela operação. “Nós mudamos tudo porque tudo
2000, Goiânia era diferente”, atesta Zacharias. O que parecia impossível, porém, realizou-se.
entrou no “Poderíamos ter enviado a Larissa e a Lorraine para um centro médico em São Paulo
mapa como um ou no exterior, mas nós fizemos tudo aqui. Fomos a primeira equipe a realizar esse
dos principais procedimento em todo o Centro-Oeste.” As pacientes sobreviveram. Lorraine, por
locais do outros motivos, faleceu aos 7 anos. Larissa é hoje uma moça e quer fazer medicina.
mundo a A partir daquele dia de julho do ano 2000, Goiânia entrou no mapa como um
realizar esse dos principais locais do mundo a realizar esse tipo delicado e raro de procedimento
tipo delicado cirúrgico. “Muitas pessoas, de várias partes, vieram até Goiânia para saber como
e raro de fazemos tais operações. Já fomos tema de reportagens em vários jornais do Brasil
procedimento e da Europa e até de um documentário do Discovery Channel.” Em mais de duas
décadas, a equipe já realizou dezenas de cirurgias de separação de irmãos siameses,
cirúrgico.
com alta taxa de sucesso nas intervenções.
“O risco sempre existe. Cada caso é um caso. Não podemos falar nem mesmo
de uma técnica de separação porque cada paciente exige determinado tipo de
procedimento. A dificuldade é sempre enorme. As equipes, inclusive, variam, de
acordo com os problemas que encontramos”, informa o médico. Isso, porém, nunca
o intimidou. “Todos os envolvidos gostam de fazer o que fazem. Todos se dedicam
para que o resultado seja o melhor possível e se sentem gratificados por salvar e
melhorar a vida dessas pessoas. Nossa taxa de sucesso é acima da média”, comemora.
n
168
Zezé di Camargo
& Luciano
Os filhos de Francisco
A
cena é conhecida. O pai vai até um orelhão e, depois de ter gastado o que tinha
no bolso para comprar fichas, ele liga repetidamente para uma emissora de rádio
de Goiânia. “Eu queria ouvir a música É o Amor”, pede. Ele e todos os amigos
e colegas de trabalho fazem o mesmo por dias seguidos. E assim, nesse esforço
pessoal, Francisco Camargo conseguiu que a música fosse uma das mais pedidas
na programação e, consequentemente, executada para milhares de pessoas
sintonizadas. E aos poucos, a canção foi caindo no gosto do povo. O desfecho,
sabemos qual foi.
O filme Dois Filhos de Francisco, que conta essa história, é uma das
produções de maior bilheteria na história do cinema nacional (mais de 5 milhões
de espectadores). Nele, a trajetória da dupla Zezé di Camargo & Luciano é refeita,
desde a zona rural de Pirenópolis, onde a família morava, até chegarem à fama.
Um itinerário repleto de desafios. “Eu tive um contratempo porque meu filho
(Wellington) sofreu uma paralisia e eu sofri um acidente no engenho em que
trabalhava. Resolvi mudar para Goiânia de um dia pro outro”, contou Francisco,
em entrevista à Rede Globo.
169
vidas
narradas
pelo
POPULAR
Zoroastro
Artiaga
O divulgador do sertão
E
m 6 de dezembro de 1970, O POPULAR publicou aquela que é uma das
entrevistas mais reveladoras do professor Zoroastro Artiaga. Fazendo as
perguntas, um grupo composto pelos escritores Marieta Telles Machado, Bariani
Ortencio, José Godoy Garcia, Miguel Jorge, Anatole Ramos e Ada Curado, além
da folclorista Regina Lacerda e do editor Taylor Oriente, do Bazar Oió. Nas
respostas, o já veterano pesquisador da Geologia, da História, da Antropologia
de Goiás faz um apanhado de seu amplo trabalho e diz que “desejava servir
muito mais ao nosso querido Estado”.
É até difícil imaginar como ele poderia ter feito mais, uma vez que Zoroastro
Artiaga, em variados campos de conhecimento, foi um pioneiro em terras
goianas. “Ele foi o primeiro a escrever sobre geociências em Goiás”, enfatiza
Giovana Galvão Tavares, professora do Mestrado em Sociedade, Tecnologia
e Meio Ambiente da UniEvangélica, de Anápolis, e que defendeu uma tese de
doutorado na Unicamp sobre esse personagem importante no desenvolvimento
goiano. “Seus trabalhos falam bastante da geologia econômica de Goiás, tratando
de minérios, vegetação”, cita.
171
Esse conhecimento foi adquirido nos anos que Zoroastro serviu ao que é
hoje o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE). Nesse ofício, ele foi
um dos responsáveis, por exemplo, por percorrer todo o Estado mapeando seus
detalhes geográficos, suas regiões mais desconhecidas. “O governo Getúlio Vargas
determinou que os municípios brasileiros só poderiam ser reconhecidos como tais
se definissem seus limites. Houve um esforço nacional para fazer essas delimitações.
Em Goiás, parte dessa tarefa coube a Zoroastro”, explica Giovana.
Natural de Itaberaí, cidade onde ainda em 1905, com 14 anos de idade, fundou
um pequeno jornal (O Repórter), Zoroastro Artiaga tornou-se nome de museu
quando ainda estava vivo, chegando a dirigir o espaço. O local, que fica na Praça
Cívica, foi criado em 1946 para abrigar o acervo da Exposição Permanente de
Goiás, realizada em 1942, no Batismo Cultural de Goiânia. Aquela entrevista a O
POPULAR foi uma das últimas que o homem de múltiplas facetas concedeu. Ele
morreria pouco mais de um ano depois. Entrou para a história como o “divulgador
do sertão”.
n
172
vidas
narradas
pelo
POPULAR
EDIÇÃO
Silvana Bittencourt
Fabrício Cardoso
REPORTAGEM
Rogério Borges
EDIÇÃO DE FOTOGRAFIA
Weimer Carvalho
ARTE
André Rodrigues
Luiz Antena
CAPA
Arte sobre foto de Cristina Cabral