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Projeto Pós-doc Senior

O filme como matéria nas instalações contemporâneas

Katia Maciel
Programa de Pós-Graduação da Escola de Comunicação

Universidade Federal do Rio de Janeiro

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Indice

Projeto O filme como matéria nas instalações contemporâneas

Artistas e o cinema na arte contemporânea brasileira

1 Site-specific e ao vivo 3

2 Dispositivos e ações 16

3 Arquivos e montagens 21

4 Desnarrativas 41

Bibliografia 75
Resultados 80

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Artistas e o cinema na arte contemporânea brasileira

No Brasil, nas últimas décadas, uma série de instalações de artistas têm se


apropriado e reconfigurado o dispositivo cinematográfico com proposições no
campo das artes visuais. Não se trata apenas da produção de filmes
experimentais, mas de repensar a relação dos componentes da máquina
cinema, ao espacializar as projeções, ao construir narrativas operadas ao vivo,
ao disponibilizar para o público formas participativas, ao criar situações cinema
na fricção com espaço de exibição e ao ativar arquivos de vários extratos da
história do cinema.

Ao longo da pesquisa de pós-doutorado Artistas e cinema na arte


contemporânea brasileira, elegi, então, na crescente produção no campo das
artes visuais, dezoito trabalhos que se apropriam e reconfiguram a experiência
do cinema. Muitas destas obras usam a palavra cinema no título como Laura
Lima (Cinema Shadows), Vicente de Mello (Cinema Atmosférico), Marcos
Chaves (Cinema Lavado) e Luciano Figueiredo (Cinema Romance). Apesar da
diferença de formatos, que vão do poema visual a instalação fotográfica, da
performance filmada aos vídeo objetos, do high tech ao low tech, o conjunto de
obras aqui selecionado aponta para modos e usos inesperados do dispositivo
cinematográfico, ao intervirem na sua linguagem, em seus aspectos narrativos,
em suas dimensões arquiteturais e na sua relação com os espectadores.

Pensar uma classificação possível para as muitas relações entre o cinema e as


instalações contemporâneas, implica em repertoriar uma série de situações nas
quais o filme é o suporte de uma experiência particular proposta pelos artistas,
ainda que este filme possa ser puro conceito ou palavra como, por exemplo, na
obra da artista Lívia Flores ao propor um cinema sem filme. Nestas instalações
o filme é apenas o início porque após ser finalizado toda a arquitetura da
experiência ainda está por vir.

1 Site-specific e ao vivo

Muitos artistas desenvolvem uma proposta de obra para um espaço


determinado. Museus, galerias e espaços públicos estão cada vez mais
abertos a um modo particular de ocupação pensado na relação com o espaço
previamente definido. Algumas destas obras procuram incluir o visitante que
aciona e opera a experiência proposta, muitas vezes ao vivo.

1 Cinema Shadows Laura Lima

2 Penumbra Sara Ramo

3 Cinema Lavado Marcos Chaves

4 Cinema sem filme: Feliz Ano Novo Lívia Flores

5 Sistema-cinema Ricardo Basbaum

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1 Cinema shadows

Laura Lima

O início do cinema nasce como uma experiência ao vivo, uma mistura entre a
instalação e o happening com pessoas reunidas para assistir filmes curtos
projetados pelo cinematógrafo que associava as funções de máquina de filmar,
de revelação de película e de projeção.

Muitas experimentos tem sido concebidos por artistas e seus desejos por
novos cinemas. Cinemas que misturam vida e fabulação de vida, que integram
forma e conteúdo cinematográfico, espaço fílmico e espaço vivido.

Laura Lima no projeto Respiração com a curadoria de Márcio Doctors


experimenta a experiência do cinema pelo espaço da antiga casa de Eva
Klabin. O que se projeta é o que ocorre em tempo real em outro espaço da
casa, ou seja, a câmera transmite o sinal diretamente para o projetor. O que se
compõe em um espaço é visto em outro. Há um desdobramento do que se vê
no que é visto. Laura segue a partitura escrita durante a noite ao longo do dia.
Partitura é o propósito de uma escrita que não é roteiro, nem cenário, mas
música. Ritmo composto ao vivo. Os visitantes que assistem ao que se filma ali
não deixam de integrar a obra em seu espaço de fabulação.

Shadows é o nome do cinema de Laura, inspirado no milenar teatro de


sombras, mas seu cinema é de gestos sem sombras. Encontro entre seu
psicanalista e um cientista, conversas entre artistas, cantoras imprevistas,
jantares surrealistas, foram muitas as situações inventadas por Laura da noite
para o dia. E a casa de Eva Klabin, ela mesma um personagem inesquecível
que recebia cabeleireiro e manicure na madrugada.

Cinema Shadow/Segundo de Laura Lima aconteceu nos meses de novembro e


dezembro de 2012, em 33 dias de filmagens com três horas diárias na
Fundação Eva Klabin no Rio de Janeiro. A gravação era transmitida ao vivo
para uma tela no auditório da casa de Eva Klabin e para uma sala de cinema
da Caixa Cultural. 100 horas de filmagens sem pré-gravação, edição ou pós-
produção com atores e não-atores.

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2 Penumbra

Sara Ramo

“O trabalho Penumbra, que foi exposto no Eva Klabin, é um dos meus


preferidos. Marcio Doctors foi muito corajoso. Ele me pedia para explicar o
projeto e eu enviava um email explicando uma ideia que, na verdade, era pura
escuridão. Parti da percepção de que é muito difícil gerar uma imagem naquela
casa já tão cheia de imagens. Fiquei pensando muito na história da Eva, na
noite. Ela era uma pessoa muito reclusa e percebi que isso poderia ser um
dado importante para o trabalho. Então, parti de duas coisas: daquilo que foi
vivido na casa e me permeava, e daquilo que ao mesmo tempo escapava como
imagem do lugar. Eva dormia durante o dia e acordava à noite. Imaginei então
uma vida na penumbra. Quando eu era criança e as luzes apagavam, via
muitas coisas, umas legais e outras aterradoras. Geralmente eram roupas ou
brinquedos, ou qualquer bagunça que eu tivesse esquecido em um canto, e no
projeto brinquei um pouco com isso, como quando colocamos um casaco em
cima de uma cadeira, apagamos a luz e começamos a achar que tem alguém
ali; o fantasma que está em nós, que vemos e projetamos. O que fiz foi propor
uma imagem de projeção, e era necessário muito tempo, um tempo particular,
precisava-se estar lá, esperar até que alguma coisa acontecesse, pois se
alguém chegasse e saísse rapidamente, não daria tempo de os olhos se
acostumarem (...)”

É importante enfrentar o medo, um lugar que nos assusta. Na própria


experiência da arte, justamente para gerar pensamento crítico em relação ao
que nos cerca, somos levados a um lugar nem sempre confortável. Essa
montagem foi terminada alguns dias antes da inauguração, então resolvemos
fazer alguns testes de percepção. Levávamos as pessoas e perguntávamos o
que elas viam. Usei somente objetos que estavam no quarto e na casa, coisas
conhecidas por muitos dos visitantes. Foram vistos seres de luz, galinha

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d'Angola gigante, uma mulher peituda e teve gente que ficou muito assustada.
Todo mundo lidava com o desconforto que a falta de luz nos causa, e cada um
o fazia a seu modo. O que mais gosto desse trabalho é que ele existe de fato
na projeção dos outros, são eles que constroem a imagem e não eu. Nessa
dimensão cinematográfica ou fotográfica do quarto escuro, a escuridão gera
luz.”

Há mistério. Os visitantes perguntam: “vocês estão vendo aquilo?”, e


respondiam: “aquilo, o quê?”, “ali atrás, olha!”, “ah, tem uma pessoa!”. Os
visitantes se assustam, e, depois, convivem com a escuridão. Sara Ramo
conseguiu estender a construção da imagem no espectador. É uma interação
profunda no interior do sistema ótico, a duração faz com que simples objetos
pareçam projeções de objetos e o quarto uma câmera escura.

Entre a noite e o dia passa um fio de luz. Quase não vemos o que vemos. Há
uma zona de desconforto e de incerteza em que tudo se mistura às sombras,
em que o que está diante de nós se mistura ao que pensamos estar diante de
nós.

Os objetos se revelam progressivamente. A cama e seu dossel, o lustre de


cristal, as poltronas, os tecidos.

Penumbra é o titulo da instalação que a artista Sara Ramo realizou na


Fundação Eva Klabin como parte do Projeto Respiração no Rio de Janeiro em
2012. Uma atmosfera particular regia a visita de espectadores conduzidos ao
escuro do quarto por monitores cuidadosos que nos guiavam cegos até nos
sentarem em cadeiras. Esperávamos lentamente que nossas pupilas nos
revelasse o ambiente do quarto de Eva Klabin, a dona da casa, mecenas das
artes de seu tempo.

Uma série de dispositivos pré-cinematrográficos brincam com a nossa


percepção ao longo dos séculos. As sombras chinesas, a câmera obscura, o
zoetrope, a cronofotografia, os flips books são alguns exemplos. O elemento
comum a estes dispositivos é que a imagem se forma em nossa percepção, no
modo como opera o nosso dispositivo ocular. No caso da instalação Penumbra
Sara investe no efeito da dilatação da pupila, parte central e negra do nosso
olho que funciona como o diafragma da câmera fotográfica controlando a
entrada da quantidade de luz. Ao entramos no quarto de Eva Klabin nosso olho
se acostuma lentamente a pouca quantidade de luz do ambiente e
progressivamente vemos o quarto de dormir, o closet e o banheiro em
detalhes. Uma imagem fantasmática se mostra como uma tela diante de nós.

A simplicidade da artista na construção da experiência proposta impressiona. A


sensação de escuridão quando entramos no ambiente é próxima daquela que
sentimos quando as luzes da sala de cinema se apagam. Somos tomados pelo
suspense que suspende o que está por acontecer. Um primeiro tecido
pendurado surge em sua alvura em primeiro plano. A profundidade de campo
surge ao enxergarmos pouco a pouco outros objetos, como em uma

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coreografia do tempo vivido por Eva. Cada objeto é assim potencializado em
sua fantasmática como verdadeira aparição. Sentados ali diante de uma
imagem, rigorosamente composta, e, que se revela em continuidade, no
silêncio da antiga camara, estamos diante de uma imagem opaca como a das
primeiras câmeras obscuras e em fluidas e frágeis projeções.

A instalação perfaz o íntimo estado de vigília vivido pela dona da casa Eva
Klabin quando permanecia acordada a noite e dormia durante o dia. A vida do
quarto era sempre a meia luz na fosforescência dos objetos iluminados.

Sonhando acordados permanecemos assistindo um outro tempo que se


estende diante de nós, até que a continuidade gerada por nossa percepção
não mais nos assombre.

3 Cinema Lavado

Marcos Chaves

A convite de Márcio Doctor’s para o Projeto Respiração o artista carioca


Marcos Chaves ocupou a antiga casa de Eva Klabin com um conjunto de
intervenções que incluiu uma imensa projeção na sala de estar intitulada
Cinema Lavado. Uma cachoeira projetada sobre a sala inteiramente mobiliada
produz luz e movimento que parecem evaporar dos objetos. O artista se refere
ao trabalho como se fosse um “despacho”, uma limpeza espiritual do ambiente,
lavar a alma em um mar de cores produzido pela projeção que anima a
atmosfera antiga. O azul prepondera e empresta energia e brilho a sala de Eva,
como um novo início. Uma alegria em suspensão.

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4 Cinema sem filme: Feliz Ano Novo

Lívia Flores

"Instalar uma gambiarra luminosa com os dizeres FELIZ ANO NOVO para ficar
acesa durante todo o fim-de-semana do evento, de preferência, dia e noite.
FELIZ ANO NOVO surge como instalação festiva, saudação aos moradores (ou
saudação dos moradores à cidade), anúncio de renovação, esperança de
futuro feliz. Ao mesmo tempo, sua aparição extemporânea sugere algum tipo
de desarranjo na ordem do tempo ou do discurso - o tempo fora de ordem, o
senso comum confundindo-se com o nonsense"

Lívia Flores produz uma situação cinema baseada na poesia existente na frase
: Feliz ano novo. A poesia está na frase fora do lugar, fora do tempo costumeiro
do fim do ano a cada ano. Lívia estende a frase no Morro da Conceição e
converte a paisagem em um Drive in. Um verdadeiro happening em que as
fotos que o registram lembram um filme, ou, um cinema, sem filme.

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4 Sistema-cinema

Ricardo Basbaum

“A série sistema-cinema funciona de modo estrutural: busca ser um mecanismo


de trabalho disponível, à disposição, para a realização de intervenções. Ou
melhor, para intervir junto à modalidade do cinemático/cinematográfico, sempre
que se apresente uma oportunidade que caracterize demanda de interesse
nessa direção. A opção de trabalhar através de séries foi se colocando pouco a
pouco em meu percurso de pesquisa (isto é, em meu trabalho como artista): aí
se sobressai o interesse em cultivar ferramentas para construir a ação
contextual em tempo presente, no aqui&agora da intervenção. Mais importante
que o próprio trabalho seria a trama implicada no local específico e sua
emergência como protagonista da situação. A obra se apresenta como
dispositivo lateral que coloca em funcionamento a rede ou sistema – que não
preexistem mas manifestam-se enquanto latência; o que se chama de ‘trabalho
de arte’ (tal agregado especial que se materializa no limite do supérfluo e
investe no desvio, aberração, perversidade ou excesso) deve prever o
deslocamento para a região de seu próprio desaparecimento. Pois o que fica
retido, agarrado no corpo sensível ou memória são apenas efeitos de
propagação lenta. O diagrama funcionaria como índice e prospecção desses
efeitos, mapa que também produz a realidade ali indicada.”

Você gostaria de participar de uma experiência artística?

É o titulo que Ricardo Basbaum apresenta como sua participação na


Documenta 12.

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Um único objeto de tiragem ilimitada foi distribuído. A fisicalidade do objeto
fortalece a ambigüidade de um circuito que é imaterial.

Distribuição inicial dos 10 objetos produzidos em Kassel:

6 em Kassel, 1 Liverpool, 1 Viena, 1 Dakar, 1 Liubliana.

Distribuição inicial dos 10 objetos produzidos em Florianópolis

1 em Buenos Aires, 1 Valparaíso, 1 Cidade do México, 1 Rio Branco, 1


Fortaleza, 1 São Paulo, 1 Rio de Janeiro, 1 Curitiba, 2 Florianópolis.

A distribuição dos objetos costuma ocorrer a partir dos mediadores, amigos ou


instituições que abrigam e sugerem participadores. Em Kassel a distribuição foi
orientada por um setor da organização da documenta 121, e portanto, o
processo teve uma dinâmica muito particular se comparada com a forma mais
orgânica com que se deu nas demais localidades.

Mas esta rede íntima, poética e conceitual exige protocolos. Primeiro, deve
haver a aceitação do convite de participação. O objeto é, então, enviado para o
participador que é cadastrado no site, que existe desde de setembro de 2006,
dentro da terceira fase do projeto – antes disso, houveram duas fases: de 1994
a 2000, o projeto andava a partir da mediação do próprio artista; entre 2000 e
2004, o objeto passou a se deslocar impulsionado por redes já existentes entre
os participantes. Com o site quem recebe o objeto é cadastrado informando ao
sistema a data, a cidade e o nome; ganha uma senha e a partir de então edita
a sua própria documentação sem passar pelo artista. O registro visual e escrito
da experiência torna-se público sem a interferência do artista. O participante
pode ser indivíduo, grupo, coletivo ou instituição. Em Kassel, por exemplo, uma
escola, uma associação comunitária, uma associação que trabalha com
imigrantes e uma associação de portadores de vírus de HIV participam da
experiência. O artista faz o gerenciamento da circulação a partir do site.

O site figura a movimentação das redes participativas, sempre revelando a


forma do objeto NBP. O site é como um mapa orgânico que se movimenta em
pequenas constelações. O que é NBP?, projeto e comentários são os links que
dão acesso à navegação interativa. Esta navegação procura se orientar a partir
das formas conceituais do projeto - integrando mobilidade, acesso e forma. O

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1
O advisory board da documenta 12, que auxiliou na distribuição dos objetos em Kassel, foi coordenado

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desenho NBP se forma no movimento do cursor na página inicial, acentuando a
idéia de que a interação produz a obra.

Na documenta 12 o artista constrói uma arquitetura de geometria conceitual


que agrega o sensorial ao abrigar os participantes em colchonetes espalhados
pela estrutura escultórica que também reproduz a forma do objeto NBP.

Dentro desta arquitetura, o site disponível para o acesso local; há também, um


conjunto de imagens em slide show randômico, uma compilação de vídeos
realizados por participantes do projeto e ainda um conjunto de câmeras em
circuito fechado, onde assistimos imagens capturadas em ordem seqüencial
que mostram em tempo real a relação das pessoas com o espaço. Os
participantes são então acolhidos dentro do sistema de informação que
constitui o projeto tornando-se parte da obra.

Na mesma sala, do lado de fora da arquitetura, um diagrama desenhado na


parede explicita as relações propostas pela obra. O diagrama produz uma
visualidade orgânica do dispositivo conceitual do trabalho.

“O trabalho, em sua desmaterialização, opera o tempo inteiro com a


materialidade. Para fugir de uma perigosa fetichização, o objeto é utilizado
como deflagrador de situações: o que importa é o que as pessoas estão
fazendo com a peça, o que estão propondo e produzindo com ela – o mais
importante é a relação das pessoas com o objeto.”2

Ao atravessar ou ao permanecer no interior da arquitetura NBP o participante


integra o processo de desmaterialização do objeto proposto por Basbaum, mas
a experiência alia aparentes oposições: do frio das grades ao acolhimento dos
colchões, do rigor conceitual aos fluxos sensoriais. O “dentro é o fora” e “o
fundo é o mundo” como nas experiências neoconcretas. Ricardo Basbaum
celebra mais uma vez a arte como vida, mas uma vida conectada as demandas
ativas dos processos tecnológicos em curso, que não se restringem ao mero
funcionamento das máquinas de informação, mas a construções de novas
percepções e sensibilidades que apontam para um mundo onde cada indivíduo
é parte de uma rede relacional. Nesta rede, instaurada pelo uso generalizado
dos computadores ligados à internet, a presença de um sujeito ativo é cada vez
mais exigida. A idéia de que os sistemas virtuais simulam nossas presenças
em ambientes programados remetem a uma presença a distância o que não é
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2
Entrevista realizada com Ricardo Basbaum em 05/04/2007.

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a maior possibilidade das novas tecnologias, a maior diferença consiste na
possibilidade de uma presença móvel.

“A mobilidade é apropriada pela arte de hoje a partir de duas lógicas: o fluxo


dos circuitos comunicacionais e a inclusão dos deslocamentos motores e
sensoriais do corpo. O que significa que por um lado, as alterações nos
padrões de comunicação que se popularizaram nos anos 80, com a adoção do
computador em rede, permitiram o fluxo de dados como nunca antes sonhado
e, por outro lado, o corpo passa a ser pensado como um elemento que é parte
do sistema.”3

Na obra de Ricardo Basbaum a mobilidade da presença é ativada pela


arquitetura NBP, sentados diante das telas, os participantes da obra podem
tornar presentes em tempo real os acessos ao sistema.

Propor e criar ao mesmo tempo, repetir, gerar pequenas memórias são os


gestos que comunicam o artista ao fazer persistir uma forma que cria uma
relação entre o todo e a parte, uma relação com o que é o referente e o que
não é ao mesmo tempo. Há uma geometria fractal no trabalho de Ricardo
Basbaum, em que o todo repete a parte, em que o modelo, a síntese do
modelo é a forma NBP, mas a maneira como a forma se dá no tempo e no
espaço será proliferação na redundância do que é o mesmo, mas também no
que há de diferente, em cada indivíduo, cada grupo, cada coletivo, cada
instituição. Uma diferença gerada pelo atrito com a proposição inicial.

Se o trabalho de Basbaum se inspira na poética participativa de Hélio Oiticica


seu percurso expande os processos iniciais em uma situação interativa
particular que gera uma obra em rede. O fluxo entre participação e interação
constitui um sistema ativado pelo uso de tecnologias específicas de registro e
distribuição de informações. O trabalho atua, então, como o movimento de
navegação nas redes de comunicação nas quais o acesso redefine as próprias
circunstâncias da pesquisa e do conteúdo. Dentro da arquitetura NBP o
participante experimenta os diferentes dispositivos e cada um (câmera, vídeo,
computador) possibilita a mixagem dos processos de transformação da obra
que o abriga. Além do acesso e da variedade de mídias a situação é interativa
porque cabe ao participante combinar os diferentes acessos disponíveis como
um editor das próprias imagens. A obra incorpora, assim, múltiplas
temporalidades, na medida em que todos os momentos do processo estão
disponíveis no momento presente. O NBP funciona então como uma enorme
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3
MACIEL, Kátia. “A arte da presença” in catálogo Progme, Rio de Janeiro: 2005.

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caixa transparente na qual os circuitos são integrados e disponíveis ao
participador.

No início do cinema a câmera era ao mesmo tempo o projetor, um tipo de


circuito integrado que produzia ao mesmo tempo o conteúdo e sua distribuição.
O dispositivo NBP pensado por Ricardo Basbaum se aproxima do
funcionamento de uma máquina pós cinema, Transcinema4, ao incorporar
câmeras, telas e computadores a uma arquitetura que abriga o participador
como parte do circuito que gera a obra. A poética interativa criada pelo artista é
uma forma ativa, presente e múltipla que não para de se atualizar na rede da
arte contemporânea.

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4
“A variedade de formas a que chamamos de Transcinemas produz uma imagem-relação, que, como define Jean Louis
Boissier, é uma imagem que se constitui a partir da relação de um espectador implicado em seu processo de recepção. É a este
espectador tornado participador que cabe a articulação entre os elementos propostos e é nesta relação que se estabelece um
modelo possível de situação a ser vivida, uma relação que é exterior aos seus termos, não é o artista que define o que é a obra,
nem mesmo o sujeito implicado, mas é a relação entre estes termos que institui a forma sensível. É a este cinema relação criado
de situações de luz e movimento em superfícies híbridas que chamamos de Transcinema.” MACIEL, Kátia. “Transcinemas e a
estética da interrupção” in Limiares da imagem, Antonio Fatorelli e Fernanda Bruno (org), Rio de Janeiro: MAUD, 2006.

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2 Dispositivos e ações

Em algumas instalações contemporâneas a formação da imagem ocorre na


relação com o espectador, ou na relação produzida por ele entre os
componentes da imagem. Não é raro que o visitante edite o que vê, seja
acionando mecanismos, seja ao percorrendo o espaço arquitetado ou
programado préviamente. Um filme, então, pode ser visto em várias telas, ou
projetado com o projetor em movimento, ou ainda, sugerir formas de
intervenção e participação na narrativa.

A partir das obras abaixo selecionadas desenvolverei algumas questões


referentes a montagem de obras que consideram no seu modo operandis a
relação que implica os dispositivos e ações propositivas,

1 Enigmas de uma noite Ana Tavares

2 Abajur Cildo Meireles

3 Cinema Lascado Gisele Benguelman

4 Disque M para matar Gisela Motta e Leandro

1 Enigmas de uma noite

Ana Tavares

Instalação Enigmas de uma Noite com Midnight Daydreams (da série Dream
Stations) de 2004

A instalação é composta por poltronas-leito em couro e plástico injetado,


cabines com áudio, piso revestido em fórmica, espelho e música ambiente. Há
também uma projeção realizada em proporções de cinema, com imagens em

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16mm capturadas há 70 anos pelo capitão Schenk da marinha mercante
alemã, em suas viagens de Hamburgo a Buenos Aires. O material foi trazido da
Alemanha e editado sob a direção da artista.

A sensação é de estarmos em um imenso navio acomodados diante dos ruídos


do mar e abrigados pelo calor da música. Os espelhos ampliam o ambiente e
misturam nossas imagens às imagens projetadas. O ambiente particular
composto pela artista é de um cinema grandioso que nos leva ao esplendor de
outro tempo ou de um tempo por vir.

2 Abajur

Cildo Meireles

E do mar o mundo
é redondo de mar

No horizonte transparente
A caravela no viés da corrente

O movimento que transpira


E aquilo que não víamos revela-se
Na bruta força que gira o mundo de admirável beleza

No fundo a dor dos esquecidos


Abaixo do desfile dos que esquecem
Pois então não vivemos do esquecimento?
Esquecemos que as caravelas em splendor
Não eram alvas como as ondas
Mas negras do negrume escravo que domina aquele
Que nunca esquece o esquecimento

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3 Cinema Lascado
Gisele Benguelman

“Cinema Lascado é uma incursão no Minhocão, apresentada como uma


videoinstalação duo-canal, livro de artista, fotografia e net-art.

Aqui o movimento se faz por um processo de varredura, em que as imagens se


sucedem por um movimento de scaneamento da paisagem. O resultado são
seqüências que desconstroem o espaço para serem recriadas como ruído
visual, pautado pelas cores predominantes do entorno, numa espécie de
revisitação ao conceito surrealista de Beleza Convulsiva e do Glitch.

Percurso que mescla low e hi tech, o sórdido e o sublime, combina vídeo em


HD com a técnica de animação em GIF – primeiro formato de imagem em
movimento que vingou na Internet – e a instabillidade do browser, para criar um
jogo de saturação e supressão que refaz o olhar e a percepção sobre o entorno
e a cidade, o novo e o velho, o em cima e o embaixo, o aparelho e o
dispositivo.

As imagens são captadas com uma Flip em situações de trânsito em uma zona
de tensão da cidade (o Minhocão). Alguns frames são selecionados e são
editados num editor de GIF animado. Depois, são distribuídos em páginas
HTML e colocados para rodar no browser Internet Explorer em tela cheia, com
meta refresh. O movimento entre as imagens é dado por esse script. O
resultado, são inúmeros bugs de leitura das animações e uma temporalidade
instável. Na sequencia, as imagens são capturadas com um screen recorder e
se transformam em vídeo outra vez.”

Cinema lascado faz parte do vocabulário da artista Giselle Beiguelman como


uma aproximação da ideia de cinema às varreduras das novas tecnologias.
Giselle reconfigura a imagem a partir da leitura digital ininterrupta da paisagem
real. O que experimentamos na instalação é um cinema constituído por um
sistema dinâmico e híbrido que nos embaralha às imagens que se apresentam
como um mero ruído da urbes paulistana.

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4 Disque M para matar

Leandro Lima e Gisela Motta

A dupla de artistas Leandro Lima e Gisela Motta apresentaram a


instalação interativa Disque M para matar em 2010 na Galeria Vermelho em
São Paulo se apropriando da sequência clássica de Alfred Hitchcock em que
Margot Mary, personagem interpretada por Grace Kelly, atende ao telefone
antes de sofrer a tentativa de assassinato planejada por seu marido. Os artistas
inserem na imagem um número de celular para que o espectador possa
impedir o crime de acontecer discando conforme indicado na tela.

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Os artistas tornam o visitante cúmplice da ação que se passa, ao ligar ou
não para o celular anunciado na tela. O suspense é assim colocado para além
do filme, na sala em que o filme é visto. O espectador irá ou não telefonar para
salvar a moça do seu iminente assassinado?

O recurso interativo não é gratuito, mas integra a trama que agora se passa
também fora da tela.

Há também humor e ironia na proposta da dupla. A imagem do telefone


treme na tela, como um convite que insiste em nossa participação e ao mesmo
tempo conhecemos o plot do famoso filme de Hicthcock e de algum modo
sabemos que o que está por acontecer já aconteceu.

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3 Arquivos e montagens

O uso do computador disponibilizou a construção de uma outra história a partir


da recuperação de arquivos. Alguns artistas se especializaram em um
determinado arquivo e compõe a partir dele todo um universo de imagens que
se particulariza na relação entre as imagens e sons, em combinações
imprevistas e as vezes imprevisíveis.

1 Bang Ana Vitória Mussi

2 Cine romance Luciano Figueiredo

3 Circuladô André Parente

4 Aleph Márcio Botner e Pedro Agilson

1 BANG, 2012

Instalação fotográfica de Ana Vitória Mussi

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O bandido atira contra a câmera que o captura, e nós, espectadores, desde
1903 com O Grande roubo de trem5, somos alvos do bang bang do cinema. Em
Histoire (s) du cinema de Jean-Luc Godard, o autor repete, na forma de texto
gráfico visual e na voz off, Histoire avec un s, História com s. Vemos, então, as
histórias do cinema nas batalhas e guerras do século XX. O cineasta resume a
história do cinema americano como a girl and a gun. A girl and a gun Godard
repete ao longo do filme. A fórmula de Hollywood decomposta na montagem do
autor que, para frente e para trás, movimenta a moviola e seu ruído.
Montagem, assemblage, colagem, mistura não apenas do cinema e sua
história, mas de seus continentes, europeu e americano em cruzamentos,
disputas, intrigas, a história do cinema como gênero cinematográfico. O
cinema, seus heróis e covardes, suas divas e vítimas, histoire avec un s.

Em 1991, Jean Baudrillard escreveu em La guerre du golf n’a pas eu lieu,


publicado no jornal Liberation

“O drama real, a guerra real, não temos nem mais o gusto, nem a
necessidade. O que precisamos é o sabor afrodisíaco da multiplicação do falso,
da halucinação da violência, o que temos de todo prazer halucinógeno, que é
também o prazer, como na droga, da nossa indiferença e da
nossairresponsabilidade, portanto da nossa verdadeira liberdade” Para concluir
“É a forma suprema da democracia”6

Este texto poderia ser uma critica aos filmes de Quentin Tarantino. Edição de
imagens de naturezas distintas: fotografias, séries televisivas e animações em
filmes que ultrapassam os acontecimentos em seus aspectos históricos, morais
e éticos. O que fazer quando tudo já aconteceu? Refazer tudo em um
movimento contemporâneo de eterno retorno. No caso do cinema americano,
Tarantino gera um pastiche de violências do western ao filme noir, do burlesco
a guerra mais visceral, onde os heróis afundam sem o alento da vitória. Uma
outra nouvelle vague e neo-realismo, na total desrealização do jogo americano
do culto ao herói. Não existem heróis, só bandidos, não existe a paz, só a
guerra, a pior de todas, aquela de todos os dias, aquela que nos torna
indiferentes ao sangue, ao suor e as lágrimas.

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5
The Great train robbery, filme dirigido por Edwin S. Porter, produzido pela Edson filmes.
6
« Le drame réel, la guerre réelle, nous n’en avons plus ni le goût ni le besoin. Ce qu’il nous faut,
c’est la saveur aphrodisiaque de la multiplication du faux, de l’hallucination de la violence, c’est que nous
ayons de toute chose la jouissance hallucinogène, qui est aussi la jouissance, comme dans la drogue, de
notre indifférence et de notre irresponsabilité, donc de notre véritable liberté. » Et de conclure : « C’est la
forme suprême de la démocratie. » Jean Baudrillard

! 22
Na exposição Bang de Ana Vitória Mussi, três paredes abrigam quatro
projeções, que se tocam e funcionam para dentro e para fora, no deslizar do
movimento parado, no entrecruzar das formas e ritmos que combinam as
imagens que passam como em um filme. Um filme contrastado pelas
fotografias que fixam o que mostra a televisão da artista, para ela, uma janela
para os acontecimentos em versões que se materializam e desmaterializam no
tempo do click da câmera que opera.

A instalação-filme Bang transcende a relação entre a artista e a curadora.


Juntas na edição de imagens, orquestrando a um só tempo a guerra que se
pacifica no olhar, nos paralisam nos batimentos fotográficos precisos como os
alvos a serem atingidos. Olhar que aos poucos entra em sincronia com o
sublime das imagens que mostram, nas palavras de Jean Baudrillard um real
sem origem nem realidade, porque tudo é cinema.

A mulher olha, a arma atira, os corpos mergulham, os aviões planam e nós,


imersos no movimento do tambor que gira imagens e tanques, somos
acolhidos no preto e branco do cinema em todos os tempos, e pela trilha de
Tarantino em seu bang bang. E o tempo é bersoniano porque aqui o passado é
contemporâneo do presente que ele foi. Nos termos colocados por Gilles
Deleuze, em seu texto A ilha deserta7, a duração é uma memória, porque ela
prolonga o passado no presente. Bergson enuncia que o presente vai
progressivamente, com o envelhecimento, tendo uma carga mais pesada de
passado. Para o autor, o passado sobrevive em si, como lugar no qual nos
colocamos para nos lembrar, o passado é o em si, o virtual, o presente que ele
foi e o atual presente do qual agora ele é passado. Deleuze repete Bergson,
estendendo o pensamento da imagem em si para a imagem como o puro do
tempo, como o virtual do tempo como a imagem-tempo.

A instalação Bang de Ana Vitória Mussi nos acorda com a delicadeza das

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
7
Bergson, 1858-1941 in A ilha deserta, Gilles Deleuze, Ed Iluminuras, São Paulo, 2006.

! 23
imagens que flutuam no presente de um passado que não passa nunca,
porque as imagens são mais que arquivos, são percepções incrustadas em

nossos corpos, como a guerra e o cinema.

2 A outra fala
A instalação cinema de Luciano Figueiredo

“- Eu sempre começo com o diálogo. E não compreendo como alguém se atreve a


escrever a ação antes do diálogo. É uma ideia muito estranha. Eu sei que, na teoria,
a palavra é secundária no cinema; porém, o segredo do meu trabalho é que tudo é
baseado na palavra. Eu não faço filme mudo. Eu necessito começar com o que os
personagens dizem. Preciso saber o que dizem antes de ver o que fazem.”

Orson Welles8

A história dos diálogos no cinema se confunde com a própria história do cinema. Se


os filmes incorporam a narrativa dos então já existentes e populares romances, a
função do diálogo na narrativa cinematográfica é estrutural. Como afirma Michel
Chion9, o cinema nunca foi mudo, mas surdo, ou seja, os personagens sempre
falaram, nós é que não os ouvíamos, mas sempre líamos o que era dito nas cartelas
que entremeavam a montagem. As palavras relacionavam, portanto, os planos
cinematográficos mesmo antes do cinema falado.

Orson Welles, na sua paixão pelo texto e pelo teatro, potencializa o uso dos diálogos
na construção de roteiros que mudaram a história do cinema.

A exposição de Luciano Figueiredo Fabri Fabulosi: Imagem/legenda: um cine-


romance apresenta, na segunda cartela suspensa no escuro da sala de exibição, o
trecho do depoimento de Orson Welles como modo de se apropriar do texto como
origem da própria exposição. Como se Orson Welles estivesse ali apresentando o
cinema em outra forma, a da instalação.

“ Você deve levar em conta que a plateia que assiste a um filme não é uma plateia
que está acordada. É uma plateia que está sonhando.“
Gertrude Stein10

O escuro. Sempre o escuro. O cinema sonha que nós sonhamos com ele. Esta é a
condição de sua existência, a origem do dispositivo narrado por Jean-Louis Baudry11 como
um aparelho de simular, que transforma a percepção quase em alucinação, dado o efeito

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
8
Depoimento de Orson Welles. Hollywood Voices. Andrew Sarris - Cinema Two, London 1971, pag.156.
Entrevista a Juan Carlos Miguel Rubio, José Antonio Pruveda em Cahiers du Cinéma, N.165 Abril 1965
9
Michel Chion, L'audio-vision. Paris, Nathan, 1990, pag 75.
10
Gertrude Stein “ Lights, Câmera, Poetry!” edited by Jason Shinder. A harvest Original Harcourt Brace &
Company . San Diego New York London.
11
Jean-Louis Baudry. Le dispositif. In: Communications, 23, 1975. pp. 56-72.

! 24
de realidade. Para o autor francês, o dispositivo cinematográfico reproduz nosso aparelho
psíquico durante o sono, no sentido do corte com o mundo exterior e na potência das
imagens sensoriais do sonho.

Talvez a melhor descrição do dispositivo cinematográfico não esteja no cinema, mas


na literatura de Bioy Casares. A invenção de Morel12, de 1940, é um romance do autor
argentino que inspirou O ano passado em Marienbad, de Alain Resnais, em 1961.

Um fugitivo, em uma ilha que acreditava deserta, se vê diante de um grupo


hospedado em um local chamado Museu. O personagem se esconde, até se apaixonar por
Faustine, e então deseja ser visto. Só então o narrador percebe que está imerso em
imagens e seu encontro com Faustine é improvável. A única possibilidade do personagem
é de se tornar parte da máquina inventada por Morel como mais uma imagem.

O conceito de virtual presente ao longo do texto é fundamental ao pensamento


contemporâneo. A máquina de Morel é visivelmente um sistema de realidade virtual, diante
do qual não somos capazes de afirmar o que é uma imagem e o que não é, diante do qual
não paramos de nos tornar imagem. O virtual é puro devir, processo que nos afirma em um
tempo que passa e não passa, que é e não é. Interstício que se repete, a experiência do
personagem de Bioy Casares nos remete ao paradoxo de imagens em loop, que anunciam
que o início é o fim e o fim é o início e colocam em colapso qualquer tentativa de
representação, posto que o real não tem origem nem realidade e o sonho é apenas a
miragem da loucura.

Trata-se de uma história de amor, de um policial, de uma aventura, de uma ficção


científica. Casares escreve todos os gêneros a um só tempo em um pensamento único
sobre a questão da imagem. O que é uma imagem? O que vemos? O que projetamos? O
que sentimos? O que imaginamos? A imagem é plena ou vazia? Ocupa o lugar do outro ou
é ou outro? E nós? Em que medida também somos o que vemos? Uma imagem depois da
outra. E o amor? É a imagem absoluta?

A afirmativa é a de que o amor não é possível, ou melhor, ele é da ordem do possível,


mas não da existência. É sempre uma imagem que se relaciona com outras imagens e não
se realiza e, se acontece, o acontecimento gera sua própria desaparição.

Diálogo entre Vienna e Johnny:

- Está se divertindo?

- Estava sem sono.

- E beber, ajuda em alguma coisa?

- Ajuda a passar a noite. E você, o que é que a mantém acordada?

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
12
Bioy Casares. A invenção de Morel, São Paulo: Cosac Naify, 2006.

! 25
- Meus sonhos. São pesadelos!

- Às vezes eu também os tenho. Tome, beba um pouco, vai ajudar a se livrar deles.

- Eu já tentei. De nada adiantou.

- Quantos homens você já esqueceu?

- Tantos quantas mulheres você deve lembrar.

- Não se vá!

- Eu nem me mexi!

- Diga-me alguma coisa agradável.

- O que você quer ouvir?

- Minta. Diga que esperou por mim todos esses anos.

- Eu esperei por você todos esses anos.

- Diga-me que você morreria se eu não tivesse voltado.

- Eu morreria se você não tivesse voltado.

- Diga que você me ama tanto como eu te amo.

- Eu te amo tanto quanto você me ama.13

Luciano conta14 que Cine-romance era o nome da forma quadrinizada dos filmes em
publicações da década de 1950. Os filmes eram fotografados quadro a quadro,
publicados e colecionados pelos fãs. Muitas vezes os cinerromances eram o modo de
assistir aos filmes, que nem sempre chegavam a todas as telas. Esta forma
aglutinava então o romance, na sua narrativa sequenciada, às imagens que
retratavam o que era lido. Ao enquadrar e suspender textos e diálogos
cinematográficos em uma sala de exposição, Luciano Figueiredo reinventa a lógica
dos diálogos porque ali no escuro, com o foco da luz nas palavras, o cinema fala de
outro modo. Este modo é amoroso. O romance não está na troca das palavras dos
personagens memoráveis, o romance está na nossa relação com o cinema.

Ao entrarmos na sala esquadrinhada pelo artista, vemos telas suspensas, por vezes,
com pequenas sobreposições, iluminadas pelas letras que parecem flutuar no escuro.
O que as letras nos dizem ao nos aproximarmos acorda nossa memória e seu
repertório de dispositivos afetivos.
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
13
Filme: JOHNNY GUITAR (Johnny Guitar) 1953 de Nicholas Ray.Baseado no livro de Roy Chanslor.
Roteiro: Ben Maddow, Philip Yordan.
14
Entrevista de Luciano Figueiredo com Katia Maciel, 25 de março, 2014.

! 26
- Você veio aqui para me salvar?

- Não, eu vim aqui para trair você. 15

O corte seco. O frio. A traição. A melhor versão do escuro. Luciano age como um
montador atento ao movimento da costura da moviola. O corte seco. A sensação no
estômago da traição. “eu vim aqui para trair você”. O cinema sensorial, sem projetor,
sem película, no fio da palavra escrita que grita no escuro.

O tema da traição é frequente nos diálogos colecionados pelo artista. O marido trai. A
mulher trai. O amigo trai. O policial trai. Os personagens do cinema noir insistem em
trair uns aos outros na penumbra dos escritórios cobertos por velhas persianas.

De outro modo, a traição habita o cinema godardiano: a palavra dita não é ouvida, a
conversa é desvio.

“Il faut se prêter aux autres et se donner à soi-même.”16

Diálogo da personagem Nana com o filósofo Brice Parain:


- Porque devemos sempre falar? Muitas vezes não devíamos falar e ficar só em
silêncio. Por mais que alguém fale, menos as palavras significam.
- Talvez, mas, alguém pode?
- Eu não sei.
- Eu descobri que não podemos viver sem conversar.
- Eu gostaria de viver sem falar.
- Isso seria bom, não seria?
- É como amar alguém ainda mais, mas, isso não é possível.
- E por quê ? As palavras deveriam expressar exatamente o que queremos
dizer.
Elas nos traem?
- Mas, nós as traímos também.17

No cinema as palavras muitas vezes discordam. Discordam da própria imagem,


dizem o que não vemos, não dizem o que vemos. Na versão instalativa de Luciano
Figueiredo, vemos tudo o que se diz, porque lemos no escuro. A potência da palavra
é a da intensidade da poesia na forma da pintura.

“Às vezes, com o passar do tempo, certas pinturas antigas tornam-se transparentes.
Quando isto acontece, é possível ver as linhas dos desenhos originais: por trás de
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
15
Filme: SANSÃO E DALILA (Samson and Delilah) 1954. De Cecil B. De Mille. Roteiro: Jesse
L. Lasky Jr, Frederic M. Frank, Harold Lamas.
16
Filme: VIVER A VIDA ( Vivre Sa Vie) 1962, de Jean-Luc Godard. Roteiro: Jean-Luc Godard, Marcel
Sacotte.
17
IDEM.

! 27
uma árvore, vê-se um vestido de mulher, uma criança dá lugar a um cachorro, um
barco já não se encontra em mar aberto. Isto se chama pentimento. Porque o pintor
repintou o quadro... mudou de ideia.”18

Luciano Figueiredo é um pintor. Suas telas são feitas, muitas vezes, de


sobreposições de formas e cores em uma geometria de transparências. Vemos
através. Avesso a representações, suas pinturas não encenam ou figuram, elas
apresentam, pela primeira vez, composições que surgem da precisão do corte das
linhas e da montagem das cores. Nesta forma, o movimento sempre insiste em se
mostrar no deslocamento espacial regido pelo artista.

Na exposição Fabri-fabulosi, título dado pelo amigo e poeta Antonio Cicero, a


fabricação não é menos precisa do que a construção de suas telas. Luciano
Figueiredo cria uma arquitetura espacial como se a sala fosse uma tela e abrigasse,
então outras telas, como outros cortes, com um gesto que impressiona e que ilumina
cada palavra com a sombra necessária.

Fritz Lang recitando um poema:

“Mas, o homem, quando preciso, pode prostrar-se destemido e só, perante


Deus. Sua honestidade é o seu escudo. Ele não precisa de armas nem de
truques até o momento que a ausência de Deus o ajude. “

- - Isso é Hölderlin, não é ?

- É, em A Vocação do Poeta“. Pelo modo como escreveu os versos finais,


pode-se ver que um verso contradiz o outro. Vê-se que não é mais a presença de
Deus, mas sua ausência que conforta o homem. Estranho, porém, verdadeiro.19

Luciano Figueiredo foi convidado pelo amigo e curador Alberto Saraiva a criar uma
exposição que ocupasse um espaço do Oi Futuro Ipanema dedicado à poesia visual,
talvez o único no mundo exclusivamente dedicado a poemas que são imagens e vice-
versa. O artista que coleciona diálogos, especialmente do cinema clássico, pode
transformar seu acervo em uma exposição transcinema por misturar poesia, cinema e
pintura não só no mesmo espaço, mas nas mesmas obras. Cada tela é poema, filme
e pintura, e isto não pela técnica utilizada, mas pelo composto de sensações que o
artista tão bem soube evocar nas palavras que falam no escuro.

- “Era uma tarde quente e ainda me lembro do cheiro de jasmim na rua toda.
Como iria saber que o crime às vezes tem cheiro de jasmim? Talvez você soubesse,
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
18
Filme: JULIA, de Fred Zinemann (1977), baseado no livro Pentimento, de Lillian Hellmann. Roteiro:
Alvin Sargent.

19
Filme: O DESPREZO (Le Mépris) 1963. Baseado no livro de Alberto Moravia. De Jean-Luc Godard.
Roteiro: Jean-Luc Godard.

! 28
Keys, pelo modo como lida com seguros de acidentes, mas eu não, sentia-me como
um rei...

Matei-o por dinheiro e por uma mulher. Não fiquei com o dinheiro nem com a mulher.
20

Raymond Chandler e Dashiel Hammett, romancistas e roteiristas americanos


escrevem clássicos do cinema noir como Pacto de sangue (1944) e O Falcão Maltês
(1941). Estes autores são lidos e assistidos por Luciano Figueiredo, principalmente no
período em que viveu em Londres com Óscar Ramos durante a década de 70. Os
dois reviam os filmes dos anos 40 e 50 no Bristish Film Institute e outras cinematecas.
Luciano passa a anotar e guardar os diálogos das suas cenas favoritas, e, sistematiza
progressivamente todo o material como uma coleção, um arquivo que viria a se tornar
a origem da proposta para a exposição Fabri Fabulosi. Para a escolha da exposição
o artista procurou fragmentos de diálogos que em si tivessem sustentação poética.

É preciso lembrar que Luciano Figueiredo, antes da ida a Londres, havia assistido
aos filmes com legendas no Brasil e que esta forma já evidencia a escrita. Para a
exposição, o artista se apropria da ideia da legenda como parte da estrutura do filme.
Os componentes do filme - diálogo e legenda - são vetores para se chegar ao que lhe
é anterior: o roteiro, que é o início da exposição.

O processo de espacialização da palavra em pranchas de luz e sombra por meio de


cartelas que exploram os problemas de espaço e de cor tem origem na imagem em
suspensão e projetada. A relação formal com a pintura na composição em fundo
cromático, é evidente no jogo espacial dinâmico que sustenta os diálogos soltos no
espaço, o que oferece ao visitante uma sensação imersiva no trabalho.

Ao visitar a exposição, temos uma sensação cinema de luz e leitura silenciosa. É o


espectador que relaciona o que lê no espaço. De um lado um diálogo do Crepúsculo
dos Deuses, de outro O Leão no Inverno. Luciano qualifica a relação entre os
diálogos a partir do princípio ideogramático difundido por Ernest Fenellosa e Ezra
Pound, a partir do qual se afirma que duas coisas justapostas não formam uma
terceira, mas uma relação fundamental entre ambas.

A homenagem aos artistas construtivistas em um grande gráfico de relações,


intitulado Fabri fabulosi, fixado fora do espaço da exposição, acaba por se relacionar
com os escritores da sala de exposição, viram uma família só, como diz Luciano.

“ - Essa é minha vida. Sempre será. Nada mais importa. Só nós e as câmeras... e as
maravilhosas pessoas lá, no escuro.” 21

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
20
Filme: PACTO DE SANGUE (Double Indemnity) 1944 de Billy Wilder. Roteiro: Raymond Chandler.
21
Filme: CREPÚSCULO DOS DEUSES, (Sunset Boulevard) 1950, de Billy Wilder. Roteiro: Billy Wilder,
Charles Brackett, D. M. Marshman Jr.

! 29
Os diálogos suspensos fazem conviver a pintura, o cinema e a poesia

Parece um filme do Godard, no qual a cultura cinematográfica e literária é o único


acesso ao filme, porque o que há é um jogo de relações com o próprio cinema. A
exposição Fabri Fabulosi: Imagem/legenda: um cine-romance é memória e história do
cinema. Histoire avec un s como no filme Histoire(s)du Cinéma.

“E o que você vê quando está no escuro e chegam os demônios?” 22

E o cinema também é um lugar de demônios, principalmente os nossos.


Em sua exposição, Luciano criou uma sequência análoga a de um filme imaginário. O
prólogo com Gertrude Stein e o sonho. A palavra de Orson Welles. A transparência
das camadas de tempo de Lilian Hellman. As perguntas sem respostas do Homem
Ilustrado. A crueldade de Macbeth. A descida aos infernos em Leão no Inverno. O
cheiro de jasmim em Pacto de sangue. A traição em Sansão e Dalila. A Carta a uma
mulher desconhecida. A ausência de Deus em O Desprezo. E, por fim, os demônios
do escuro da tela que nos sonham.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
22
Filme: NA LINHA DE FOGO (In the Line of Fire) 1993 de Wolfgang Peterson. Roteiro: Jeff Maguire

! 30
! 31
! 32
! 33
3 Circuladô

Andre Parente

TURNAROUND

é a passagem do final de uma seção da música para a próxima, que


normalmente é uma repetição da seção anterior

“I look at the world and I notice it's turning


While my guitar gently weeps”

George Harrison

Squaring the circle é um problema colocado pelos antigos geômetras cujo


desafio era o de construir um quadrado com a mesma área de um círculo. Em
1882, esta tarefa foi considerada impossível e a expressão squaring the circle
tornou-se a metáfora do impossível.

A gramática cinematográfica se esquadrinha em campo e contra campo (uma


geometria de quadrados), em panorâmicas e travellings (linhas), ou em plongés
(pontos), o círculo é uma região improvável.

Em Deus e o Diabo na Terra do Sol (1964) de Glauber Rocha uma mulher


circunda Corisco em um ato de reconhecimento, em seguida, é abraçada pelo
cangaceiro, e, juntos, giram ao som da música de Bachiana n˚5 Villa Lobos. O
movimento é lento e contínuo, como se seguisse o andamento da elegia dos
instrumentos. O contraste é imenso com a penúltima sequência do filme em
que vemos Corisco no giro da morte enquanto grita: - “Mais fortes são os
poderes do povo”.

A instalação Circuladô, do artista André Parente, projeta, em loop, o giro de


Corisco. Na repetição vemos a figura de um corpo de braços estendidos e pés
juntos girar na forma de uma cruz. A aceleração acentua a violência da morte
que insiste.

Este é o primeiro giro da instalação que reúne outros quatro: o de Édipo no


filme homônimo de Pier Paolo Pasolini, o de Thelonious Sphere Monk no filme
de Charlotte Zwerin, o giro sufi do documentário de Bill Morison e o de São
Francisco de Assis no filme de Rosselini.

! 34
Giro 1 Revolução

Corisco

“ Finalmente, há o fato, de que a relação entre guerra e revolução, a sua


reciprocidade e dependência mútua, aumentaram constantemente e que a
acentuação dessa relação se deslocou cada vez mais da guerra para a
revolução”23

Ainda que esse parágrafo de Hannah Arendt tenha sido escrito para pensar as
revoluções modernas (a americana e a francesa), podemos estender suas
implicações ao contexto político brasileiro da década de 60, em que a ideia da
revolução como promessa de liberdade surgia como oposição ao estado de
arbítrio e violência instaurado pelo governo militar após o golpe de 1964.

Comprometido com uma ideologia de esquerda e partidário de um cinema


revolucionário o jovem Glauber Rocha filma uma guerra secular entre as forças
coronelistas, religiosas e os anseios do povo. Glauber filma o desterro da seca
entre Deus e o Diabo, a perdição dos guerreiros, a celebração de um homem
santo, a fuga do homem do povo e sua busca pela liberdade além do sertão. A
ideia de revolução é sempre a de um novo início.

E justamente no giro de Corisco o início é o fim e o fim o início, o loop montado


por Parente não consente a morte, mas coloca-a no centro do círculo, em
circuito com um tempo mítico e eterno de forças que extremam o terrível
presente que resiste ao futuro.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
23
ARENDT, Hannah. Sobre a revolução pag 17

! 35
Giro 2 Acaso e destino

Édipo (1967)

A cada encruzilhada Édipo esconde os olhos com as mãos e gira para escolher
ao acaso seu destino afim de evitar aquele anunciado pelo oráculo. Como
sabemos, quanto mais o personagem tenta evitá-lo, mais o aproxima. Na
versão do cineasta Pier Paolo Pasolini, da tragédia grega de Sófocles, Édipo
Rei, a cegueira é traduzida como um gesto, o de vedar o que se vê, vedar o
crime a ser cometido, vedar ao filho o pai e o pai ao filho.

Em seu diálogo com Édipo Tirésias anuncia

" Afirmo-te, pois: o homem que procura há tanto tempo, por meio de
ameaçadoras proclamações, sobre a morte de Laio, está aqui! Passa
por estrangeiro domiciliado, mas logo se verá que é tebano de
nascimento, e ele não se alegrará com tal descoberta. Ele vê, mas
torna-se-á cego, é rico, e acabará mendigando; seus passos o levarão à
terra do exílio, onde tateará o solo com seu bordão. Ver-se-á, também,
que e é ao mesmo tempo, irmão e pai de seus filhos, e filho e esposo da
mulher que lhe deu a vida; e que profanou o leito de seu pai, a quem
matara.

Girar em torno do seu próprio crime e castigo é o destino de Édipo, no que


Pasolini recupera o movimento e gesto, a perda dos sentidos do corpo que gira
sobre si mesmo e a escuridão na palma da mão.

! 36
André insiste no mito, e, na montagem do loop, suspende o destino.

Giro 3 Improvisação

Monk

Thelonious Sphere Monk girava sempre, um giro dissonante na contagem do


seu próprio ritmo. Pianista e compositor Thelonious radicalizou o improviso e
mudou a história do Jazz. A visão do músico ao piano impressiona pelo teclar
abrupto em aparente hesitação, é como se ele atendesse a uma partitura
ditada ali mesmo, pela vibração do instante.

Em Circuladô André Parente recupera, das imagens do documentário


produzido por Clint Eastwood, Monk de pé, girando sobre si mesmo, como em
uma dança interna. Eram frequentes estes giros em lugares públicos e
tornavam evidente que o autor de Round about midnight estava em
permanente rotação como um disco.

Mais uma vez André acentua o giro ao ampliar no loop o movimento imprevisto
do artista na ginga do jazz.

Giro 4 Conservação

SUFI

Segundo o físico Richard Feynman a Lei de conservação de energia postula


que a energia não muda com a mudança da natureza, o que significa que ela
pode se deslocar no tempo e no espaço, mas permanece a mesma, ou seja, na
mesma quantidade.

! 37
De olhos abertos, com os braços até a altura dos ombros, a palma da mão
direita para cima e a palma da mão esquerda para baixo girando sobre o
próprio eixo, o giro sufi busca o êxtase do estar no mundo e fora dele. A
etimologia da palavra sufi tem sua origem no Egito Antigo e designa pureza. O
Giro Derviche liga o céu e a terra, matéria e espírito e aumenta a consciência
do corpo na sua relação com o divino. O giro possui uma dimensão de união
com o cosmos, o giro gira com o mundo e o faz girar, cada átomo e partícula
na preservação das energias.

Giro 5 Felicidade

Santo

São Francisco de Assis deu origem ao ser franciscano, e ser Francisco é o


entendimento de que muito é pouco, que a natureza é divina, que a reza é a
graça. Francisco é o santo feliz. O giro do santo no filme Francisco: Arauto de
Deus (1950) de Roberto Rosselini é feliz.

Entre suas escolhas, André Parente destaca no giro de Francisco de Assis o


giro do outro, o giro santo da comunhão de todos. No filme todos os outros
frades giram com o santo até cair, é a queda que anuncia a direção a seguir, e
a direção é Francisco.

No quinto giro o loop é o da reza, do santo, em uma prece que nos faz girar na
alegria franciscana.

O loop e o círculo

Os loops criados por André Parente não são meros efeitos, são os elementos
que pontuam e constituem o círculo. É preciso reconhecer a montagem do
conjunto para observar que o giro de cada personagem ao se combinar com o
outro não constitui repetição, mas diferença, como em uma dança em que
todos dançam, mas cada qual no seu ritmo, em uma só roda.

Na composição da instalação Circuladô André Parente coloca o giro Sufi como


elemento que orquestra a relação entre os cinco personagens. Esta regência
se explicita com o som, onde o siflar da gamela tibetana se mistura aos sons
dos documentários e as composições de Smetak, Guilherme Vaz e de
Karlheinz Stockhausen. A escala das projeções e a música que se repete nos
implicam no mito e no místico, e o disco, ao alcance de nossas mãos, nos
permite revolucionar este universo do qual nos tornamos parte enquanto
rezamos ou dançamos.

! 38
São muitos os giros de Circuladô. Na exposição Situação Cinema, no Museu
de Arte Moderna do Rio de Janeiro em 2007, quatro pequenas telas
mostravam, lado a lado, os loops dos quarto personagens. Ao espectador cabia
percorrer lentamente cada giro e relacioná-los. Em 2011, no Museu da Imagem
e do Som de São Paulo, uma montagem em escala surpreendente conferiu a
instalação um aspecto de cinema imersivo. Ao mesmo tempo, pré e pós
cinema, um transcinema na forma de um dispositivo interativo disponível ao
movimento, mais ou menos intenso, das mãos que giram o disco diante das
grandes imagens. Nesta versão nós habitamos o centro de um gigante
zootrope e giramos o que nos gira.

! 39
4 Aleph

Marcio Botner e Pedro Agilson, 2013

Instalação (fotografias e vídeo), 165x165 cm

“Surgiu do conto do Borges a ideia do cinema como um Aleph, o ponto que


contém todo o universo. Procuramos mostrar um infinitésimo do abarcado por
um olhar através desse ponto.

O trabalho, na concepção original, deveria ocupar toda uma sala, buscando


uma imersão total. O formato apresentado na ArtRio consiste em 90 frames de
filmes que passaram pela nossa emoção, montados em molduras de 15x15 cm
e organizados em torno de uma caixinha preta com um orifício central que
permite a visão de um vídeo rodando num celular em seu interior.

No vídeo, uma variante do que temos usado em outros trabalhos, mostra um


olho se movimentando incessantemente para várias direções.

O olho também é a referência do centro da montagem com os frames de Um


homem com uma camera/Vertov, Un chien andalou/Buñel, Laranja
mecânica/Kubrick, Psicose/Hitchcock e 2001/Kubrick (o olho do HAL9000).”

! 40
4 Desnarrativas

A narrativa clássica do cinema é recortada, modulada, fragmentada nas


instalações contemporâneas. Os artistas constroem narrativas mínimas com
uma só ação ou sem nenhuma ação, personagens em várias telas são
convidados a repetirem as mesmas frases nas suas línguas de origem. Muitos
são os usos contemporâneos dos arquivos fotográficos e cinematográficos
apropriados pelos artistas.

1 The film that is not there Kika Nicolela

2 Assínstotas Ana Costa e Silva

3 Atempo João Modé

4 Cinema atmosférico Vicente de Mello

5 Suspense Katia Maciel

1 The film that is not there

Kika Nicolela

THE FILM THAT IS NOT THERE


Kika Nicolela
2012, installation, variable dimensions

THE FILM THAT IS NOT THERE desmembra a idéia de um longa-metragem


que nunca virá a existir. Com base em um roteiro de longa-metragem
desenvolvido durante 3 anos, a artista convoca atores a participar de um teste
de elenco. Fornece cenas deste roteiro e grava os testes em estúdio com os
atores sozinhos ou em duplas. Mas ao contrário de um teste de elenco comum,

! 41
em que o objetivo é escolher um ator para atuar um determinado papel em uma
filmagem posterior do roteiro, o próprio teste de elenco é a base da obra. O
intento não é escolher um ator para um papel, mas usar todos os atores que
foram gravados, todas as versões de um mesmo personagem. O produto final
é uma instalação multi-canal apresentada em looping em um museu ou galeria.

Com o apoio de 4 residências artísticas internacionais, a artista gravou o


projeto na Austria, Coréia do Sul, Singapura e Suíça, com a participação de
atores locais representando em sua língua nativa – uma parte importante do
processo foi traduzir e adaptar o roteiro, originalmente em português, para a
língua de cada um desses países. Versões ainda em desenvolvimento do
projeto foram apresentadas nesses países. A última parte do projeto foi
gravada no Brasil e contou com a participação de mais de 50 atores.

2 Assíntotas

Ana Costa e Silva

Pensar Assíntotas é ir além da matemática da forma amorosa. A matemática


da combinatória entre dois. Quantos cabem em cada um de dois? Um,
nenhum, cem mil lembrando Pirandello entre a multiplicação e a loucura. Afinal,
cada um de nós é um, nenhum, cem mil. E se nos colocamos em relação com
um outro a equação é o infinito. Entre nós e tramas Anna nos emaranha,
distorce, arranha com o que não pode ser teia nem rede, mas linhas que
tangenciam o amor e a morte. História e vazio, projeção e real, trabalho e
sucesso, vida e suicídio. Na matemática dos paradoxos os fragmentos de uma
relação na aflição de suas variações e combinações não conseguem resolver a
terrível questão - Quem é que você quer que eu seja?

A montagem em suas sequências e repetições acentua a disjunção entre os


sujeitos. O casal e a não conversa e a conversa com a entrevistadora que
alinha e desalinha seus personagens. Em um jogo de cena, para citar nosso
Eduardo Coutinho, Ana apresenta um jogo de invenção que se inicia em uma
tela, duas telas, três telas, dos quartos para a sala de espetáculo continuando o
sonho e o pesadelo, e, a solidão de vidas sem respostas. O medo, o prazer e a
dor de dias de sono, pressão baixa e tomate.

Eu sei que vou te amar do cineasa Arnaldo Jabor, A invenção de morel de Bioy
Casares, O copo de cólera de Raduam Nassar, Fragmentos do Discurso
Amoroso de Roland Barthes, filmes e escritos são referências da escrita de
Ana na intensidade com que mistura o pensamento amoroso a uma forma de
cinema expandido, um transcinema que conjuga a lógica do teatro, a
arquitetura da instalação e o texto como discurso poético que insiste no escuro
do quarto, do filme e da sala de exibição.

! 42
! 43
! 44
3 Mínimas: O cinema-desenho de João Modé

E se o cinema fosse além da sua arquitetura? Se, ao contrário da sua


afinidade pelo monumental, criasse um lugar mínimo, na simplicidade do gesto,
como em um desenho?

Atempo

João Modé 2007

solidão
desenho
micro cinema
cinema de observação
no acontecimento mínimo

Um conjunto de 12 filmes curtos retratam a passagem do tempo em uma ilha


na Bretanha quase deserta. Em Belle-île, no outono de 2007, em uma
residência artística, João Modé pensara em conjugar solidão, observação e
desenho, mas descobre, com uma pequena câmera na palma da mão, um
micro cinema.

Em 2008, na XXVIII Bienal de São Paulo, o artista projeta em uma pequena


arquitetura de papelão, parecida com a maquete de uma sala de espetáculo,
uma sequência de filmes que intitula Suite Belle-île, uma homenagem ao
silêncio e solidão experimentados pelo artista em sua residência. A experiência
proposta constrói um dispositivo de microcinema, em que a arquitetura da
projeção e o filme projetado desconstroem a dimensão monumental
cinematográfica levando o espectador a assistir a um filme como se fosse um
pequeno gesto que ocorre ali diante dele, como se olhasse pela fresta do
tempo.

Eu não me considero nem fotógrafo nem videomaker, apesar de ter


alguns trabalhos com fotografia e com vídeo também. Eu me considero
mais um ladrão de imagens, sabe, acho que eu fico roubando imagens
do mundo.24

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
24
Aula de João Modé no curso “Artistas de Cinema” de Katia Maciel, 05 de junho de 2013.

! 45
Quase sempre com a câmera fixa e sem muita edição, João registra, ali no
instante, o que de alguma forma o olho desenha na minuciosa observação da
Suite Belle Île.

Durante a Bienal, a maquete de cartolina era um pequeno dispositivo que se


apoiava em um deck de madeira estendido, vizinho ao lado de fora verde do
parque do Ibirapuera. Para ver, era preciso se afastar ou se aproximar, ou se
curvar, ou se sentar, ou seja, era preciso encontrar o lugar do corpo para
encaixar o olhar: depois,restava ao espectador aderir à quase imobilidade do
filme, permanecer, silenciar, calar, se render ao pequeno mundo que insistia
em nos capturar em uma ilha de pequenas imagens sem ações visíveis a olho
nu. Experimentávamos, então, a solidão do artista na contemplação do tempo
que passa sobre todas as coisas. Em seu isolamento, João Modé torna-se
parte daquilo a que assiste. Solidão compartilhada entre o murmúrio e o atrito
entre o que se vê e o que se ouve, mesmo nos filmes mudos.

No começo da fotografia, artistas, como Degas, buscavam com a agilidade dos


pinceis fixar o instantâneo do tempo em figuras femininas saindo do banho ou
amarrando sapatilhas. Nos filmes de João, o movimento da imagem tenta fazer
resistir o que na figura insiste como traço, fundo ou luz. Insistir no que se
mostra é revelar a forma do que se vê. O movimento precisamente enquadrado
assume os contornos de um desenho e a câmera revela o traço de João Modé.

Eu chamo os filminhos de Suite Belle-île porque pensei-os quase como


um cd de músicas. Apesar de só dois terem sons, são quase todos
mudos, sem som, eu acho que tem uma ideia como se formassem um
cd de música. 25

Ao dizer música, João se refere ao ritmo e à sequência, ao ritmo entre as


imagens e à sequência de 12 filmes. O mar, mesmo no filme mudo, é ritmo, no
cintilamento das ondas, no vai e vem da espuma. Os filmes mostram o mar e
seus efeitos. Na ilha tudo é mar, a terra é efêmera e marca da passagem das
marés.

Continuei fazendo os desenhos o tempo todo que eu fiquei na ilha e aí,


fazendo os desenhos, me deu vontade de começar a filmar algumas
!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!
25
idem

! 46
coisas, tipo essas coisas. Mas eu continuei desenhando e fiz algumas
caixas depois, alguns estojos, com esses desenhos.

Mesmo nos desenhos, o gosto é de maresia. Conchas encontradas,


fragmentos de metais, vestígios guardados cuidadosamente em caixas como
estojos de guardar. O trabalho de João opera com uma arqueologia do olhar,
indo além do registro do que se vê, mostrando o que foi visto.

Filmes e desenhos realizados por João Modé em Belle-Île se acumulam aos


vestígios que mostram, como os grãos de areia ou restos de conchas, os
trabalhos do artista como camadas do tempo que habitam o que vemos. E o
que vemos não é mera paisagem, retrato de geometrias e luzes, ou mesmo a
origem da forma, como nas telas de Cézanne: é a terra como organismo, um
corpus orgânico vivo, a vida na morte do molusco, na persistência da pegada
na praia. E no ritmo vivo, que insiste no que vemos, subsiste como forma seu
próprio desenho, que não antecede o movimento, mas é inerente a ele.

Suite Belle-Île

Conversa poética com Atempo de João Modé

1 Vagues roses [cadeau]

sequência de ondas ao por do sol


o rosa espelha o céu,
ondas em mim
Cadeau da ilha

! 47
2 Anse du Vazen
caminho no areal da maré baixa
sigo as pegadas
cachorros, gaivotas e bengalas
mar estendido

! 48
3 Le Grand Phare
farol à noite
e suas distorções
faixas de luz no escuro
cada farol tem sua assinatura
intensidade em movimento
código da luz do escuro

! 49
4 Last day of magic [alone]
restos de construções militares
longe
zoom
perto

! 50
5 Canto
som
passarinho canta no telhado
passa o carro 1
passa o carro 2
pássaro voa

! 51
6 Nuca
pedra no mar
ondas batemna pedra
pedra é volume
espuma
no escorrer da água

! 52
7 Música
som
de cima vemos
ondas e suas direções
água bate e volta
rebate
revolta

! 53
8 Arquitetura em suspensão
Passarinho voa parado
Mergulha
Surge a Arquitetura
Suspensa

! 54
9 Molusque et mouches
molusco morrendo
movendo as moscas
resto
universo

! 55
10 Paraneto
encontrei uma coisa
não sei o que é
teia forra o espinho
pólen preso na rede
para Ernesto Neto

! 56
11 Atempo
praia de micro pedras
maré baixa
pegadas se acomodam no micro universo
movimento no tempo

! 57
Pranayama
dois dias
mar do tempo
um lugar
desenho de pedras
marés
desenho
respira

João investigador de lugares no desenho de micro e macro universos


No gesto dos penhascos
Nas paisagens de moluscos
Filmes que se acumulam nas marés
Filmes exibidos na mínima dimensão
Filmes sem tempo
Atempo

! 58
4 Atmosfera

Vicente de Mello

A palavra atmosfera tem origem grega e mistura vapor e esfera, a forma


gasosa que envolve os corpos.

Quando Vicente de Mello me disse pela primeira vez que tinha uma série de
trípticos intitulada Cinema Atmosférico me lembrei de uma exposição que
havia visitado em 2004 no Musée d’Orsay intitulada Mouvements de l'air
Etienne-Jules Marey (1830-1904) photographe des fluides que reunia as
fotografias dos três últimos anos do médico, fisiologista e inventor da
cronofotografia (1899 à 1901) em que se dedicou a registrar o movimento do
ar. Ou seja, ao ouvir Vicente pensei em um cinema feito de ar, literalmente.
Mas o que o artista dizia estava invertido, o cinema que propunha era o ar feito
de cinema como veremos a seguir.

! 59
! 60
! 61
! 62
! 63
! 64
5 Suspense.

Katia Maciel

Incerteza. Ansiedade. Suspensão. Estados possíveis do corpo quando sujeito a


situações inesperadas. Suspense é também gênero cinematográfico.

Sinopse

Mulher perdida no paraíso envia fotografias como pistas para a sua impossível
localização.

SUSPENSE é um projeto que se modifica a cada exposição por incorporar, a cada vez,
novos trabalhos. Como na origem do romance quando a cada dia uma parte da
narrativa era revelada pelo autor, realizo um cinema em capítulos. A combinação entre
as imagens implica no reconhecimento da máquina cinema, do fotograma à imagem
em movimento, dos dispositivos do início do cinema às formas interativas
contemporâneas. O espaço instalativo experimentado pelo espectador em seu
percurso o conduz por momentos diferenciados da história do cinema com suas
diferentes estratégias de visualização. O olhar que encontra a palavra luz em
movimento na caixa, não se confunde com o olhar especular da instalação Verso ou
com aquele que assiste ao movimento pendular no vídeo Vulto. São situações que
implicam o espectador de maneiras distintas nas imagens espacializadas. Há uma
condição de suspensão, não apenas no corpo que vemos, mas também no corpo que
participa.

! 65
O corpo que vemos é feminino, mas anônimo, nunca vemos o rosto da personagem
que acompanhamos no conjunto de trabalhos da exposição.

A montagem da exposição Suspense relaciona a arte e o cinema em suas dimensões


estéticas, conceituais e relacionais.

A primeira exposição Suspense aconteceu na Galeria Zipper em São Paulo com os


seguintes trabalhos:

Cartazes

! 66
! 67
Os cartazes são divulgados progressivamente na internet e em revistas com o
objetivo de gerar um estado de suspense em torno da exposição que investiga
a questão do gênero cinematográfico como conceito deflagrador das obras em
exposição. O processo de divulgação no circuito de arte integra e revela a
estratégia da exposição.

A série de cartazes são fixados na exposição como uma narrativa visual em


que cada cartaz estabelece uma relação precisa entre o verso e a imagem.

! 68
2

Vulto (videoinstalação)

Projeção de uma mulher pendurada em uma árvore em movimento pendular


marcando a repetição do tempo.

Estar de costas para o espectador é de alguma maneira estar de frente para a


natureza. Estou atada por nós ao balanço do ar nas árvores que me sustentam.
Em outros vídeos e instalações, como o Mareando, Ondas: Um dia de nuvens
listradas vindas do mar ou Arvorar a posição do espectador diante da imagem
repete a mesma situação do vídeo, na minha presença ou ausência. Implicar o
espectador no que se vê é muitas vezes estrutural à obra, e isto não se deve
apenas as circunstâncias que podem ser interativas ou não, mas a própria
construção da imagem e a sua disposição no espaço instalado. Sempre me
senti observada pelas imagens fossem elas fixas ou em movimento, em
pinturas, fotografias ou filmes. Produzir imagens é retornar ao ver e ser visto,
desviando e distorcendo esta operação sensível, simbólica e estética. Vulto é
um modo de repetir o infinito no corpo. O vídeo em loop mostra o movimento
pendular do meu próprio corpo suspenso, pendurado por um fio em uma
árvore. A floresta e a névoa tornam a imagem mistério e suspense uma vez
que não sabemos o que acontece; ao mesmo tempo em que esperamos que
algo aconteça. Vulto é o acontecimento por vir, a imagem por vir. A condição
da repetição na maioria dos meus trabalhos é de fazer o tempo resistir ao
tempo, o loop nunca é uma figura anexa, mas a própria essência do trabalho
poético que opera na imagem. Em Meio cheio, meio vazio entorno a água de
uma jarra em um copo que permanece sempre pela metade. O instante é
duração e o loop é portanto expressão, o que passa e não passa é fluxo. O

! 69
paradoxo contido neste trabalho é o do tempo. Em Timeless mostro uma
ampulheta que verte a areia nas duas direções em um tempo que não passa
com o movimento. Variação e não variação na duração e na repetição. Como
duração a imagem se estende como um instante que permanece porque não
passa nunca, insiste. O registro de uma ação em loop implica em ligar as
bordas do tempo criando um infinito presente. Mas a imagem não é puro efeito,
ela é o registro do que nela se pensa e o que se pensa é o que há na variação
que não varia, ou o que varia na não variação, no paradoxo da ação e do
sentido...

Verso (Instalação interativa)

Um espelho colocado diante do jardim. A imagem do espelho, capturada em


tempo real, inclui o visitante que se vê com a imagem do jardim ao fundo. Esta
imagem é projetada, também em tempo real, no verso do espelho que funciona
como uma tela. Os espectadores assistem, do outro lado do espelho, a imagem
do visitante enquanto ele se vê.

A experiência especular esta na origem da invenção das imagens técnicas, do


seu uso nas câmaras escuras as instalações de artistas como Dan Graham
muitos trabalhos operaram com seus efeitos.

Nesta instalação há um certo atravessamento da imagem, como se o que


vemos fosse recuperado pelo próprio dispositivo da visão. Como em um filme
de Suspense somos vistos, mas não vemos que somos vistos, não vemos a
imagem que produzimos.

! 70
4

Espreita e Espera (Duas Fotografias)

As duas fotos aludem a ações suspensas. Em Espreita a mulher está quase


inteiramente atrás da árvore e forma uma figura orgânica com o tronco. Em Espera a
mulher flutua fixa no ar. A presença das fotografias no conjunto da exposição Suspense
remetem ao uso das imagens fixas no processo cinematográfico, por um lado ao
fotograma e por outro ao still.

A relação entre as imagens no espaço contribuem para a ideia da fragmentação


narrativa de um filme possível.

! 71
5

Caixas de ver

Dispositivos especulares no qual experimentamos dois poemas visuais.

As duas caixas são objetos acionados pela participação do espectador.

Caixa de ar

A caixa é de acrílico transparente e em seu interior vemos as letras A e R


impressas em dois dados que se movimentam com o toque dos visitantes.

! 72
Caixa de luz

No interior de uma caixa espelhada suspensa vemos um dado com a palavra


LUZ circular a partir do movimento criado pelo visitante ao deslocá-la. A
situação especular dentro da caixa iluminada multiplica a palavra em um jogo
ótico. Nos vemos vendo no interior espelhado da caixa.

! 73
6

SUSPENSE

ANDEI SEM PARAR NA NÉVOA DE ÁRVORES.

ME PERDI SEM QUERER VOLTAR.

SEGUI MEUS PASSOS,

AOS POUCOS,

E DE CIMA,

ENXERGUEI UM CAMINHO.

AS FOLHAS TREMIAM

E O BATER DAS ASAS ME SUSPENDEU UMA VEZ MAIS.

PREFERI ME FIXAR NO BALANÇO DOS GALHOS,

NO MOVIMENTO PENDULAR

MEU CORPO EXPANDE OS SENTIDOS DO TEMPO

PERCO O ESPAÇO.

O QUE VEJO E NÃO VEJO

SE APAGA NA IDA E VOLTA DO MEU PESO.

LOGO ME SOLTO DO ABRIGO DO TEMPO

ME ENCOLHO NA TERRA

CAMUFLANDO O QUE SINTO.

O SOL ARREPIA

E SIGO

LONGA E ARREDIA

PELOS VESTÍGIOS DO DIA.

! 74
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! 79
Resultados

Publicações 2013/2104

- Livros
José Oiticica Filho: As borboletas voam no escuro. Rio de Janeiro: Editora
+2, 2014.

Instruções para filmes (ebook org com Lívia Flores). Rio de Janeiro: Editora
+2 e Circuito, 2013.

Poesia e Videoarte (com Renato Rezende). Rio de Janeiro: Circuito, 2013.

- Artigos

SUSPENSE in Narrativas Sensoriais, Osmar Gonçalves (org), Rio de Janeiro:


Circuito, 2014.

Poema-vídeo in Poesia Visual, Alberto Saraiva (org.), Rio de Janeiro: Fase 10,
2013.

Assovio no vento escuro: O diálogo no cinema nordestino in Imaginação


da terra: Memória e utopia no cinema brasileiro, Heloísa Maria Murgel Starling
e Augusto Carvalho Borges, Belo Horizonte: UFMG, 2013.

À Margem in Cinema/Deleuze, Andre Parente, São Paulo: Papirus, 2013.

Poesia e videoarte (com Renato Rezende) in Poesia e Videoarte, Katia Maciel


e Renato Rezende (org.), Rio de Janeiro: Circuito: 2013.

Retorno e Repetição (com Renato Rezende) in Poesia e Videoarte, Katia


Maciel e Renato Rezende (org.), Rio de Janeiro: Circuito: 2013.

Instruções para filmes (com Livia Flores) in Instruções para filmes, Katia
Maciel e Livia Flores (org), Rio de Janeiro: +2 Editora, 2013.

BANG de Ana Vitória Mussi in Instruções para filmes, Katia Maciel e Livia
Flores (org.), Rio de Janeiro: +2 Editora, 2013.

Mínimas: o cinema-desenho de João Modé in Instruções para filmes, Katia


Maciel e Livia Flores (org.), Rio de Janeiro: +2 Editora, 2013.

Participação em seminários 2013/2014

! 80
Palestra Suspense, Pós-cinema, Pós-fotografia: O devir das imagens
contemporâneas em arte, Universidade Federal do Ceará, 15-17 abril 2014.

Palestra Repetir é esquecer o esquecimento, Seminário Cinemáticos:


Cinemas de artistas no Brasil. Museu de Arte do Rio – MAR/Parque Lage,
outubro de 2013.

Palestra Suspense, Mesa “Trans(...), transduções e traduções” do XIX


Encontros em Arte: lugares, ações, processos. Escola de Belas Artes
(EBA/UFRJ), 8 de outubro de 2013.

Palestra Instruções para filmes, Seminário Internacional/Performances


Audiovisuais/Mostra de Vídeos: Arranjos experimentais Cultura Numérica
Audiovisual. Escola de Comunicação e Arte (ECA/USP). 20 de junho de 2013.

Organização de evento 2013

Arte em circuitos: Publicações de Arte no Brasil

Organização

Casa Daros

2014

Exposições 2013/2014

- Individuais

2014

Répétiton(s)

Maison Européenne de la Photographie

Paris

Curadoria: Jean-Luc Soret

2013

SUSPENSE

! 81
Galeria Zipper

São Paulo – SP, Brasil

Curadoria: Paula Alzugaray

- Coletivas

2014
Em torno de
Mostra Carioca

Casa das Onze Janelas


Belém
Museu Dragão do Mar
Fortaleza
Videoinstalações: Uma árvore e Inútil Paisagem

2014
Singularidades/Anotações: Rumos Artes Visuais 1998-2013
Itaúcultural
São Paulo - Sp
Instalação: Arvorar

2014
Edital Prêmio Honra ao Mérito Arte e Patrimônio 2013
Paço Imperial
Rio de Janeiro
Instalação: Mar adentro

2014
Museu Dragão do Mar
Vídeo: Delta

2013

! 82
MAC MOSTRA VIDEOARTES

Museu de Arte Contemporânea (30 de junho)

Niiterói – RJ, Brasil

Curadoria: Coletivo Filé de Peixe

Vídeo: Delta

Video Arte 2013

Oi Futuro (12 de janeiro a 31 de março)

Belo Horizonte - BH, Brasil

Curadoria: Alberto Saraiva

Video: Colar

Prêmio

Prêmio Honra ao Mérito Arte e Patrimônio 2014

! 83

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