O medo é caracterizado no dicionário como uma sensação desagradável
desencadeada pela percepção de perigo, real ou imaginário. A descrição é tão
subjetiva quanto o próprio sentir, afinal o sentimento chegará nas pessoas de formas diferentes. Sendo assim, o medo será a manifestação do instinto natural do ser humano de autopreservação, isso pode desencadear uma serie de interpretações, tanto para a atuação quanto para a própria escrita dramatúrgica. No campo das Artes Cênicas a mensagem a ser transmitida na leitura de uma peça vem diretamente da escrita proposta pelo autor, sem a presença de uma figura interpretando aquela personagem. Contudo a leitura se torna subjetiva quando em contato com o sentir, o que me transmite medo, não necessariamente será o medo daquela personagem. A primeira peça que lemos foi Perdoa-me por me Traíres do autor Nelson Rodrigues, a peça muito bem estruturada traz personagens potentes, assim podemos notar que uma entre todos os envolvidos na dramaturgia se destaca por sentir medo de absolutamente tudo que a retire da rotina padrão. Glorinha é uma personagem que traz todas as características de uma menina em sua fase de descobertas e em busca de vivenciar experiências. Contudo por mais que seja forte a imagem da menina curiosa e vivida entra em contraponto com a característica mais forte que ela carrega, o medo do tio Raul. A presença dessa figura desperta na personagem esse medo irracional por tudo que é novo e que a faça fugir da rotina importa pelo tio, que o mesmo sente prazer em desmascarar as mulheres que traem a confiança dos homens, incluindo o mesmo. Assim a figura de Raul toma um poder de controlador muito forte na própria peça, mesmo sem se mostrar, apenas com as memorias e falas de Glorinha e Nair. Entretanto o medo do personagem é colocado num parâmetro irracional, visto que Glorinha e Nair são adolescentes que buscam viver intensamente. Chegando a transparecer pra mim após algum tempo que o tio não seria essa figura pintada pela personagem. Todavia quando o personagem entra em cena ele se mostra alguém pior do que Glorinha pudesse descrever, até por que a própria personagem não sabia que o tio havia matado sua mãe. A dimensão tomada pela dramaturgia após ser revelada a verdade por de trás da morte da mãe de Glorinha é surreal, pois quando nos foi apresentado o real culpado pela morte pude ver a dimensão que o tio estava tomando. O medo agora para personagem Glorinha é algo real, tanto para nos como leitores quanto para a própria personagem que se vê sem saída do cruel destino que a espera. Quando Raul coloca o real motivo para ter cometido o ato, será o momento onde podemos ver que o desejo de posse e de luxúria para com a personagem é grande. Após a morte da mãe de Glorinha esse desejo se transferiu para a filha, que como falado no texto ela seria idêntica a mãe. Isso desencadeou o sentimento de perseguição do próprio personagem, que levou ele a impor seu controle na vida de Glorinha. A mesma se vê no lugar de impotência para com a revelação, pois seu próprio tio almeja retirar sua vida, por conta das atitudes desvirtuosas que toma a personagem, caracterizando assim um não merecimento da própria vida. Tomada pelo medo Glorinha não vê outra escolha se não elaborar alguma forma de escapar daquela situação. O medo que se encontra agora na personagem está ditando todas as suas atitudes e consequentemente esta tomando forma no próprio clímax da dramaturgia. “TIO RAUL: Sabes! Tu me odeias? É ódio? Quero saber: tens ódio de mim? (pausa) Ou é mêdo? Sim, claro: sempre tiveste mêdo de mim, não é verdade? Eu te inspiro mêdo? GLORINHA: Respeito. TIO RAUL: (Num berro) — Mentira! GLORINHA: (Num soluço) — Juro! TIO RAUL: (Atônito) — Nem amor, nem ódio, nem respeito: mêdo, apenas! Agora e sempre o mêdo! (com surdo desespero) Mas se não respondes, se não dizes nada, hás de querer saber porque eu te contei tanto, porque eu te contei tudo! Sim, sua cachorrinha, o que eu não disse a minha mãe, o que eu não diria a meus irmãos, a ninguém, eu disse a ti! (violentamente) E por quê? (com um meio riso soluçante) Eu te darei a explicação (Atônito) — Nem amor, nem ódio, nem respeito: mêdo, apenas! daqui a pouco... Primeiro responde: tens visto a Nair?” (Perdoa-me por me traíres, Nelson Rodrigues, 1957, p. 27)
Assim a personagem que passa a peça inteira falando o quanto teme o
próprio tio, caracteriza agora como uma relação de respeito, claro que a mesma está buscando meios de escapar da situação posta por Raul. Isso se da pelo fato do personagem almejar que a filha tenha o mesmo destino que a mãe. Chega a trazer um teor mórbido ao sentimento romântico do próprio tio, quando o mesmo está decidido a matar as mulheres que ele julga amar, pelo simples fato delas não o amarem de volta e mentirem para ele. Essa relação de amor incestuoso para com a sobrinha se torna a grande escapatória da personagem, quando a mesma se coloca para retribuir o amor do próprio tio, isso faz com que a personagem tome a escolha que concluirá a dramaturgia. Quando Glorinha coloca que Raul poderia morrer com ela é o momento onde podemos notar que o medo da morte se ausenta dando lugar para o pensamento estratégico de escapatória da situação. Quando vemos que a personagem consegue escapar é o momento que noto na dramaturgia que a personagem sai do lugar de ter medo para o de viver os momentos que o foram privados. Sendo assim, Glorinha agora se sente livre para viver e sentir o mundo sem a jaula de medo que seu tio colocava em volta dela. Contudo o que caracterizava e movia o medo irracional que Glorinha tinha no inicio da peça? Era o medo do que o tio faria com ela? O medo de manchar sua própria imagem perante o tio? O medo de morrer com Nair? O medo de viver? Esses questionamentos que são colocados por mim na minha própria interpretação do texto. Isso me leva para a definição inicial sobre o medo que levanto no inicio da própria resenha. O sentimento é subjetivo e será ativado sempre que a gente sentir o perigo, seja ele moral ou físico, real ou imaginário. Sendo assim podemos trazer novamente a subjetividade do sentimento, assim nos levando para a segunda peça que foi O santo Inquérito do autor Dias Gomes. O próprio titulo nos transporta para uma época onde o medo era utilizado como ferramenta de controle, mas obviamente o sentimento estaria ligado a uma pratica muito recorrente da época, a culpa. A inquisição se utilizava muito da prática de auto culpa que desencadeava o medo do inferno. Esse medo nascia das confissões que as pessoas eram obrigadas a dar para a igreja, o que nos coloca numa falta de privacidade. A falta de intimidade misturada com a culpa do julgamento dos ditos representantes, da vontade divina, caracteriza um sentimento de medo, onde absolutamente qualquer pensamento ou ação que os iluminados terrestres julgam ser heresia para com a palavra divina. O medo se instala a partir das histórias contadas pelo povo que vivencia ou vivenciou essa busca incansável pelo diabólico. Contudo o que não é maléfico e bom demais também será caracterizado como uma ferramenta do diabo para causar o mal sem ser notado, sendo assim, quais atitudes a igreja espera de seus fieis? Podemos notar que a personagem Branca Dias, a nossa mocinha e protagonista, existiu com essa bondade dita diabólica pela igreja. Entretanto a mesma foi interpretada por mim como uma personagem simples e pura, mas que não entende a dimensão da inquisição, o que a coloca em situações difíceis, como a confissão de certas atitudes vistas como praticas inocentes pela própria Branca. Todavia é natural pensar que a minha interpretação sobre a personagem caia na subjetividade da primeira impressão, ou seja, sou apenas uma pessoa tentando entender outra pessoa, o que me coloca no lugar de julgador do caráter, sendo assim, uma referência direta para o próprio Padre que se coloca dentro de um confessionário para julgar o que seria certo ou errado das atitudes alheias. Caracterizar o trabalho do Padre como um juiz de valores nessa época é algo simples demais para