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ISSN: 1517-4115
revista@anpur.org.br
Associação Nacional de Pós Graduação
e Pesquisa em Planejamento Urbano e
Regional
Brasil
Diniz Bastos, Camila; Nunes Coelho Magalhães, Felipe; Marinho Miranda, Guilherme;
Silva, Harley; Bosco Moura Tonucci Filho, João; de Moura Cruz, Mariana; Lucena
Velloso, Rita de Cássia
Entre o Espaço abstrato e o Espaço diferencial: ocupações urbanas em Belo Horizonte
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 19, núm. 2, mayo-agosto, 2017,
pp. 251-266
Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional
Recife, Brasil
Harley Silva A, B, E, F
Universidade Federal de Minas Gerais, Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Belo Horizonte, MG, Brasil
Resumo: O artigo aborda as ocupações urbanas em Belo Horizonte a partir das formulações
de Henri Lefebvre sobre a produção do espaço e a vida cotidiana. Ao refletirmos sobre as experiências das
ocupações, buscamos enfatizar suas dimensões relacionais e processuais, atentando-nos à sua materialidade
e ao seu cotidiano vivido. Para entender em que medida as ocupações podem engendrar diferenciações
espaciais, circunscrevemos seu percurso histórico em Belo Horizonte segundo suas dinâmicas e tensões,
atentos às especificidades da produção do espaço nas mesmas. Discutimos também as contradições entre
o privado e o comum quanto à propriedade da terra, ressaltando os modos pelos quais o espaço abstrato
se reafirma nas ocupações. Procuramos ressaltar as ocupações como tensionadas entre o espaço abstrato e
o diferencial, como uma prática espacial intermediária entre a dominação e a apropriação: espaço político
contraditório, que atualiza o debate sobre a produção do espaço urbano no Brasil contemporâneo.
Contribuição de cada autor/a: A. fundamentação teórico-conceitual e problematização; B. pesquisa de dados e análise estatística; C.
elaboração de figuras e tabelas; D. fotos; E. elaboração e redação do texto; F. seleção das referências bibliográficas.
1 Este artigo é produto de debates, investigações compartilhadas e de um esforço de escrita coletiva no âmbito do Grupo de Estudos Henri
Lefebvre (GEHL/UFMG). O GEHL/UFMG organizou-se desde 2003, fundado pelo Prof. Roberto Luís de Melo Monte-Mór (FACE/UFMG), com
o propósito de estudar a obra de Henri Lefebvre, em especial a problemática urbana, nas diversas configurações que esse tema assume
nos textos desse pensador. O GEHL reúne na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professores e estudantes de graduação e pós-
graduação em economia, geografia, arquitetura e direito. Entre 2003 e 2015, em suas diversas formações, o GEHL vem participando dos
Encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR) por meio da organização
de sessões livres junto a outros pesquisadores da obra lefebvriana no Brasil. Nos últimos anos (2015-2017), o GEHL tem atuado no sentido de
articular a teoria lefebvriana aos processos de produção do espaço urbano brasileiro.
2 An English version of this article is being prepared by GEHL/UFMG and will be available for download in the group’s Academia.edu profile:
https://ufmg.academia.edu/GrupodeEstudosHenriLefebvre
DOI: https://doi.org/10.22296/2317-1529.2017v19n2p251
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Introdução
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como realidade empírica e como categoria de análise. Trata-se de passar dos produtos
(descritos, enumerados) à compreensão da produção: o espaço (social) é um produto
(social) e não uma coleção de coisas e objetos (espaço físico) ou um receptáculo vazio
e inerte a ser preenchido (espaço mental). A produção do espaço religa e coordena os
aspectos da prática espacial.
Para Lefebvre, o capitalismo só conseguiu atenuar suas contradições internas e
sobreviver graças à sua permanente expansão e à passagem da produção de coisas no
espaço à produção do próprio espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que a produção
do espaço está intimamente ligada à reprodução do modo de produção capitalista,
englobando os níveis da reprodução bio-fisiológica familiar, da reprodução da força
de trabalho e da reprodução ampliada das relações sociais de produção.
O espaço abstrato, em Lefebvre (2000), corresponde à expressão espacial do tra-
balho tornado abstrato pela produção capitalista sob o controle do Estado moderno.
O espaço abstrato, formal e quantificado, é simultaneamente homogêneo (o que vai
na direção da negação das diferenças, sem, contudo, jamais eliminá-las por comple-
to), fragmentado (pulverizado pela propriedade privada, funcionalmente segregado)
e hierarquizado (organizado em termos de relações centro-periferia de dominação).
Ocupado, controlado e orientado para a reprodução das relações sociais de produção,
ele consolida uma lógica burocrática de controle e repetição. Espraia-se, portanto,
por todo o planeta, negando as diferenças espaciais: as que provêm da natureza e da
história, assim como aquelas originárias do corpo, das idades, dos sexos, das etnias.
Como amplamente reafirmado nos estudos urbanos e na geografia humana das
últimas décadas (SOJA, 1993), o espaço não se situa no capitalismo como lugar pas-
sivo das relações sociais, mas se revela ativo (operatório e instrumental) ao exercício
das hegemonias. Evidentemente político e estratégico, ele é um meio de produção e
de controle, mas que escapa parcialmente aos que dele se servem, aos que o engen-
dram (o capital, o Estado). Isso se deve ao fato de que mesmo o espaço abstrato con-
tém também suas contradições internas (entre quantidade e qualidade; globalidade e
fragmentação; homogeneidade e diferença; entre o que é concebido e o que é vivido).
No entanto, em meio a essas contradições dos espaços, Lefebvre (2009) chama
a atenção para a importância de novos movimentos sociais, não mais restritos às
demandas em torno do mundo do trabalho, que questionam o uso e a organização
capitalista do espaço, atentos às problemáticas da reprodução social e da vida coti-
diana. Tais movimentos urbanos mostram que o espaço não é apenas econômico e
subordinado ao valor de troca, e que tampouco é meramente um instrumento po-
lítico homogeneizante. Diversamente, tal qual o tempo, o espaço é um protótipo
perpétuo do valor de uso que resiste à generalização do valor de troca e do trabalho
sob o capitalismo. Ainda que não tenham o caráter contínuo e institucionalizado do
trabalhismo, a pressão desses movimentos aponta para a explosão de todos os espaços
impostos, para a produção de um espaço autogerido pelos “interessados”.
O espaço diferencial teorizado por Lefebvre é o espaço engendrado pelas contradi-
ções do espaço abstrato, e, portanto, decorre da dissolução de relações sociais orientadas
pela homogeneização, fragmentação e hierarquização de objetos e sujeitos abstratos, e
que implica no nascimento de novas relações sociais, radicadas no uso dos espaços e nas
suas qualidades múltiplas. O espaço diferencial significa também o fim da propriedade
privada do espaço e da sua dominação política pelo Estado. Sua produção acontece a
partir da completa imbricação entre uma vida cotidiana profundamente transformada
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e uma prática da diferença espacial. O espaço diferencial “[...] religará o que o espaço
abstrato separa: as funções, os elementos e momentos da prática social” (LEFEBVRE,
2000, p. 64, tradução nossa). Esse espaço surge de um contraprojeto e visa a restituir
os diferentes usos possíveis do espaço, isto é, a possibilitar a apropriação espacial contra
a homogeneização patogênica de um espaço racionalizado, coercitivo, hierárquico, co-
mandado pela lógica capitalista e estatal. Momento em que o corpo inteiro – restituído
à condição de totalidade – assume o protagonismo das invenções.
Entre o espaço abstrato e o diferencial, habitam as práticas espaciais do desvio (dé-
tour), termo compartilhado por Lefebvre e pela Internacional Situacionista: “Acerca do
desvio, já se sabe que deve ser estudado como prática intermediária entre a dominação e
a apropriação, entre a troca e o uso. Opô-lo à produção ou dissociá-lo dela é desconhecer
seu sentido” (LEFEBVRE, 2000, p. 425, tradução nossa). O desvio pode estimular di-
ferentes aprendizagens sobre a produção de outras cidades e urbanidades possíveis. Ex-
periências e práticas orientadas pelo uso do espaço, as quais explicitam tensões contidas
nas concepções espaciais dominadas pela mercantilização da vida.
Ao propor a distinção entre desvio e apropriação, Lefebvre persegue com rigor e
cuidado o projeto de “mudar a vida, mudar a sociedade”, orientando a reflexão para
a assimilação dos erros e acertos das comunidades políticas, efêmeras ou duradouras,
que já tentaram inventar uma “vida nova” por meio de um “espaço novo”. Ao longo
da história do espaço, os exemplos são muitos, assim como os impedimentos.
Para Lefebvre, a real apropriação do espaço envolve uma invenção morfológica,
isto é, uma nova forma intimamente ligada às novas funções e às estruturas do pra-
zer e da alegria. O desvio de um espaço pode ser bastante profícuo à concepção de
um contraponto às formas de dominação instituídas. Contudo, ele será realmente
apropriado quando realizar outras formas e estruturas arquitetônicas, urbanísticas e
territoriais. As novas ideias e representações, bem como os valores e interesses novos,
precisam vir inscritos com um processo criativo total, da criação de um espaço intei-
ro. O espaço diferencial requer a organização, a disposição dos elementos essenciais
que compõem um corpo de outra maneira, tanto quanto necessita de outras estéticas.
O urbano contemporâneo é repleto de embriões com potências criadoras de
espaço diferencial, quando considerados em seu conjunto. Há uma tendência à pro-
dução de dinâmicas que buscam se afirmar, como outros modos de existência na
metrópole e/ou como resistências diante de dinâmicas heterônomas que engendram
situações repressoras e autoritárias das quais se busca emancipar. Essas buscas ten-
dem a ocorrer em variações que combinam elementos ligados a dois formatos de ação
política espacial: ou por meio de métodos autonomistas, em fuga de espacialidades
sociopolíticas abstratas e hegemônicas; ou por meio do confronto em busca de altera-
ções nas instituições estabelecidas.
“O Brasil é uma terra sem gente e uma gente sem terra”: noutra perspectiva teó-
rico-política, Holston (2013) parte desse aforismo para capturar a negação do acesso
à propriedade fundiária como um dos pilares históricos da constituição e reprodução
do regime de cidadania desigual no país. Paula (2002) igualmente salientou o papel
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necessário perguntar pelos dispositivos de poder que ali se colocam em jogo, mobi-
lizando campos de saber, modos de subjetivação e, sobretudo, inscrevendo-se como
momento singular na história da luta por acesso ao solo urbano e, dessa vez, forte-
mente determinado pela formação social e cultura política do Brasil contemporâneo.
A ocupação é um ato de coragem: é uma atitude radical que nasce preocupada
em resgatar a vida cotidiana da dominação do espaço abstrato e na qual se coloca
em curso um processo de tomada de consciência dos entraves da produção do espaço
urbano. Tal consciência – a qual arriscaríamos chamar urbana – implica iniciativa e
participação, mesmo que sejam meramente tentativas ou incompletas.
Há dois vetores no movimento político desses ocupantes: um orientado às for-
mas de pressão externa das instituições; outro voltado às formas internas de coesão
capazes de tornar os moradores uma coletividade. No primeiro caso, a prática política
refere-se ao exercício das lideranças que aglutinam o grupo e ao apoio de variados ato-
res urbanos no enfrentamento à repressão e às tentativas de despejo e reintegração de
posse por parte de instituições de governo, proprietários da terra e aparatos de Estado.
No segundo caso, o esforço político dirige-se ao erguimento dos espaços comuns
(creche, cozinha, biblioteca) que reforçam relações de vizinhança, na medida em que
exigem esforços cotidianos de cooperação e solidariedade, bem como emprego do
tempo livre de cada um, de suas horas de descanso do trabalho, em prol de um objeto
de demanda comum.
Nesses dois movimentos (a luta pelo reconhecimento externo e a construção da
coesão interna), a questão do espaço está colocada em termos da relação de forças
sociopolíticas, na qual as identidades individuais deixam de fazer sentido e assomam
o comum constituído pela falta (a moradia, o espaço próprio de residência). Nota-
se, aqui, um poder que circula e funciona horizontalmente em rede, com intensa
capilaridade, com relações inscritas nos pontos de interseção permitidos pelos ritmos
das vidas dos residentes. Uma dinâmica socioespacial comum que consolida os laços
entre moradores. São pessoas reunidas não por uma “propriedade”, mas justamente
por uma ausência que as convoca e mantém juntas para realizar um ofício comum
(ESPOSITO, 2010): a construção do que é necessário, viável e possível para sua so-
brevivência. Estar junto é palavra de ordem para estabelecer a permanência; reunião
e presença são estratégias para pressionar os governos, ampliar os objetivos (a posse
do terreno e, depois, o reconhecimento formal da habitação) e prolongar as formas
cotidianas de mobilização.
A maioria das ocupações é precedida por um longo período de planejamento,
realizado entre movimentos sociais e futuros moradores. Durante essa fase, são de-
finidas regras e posicionamentos para o cotidiano dos lugares recém-ocupados. Esse
aspecto prático descortina uma dimensão desalienante de um cotidiano instituído
intencionalmente. Tem sido tática das ocupações o estabelecimento de espaços co-
letivos logo quando da entrada no terreno. Esses espaços são criados para atender
demandas práticas e, às vezes, pontuais, que respondem à urgência da resistência,
necessária principalmente nos primeiros meses da ocupação.
Um dos primeiros alvos do esforço coletivo é a construção de cozinha e creche
comunitárias. Ambas são fundamentais à alimentação e garantem o bem-estar das
crianças. Essas instalações também desempenham papel na interação entre a ocu-
pação e a comunidade externa, apoiadores e vizinhança. Ali se estabelecem ou se
fortalecem relações de solidariedade, cooperação e apoio mútuo.
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propriedade: certamente, muitas dessas lutas por justiça espacial transformam as situa-
ções concretas daquelas famílias muito pobres, procurando um lugar na cidade, e elas
também transformam a consciência política daqueles que delas participam. Através das
ocupações, os pobres urbanos formulam, nos termos de Holston (2013), uma cidadania
insurgente contra uma ordem socioespacial arraigada e profundamente desigualitária.
Desse modo, as ocupações remetem a diferentes relações na direção do comum
não apenas por meio do fomento de muitas práticas e espaços comuns (as hortas
coletivas, a autoconstrução de instalações comunitárias, o desenho urbano participa-
tivo), mas também por reivindicações mais coletivas à propriedade da terra, contra
a mercantilização da terra associada ao espaço abstrato, que perturbam o modelo de
propriedade privada plena. Gostaríamos de sugerir que alterações em escalas mais
amplas – como o reconhecimento formal de arranjos comunais de propriedade fun-
diária (urbana) pela lei, timidamente admitido nos dias de hoje no Brasil – poderiam
transformar as lutas locais de cada ocupação particular, dando-lhes tanto um voca-
bulário de reivindicação quanto um repertório de alternativas mais claras além da
dicotomia entre o público e o privado.
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paços diferenciais, podemos afirmar que muitas das novas ocupações constituem
formas de urbanização tão mais singulares quanto mais sustentam experimentações
político-comunitárias em torno da produção do comum. Desse modo, elas atuam
em direção diametralmente oposta à produção do espaço hegemônica na metrópole
contemporânea – que tende ao cerceamento, à privatização, à constituição de es-
paços públicos onde se minimiza o elemento político conflitivo. No entanto, essas
construções vivem em permanente disputa com as tendências mais pertinentes ao
espaço social hegemônico da cidade neoliberal, que demonstram estar presentes nas Harley Silva é graduado
em História e Economia,
ocupações de formas diversas. mestre em Demografia e
Diante dos obstáculos à realização de uma apropriação espacial efetivamente pro- doutorando em Economia
pela Universidade Federal
dutora de diferenças (para além daquelas induzidas), os sucessos e fracassos registrados de Minas Gerais (UFMG);
pelas ocupações urbanas levam-nos a pensar em modos de atualizar os sentidos con- professor do Curso de
Arquitetura e Urbanismo do
cretos das ações contra-hegemônicas, em outros espaços possíveis. Nesse contexto, cabe Centro Universitário Una.
destacar a relevância dos desvios de funções dos espaços já existentes. Um processo de E-mail: harley74@gmail.com
resistência à violência estatal e de tentativa de desprendimento da lógica da propriedade João Bosco Moura Tonucci
privada que passa, num primeiro momento, pela transformação dos espaços vividos. Filho é graduado em
Economia pela Universidade
Demonstra-se, no contexto contemporâneo de reorganização do cenário dos mo- Federal de Minas Gerais
vimentos sociais urbanos no Brasil, a importância fundamental da ação direta locali- (UFMG); mestre em Arquite-
tura e Urbanismo pela Univer-
zada, e, ao mesmo tempo, sua insuficiência quando não inserida num mosaico mais sidade de São Paulo (USP);
doutorando em Geografia
amplo de estratégias voltadas para transformações no plano das instituições (como pela UFMG; pesquisador no
reconhecido plenamente por muitos dos próprios protagonistas dos movimentos orga- Centro de Desenvolvimento
e Planejamento Regional
nizados ligados às ocupações). Conquistas muitas vezes restritas ao campo simbólico, (Cedeplar) da UFMG.
mas que abrem brechas reais para a criação de uma realidade espacial diferente. E-mail: jontonucci@gmail.
com
Isso nos leva a considerar, finalmente, a importância de aprendizados que produ-
zam diferenças também em relação às formas e às estruturas espaciais. Mantendo o Mariana de Moura Cruz é
graduada em Arquitetura
cuidado e o rigor dos apontamentos prático-teóricos de Lefebvre, precisamos pensar e Urbanismo pela Universi-
nos possíveis modos de as ocupações entrelaçarem uma função, uma forma e uma dade Federal de Minas Gerais
(UFMG); mestra em Urba-
estrutura do espaço diferencial. O que levaria os “interessados” nas ocupações a (não) nismo pela École Nationale
realizarem essa amarração? Com essa questão inconclusa, mas bastante estimuladora Supérieure d’Architecture de
Paris La Villette (ENSAPLV),
dos diálogos que constroem este texto, apontamos uma possível agenda de investiga- França; doutoranda em
ção futura sobre as potencialidades de espaço diferencial que entrevemos nas ocupa- Arquitetura e Urbanismo
na Escola de Arquitetura
ções belo-horizontinas. da UFMG; pesquisadora no
Se podemos afirmar que as ocupações são respostas concretas da população de Centro de Desenvolvimento
e Planejamento Regional
baixa renda e dos movimentos sociais às contradições do espaço abstrato da metrópole (Cedeplar) da UFMG.
(particularmente à contradição entre a negação do acesso à terra e à moradia às classes E-mail: marimoura.arq@
gmail.com
trabalhadoras mais pauperizadas e a realidade de um imenso estoque de terrenos e
imóveis ociosos mantidos para fins especulativos), disso não decorre imediatamente, Rita de Cássia Lucena
Velloso é graduada em
como se viu, que as ocupações urbanas sejam o germe de um espaço diferencial. Arquitetura e Urbanismo,
Entretanto, o que aqui se quis apontar enquanto conclusão principal do artigo, mestra e doutora em
Filosofia pela Universidade
a partir de uma lente lefebvriana, é que as ocupações podem ser mais bem compreen- Federal de Minas Gerais
didas em sua complexidade e diversidade como campos de tensão situados entre o (UFMG); professora adjunta
na Escola de Arquitetura
espaço abstrato e o diferencial, contendo, contraditoriamente, tanto forças de do- (EA) da UFMG.
minação quanto de apropriação, ora pendendo para um lado, ora para outro e, por E-mail: ritavelloso@gmail.
com
vezes, constituindo-se não mais do que através de desvios. O que em si não reduz ou
ignora suas potências associadas à produção de um espaço outro a partir de uma vida Artigo recebido em 19
cotidiana diferente, orientada pelo valor de uso, através da apropriação: momento de de setembro de 2016 e
aprovado para publicação
fissura e irrupção na ordem da cidade capitalista. em 28 de março de 2017.
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