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Revista Brasileira de Estudos Urbanos e

Regionais
ISSN: 1517-4115
revista@anpur.org.br
Associação Nacional de Pós Graduação
e Pesquisa em Planejamento Urbano e
Regional
Brasil
Diniz Bastos, Camila; Nunes Coelho Magalhães, Felipe; Marinho Miranda, Guilherme;
Silva, Harley; Bosco Moura Tonucci Filho, João; de Moura Cruz, Mariana; Lucena
Velloso, Rita de Cássia
Entre o Espaço abstrato e o Espaço diferencial: ocupações urbanas em Belo Horizonte
Revista Brasileira de Estudos Urbanos e Regionais, vol. 19, núm. 2, mayo-agosto, 2017,
pp. 251-266
Associação Nacional de Pós Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional
Recife, Brasil

Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.oa?id=513954272004

Como citar este artigo


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E ntre o espaço abstrato
e o espaço diferencial :
ocupações urbanas em Belo Horizonte 1
Between abstract space and differential space:
urban occupations in Belo Horizonte2

Camila Diniz Bastos A, B, E, F


Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura, Belo Horizonte, MG, Brasil

Felipe Nunes Coelho Magalhães A, B, E, F


Universidade Federal de Minas Gerais, Instituto de Geociências, Belo Horizonte, MG, Brasil

Guilherme Marinho Miranda A, B, E, F


Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Belo Horizonte, MG, Brasil

Harley Silva A, B, E, F
Universidade Federal de Minas Gerais, Centro de Desenvolvimento e Planejamento Regional, Belo Horizonte, MG, Brasil

João Bosco Moura Tonucci Filho A, B, E, F


Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Geografia, Belo Horizonte, MG, Brasil

Mariana de Moura Cruz A, B, E, F


Universidade Federal de Minas Gerais, Programa de Pós-Graduação em Arquitetura e Urbanismo, Belo Horizonte, MG, Brasil

Rita de Cássia Lucena Velloso A, B, E, F


Universidade Federal de Minas Gerais, Escola de Arquitetura, Belo Horizonte, MG, Brasil

Resumo: O artigo aborda as ocupações urbanas em Belo Horizonte a partir das formulações
de Henri Lefebvre sobre a produção do espaço e a vida cotidiana. Ao refletirmos sobre as experiências das
ocupações, buscamos ​enfatizar suas dimensões relacionais e processuais, atentando-nos à sua materialidade
e ao seu cotidiano vivido. Para entender em que medida as ocupações podem engendrar diferenciações
espaciais, circunscrevemos seu percurso histórico em Belo Horizonte segundo suas dinâmicas e tensões,
atentos às especificidades da produção do espaço nas mesmas. Discutimos também as contradições entre
o privado e o comum quanto à propriedade da terra, ressaltando os modos pelos quais o espaço abstrato
se reafirma nas ocupações. Procuramos ressaltar as ocupações como tensionadas entre o espaço abstrato e
o diferencial, como uma prática espacial intermediária entre a dominação e a apropriação: espaço político
contraditório, que atualiza o debate sobre a produção do espaço urbano no Brasil contemporâneo. 

Pa l av r a s - c h av e: ocupações urbanas; espaço diferencial; produção do espaço; vida


cotidiana; Belo Horizonte; Henri Lefebvre.

Contribuição de cada autor/a: A. fundamentação teórico-conceitual e problematização; B. pesquisa de dados e análise estatística; C.
elaboração de figuras e tabelas; D. fotos; E. elaboração e redação do texto; F. seleção das referências bibliográficas.
1 Este artigo é produto de debates, investigações compartilhadas e de um esforço de escrita coletiva no âmbito do Grupo de Estudos Henri
Lefebvre (GEHL/UFMG). O GEHL/UFMG organizou-se desde 2003, fundado pelo Prof. Roberto Luís de Melo Monte-Mór (FACE/UFMG), com
o propósito de estudar a obra de Henri Lefebvre, em especial a problemática urbana, nas diversas configurações que esse tema assume
nos textos desse pensador. O GEHL reúne na Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) professores e estudantes de graduação e pós-
graduação em economia, geografia, arquitetura e direito. Entre 2003 e 2015, em suas diversas formações, o GEHL vem participando dos
Encontros da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Planejamento Urbano e Regional (ENANPUR) por meio da organização
de sessões livres junto a outros pesquisadores da obra lefebvriana no Brasil. Nos últimos anos (2015-2017), o GEHL tem atuado no sentido de
articular a teoria lefebvriana aos processos de produção do espaço urbano brasileiro.
2 An English version of this article is being prepared by GEHL/UFMG and will be available for download in the group’s Academia.edu profile:
https://ufmg.academia.edu/GrupodeEstudosHenriLefebvre
DOI: https://doi.org/10.22296/2317-1529.2017v19n2p251

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E n t r e o e spaç o a b s t r ato e o e spaç o di f e r e nc i a l ...

A b s t r a c t : This article explores urban occupations in Belo Horizonte de-


parting from Henri Lefebvre’s formulations on the production of space and everyday life.
As we reflect on the experiences of these occupations, we seek to emphasize their relational
and processual dimensions, paying attention to their materiality and their lived everyday.
In order to understand the extent to which occupations can engender spatial differentia-
tions, we circumscribe their historical background in Belo Horizonte according to their
dynamics and tensions, attentive to the specificities of their production of space. We also
discuss the contradictions between the private and the commons in regards to the landed
property, highlighting the ways in which abstract space is reaffirmed in occupations. We
seek to accentuate urban occupations as tensioned between abstract and differential spac-
es, as an intermediate spatial practice between domination and appropriation: a con-
tradictory political space, which updates the debate on the production of urban space in
contemporary Brazil.

K e y w o r d s : urban occupations; differential space; production of space; every-


day life; Belo Horizonte; Henri Lefebvre.

Introdução

Um dos fenômenos mais disruptivos na metrópole brasileira nos últimos anos


tem sido a explosão de ocupações urbanas – sob os mais variados modos de organiza-
ção –, processo que se vincula a um contexto vicioso em que se combinam crescimen-
to econômico, ampliação da renda e do crédito, expansão do mercado imobiliário,
aumento vertiginoso do preço do solo e políticas ditas habitacionais que privilegiam
mais os capitais imobiliários do que as necessidades de moradia dos pobres urbanos
(MAGALHÃES; TONUCCI FILHO; SILVA, 2011). Na Região Metropolitana de
Belo Horizonte (RMBH), hoje quase 15 mil famílias residem em mais de 20 ocu-
pações urbanas, segundo informações de Morado Nascimento e Libânio (2016). Es-
pontâneas e/ou organizadas por movimentos sociais com extensas redes de apoio, as
ocupações têm início por meio de ações concentradas no tempo: em não mais de uma
semana, um grupo de famílias se estabelece em terrenos vagos (públicos ou privados),
para daí prosseguir à autoconstrução de residências e da infraestrutura básica.
Este artigo tem o intuito de propor um espaço de pensamento crítico sobre as
ocupações em Belo Horizonte (BH), especialmente – mas não exclusivamente – a
partir de questões que a obra do filósofo e sociólogo francês Henri Lefebvre (1901-
1991) suscita às realidades brasileiras contemporâneas. Esses territórios ocupam hoje
importante espaço nos debates e embates políticos locais, nos engajamentos de mi-
litantes e apoiadores, nas experimentações práticas e cotidianas, na reflexão sobre as
lutas pelo direito à cidade. Daí o desejo de problematizar e de interrogar criticamente
uma realidade que, por vezes, nos parece tão próxima e transparente e, noutras oca-
siões, tão distante, quase inapreensível.
Procuramos, ao refletirmos sobre as experiências das ocupações, enfatizar suas
dimensões relacionais e processuais, atentando à sua materialidade e ao seu cotidia-
no vivido, evitando entendimentos deterministas e finalísticos que só percebem nas
ocupações a desolação da miséria e da desigualdade ou a utopia de uma comunidade
perfeita. Entre os extremos do niilismo e do romantismo de tais abordagens, coloca-

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mo-nos o desafio de analisar as ocupações como dialeticamente tensionadas entre o


espaço abstrato e o espaço diferencial teorizados por Lefebvre entre a dominação e a
apropriação: nem um, nem outro, mas ambos ao mesmo tempo; um espaço contra-
ditório, aberto e movente.
Apostando que há mundos diferentes para além de suas amarras e dos absurdos
da repetição, nosso trabalho busca compreender as diferenças (gestos, percursos, rit-
mos, ciclos) que brotam com as ocupações urbanas belo-horizontinas. Movidos pela
possibilidade de encontrarmos, nessas ocupações, o germe de um espaço diferencial,
buscamos entrelaçar teoria e prática na tentativa de construir e de compreendê-las.
Podemos sustentar que as ocupações urbanas produzem diferenciações espa-
ciais? De que modo as práticas de ocupação da RMBH permitem atualizar o debate
sobre a produção do espaço diferencial? Como engendrar a produção de um espaço 3 É fundamental para a nossa
discussão que se reconheça
diferencial a partir do cotidiano das ocupações? Enfim, se “o caminho do ‘concreto’ o papel do método dialético
passa pela negação ativa, teórica e prática: pelo contraprojeto, o contraplano”, como no pensamento lefebvriano
(MARTINS, 1996). Os temas,
afirma Lefebvre (2000, p. 481, tradução nossa), “pela intervenção ativa e massiva dos preocupações, embates
‘interessados’”, que sentidos concretos do cotidiano das ocupações nos levam a pensar teóricos e políticos, assim
como o método de reali-
em práticas do espaço diferencial? zação da pesquisa são orien-
Procuramos respostas concretas a tais indagações nas lutas e no cotidiano vivido tados pelo método dialé-
tico hegeliano-marxista. O
dos moradores das ocupações, assim como nos relatos daqueles envolvidos, direta ou pensamento dialético tem,
indiretamente, nas ações de resistência e de construção coletiva das ocupações. entre suas características, o
reconhecimento do caráter
O método dialético3 da presente abordagem consiste numa alternância entre contraditório da reali-
formas qualitativas de pesquisa (entrevistas e observação participante, principalmen- dade. Nesse sentido, não
se compreende a realidade
te) conduzidas pelos autores ao longo dos últimos anos em suas diversas frentes de extirpando-se as suas
trabalho, e as propostas de teorização, a partir de um grupo de leituras e discussões contradições, sob pena de se
construir um saber marcado
da obra de Henri Lefebvre. pela unilateralidade e – o
O artigo está organizado em seis sessões. Depois da introdução, na segunda que é pior – pela ideologia.
A contradição é constitutiva
sessão, trazemos a problemática da produção do espaço a partir das reflexões de Le- do real. Das contradições,
febvre, buscando enfatizar os sentidos possíveis da diferenciação espacial em meio internas e inerentes ao ser
social e histórico, provém
às contradições do espaço abstrato. A seguir, na terceira sessão, circunscrevemos o o movimento que caracte-
percurso histórico das ocupações na RMBH segundo suas dinâmicas e tensões, em riza o mundo como devir e
não como coisa estática. A
busca de suas especificidades. Na quarta sessão, abordamos o processo de produção dialética como método de
do espaço das ocupações a partir do cotidiano vivido. A quinta sessão apresenta a pesquisa requer a conside-
ração constante do negativo
discussão sobre a propriedade comum da terra nas ocupações, e a sexta, a seu turno, e da contradição. Esse prin-
cípio cria diversos desafios,
demonstra de que modo o espaço abstrato se reafirma dentro do experimento radical entre os quais a limitação
da ocupação. Finalmente, as considerações finais desenvolvem a ideia de uma prática da própria linguagem para
expressar realidades que se
espacial intermediária delineada como mediação concreta e movente que parte do contradizem internamente.
espaço abstrato na direção do espaço diferencial. No nosso próprio exercício,
tentamos seguir as indi-
cações metodológicas de
Lefebvre (1975), sem, com
isso, assumir um “estilo
A produção do espaço: do abstrato ao de escrita lefebvriano”,
diferencial tampouco tentar a redução
-extrapolação do método
ao modelo. Não se ignora
É n’A produção do espaço, de 1974, que Lefebvre formula com maior ousadia nenhum dos dois riscos, mas
não se esposa nenhum deles
as suas teses relativas à problemática espacial, sua complexa e abrangente teoria do como projeto: antes, nossa
espaço social. A partir da economia política, o autor enuncia a produção do espaço tentativa é empreender uma
pesquisa concreta pautada
como conceito teórico e realidade prática, aspectos esses indissoluvelmente ligados. pelo método dialético, tal
qual Lefebvre propôs.
O autor propõe aí uma modificação profunda na maneira de compreender o espaço

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como realidade empírica e como categoria de análise. Trata-se de passar dos produtos
(descritos, enumerados) à compreensão da produção: o espaço (social) é um produto
(social) e não uma coleção de coisas e objetos (espaço físico) ou um receptáculo vazio
e inerte a ser preenchido (espaço mental). A produção do espaço religa e coordena os
aspectos da prática espacial.
Para Lefebvre, o capitalismo só conseguiu atenuar suas contradições internas e
sobreviver graças à sua permanente expansão e à passagem da produção de coisas no
espaço à produção do próprio espaço. Nesse sentido, pode-se dizer que a produção
do espaço está intimamente ligada à reprodução do modo de produção capitalista,
englobando os níveis da reprodução bio-fisiológica familiar, da reprodução da força
de trabalho e da reprodução ampliada das relações sociais de produção.
O espaço abstrato, em Lefebvre (2000), corresponde à expressão espacial do tra-
balho tornado abstrato pela produção capitalista sob o controle do Estado moderno.
O espaço abstrato, formal e quantificado, é simultaneamente homogêneo (o que vai
na direção da negação das diferenças, sem, contudo, jamais eliminá-las por comple-
to), fragmentado (pulverizado pela propriedade privada, funcionalmente segregado)
e hierarquizado (organizado em termos de relações centro-periferia de dominação).
Ocupado, controlado e orientado para a reprodução das relações sociais de produção,
ele consolida uma lógica burocrática de controle e repetição. Espraia-se, portanto,
por todo o planeta, negando as diferenças espaciais: as que provêm da natureza e da
história, assim como aquelas originárias do corpo, das idades, dos sexos, das etnias.
Como amplamente reafirmado nos estudos urbanos e na geografia humana das
últimas décadas (SOJA, 1993), o espaço não se situa no capitalismo como lugar pas-
sivo das relações sociais, mas se revela ativo (operatório e instrumental) ao exercício
das hegemonias. Evidentemente político e estratégico, ele é um meio de produção e
de controle, mas que escapa parcialmente aos que dele se servem, aos que o engen-
dram (o capital, o Estado). Isso se deve ao fato de que mesmo o espaço abstrato con-
tém também suas contradições internas (entre quantidade e qualidade; globalidade e
fragmentação; homogeneidade e diferença; entre o que é concebido e o que é vivido).
No entanto, em meio a essas contradições dos espaços, Lefebvre (2009) chama
a atenção para a importância de novos movimentos sociais, não mais restritos às
demandas em torno do mundo do trabalho, que questionam o uso e a organização
capitalista do espaço, atentos às problemáticas da reprodução social e da vida coti-
diana. Tais movimentos urbanos mostram que o espaço não é apenas econômico e
subordinado ao valor de troca, e que tampouco é meramente um instrumento po-
lítico homogeneizante. Diversamente, tal qual o tempo, o espaço é um protótipo
perpétuo do valor de uso que resiste à generalização do valor de troca e do trabalho
sob o capitalismo. Ainda que não tenham o caráter contínuo e institucionalizado do
trabalhismo, a pressão desses movimentos aponta para a explosão de todos os espaços
impostos, para a produção de um espaço autogerido pelos “interessados”.
O espaço diferencial teorizado por Lefebvre é o espaço engendrado pelas contradi-
ções do espaço abstrato, e, portanto, decorre da dissolução de relações sociais orientadas
pela homogeneização, fragmentação e hierarquização de objetos e sujeitos abstratos, e
que implica no nascimento de novas relações sociais, radicadas no uso dos espaços e nas
suas qualidades múltiplas. O espaço diferencial significa também o fim da propriedade
privada do espaço e da sua dominação política pelo Estado. Sua produção acontece a
partir da completa imbricação entre uma vida cotidiana profundamente transformada

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e uma prática da diferença espacial. O espaço diferencial “[...] religará o que o espaço
abstrato separa: as funções, os elementos e momentos da prática social” (LEFEBVRE,
2000, p. 64, tradução nossa). Esse espaço surge de um contraprojeto e visa a restituir
os diferentes usos possíveis do espaço, isto é, a possibilitar a apropriação espacial contra
a homogeneização patogênica de um espaço racionalizado, coercitivo, hierárquico, co-
mandado pela lógica capitalista e estatal. Momento em que o corpo inteiro – restituído
à condição de totalidade – assume o protagonismo das invenções.
Entre o espaço abstrato e o diferencial, habitam as práticas espaciais do desvio (dé-
tour), termo compartilhado por Lefebvre e pela Internacional Situacionista: “Acerca do
desvio, já se sabe que deve ser estudado como prática intermediária entre a dominação e
a apropriação, entre a troca e o uso. Opô-lo à produção ou dissociá-lo dela é desconhecer
seu sentido” (LEFEBVRE, 2000, p. 425, tradução nossa). O desvio pode estimular di-
ferentes aprendizagens sobre a produção de outras cidades e urbanidades possíveis. Ex-
periências e práticas orientadas pelo uso do espaço, as quais explicitam tensões contidas
nas concepções espaciais dominadas pela mercantilização da vida.
Ao propor a distinção entre desvio e apropriação, Lefebvre persegue com rigor e
cuidado o projeto de “mudar a vida, mudar a sociedade”, orientando a reflexão para
a assimilação dos erros e acertos das comunidades políticas, efêmeras ou duradouras,
que já tentaram inventar uma “vida nova” por meio de um “espaço novo”. Ao longo
da história do espaço, os exemplos são muitos, assim como os impedimentos.
Para Lefebvre, a real apropriação do espaço envolve uma invenção morfológica,
isto é, uma nova forma intimamente ligada às novas funções e às estruturas do pra-
zer e da alegria. O desvio de um espaço pode ser bastante profícuo à concepção de
um contraponto às formas de dominação instituídas. Contudo, ele será realmente
apropriado quando realizar outras formas e estruturas arquitetônicas, urbanísticas e
territoriais. As novas ideias e representações, bem como os valores e interesses novos,
precisam vir inscritos com um processo criativo total, da criação de um espaço intei-
ro. O espaço diferencial requer a organização, a disposição dos elementos essenciais
que compõem um corpo de outra maneira, tanto quanto necessita de outras estéticas.
O urbano contemporâneo é repleto de embriões com potências criadoras de
espaço diferencial, quando considerados em seu conjunto. Há uma tendência à pro-
dução de dinâmicas que buscam se afirmar, como outros modos de existência na
metrópole e/ou como resistências diante de dinâmicas heterônomas que engendram
situações repressoras e autoritárias das quais se busca emancipar. Essas buscas ten-
dem a ocorrer em variações que combinam elementos ligados a dois formatos de ação
política espacial: ou por meio de métodos autonomistas, em fuga de espacialidades
sociopolíticas abstratas e hegemônicas; ou por meio do confronto em busca de altera-
ções nas instituições estabelecidas.

Da Corumbiara à Tina Martins:


ocupações na RMBH

“O Brasil é uma terra sem gente e uma gente sem terra”: noutra perspectiva teó-
rico-política, Holston (2013) parte desse aforismo para capturar a negação do acesso
à propriedade fundiária como um dos pilares históricos da constituição e reprodução
do regime de cidadania desigual no país. Paula (2002) igualmente salientou o papel

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do acesso desigual à terra na desigualdade, no autoritarismo e na dependência na


sociedade e economia brasileiras. Holston (2013) observa que o acesso restrito à pro-
priedade da terra perpetua a extraordinária desigualdade de renda e riqueza e repro-
duz a ilegalidade como a norma de acesso pela tomada de posse, invasões, ocupações
etc. para a maioria dos pobres urbanos.
No período recente de crescimento econômico (2004-2013), a produção do
espaço urbano metropolitano no Brasil viveu um novo ciclo de expansão e valori-
zação imobiliária. A RMBH vivenciou transformações de seu espaço urbano liga-
das a um forte dinamismo do mercado imobiliário. Houve aumento exponencial
da quantidade de construções, lançamentos, transações, além da busca por novas
áreas de atuação por construtores e incorporadores, e elevação dos preços pratica-
dos. O processo incluiu tendências socioespaciais de gentrificação e financeirização
do espaço urbano, transformando significativamente a metrópole (MAGALHÃES,
TONUCCI FILHO; SILVA, 2011).
Soma-se a isso a omissão usual do poder público quanto a políticas habitacionais
inclusivas, o que potencializou a ocorrência de lutas, também usuais no Brasil, pela
moradia em outras vertentes. Em Belo Horizonte, o cenário político trouxe uma gui-
nada conservadora na década de 2000, reforçando a luta, dessa vez, pelo surgimento
de ações e experiências que extrapolaram a agenda e o repertório dos movimentos
pela moradia e pela reforma urbana. Inicia-se uma nova rodada de movimentos que
inclui as ocupações urbanas.
As ocupações inscrevem-se nas tradições de luta pela terra urbana no Brasil, mas
são dotadas de características peculiares. Entre os aspectos que as distinguem está
uma conjugação de diversos agentes. Famílias em luta pela terra e/ou pela moradia,
movimentos sociais e políticos organizados, tanto antigos como novos, e, por outro
lado, agentes políticos ligados a instituições consolidadas – Igreja Católica, esferas do
Estado (administração pública e poder judiciário, por ex.), educação pública supe-
rior (alunos e professores universitários). Especificamente em Belo Horizonte, a nova
onda de movimentos urbanos é marcada pela ausência de vínculos com as gestões
municipais do ciclo sintonizado à plataforma da reforma urbana, o que provoca uma
ruptura e um conflito com grupos anteriormente estruturados e que participaram de
formas variadas do processo de gestão e planejamento urbano do município, inclusive
de sua política habitacional.
Ainda em 1996, teve início em Belo Horizonte a experiência pioneira da Ocu-
pação Corumbiara, num terreno particular no Vale do Jatobá, na região do Barrei-
ro. Organizada pela Liga Operária (LOP) e pelo Partido Comunista Revolucionário
(PCR), ela assentou 379 famílias engajadas no Orçamento Participativo da Habita-
ção (OPH), mas sem perspectivas de adquirir moradia. Segundo Bedê (2005), de-
senvolveu-se aí uma forma de organização popular incomum na cidade, através da
demarcação de lotes e vias, cercamento do terreno, vigilância constante e revista de
visitantes. Nesse processo, surge o Movimento de Lutas nos Bairros e Favelas (MLB),
vinculado ao PCR. A ocupação Corumbiara, atualmente regularizada e consolidada
como Vila, representa, para Lourenço (2014), um “mito de fundação” para novas
ocupações urbanas organizadas.
Depois disso, as ocupações cessaram em Belo Horizonte por, pelo menos, uma
década, movimento arrefecido graças à institucionalização da política habitacional
da Prefeitura Municipal de Belo Horizonte (PBH) e neutralização dos canais partici-

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pativos. Em 2006, aconteceu, no bairro Serra, a ocupação Caracol, primeira apoiada


pelas Brigadas Populares em colaboração com grupos da Vila do Cafezal. Um grupo
de famílias sem-teto ocupou um prédio de três pavimentos por três meses até seu des-
pejo. Mesmo breve, a Caracol chamou a atenção dos movimentos críticos à política
habitacional na capital.
No final de 2007, encerra-se a ocupação de prédios abandonados e os movi-
mentos passam a discutir a ocupação de terrenos ociosos. A primeira delas, Camilo
Torres, no Barreiro, acontece em fevereiro de 2008. A partir de então, as Brigadas
Populares não mais participariam diretamente da organização de ocupações verticais
em edificações abandonadas, em parte pelo desinteresse das famílias em ocupar imó-
veis nas regiões Centro Sul e Pampulha, distante de suas relações sociais e do padrão
unifamiliar. Além disso, as ocupações horizontais apresentavam maiores possibilida-
des de resistência e permanência (LOURENÇO, 2014; MAYER, 2015).
A discussão de alternativas de ação quanto à ligação entre moradia e geração de
trabalho e renda levou à tentativa de implantar, em associação com o Movimento dos
Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST), ocupações de caráter misto: rural e urbano.
A discussão inspirava-se em experiências do Movimento dos Trabalhadores Desem-
pregados (MTD) no Rio Grande do Sul e do MST na Região Metropolitana de São
Paulo. A ideia era que as ocupações combinassem habitação e atividades agrícolas – e
até de produção e serviços – em terrenos urbanos. Segundo Lourenço (2014), a pro-
posta dividiu os militantes, pois muitos não acreditavam na sua factibilidade. Ainda
assim, a ideia foi levada adiante, materializando-se na ocupação Dandara (2009).
Dandara veio a ter um papel decisivo nas lutas por moradia em razão de sua visi-
bilidade nacional e internacional. A ocupação deu-se em terreno particular no bairro
Céu Azul, mantido vago por motivos especulativos, acumulando dívidas de Imposto
Predial e Territorial Urbano (IPTU). Os lotes amplos propostos para agricultura
tiveram que ser reduzidos diante da pressão por habitação, levando ao abandono do
projeto original em prol do mais denso de ocupação. Formada originalmente por 150
famílias, abriga atualmente mais de 1.100 famílias (LOURENÇO, 2014). O sentido
misto rural e urbano persistiu na implantação de uma horta comunitária, que não
conseguiu êxito de fato, embora famílias tenham seguido cultivando hortas nos quin-
tais. O processo da Dandara trouxe também uma inovação notável: a construção de
um plano urbanístico desenvolvido colaborativamente por comunidade, urbanistas
e outros técnicos.
Desde as experiências da Camilo Torres (2008) e Dandara (2009), muitas outras
ocupações sucederam-se em Belo Horizonte: Irmã Dorothy (2010), Zilah Sposito /
Heleno Greco (2011), Eliana Silva (2012 – despejada), Eliana Silva II (2012), William
Rosa (2013), Guarani Kaiowá (2013), Rosa Leão (2013), Jardim Vitória (2013 – des-
pejada), Esperança (2013), Vitória (2013), Nelson Mandela (2013 – despejada), Nel-
son Mandela (2014), Professor Fábio Alves (2014), Paulo Freire (2015), Zezeu Ribeiro
e Norma Lúcia (2015), Novo Horizonte (2015), dentre outras.
Camilo Torres, Irmã Dorothy e Eliana Silva, as três situadas em um mesmo vale
circunscrito pela Av. Perimetral no Barreiro, ocuparam terrenos que haviam sido doa-
dos pelo Governo do Estado para uso industrial e que posteriormente foram vendidos
para terceiros, sem cumprir a função econômica à qual a concessão estaria vinculada.
Juntamente com a Dandara, as três ocupações foram reconhecidas pela PBH como
Áreas de Especial Interesse Social 2 (AEIS-2) durante a IV Conferência de Política

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Urbana de BH em 2014, mas aguardam a aprovação do novo Plano Diretor. As de-


mais ocupações seguem sob constante ameaça de despejo e sob negociação com poder
público, Poder Judiciário e proprietários.
Um desdobramento recente do movimento das ocupações está na Ocupação
Tina Martins, em 2016. Diferente das ocupações discutidas, Tina Martins não é ato
de luta pela moradia. O Movimento de Mulheres Olga Benário ocupou um prédio
que foi utilizado como restaurante universitário da UFMG. Reconduzindo a luta à
área central da Capital, o movimento reivindica a transformação do prédio – sem uso
há 10 anos – em Casa de Referência da Mulher. O movimento propõe atender de-
mandas que o poder público não tem atendido: acolhimento de mulheres em situação
de risco, prevenção à violência, empoderamento e emancipação feminina.
O padrão de ação na Tina Martins repetiu aquele da criação do Espaço Cultu-
ral Luís Estrela, ocupação que foi um desdobramento das ações de Junho de 2013.
Durante as reuniões da Assembleia Popular Horizontal, articularam-se movimentos
culturais e políticos, organizando a ocupação de prédio público situado no bairro
Santa Efigênia. Essa ação levou o princípio do “ocupar” além da luta pela moradia,
em direção ao uso coletivo e cultural. A criação do Luís Estrela recoloca na área
central de BH as lutas transferidas para as periferias desde a ocupação de imóveis em
2006. O local tem servido simultaneamente como suporte e como objeto de ações
colaborativas de grande vitalidade, articulando múltiplos militantes e simpatizantes
de modo criativo.
Os movimentos de ocupação iniciaram-se em torno da moradia, e ela mantém-
se como seu núcleo. Porém, é uma luta que se enriquece e fortalece pela articulação
com outros temas e que promove aprendizado e cooperação entre agentes de dife-
rentes gerações, filiações e interesses. Ademais, são movimentos que tentam explici-
tamente uma construção que mescla arte e política, ativismo e festa; intencional ou
intuitivamente aproximando cotidiano, produção e reprodução.

Espaço, cotidiano e política nas


ocupações

No rescaldo da contracultura dos anos 1970, Lefebvre atentou-se ao fato de


que faltava àquelas novas formas e tentativas de vida comunitária “uma invenção
morfológica” (LEFEBVRE, 2000, p. 437, tradução nossa). Tantos grupos, utópicos,
efêmeros ou duradouros, ousaram experimentar e, em meados daquela década, pare-
ciam ter vivido o fim da sua experiência radical. Esse fim deveu-se, segundo Lefebvre,
“à ausência de um espaço apropriado”, no qual se pudesse levar ao limite a vivência
daquilo que denominou “arquitetura do prazer e da alegria, da comunidade do uso
dos bens da terra” (LEFEBVRE, 2000, p. 437, tradução nossa). Cinquenta anos pas-
sados, parece-nos possível afirmar que estamos mais uma vez diante de uma expe-
riência radical em busca de novos modos de viver ancorados em laços comunitários.
Dessa vez, não obstante, as ocupações nos parecem ter dado um importante passo na
direção de produzir um espaço apropriado.
Ao se analisar a ocupação como lugar próprio de ação política coletiva exercida
num território concreto, é necessário descrever quais relações de poder se evidenciam
nesses territórios e o que as constitui. Formulando a questão em termos teóricos, é

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necessário perguntar pelos dispositivos de poder que ali se colocam em jogo, mobi-
lizando campos de saber, modos de subjetivação e, sobretudo, inscrevendo-se como
momento singular na história da luta por acesso ao solo urbano e, dessa vez, forte-
mente determinado pela formação social e cultura política do Brasil contemporâneo.
A ocupação é um ato de coragem: é uma atitude radical que nasce preocupada
em resgatar a vida cotidiana da dominação do espaço abstrato e na qual se coloca
em curso um processo de tomada de consciência dos entraves da produção do espaço
urbano. Tal consciência – a qual arriscaríamos chamar urbana – implica iniciativa e
participação, mesmo que sejam meramente tentativas ou incompletas.
Há dois vetores no movimento político desses ocupantes: um orientado às for-
mas de pressão externa das instituições; outro voltado às formas internas de coesão
capazes de tornar os moradores uma coletividade. No primeiro caso, a prática política
refere-se ao exercício das lideranças que aglutinam o grupo e ao apoio de variados ato-
res urbanos no enfrentamento à repressão e às tentativas de despejo e reintegração de
posse por parte de instituições de governo, proprietários da terra e aparatos de Estado.
No segundo caso, o esforço político dirige-se ao erguimento dos espaços comuns
(creche, cozinha, biblioteca) que reforçam relações de vizinhança, na medida em que
exigem esforços cotidianos de cooperação e solidariedade, bem como emprego do
tempo livre de cada um, de suas horas de descanso do trabalho, em prol de um objeto
de demanda comum.
Nesses dois movimentos (a luta pelo reconhecimento externo e a construção da
coesão interna), a questão do espaço está colocada em termos da relação de forças
sociopolíticas, na qual as identidades individuais deixam de fazer sentido e assomam
o comum constituído pela falta (a moradia, o espaço próprio de residência). Nota-
se, aqui, um poder que circula e funciona horizontalmente em rede, com intensa
capilaridade, com relações inscritas nos pontos de interseção permitidos pelos ritmos
das vidas dos residentes. Uma dinâmica socioespacial comum que consolida os laços
entre moradores. São pessoas reunidas não por uma “propriedade”, mas justamente
por uma ausência que as convoca e mantém juntas para realizar um ofício comum
(ESPOSITO, 2010): a construção do que é necessário, viável e possível para sua so-
brevivência. Estar junto é palavra de ordem para estabelecer a permanência; reunião
e presença são estratégias para pressionar os governos, ampliar os objetivos (a posse
do terreno e, depois, o reconhecimento formal da habitação) e prolongar as formas
cotidianas de mobilização.
A maioria das ocupações é precedida por um longo período de planejamento,
realizado entre movimentos sociais e futuros moradores. Durante essa fase, são de-
finidas regras e posicionamentos para o cotidiano dos lugares recém-ocupados. Esse
aspecto prático descortina uma dimensão desalienante de um cotidiano instituído
intencionalmente. Tem sido tática das ocupações o estabelecimento de espaços co-
letivos logo quando da entrada no terreno. Esses espaços são criados para atender
demandas práticas e, às vezes, pontuais, que respondem à urgência da resistência,
necessária principalmente nos primeiros meses da ocupação.
Um dos primeiros alvos do esforço coletivo é a construção de cozinha e creche
comunitárias. Ambas são fundamentais à alimentação e garantem o bem-estar das
crianças. Essas instalações também desempenham papel na interação entre a ocu-
pação e a comunidade externa, apoiadores e vizinhança. Ali se estabelecem ou se
fortalecem relações de solidariedade, cooperação e apoio mútuo.

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A construção da creche na ocupação Eliana Silva ilustra as possibilidades desse


esforço de construção e politização do cotidiano. A creche foi concebida e construída
originalmente pelos moradores, para depois incorporar mudanças com um projeto
arquitetônico feito em parceria com universidades. O caso mostra quão longe podem
ir a organização e a criação de visibilidade pelos movimentos e apoiadores, assim
como aponta o aprendizado sobre essa colaboração interna e externa. Embora não
seja um caso de êxito trivial, podemos fazer duas observações sem ingenuidade.
Em primeiro lugar, que uma necessidade prosaica, como a creche, pode criar
mobilização político-afetiva baseada no cotidiano. Longe da grandiloquência das
disputas político-partidárias, necessidades corriqueiras impulsionam a criatividade
institucional feita de baixo para cima. Em segundo lugar, a importância da ampliação
dos objetos da ação coletiva como meio de extensão e dilatação no tempo e no espaço
da coletividade. Há, nessa estratégia, um contraprojeto ao apelo desmobilizador do
cotidiano privatizado. Se a conquista da moradia e o menor risco de despejo desmo-
bilizam a comunidade, é necessário recriar crescentemente o envolvimento comuni-
tário. Se isso for efetivo, o desejo de construção coletiva mantém-se, e a ampliação dos
objetivos coletivos fortalece a ação política. Esse esquema diz respeito a um lema lefe-
bvriano: mudar a vida, mudar a sociedade, passa por revolucionar o espaço cotidiano.
A prioridade na construção de espaços comuns é uma estratégia que delimita
cotidianos de partilha e consolidação de laços. Trata-se de uma política do cotidiano
que se soma aos encontros e assembleias – frequentes no início da ocupação para
deliberação conjunta dos principais problemas enfrentados no seu dia a dia, mas que
se escasseiam quando ela se consolida. Também iniciativas como as hortas comuni-
tárias, espaços de lazer, mutirões de autoconstrução de moradias ou de outras insta-
lações coletivas estabelecem novos momentos de ação conjunta para além daqueles
iniciais da resistência.
Numa ocupação, o espaço não é uma localização ou um suporte inerte; ao con-
trário, é um meio pelo qual fluem energias potenciais de mudança coletiva, confi-
gurando-se em espaço desviado, cujos usos se dão segundo táticas de apropriação
diversas e divergentes da ordem abstrata do espaço, que se firmam como práticas
contestatórias.
Se pensarmos nos habitantes de uma ocupação enquanto subjetividades que se
constituem em torno de objetivos ou contextos de ação mais ou menos definidos,
compreendemos que sua ação conjunta é capaz de fornecer um ambiente de aprendi-
zado político que transcende as possibilidades detidas pelos indivíduos no contexto
anterior à ação conjunta. É distintivo da constituição de uma comunidade que seus
membros carreguem para dentro da nova tessitura experiências peculiares que enri-
quecem um patrimônio emergente.
Pode-se opor a esse argumento o fato de que não há especificidade em tais ti-
pos de comunidade, pois suas características seriam as que se verifica em qualquer
situação de reunião e ação social. Ocorre que delimitar esse padrão de ação nas ocu-
pações e entendê-lo em sua especificidade nos habilita a capturar e reproduzir um
aprendizado que provém da ação coletiva específica nessas comunidades. Tal apren-
dizado acontece na dimensão política e também como aprendizado social amplo, e,
em especial, considerando as situações de cidadania constrangida características das
sociedades periféricas.
Dizíamos que a luta pelo direito à moradia e à cidade aproxima e catalisa a

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cooperação e o aprendizado entre agentes diversos. A vida cotidiana dessas ocupa-


ções constitui-se tanto como luta quanto como espaço físico e social onde emergem
possibilidades de ação e criação bastante flexíveis. A urgência, diversidade e extensão
dos problemas vividos e sua invisibilidade para o mercado e para o Estado, formas
hegemônicas de atendimento às necessidades cotidianas, abrem portas para a colabo-
ração social e o comprometimento político.
Certamente, a tentativa de resolução dos problemas cotidianos básicos partiu
sempre dos próprios grupos excluídos. A autoconstrução e a luta histórica pela mo-
radia nas favelas brasileiras são uma afirmação disso. A luta pela permanência, o
improviso e a gambiarra são formas que essa luta assume. No entanto, uma das faces
da exclusão é o acesso restrito à educação, ao treinamento formal e à absorção da
técnica e organização modernos. Essa carência tradicionalmente é compensada com a
improvisação, a adaptação e a resiliência, positiva e negativamente. Tudo isso confere
à vida de grupos subalternos intensidade e criatividade reconhecidas.
Quando convergem para as ocupações atores dotados de treinamento formal
rarefeito nas periferias, há formação de uma potência criativa singular. Treinamento
formal e capacidade de organização aproximam-se de um ambiente de experimen-
tação e cooperação com um grau de horizontalidade peculiar. Essa horizontalidade
deriva do conteúdo político das ocupações onde os movimentos sociais se aproximam
da luta popular pela moradia. Delimitada a ideia de comunidades de ação política,
podem-se iluminar forças de emancipação e realização mais ampla da cidadania. É
usual e verdadeiro ver no cotidiano a diluição da cidadania. No caso das nossas so-
ciedades periféricas, essa diluição atinge os limites do constrangimento: o cotidiano
constrange a prática da cidadania e o cidadão exerce uma cidadania constrangida. A
condição periférica, além do mais, é transescalar. As ocupações estão em periferias
urbanas da sociedade brasileira, a qual é, por sua vez, uma sociedade desigual e peri-
férica ao sistema mundo capitalista.
Essa desigualdade se materializa em cidadania constrangida, seja do lado dos
subalternos, seja do daqueles que, não vivendo a subalternidade, se aproximam dos
que a vivem como militantes de movimentos sociais. No primeiro caso, a exclusão e
a negação de voz e direitos associam-se à exclusão socioeconômica. No segundo caso,
o distanciamento em relação ao universo prático e cultural característico da popula-
ção de baixa renda traz ao sujeito o desconhecimento de problemas e possibilidades
de resolução, a não ser pelos procedimentos tradicionalmente contidos nas políticas
habitacionais brasileiras.
O ambiente das ocupações cria experimentações partilhadas em desenho urba-
no (marcação das ruas), infraestrutura urbana (TEVAPs), financiamento e implanta-
ção de serviços comunitários (Creche Tia Carminha), estabelecendo uma experiência
densa (SILVA, 2015), onde se testam saberes mistos de técnicas codificadas e “saberes
autoconstruídos” (MORADO NASCIMENTO, 2016). Os desdobramentos dessa
relação enriquecem o repertório dos residentes nas ocupações e também o repertório
dos próprios movimentos sociais.
Denominamos esse processo de “experiência densa” porque se trata de uma di-
nâmica que emerge da combinação de fatores e agentes sociais em ação, e que, não
fosse a densidade do momento criado pelas ocupações, não ocorreria a não ser de
forma diluída no tempo e no espaço.

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Entre o privado e o comum: propriedade


nas ocupações

As tentativas de implementar lotes coletivos ao invés do tradicional lote individual


nas ocupações Dandara, Eliana Silva e Guarani Kaiowá não foram muito bem sucedidas
na avaliação de Lourenço (2014). Contudo, ele aponta que os lotes coletivos seriam
benéficos em termos de economia de escala quanto aos custos infraestruturais. Em termos
da criação de mais espaços coletivos para interação, a proposta sofreu importantes desafios
e restrições: a necessidade premente de assentar as famílias que chegavam às ocupações,
preconceitos contra formas mais coletivas de habitação e de arranjos de propriedade
(especialmente devido à origem da maior parte das famílias, que viviam anteriormente
em espaços superlotados), e a falta de tempo suficiente para discutir isso com as famílias.
Nada disso deveria surpreender, já que a propriedade privada e a ideologia da
casa própria são estruturais na sociedade brasileira e cada vez mais reforçadas pelas
políticas habitacionais. Como Holston (2013) notou, num país desigual, onde o aces-
so à propriedade fundiária foi sempre negado aos pobres, a ascensão pessoal ao status
de proprietário, mesmo ilegalmente, é vista pela maioria da população como um
passo na direção de se tornar um cidadão pleno, distanciado dos sem-propriedade.
Entretanto, precisamos considerar que, embora o lote individual seja usualmen-
te adotado como principal arranjo espacial e proprietário das ocupações, isso não
significa que ele se enquadre imediatamente no modelo da propriedade privada in-
dividual: podem existir restrições para quem possua um lote numa ocupação, espe-
cialmente contra a mercantilização da terra, já que os lotes devem ser usados para uso
residencial e não para fins especulativos ou lucro. Portanto, é importante ressaltar
que propriedade individual não é imediatamente idêntica à propriedade privada, na
4 O comum designa os medida em que, sob determinadas condições, a primeira pode não significar direitos
bens, espaços e recursos
(materiais e/ou imateriais) exclusivos, alienáveis e absolutos sobre a terra, mas baseia-se nas ideias de uso, posse,
que são usados e geridos função social da propriedade e direito à moradia.
coletivamente por uma
dada comunidade por meio Trata-se de uma formulação distinta de propriedade, mais próxima do comum4
de uma série de práticas do que da forma-mercadoria, mas só sustentada através de alguma forma de controle
e relações de comparti-
lhamento e reciprocidade, exercido pelos movimentos sociais ou pelos próprios residentes. Uma imagem crucial,
fora do âmbito do Estado registrada na ocupação Irmã Dorothy, mostra um alerta interessante. Diz a placa: “Aqui
e do mercado, da proprie-
dade pública e privada. Nos não vende área. Sob (sic) pena de expulsão quem vender ou quem comprar”: eis uma
dias de hoje, as práticas e tentativa de resistência à propriedade privada e à terra transformada em mercadoria.
conceitos do comum estão
se fortalecendo em torno Entretanto, caso as ocupações sejam oficialmente reconhecidas e integradas à
de um princípio político que cidade (ou mesmo antes disso), elas podem também subordinar-se às dinâmicas do
suporta, ajuda a articular
e reconhece a potência de mercado imobiliário. As ocupações vivem, assim, uma forte contradição: enquanto os
uma pluralidade de lutas, movimentos sociais e residentes aspiram a ser reconhecidos pelo Estado (e, portanto,
resistências e experiências
emancipatórias. Colocando- não mais sujeitados a viver sob o risco do despejo), eles também reconhecem que essa
se em oposição à racionali- entrada na “cidade formal” pode significar a perda de muitos dos projetos coletivos e
dade neoliberal que procura
estender os imperativos do dos arranjos de propriedade mais comuns que eram possíveis enquanto muitos esta-
mercado e da propriedade vam engajados na resistência e em experimentações socioespaciais.
privada a todas as esferas
da vida, o comum delineia a De acordo com Blomley (2004), enquanto as ocupações são uma afronta extrale-
construção de novas formas
democráticas de produção e
gal ou mesmo ilegal à hegemonia da propriedade privada, seja como um argumento po-
gestão de recursos compar- lítico contra a desigualdade ou como uma reivindicação coletiva à terra por necessidade,
tilhados. Mais sobre o
comum, ver Dardot e Laval
os ocupantes podem também reivindicar do Estado a sanção de direitos de propriedade
(2015). privada no espaço ocupado. Com isso, não queremos sugerir que toda luta é luta pela

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propriedade: certamente, muitas dessas lutas por justiça espacial transformam as situa-
ções concretas daquelas famílias muito pobres, procurando um lugar na cidade, e elas
também transformam a consciência política daqueles que delas participam. Através das
ocupações, os pobres urbanos formulam, nos termos de Holston (2013), uma cidadania
insurgente contra uma ordem socioespacial arraigada e profundamente desigualitária.
Desse modo, as ocupações remetem a diferentes relações na direção do comum
não apenas por meio do fomento de muitas práticas e espaços comuns (as hortas
coletivas, a autoconstrução de instalações comunitárias, o desenho urbano participa-
tivo), mas também por reivindicações mais coletivas à propriedade da terra, contra
a mercantilização da terra associada ao espaço abstrato, que perturbam o modelo de
propriedade privada plena. Gostaríamos de sugerir que alterações em escalas mais
amplas – como o reconhecimento formal de arranjos comunais de propriedade fun-
diária (urbana) pela lei, timidamente admitido nos dias de hoje no Brasil – poderiam
transformar as lutas locais de cada ocupação particular, dando-lhes tanto um voca-
bulário de reivindicação quanto um repertório de alternativas mais claras além da
dicotomia entre o público e o privado.

O espaço abstrato nas ocupações

Passadas as fases iniciais de conceber a ocupação, tomar o terreno e erguer as


casas, observa-se, no momento seguinte, a reemergência do espaço abstrato no for-
mato de uma reação em série, através de dispositivos diversos e em grande medida
de natureza indireta, ao afloramento de diferenças efetivas na produção do espaço.
Essas dinâmicas surgem engendradas por agentes e poderes distintos, com uma ca-
pacidade significativa de disciplinar, controlar e diminuir potenciais efetivos de tais
experiências se constituírem em seus próprios termos diferenciais, produzindo outras
espacialidades, outras experiências urbanas e outras narrativas acerca do que constitui
o urbano contemporâneo.
De fato, após sua fase inicial de planejamento, as ocupações passam por um pe-
ríodo de construção, luta e resistência contra as ameaças de despejo e de ação corres-
pondente no âmbito do aparato jurídico do Estado. O ativismo jurídico, que se realiza
como forma de garantir direitos às ocupações, constitui uma das mais importantes
especificidades do contexto atual, além do próprio planejamento territorial de algumas
ocupações por parte dos movimentos, visando, assim, a anular as eventuais remoções
de famílias em processos futuros de urbanização e incorporação das áreas pelo Estado.
Ocupações já nascem, inegavelmente, no terreno da disputa entre dois conjuntos
de forças: germes do espaço diferencial e o espaço abstrato, que permite o nascimento
efetivo somente daquilo que seja conformado à sua própria lógica. Considerando a
enorme assimetria entre esses dois conjuntos, mesmo que não seja de forma abrupta e
direta (como no caso da simples remoção de uma ocupação recém-efetivada), o grupo
de agentes que conduzem os processos conformadores do denominado espaço abstra-
to demonstra ser capaz de (re)entrar em cena e (re)definir o teor das diversas disputas
que surgem, em escalas diversas, com as espacialidades diferenciais emergentes.
Os vetores decorrentes dessa disputa assimétrica criam tendências, em muitas
ocupações de Belo Horizonte, que conduzem à desvirtuação dessas experiências ao
longo de sua maturação. Os agentes que têm promovido tal processo são variados.

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Um primeiro exemplo é o mercado imobiliário informal que surge nas ocupações e


ganha forças em alguns casos, apesar das tentativas de contenção ou regulação por
parte de organizadores e/ou lideranças. Seu aquecimento promove o incremento e
a mobilização da renda da terra dentro das ocupações, alterando as relações inter-
nas de poder, internalizando uma dinâmica imobiliária que, no limite, reconduz a
lógicas de exclusão e segregação semelhantes àquelas que criaram a necessidade da
própria ocupação.
Essas dinâmicas tensionam o funcionamento das ocupações, reenqua-
drando-as à lógica da cidade neoliberal da qual, de início, se tentava escapar
de forma autônoma. Assim, essas dinâmicas atuam na direção da produção de
novos ativos imobiliários, mesmo que temporariamente informais. Dentro da
ocupação, o mercado imobiliário em expansão reconduz o cotidiano para a criação
e enraizamento de canais de extração de renda da terra através da produção do
espaço. É óbvio, entretanto, que os movimentos organizados têm consciência desse
processo e fazem dele uma possibilidade de aprendizado a partir do próprio per-
curso das experiências. Resta, contudo, um campo aberto em relação às (eventuais)
tentativas de se atenuar tais forças que inserem um nexo de mercado interno às
ocupações e que correm contra seus sentidos políticos.
Camila Diniz Bastos é Outra situação crítica que emerge da experiência das ocupações diz respeito à
estudante de Arquitetura
e Urbanismo da Univer- segurança pública e à convivência com atividades ilícitas. Na medida em que se cons-
sidade Federal de Minas
Gerais (UFMG); militante
tituem em contraposição ao Estado, as ocupações costumam ser apresentadas ou até
e integrante do Movi- percebidas no senso comum como fontes de insegurança ou de ataque à dita ordem
mento de Luta nos Bairros,
Vilas e Favelas (MLB), do
pública. Assim, as próprias formas convencionais de promoção de segurança pública
Movimento de Mulheres pelo Estado tornam-se problemáticas nas tentativas de construção social autônoma
Olga Benário e da Casa de
Referência da Mulher Tina
por grupos sociais marcadamente subalternos. Um exemplo disso são as situações
Martins.   criadas pela entrada de agentes do tráfico de entorpecentes, os quais se aproveitam,
E-mail: cdinizbastos@gmail.
com em algumas situações de ausência de policiamento em certas ocupações, criando rela-
ções de poder autoritárias sobre o cotidiano e os sentidos do lugar, relações estas que
Felipe Nunes Coelho
Magalhães é graduado em enfraquecem a mobilização política e mesmo o próprio ato de ocupar.
Economia, mestre e doutor Em suma, tais manifestações próprias do espaço abstrato frequentemente têm a
em Geografia pela Univer-
sidade Federal de Minas capacidade de anular impulsos emancipatórios suscitados pela diferença e pelo espaço
Gerais (UFMG); professor diferencial. Elas insulam-se nas limitações e exploram fraquezas próprias de experiên-
adjunto do Departamento
de Geografia do Instituto de cias embrionárias, impondo-se em função de seu caráter já consolidado como agrupa-
Geociências (IGC) da UFMG. mento de forças hegemônicas que se fazem presentes nesses espaços em construção.
E-mail: felmagalhaes@gmail.
com Enquanto poderes constituídos e forças hegemônicas, tendem a atuar na direção de sua
própria reprodução e crescimento, mirando, para tal, inclusive na direção daquilo que
Guilherme Marinho Miranda
é graduado em Economia busca escapar das relações heterônomas e contradições que tais poderes engendram.
pela Universidade Federal de
Minas Gerais (UFMG); mestre
em Geografia e Ciências
Políticas pela Université
Panthéon-Sorbonne (Paris1),
Considerações finais
França; doutorando em
Geografia pela UFMG; tutor
do Programa de Incentivo à
A experiência da produção do espaço nas ocupações urbanas de Belo Horizon-
Formação Docente do curso te traz à tona um conjunto de elementos novos para a discussão das relações entre
de Formação Intercultural de
Educadores Indígenas (FIEI), prática e aprendizagem, dominação, desvio e apropriação do espaço. Oferece tam-
da Faculdade de Educação bém estímulo a quem quer aprofundar o debate aberto por Henri Lefebvre acerca da
(FaE) da UFMG. 
E-mail: guimarinhom@ emergência do espaço diferencial em meio às contradições do espaço abstrato vigente.
gmail.com Respondendo à indagação sobre em que medida as ocupações engendram es-

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paços diferenciais, podemos afirmar que muitas das novas ocupações constituem
formas de urbanização tão mais singulares quanto mais sustentam experimentações
político-comunitárias em torno da produção do comum. Desse modo, elas atuam
em direção diametralmente oposta à produção do espaço hegemônica na metrópole
contemporânea – que tende ao cerceamento, à privatização, à constituição de es-
paços públicos onde se minimiza o elemento político conflitivo. No entanto, essas
construções vivem em permanente disputa com as tendências mais pertinentes ao
espaço social hegemônico da cidade neoliberal, que demonstram estar presentes nas Harley Silva é graduado
em História e Economia,
ocupações de formas diversas. mestre em Demografia e
Diante dos obstáculos à realização de uma apropriação espacial efetivamente pro- doutorando em Economia
pela Universidade Federal
dutora de diferenças (para além daquelas induzidas), os sucessos e fracassos registrados de Minas Gerais (UFMG);
pelas ocupações urbanas levam-nos a pensar em modos de atualizar os sentidos con- professor do Curso de
Arquitetura e Urbanismo do
cretos das ações contra-hegemônicas, em outros espaços possíveis. Nesse contexto, cabe Centro Universitário Una.
destacar a relevância dos desvios de funções dos espaços já existentes. Um processo de E-mail: harley74@gmail.com

resistência à violência estatal e de tentativa de desprendimento da lógica da propriedade João Bosco Moura Tonucci
privada que passa, num primeiro momento, pela transformação dos espaços vividos. Filho é graduado em
Economia pela Universidade
Demonstra-se, no contexto contemporâneo de reorganização do cenário dos mo- Federal de Minas Gerais
vimentos sociais urbanos no Brasil, a importância fundamental da ação direta locali- (UFMG); mestre em Arquite-
tura e Urbanismo pela Univer-
zada, e, ao mesmo tempo, sua insuficiência quando não inserida num mosaico mais sidade de São Paulo (USP);
doutorando em Geografia
amplo de estratégias voltadas para transformações no plano das instituições (como pela UFMG; pesquisador no
reconhecido plenamente por muitos dos próprios protagonistas dos movimentos orga- Centro de Desenvolvimento
e Planejamento Regional
nizados ligados às ocupações). Conquistas muitas vezes restritas ao campo simbólico, (Cedeplar) da UFMG.
mas que abrem brechas reais para a criação de uma realidade espacial diferente. E-mail: jontonucci@gmail.
com
Isso nos leva a considerar, finalmente, a importância de aprendizados que produ-
zam diferenças também em relação às formas e às estruturas espaciais. Mantendo o Mariana de Moura Cruz é
graduada em Arquitetura
cuidado e o rigor dos apontamentos prático-teóricos de Lefebvre, precisamos pensar e Urbanismo pela Universi-
nos possíveis modos de as ocupações entrelaçarem uma função, uma forma e uma dade Federal de Minas Gerais
(UFMG); mestra em Urba-
estrutura do espaço diferencial. O que levaria os “interessados” nas ocupações a (não) nismo pela École Nationale
realizarem essa amarração? Com essa questão inconclusa, mas bastante estimuladora Supérieure d’Architecture de
Paris La Villette (ENSAPLV),
dos diálogos que constroem este texto, apontamos uma possível agenda de investiga- França; doutoranda em
ção futura sobre as potencialidades de espaço diferencial que entrevemos nas ocupa- Arquitetura e Urbanismo
na Escola de Arquitetura
ções belo-horizontinas. da UFMG; pesquisadora no
Se podemos afirmar que as ocupações são respostas concretas da população de Centro de Desenvolvimento
e Planejamento Regional
baixa renda e dos movimentos sociais às contradições do espaço abstrato da metrópole (Cedeplar) da UFMG.
(particularmente à contradição entre a negação do acesso à terra e à moradia às classes E-mail: marimoura.arq@
gmail.com
trabalhadoras mais pauperizadas e a realidade de um imenso estoque de terrenos e
imóveis ociosos mantidos para fins especulativos), disso não decorre imediatamente, Rita de Cássia Lucena
Velloso é graduada em
como se viu, que as ocupações urbanas sejam o germe de um espaço diferencial. Arquitetura e Urbanismo,
Entretanto, o que aqui se quis apontar enquanto conclusão principal do artigo, mestra e doutora em
Filosofia pela Universidade
a partir de uma lente lefebvriana, é que as ocupações podem ser mais bem compreen- Federal de Minas Gerais
didas em sua complexidade e diversidade como campos de tensão situados entre o (UFMG); professora adjunta
na Escola de Arquitetura
espaço abstrato e o diferencial, contendo, contraditoriamente, tanto forças de do- (EA) da UFMG.
minação quanto de apropriação, ora pendendo para um lado, ora para outro e, por E-mail: ritavelloso@gmail.
com
vezes, constituindo-se não mais do que através de desvios. O que em si não reduz ou
ignora suas potências associadas à produção de um espaço outro a partir de uma vida Artigo recebido em 19
cotidiana diferente, orientada pelo valor de uso, através da apropriação: momento de de setembro de 2016 e
aprovado para publicação
fissura e irrupção na ordem da cidade capitalista. em 28 de março de 2017.

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E n t r e o e spaç o a b s t r ato e o e spaç o di f e r e nc i a l ...

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