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Te Aguardo em Tua Sepultura

Não sei quanto tempo mais eu tenho, mas preciso registrar isso. Ela tenta me impedir de
várias formas; sussurrando palavras aleatórias em meu ouvido, e assim, me atrapalha
enquanto escrevo; Ela pode, sutilmente, empurrar minha mão, fazendo da minha escrita
um garrancho; Ela pode, também, apagar a vela que ilumina as folhas em que eu escrevo e,
mesmo que eu volte a acender, alguns segundos depois, Ela vem e apaga novamente. Não
posso morrer sem antes deixar tudo registrado, e de alguma forma, fazer com que minha
irmã leia o que escrevi, os horrores que passei, e alertá-la do perigo que a espera. Espero
poder concluir esta carta, tentarei ser o mais breve possível. Acredito não ter muito tempo.

Ontem eu acordei com a luz do sol ardendo em meu rosto; um jeito horrível de despertar,
era como se o sol viesse ao meu encontro, dentro do meu quarto, pronto para me devorar.
Minha janela estava sem cortina, e às duas da tarde, o horário em que acordei, o sol ardia e
minha cabeça doía muito; uma ressaca horrível! Nem lembro como cheguei em casa, mas
lembro das dores que me assolam há alguns dias. Disse para mim mesmo que nunca mais
beberia assim novamente - disse isso tantas outras vezes.

A dor em meu tornozelo direito aumentara; foi preciso massagear e fazer alguns
movimentos com o pé - ainda na cama - para depois de alguns minutos, eu finalmente
conseguir me levantar. De onde vem essa dor? Tive um dia lento, preguiçoso, sem muitos
afazeres. Perto das oito da noite a dor no tornozelo diminuira bastante: um alívio! Mas, eu
sentia uma sensação estranha, e não era culpa da ressaca; era uma sensação fúnebre,
melancólica, gélida; até mesmo em meu olfato, pois o cheiro das coisas que eu estava
acostumado a sentir, parecia ter um odor diferente. O aroma do coentro que eu tanto adoro,
por exemplo, invadia minhas narinas com um leve cheiro de vela de cemitério. Mais tarde,
me preparei para dormir, e a partir daí, tudo piorou! Foi uma madrugada horrível, mas não
tão horrível quanto o que eu encontrei ao acordar.

Esta noite tive um pesadelo desesperador. Sonhei que um grande rato negro, do
tamanho de uma panela de pressão, com sua cabeça duas vezes maior, estava em minha
cama enquanto eu dormia, próximo aos meus pés, e ele me fixava com seu olhar macabro.
Seus olhos pareciam duas pequenas bolas de fogo, que iluminavam sua face demoníaca
na escuridão, deixando aparente seus grandes dentes sedentos por carne humana.
Impulsivamente ele abocanhou minha perna e começou a roer; eu não podia me mover,
enquanto ele cravava os dentes em minha carne, ligeiro - imagine uma enxada cavando na
terra dura - era essa imagem que eu via, seus dentes como enxada, arrancando pedaços
de mim, cavando sem parar. O sangue escorria no lençol, e eu sentia seus dentes potentes
batendo em meu osso, fortemente, e os olhos infernais da criatura pareciam brilhar cada
vez mais; um brilho de prazer; e por um instante, eu juro ter visto aquele rato maldito sorrir,
e sem desviar os olhos de mim, cravava os dentes em meu osso. A dor foi tanta que me fez
acordar.

O pior parecia ter acabado, mas, assim que tomei consciência de que tudo não passava
de um sonho, eu vi… vi aquela imagem que me causou um arrepio tão forte, mas tão forte
que minha nuca começou a formigar, e o arrepio foi descendo por toda minha espinha
dorsal, como água que desliza pelo interior da mangueira.
Lá estava Ela, agachada e pousada em cima dos meus pés, com seu rosto escondido
por longos cabelos grisalhos. Era uma mulher vestindo camisola branca, a responsável
pelas dores que eu sentia, a mulher que passou as últimas noites pisando em mim. Ela não
fazia movimento algum, e meus pés não aguentavam mais todo aquele peso. Eu não podia
me mover e, de repente, senti duas mãos geladas e úmidas saindo de trás do meu
travesseiro, deslizando pela minha cabeça até chegar em minhas mandíbulas, se firmando
com força, uma de cada lado, impossibilitando minha cabeça de fazer algum movimento. E
então, eu pude ver aquela mulher se levantar bem devagar, ainda em cima dos meus pés, e
eu, sem poder me mover, observei ela vindo em minha direção, pisando agora em minhas
coxas, passando pela minha barriga com aquele pé frio e sujo, lentamente.
Quando ela chegou mais perto, pude notar sua camisola encardida; uma sujeira que
parecia terra molhada. Ela agachou e sentou em meu peito; ficou me observando por
alguns segundos. Foi aí que um forte vento, surgido do nada, elevou seus cabelos,
deixando sua face à mostra; era um rosto velho, enrugado, com olhos negros e opacos, e
ela tinha algodão no nariz. Sua boca se aproximou de minha face e começou a espumar,
uma espuma úmida e branca, e logo uma espécie de gelatina densa e amarelada saía
daquela boca decrépita, despejando aquele excremento fétido em meu rosto. Finalmente
pude me mover e, de súbito, me levantei, e ela desapareceu instantaneamente.

Eu não podia voltar a dormir; eram quase três da manhã. Saí de casa mancando, por
causa da dor que eu sentia. Havia uma carta em minha caixa de correio; devia estar ali há
alguns dias. Estranhei quando vi que era de minha irmã. Já faz algum tempo que não nos
comunicamos. Comecei a ler e tudo fez sentido. Na carta dizia que, nossa tia Melissa
faleceu, há cinco dias. Eu sabia que, mesmo com as deformidades no rosto daquela mulher
que estava em minha cama, ela me parecia familiar. Era ela! o ser que me pisoteava
durante a noite; era minha tia Melissa; a velha voltou para se vingar de todos os nossos
maus tratos. A deixamos sozinha para que morresse logo, pois ninguém aguentava passar
um minuto sequer ao lado da velha. Isso não é tudo, fizemos com ela coisas que eu me
envergonharia de contar a alguém.

Eu ia responder a carta de minha irmã, que vive na cidade vizinha, mas antes, vim até a
casa de meu irmão, que não fica muito longe da minha, para dar-lhe a notícia. Chegando
aqui, entrei pela janela da cozinha depois de chamar e bater na porta sem resposta. O
motivo da minha invasão foi perceber que seu rádio estava ligado, na madrugada, tocando
jazz em alto volume, impedindo que ele ouvisse meus gritos. Dentro da casa, chamei por
ele, até que entrei em seu quarto e vi uma cena tão assustadora quanto a que eu vi
minutos atrás. Meu irmão estava estirado na cama, com seu pescoço estranhamente
deformado, como uma peça de roupa que, depois de lavada, fora torcida por mãos fortes;
em seus tornozelos havia uma mancha negra e espessa, e seu rosto demonstrava muito
pavor; olhos arregalados, boca aberta, como se, mesmo depois de morto, ainda tentasse
gritar; uma visão horrível.
Tentei correr para fora dali, mas não podia, eu mal conseguia me mexer quando
chegava perto da porta; era como em um filme que eu tinha assistido anos atrás, onde as
pessoas, misteriosamente, não conseguiam sair de dentro de uma casa. O rádio que tocava
jazz, agora chiava, e me causava arrepios. Fui desligá-lo quando uma voz gutural saindo do
aparelho me disse: te aguardo em tua sepultura!

Terei o mesmo destino de meu irmão? poderei escapar? Preciso avisar minha irmã.
Tudo se apagou e eu fiquei na escuridão, sem energia. E aqui estou, no quarto, com o
corpo de meu irmão à luz de velas. Estou tentando escrever, e espero que alguém encontre
esta carta, e possa entregar para minha irmã o mais depressa possível.
Meu irmão parece me encarar enquanto escrevo, parece estar vivo e rosnando baixinho,
querendo rir da minha cara. Sinto que ele vai vir para cima de mim. Ele me encara com
aqueles grandes olhos que refletem a chama da vela. Estou convicto de que ele já faz parte
das trevas, juntamente da tia Melissa, que tenta me atormentar enquanto escrevo; maldita!
Não posso vê-la, mas posso senti-la bem próxima.
Agora tenho certeza de que meu irmão está se tornando uma criatura maligna; enquanto
eu escrevia, eu percebia alguns pequenos movimentos que ele fazia na cama, e seu olhar
parece estar cada vez mais fixado em mim; sinto que ele vai se levantar, eu sinto, e tenho
muito medo; minhas mãos tremem muito, estou desesperado; ele me assusta mais que a
velha; que rosto maléfico! por que não para de me encarar? Sinto que ele está prestes a me
atacar. Não sei como terminará esta noite, não sei se estarei vivo, mas se você encontrou
esta carta, por favor, entregue a…...

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