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ISSN 1806 - 9142

Qualis “B2” na tabela CAPES

1994 – 2012
18 anos de produção
Caderno Seminal Digital – Vol. 17 – Nº 17– (Jan /Jun – 2012). Rio de Janeiro: Dialogarts, 2012.
ISSN 1806-9142
Semestral
1. Lingüística Aplicada – Periódicos. 2. Linguagem – Periódicos. 3. Literatura -
Periódicos. I. Título: Caderno Seminal Digital. II. Universidade do Estado do Rio de Janeiro.

CONSELHO CONSULTIVO EDITORA


André Valente (UERJ / FACHA) Darcilia Simões

Aira Suzana Ribeiro Martins (CPII) CO-EDITOR

Claudio Cezar Henriques (UERJ / UNESA) Flavio Garcia

Darcilia Marindir Pinto Simões (UERJ / PUC-SP) ASSESSOR EXECUTIVO


Cláudio Cezar Henriques
Edwiges Guiomar Santos Zaccur (UFF)
DIAGRAMAÇÃO
Eliane Meneses de Melo (UBC-SP)
Marcos da Rocha Vieira (Bolsista Proatec)
Flavio Garcia (UERJ / UNISUAM)
PROJETO DE CAPA
Jayme Célio Furtado dos Santos (SEE-RJ / SME
Macaé) Carlos Henrique de Souza Pereira
(Bolsista de Extensão)
José Lemos Monteiro (UFC / UECE / UNIFOR)
LOGOTIPO
José Luís Jobim (UERJ / UFF) Gisela Abad

Magnólia B. B. do Nascimento (UFF) Contato:


caderno.seminal@gmail.com
Maria Geralda de Miranda (UNISUAM / UNESA)
publicações.dialogarts@gmail.com
Maria Suzatt Biembengut Santad (UMinho-PT
/ FMPFM E FIMI -SP / UERJ)

Maria Teresa G. Pereira (UERJ)

Nícia Ribas d’Ávila (Paris VIII)

Regina Michelli (UERJ / UNISUAM)

Sílvio Santana Júnior (UNESP)

Vilson José Le a (UCPel-RS)


Publicações Dialogarts é um Projeto Editorial de Extensão Universitária
da UERJ do qual participam o Instituto de Letras (Campus Maracanã) e a
Faculdade de Formação de Professores (Campus São Gonçalo). O Objetivo
deste projeto é promover a circulação da produção acadêmica de qualidade,
com vistas a facilitar o relacionamento entre a Universidade e o contexto
sociocultural em que está inserida.
O projeto teve início em 1994 com publicações impressas pela DIGRAF/
UERJ. Em 2004, impulsionado pelas dificuldades encontradas no momento,
surgiram, com recursos e investimentos próprios dos coordenadores do Projeto,
as produções digitais com vista a recuperar a ritmo de suas publicações e
ampliar a divulgação.
Visite nossa página: http://www.dialogarts.uerj.br
sumário

Apresentação
Flavio García 7
DOSSIÊ temático 8
Apresentação do dossiê temático
Marisa Martins Gama-Khalil 13
EM OUTRO PLANO DO SER: UMA POÉTICA DA DUPLICIDADE
NA NARRATIVA FANTÁSTICA DE JULIO CORTÁZAR
Amanda Pérez Montañés 14
O DIABO NÃO FOI CONVIDADO: CONTO FANTÁSTICO
E TRADIÇÃO QUEBEQUENSE
Ana Luiza Ramazzina Ghirardi 26
O estranhamento cotidiano: uma leitura dos
contos de Julio Cortázar
Laila Karla Lima Duarte
Heloisa Helena Siqueira Correia 46
A expressão do fantástico nos contos “Ligéia”, de
Edgar Allan Poe, e “Véra”, de Villiers de l’Isle-Adam.
Lígia Pereira de Pádua 53
ASPECTOS DO DUPLO NOS CONTOS “O EX-MÁGICO DA
TABERNA MINHOTA”, DE MURILO RUBIÃO, E “CARTA A UMA
SENHORITA EM PARIS”, DE JULIO CORTÁZAR
Luciano Antonio 62
NAÇÃO E UTOPIA EM A JANGADA DE PEDRA E O FEITIÇO DA
ILHA DO PAVÃO
Marco Antonio Rodrigues 74
Encenações do fantástico e do absurdo em
Veronica Stigger
Maria Fernanda Garbero de Aragão 87
POLÍTICA DO FANTÁSTICO
Nuno Manna 98
O ECO MATERIALIZADO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEOR
PROFÉTICO DA CANÇÃO DE SIRUIZ
Patrícia Tavares da Cunha Fuza
Ederson Vertuan 113
‘Stagnus Ignis’: O Apocalipse reescreve
Homero! “horizontes homéricos” na narração
religiosa e mítica de textos e contextos
apocalípticos (Ap 20, 14-15)?
Pedro Paulo Alves dos Santos 123
O ESPAÇO NA CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NO CONTO
“NATAL NA BARCA”, DE LYGIA FAGUNDES TELLES
Rosana Gondim Rezende Oliveira 133
O FANTÁSTICO COMO REPRESENTAÇÃO DO TEMOR AO
ESTRANGEIRO: UMA LEITURA EM CONTRAPONTO DE “O
HORLA”, DE GUY DE MAUPASSANT
Rosângela de Medeiros 146
A representação do estrangeiro e do estranho em
“Fronteira Natural”, de Nélida Pinõn
Suely Leite 159
GENETTE E O FANTÁSTICO
Wandeir Araújo Silva
Liane Schneider 168
textos livres 179
Apresentação textos livres
Flavio García 181
LETRAMENTO, ORALIDADE E ESCRITA EM CONTEXTO
DIGITAL
Ana Maria Pires Novaes 182
O DESIGN DE INFORMAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE
INCLUSÃO SOCIAL
Maria João Palma
Airton Castagna
Katia Avelar 194
“MESTRES POPULARES” E A ESCOLA NO BRASIL
Ricardo do Carmo
Katia Avelar
Maria Geralda de Miranda 202
Apresentação

Diante da produção de mais um número do Caderno Seminal Digital – sua


17ª edição –, dando continuidade às quatorze edições do Caderno Seminal
anteriormente publicadas em suporte impresso – papel –, ficamos tentados a
retrasar seu lançamento para aproveitar o exuberante excesso de excelentes
trabalhos acerca da “Literatura Fantástica: Vertentes teóricas e ficcionais do
insólito”, que foram submetidos à publicação na Revista Letras & Letras, da
Universidade Federal de Uberlândia – UFU, de cuja coordenação do número
temático fazíamos parte.
Havia uma quantidade bastante significativa de trabalhos aprovados, mas que,
pelas limitações de espaço, não poderiam ser absorvidos por aquela Revista.
Sentimo-nos na obrigação de, conforme o espírito extensionistas que move
as Publicações Dialogarts, promover parceira com aquele veículo editorial
e acolher parte dos trabalhos aprovados, duplicando, em nosso periódico, o
mesmo dossiê temático. E assim fizemos.
Não podemos, a priori, definir que essa será, daqui para diante, uma política
constante de nossa publicação, mas não podemos, igualmente, negar ou
negligenciar nosso caráter de projeto de extensão universitária, cujo berço
de nascimento coincide exatamente com a vocação de diálogos internos e
externos, de encontros e trocas, de parcerias. Foi atendendo a essa dinâmica
que entendemos por bem receber os artigos inicialmente submetidos à Revista
Letras & Letras, que já contavam com a provação prévia do conselho editorial
daquele periódico e cujos autores aquiesceram com tal ideia. Os artigos que
aqui se publicam foram, suplementarmente, referendados por pareceristas de
nosso Caderno.
A fim de não deixar de atender à publicação de outros trabalhos não vinculados
à temático do dossiê, mas já antes aprovados para publicação, optamos por
dividir o número em duas seções: Dossiê Temático e Textos Livres.
Esperamos, com este modelo experimental, atender às expectativas de nosso
público leitor e cumprir exemplarmente nossas missões, que se sustentam no
dialogismo próprio do tripé que suporta a convivência universitária: Ensino,
Pesquisa e Extensão.
Flavio García
UERJ

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 7
DOSSIÊ temático
Apresentação do dossiê temático

Literatura Fantástica: Vertentes teóricas e ficcionais do insólito

O tema do presente dossiê – “Literatura Fantástica: Vertentes teóricas e ficcionais


do insólito” – tem notável importância no campo dos estudos literários, dada a
abrangência que essa área de estudos vem abarcando nos últimos anos em
universidades brasileiras e estrangeiras. No Brasil, essa abrangência é configurada
especialmente por intermédio da atuação de grupos de pesquisas de diferentes
instituições de ensino superior do país, que vêm abrindo espaço para diálogos
produtivos sobre a manifestação do insólito nas artes, principalmente na literária,
através de cursos, oficinas, eventos acadêmicos e publicações variadas.
Para se ter uma ideia da produtividade dos diferentes grupos de pesquisa na área
em enfoque, faremos um brevíssimo histórico em que ficarão pautados alguns
acontecimentos especialmente relevantes. No ano de 2007, na Universidade
Estadual do Rio de Janeiro – UERJ, instigado pelos excelentes resultados de
um curso que havia ministrado sobre o maravilhoso, o sobrenatural, o estranho,
o realismo mágico e o absurdo, o Prof. Dr. Flavio García, juntamente com seu
grupo de pesquisa, certificado no Diretório de Grupos do CNPq. hoje denominado
“Nós do Insólito”, promoveram o I Painel: Reflexões sobre o Insólito na Narrativa
Ficcional, evento que atualmente se encontra na sua décima segunda edição,
prevista para se realizar de 25 a 27 de março de 2013. No ano de 2009, contando
com a adesão de novos alunos e professores, e dialogando com outros grupos
de pesquisa do país que trabalham com a literatura fantástica, o mesmo grupo
da UERJ organizou o I Encontro Nacional do Insólito como Questão na Narrativa
Ficcional, juntamente com a VI edição dos Painéis, e, em 2012, promoveu o
I Congresso Internacional Vertentes do Insólito Ficcional, coincidindo com a
XI edição dos Painéis. Enquanto todo esse movimento acadêmico acontecia
na UERJ, outro grupo de pesquisa, denominado “Vertentes do Fantástico na
literatura”, certificado, no Diretório de Grupos CNPq em 2008, pela Universidade
Estadual Paulista Júlio de Mesquita Filho – UNESP, tendo como líder a Profa. Dra.
Karin Volobuef, também realizava atividades diversas no sentido de dar relevo
aos estudos sobre as manifestações do fantástico na literatura, e por isso, em
2009, promoveu o I Colóquio Vertentes do Fantástico na Literatura na UNESP
de Araraquara; dois anos depois, ocorreu a II edição do evento na UNESP de
São José do Rio Preto. Em 2010, na Universidade Federal de Uberlândia – UFU,
em Minas Gerais, o Grupo de Pesquisas em Espacialidades Artísticas, também
certificado no Diretório de Grupos CNPq, através de uma de suas linhas teóricas.
voltada para os estudos da literatura fantástica, organizou o Colóquio de Estudos
em Narrativa: História e Ficção no Universo do Fantástico.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 9
Contando com a atuação de docentes e discentes dos três citados grupos e de
outros pesquisadores de diversas universidades de todas as regiões do país,
em julho de 2011, foi criado, junto à Associação Nacional de Pós-Graduação
e Pesquisa Letras e Linguística – ANPOLL, o Grupo de Trabalho “Vertentes
do Insólito Ficcional”, sob a coordenação do Prof. Dr. Flavio García (UERJ)
e da Profa. Dra. Karin Volobuef (UNESP – Araraquara), que apresentou, no
encontro nacional da ANPOLL de 2012, suas linhas de trabalho, os projetos
de pesquisa a ele vinculados, bem como o cronograma de atividades a serem
realizadas, como publicações e eventos para o biênio seguinte. Até a presente
data, a união de tais grupos de pesquisa propiciou ao público acadêmico a
produção de variados livros, seja como resultados dos eventos supracitados,
sejam inerentes a projetos individuais dos pesquisadores.
Com a intensa produtividade dos estudos sobre a literatura que tem como
elemento estruturador o insólito, os professores Flavio García, Karin Volobuef
e Marisa Martins Gama-Khalil decidiram organizar um numero temático sobre
Literatura Fantástica, na Revista Letras & Letras, da UFU. A submissão de
trabalhos à publicação foi imensa, chegando ao numero de mais de setenta
de artigos inscritos, representando recorde de submissões nessa revista desde
a sua fundação. Com esse número volumoso de artigos de pesquisadores de
todas as regiões do Brasil e de pesquisadores de quatro países estrangeiros,
os organizadores do referido número temático decidiram aproveitar os trabalhos
enviados para a publicação não só na Letras & Letras, como encaminhá-los para
outras revistas, das quais alguns desses organizadores participam na equipe
editorial. Para tanto, houve consulta formal aos autores dos artigos submetidos
à publicação na Letras & Letras, e, somente após o explícito aceite por parte
desses, tal empreendimento foi levado a cabo.
É nesse sentido que o Caderno Seminal, acolhendo a mesma temática para
a qual os trabalhos foram produzidos, abriga, nesta presente edição, artigos
acadêmicos enviados inicialmente para a Letras & Letras, textos esses que não
poderiam deixar de vir a público para enriquecer o diálogo científico sobre as
diversas manifestações do insólito na literatura.
A publicação proposta tem como meta agregar trabalhos que discutam as
manifestações da literatura fantástica, em sentido lato, seja partindo de uma
argumentação de ordem teórica, como também refletindo sobre a construção
dessa literatura por intermédio da análise de narrativas que apresentem em sua
trama a irrupção do insólito ficcional. Consideraremos como princípio norteador
a ideia de a literatura fantástica ser uma grande rede que abriga diversas
formas de construção ou manifestação do insólito. Nesse sentido, alargamos
os limites temporais e estéticos impostos pelos estudos todorovianos, admitidos
como paradigmáticos nos estudos da literatura fantástica, e compreendemos
o fantástico em suas mais diversificadas modalidades, desde suas relações

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 10
com os mitos, passando pelo maravilhoso, pelo estranho até as mais recentes
manifestações em que o insólito deixa sua marca na narrativa, por solapar as
aparentes seguranças que o mundo pretensamente “real” nos impõe.
A literatura fantástica, com a apresentação de um mundo tão insólito e plural
como esse que nos rodeia, age no sentido de promover o exagero ou o
deslocamento do real e, por isso, sua representação não nos conduz a uma
negação deste, mas incita uma revisão sua. Para que a revisão se concretize,
é preciso mostrar que não existe Verdade, mas verdades – todas, a um só
tempo, possíveis e, simultaneamente, também impossíveis –, e dar um foco
diferenciado aos fatos expostos ordenadamente pelas instituições, que tentam
discipliná-los e arrumá-los, e é por esse motivo que a literatura fantástica
promove constantes deslocamentos – históricos e estéticos.
No presente dossiê, iniciamos com o artigo de Amanda Pérez Montañés
sobre a presença do duplo na narrativa fantástica de Julio Cortázar, sendo o
duplo entendido como sinônimo e correlato da ficção. Para a autora, o outro,
nas narrativas de Cortázar, revela sempre uma nova e complexa realidade,
uma outra possibilidade de o Eu entender a si e a seu entorno. O artigo de
Ana Luiza Ramazzina Ghirardi oferece ao leitor uma outra manifestação do
insólito, aquele relacionado à literatura popular quebequense, tendo como
objeto de estudo central o Conte populaire de Charles Laberge, para mostrar
a relação entre o imaginário popular e a narrativa fantástica.
As autoras Laila Karla Lima Duarte e Heloísa Siqueira Correia trazem de
novo à cena Julio Cortázar tanto enquanto contista como teórico. Aliada à
voz teórica de Cortázar, entra, para auxiliar na análise proposta, a concepção
de neofantástico cunhada por Jaime Alazraki. As duas narrativas cortazianas
postas em destaque analítico pelas autoras para demonstrarem aos leitores
desta revista as teses elencadas são “Continuidade dos parques” e “Todos os
fogos o fogo”. No artigo de Lígia Pereira de Pádua, o conto “Ligeia”, do grande
mestre da literatura fantástica Edgar Allan Poe, é analisado em contraponto ao
conto “Véra”, de Villiers de L’isle-Adam, para evidenciar de que forma o elemento
fantástico é construído como núcleo estruturador das narrativas e que, sem a
presença de tal elemento, ambas perdem seus principais efeitos de sentido.
Seguindo também a linha de estudo comparatista, Luciano Antonio investe
em uma análise de um conto do consagrado escritor da literatura fantástica
brasileira, Murilo Rubião, e de um conto do escritor argentino já analisado em
outros artigos, Julio Cortázar. O aspecto que realiza o eixo comparatista entre
as duas narrativas é a forma como os dois autores trabalham com o duplo
como elemento desencadeador do insólito ficcional.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 11
Marco Antonio Rodrigues, ainda na perspectiva comparatista, toma como
objetos de análise o romance A jangada de pedra, do português José Saramago,
e O feitiço da Ilha do Pavão, do brasileiro João Ubaldo Ribeiro, com o objetivo
de comprovar que o trabalho com o sobrenatural na contemporaneidade é
acanhado em função de não haver, em nosso tempo, mais espaço para a
utopia. O contemporâneo também entra em foco nas discussões realizadas
por Maria Fernanda Garbero de Aragão sobre dois contos da escritora porto
alegrense Vera Stigger. Nesses contos, a articulista expõe como as cenas de
caos resultante da precária sobrevivência das personagens sugerem que o
sólito é absurda e frequentemente insólito.
Tomando como fundamentação teórica de base algumas noções de Jacques
Rancière, Nuno Manna, por intermédio de narrativas de Edgar Allan Poe,
Nathaniel Hawthorne e Jorge Luis Borges, investiga como a construção da
literatura fantástica se encontra atrelada à noção de política, já que o fantástico
constrói-se a partir das palavras que sobram; ele desfaz leis e desloca os limites
entre a ordem e a desordem. Patrícia Tavares da Cunha Fuza e Ederson
Vertuan enfocam o fantástico pelo viés do discurso da profecia e, para tal
meta, tomam como mote a Canção de Siruiz e a trajetória de Riobaldo, vivida
entre o material e o imaterial, em um solo real dominado pelas leis do místico. O
místico, atrelado ao mítico, também é base das reflexões realizadas por Pedro
Paulo Alves dos Santos, na medida em que elege como tema os diálogos
intertextuais entre a literatura cristã e a literatura clássica. O autor, partindo da
expressão “Lago do fogo”, presente no texto do capítulo 20 de Apocalipse,
elabora uma discussão acerca da intertextualidade do referido enunciado nos
escritos referentes à aventura de Odisseu ao mundo de hádico. Um evento
tipicamente cristão, o Natal, é tema de um conto de Lygia Fagundes Telles
analisado por Rosana Gondim Rezende Oliveira. Em sua análise, a autora
demonstra como as espacialidades que constituem o conto “Natal na barca”
são responsáveis pela deflagração da ambientação fantástica.
Em um dossiê que tem como tema a literatura fantástica, uma análise de
“O Horla”, de Guy de Maupassant, contribui muitíssimo para enriquecer as
discussões. E esse é o caso do artigo de Rosângela de Medeiros que, partindo
das duas versões do referido conto de Maupassant, trata de como o trabalho
com o “outro”, o estrangeiro, é determinante para a configuração do insólito.
Como em alguns artigos anteriores, o tema do estrangeiro relacionado à literatura
fantástica é o mote analítico de Suely Leite em seu artigo sobre o conto “Fronteira
natural” da escritora brasileira Nélida Piñon. Nesse artigo, vemos a associação
entre o estrangeiro e o estranho, por intermédio da leitura que Julia Kristeva faz
da teoria freudiana. O dossiê se encerra com um artigo de cunho essencialmente
teórico, no qual os autores, Wandeir Araújo Silva e Liane Schneider, procuram
compreender como alguns procedimentos narratológicos estudados por Gérard

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 12
Genette são importantes para a construção da literatura fantástica.
Com este dossiê, oferecemos ao leitor quinze visões sobre o fantástico que
demonstram, pela perspectiva teórica e/ou analítica, estratégias discursivas e
temáticas de elaboração estética da literatura que tem o sobrenatural como
elemento de base. Esperamos, nesse sentido, não só contribuir para mapear
algumas formas de compreensão dessa literatura como também instigar novas
possibilidades de interpretação da mesma.
Marisa Martins Gama-Khalil
UFU / CNPq

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 13
EM OUTRO PLANO DO SER: UMA POÉTICA DA DUPLICIDADE
NA NARRATIVA FANTÁSTICA DE JULIO CORTÁZAR

Amanda Pérez Montañés

RESUMO:

Diversos relatos de Julio Cortázar apresentam uma predileção pelo excepcional,


seja nos temas ou nas formas expressivas, impondo ao leitor um modo ambíguo
e paradoxal de compreender a realidade, para além da percepção rotineira do
“real”. A situação causal específica, criada a partir de procedimentos narrativos,
projeta uma nova luz sobre o fato banal, que dessa forma é transformado em
acontecimento dual e surpreendente. Nessa operação metafísica se altera o
sentido da percepção para estabelecer uma nova forma de pensamento que é
paradoxal e subversivo do senso comum. Assim, pelo caminho do não sentido,
o autor/leitor adentra num sistema mais complexo de relações, aglutinante de
uma realidade infinitamente mais vasta em que se projetam dois planos do ser:
um profundo e real, outro, multiplicidade infinita do vir a ser, vazio abismal no
qual o duplo é incluído como habitante. A partir das anteriores considerações,
objetiva-se neste estudo realizar uma reflexão poética sobre a presença do
duplo na narrativa fantástica de Julio Cortázar, entendido esse conceito como
sinônimo e correlato da ficção.

Palavras-Chave:

Literatura Fantástica; Duplo; Relatos; Julio Cortázar.

1. Na sala dos espelhos

Na multiplicidade de possíveis percursos, a linguagem transforma o finito (a vida)


em vastidão infinita (a ficção). O relato torna-se assim lugar de extravio porque,
em sua errância, a escrita vai de um lugar a outro sem poder jamais se deter
nem sair de seu próprio espaço. Ao chegar ao borde da linguagem, as palavras
se detêm porque do outro lado não há nada, só vazio abismal, silencio. O limite
infranqueável da linguagem é precisamente sua impossibilidade de nomear o
inominável, revelando que o fato narrado só é uma invenção, e pelo mesmo aberto
às possibilidades infinitas de criação e recriação da escrita, ou, como afirma
Paz (1993, p. 580), “Em quanto escrevia o caminho de Galta se apagava ou eu
me desviava e perdia em seus meandros. Uma e outra vez precisava voltar ao
ponto de partida. Em vez de avançar, o texto girava sobre si mesmo”.1
1 “A medida que escribía, el camino de Galta se borraba o yo me desviaba y perdía en sus vericuetos. Una y
otra vez tenía que volver al punto de comienzo. En lugar de avanzar, el texto giraba sobre sí mismo”.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 14
No eterno retorno da linguagem, a ficção aspira confundir-se com a realidade,
porém, só é símbolo de um processo que de antemão tem sido definido como
uma derrota: “realidade e ficção se enfrentam, se aniquilam mutuamente, abrem
um vazio que só pode colmar outro relato possível”2 (PEZZONI, 1982, p. 45).
No entanto, esse novo relato também é lembrança do vivido num mundo que
só é representação, simulacro do real.
A realidade só existe porque as palavras a nomeiam. A linguagem se converte
em mundo; e o mundo torna-se linguagem. “O mundo e o livro remetem um ao
outro, eterna e infinitamente, suas imagens refletidas. Esse poder infinito de
espelhamento, essa multiplicação cintilante e ilimitada [...] será, então, tudo o
que encontraremos, no fundo de nosso desejo de compreender” (BLANCHOT,
2005, p. 138). No interior do relato se suspende o tempo real para dar lugar ao
tempo fictício, no qual a escrita encontra seu lugar natural; início da linguagem,
espaço virtual aberto a múltiplas possibilidades de representação no espelho
da própria linguagem. Nessa duplicação infinita, a obra encontra sua dobra
originaria que é autorrepresentação e redobramento:

A escrita significando não a coisa, mas a palavra, a obra de linguagem


não faria outra coisa além de avançar mais profundamente na impalpável
densidade do espelho, suscitar o duplo deste duplo que é já a escrita,
descobrir assim um infinito possível e impossível, perseguir incessantemente
a palavra, mantê-la além da morte que a condena, e liberar o jorro de um
murmúrio3 (FOUCAULT, 1986, p. 9).

Construída na exterioridade do sentido, a escrita representa a fala, encarnação


do logos e da razão, pretendendo assim dar conta da realidade. Porém, a escrita
também é “representação de um território percorrido pelos fantasmas da noite
e da morte, memória de um esquecimento que sempre será esquecimento da
razão”4 (PEREIRA, 1985, p. 11), espaço do imaginário, do fantástico; labirinto
de espelhos em que o homem pode encontrar seu ser multidimensional.

2. Outros planos da realidade

A literatura fantástica, entendida como uma forma privada da atopia constrói


num mundo próprio e intenso a experiência de transformar o sentido imediato
da realidade. Fundado sobre o lado noturno do homem (e não sobre o diurno), o
fantástico coloca em xeque nossa forma de olhar o mundo ao revelar e representar
a perturbação e a inquietação da experiência humana da modernidade. Fala
sobre a interioridade do ser e a simbologia coletiva, por isso mesmo, carregado
2 “[…] realidad e invención se enfrentan, se aniquilan mutuamente, abren un vacío que sólo puede colmar otro
relato posible”.
3 “[…] la escritura, significando no la cosa sino la palabra, la obra de lenguaje, no haría otra cosa que avanzar
más profundamente en este impalpable espesor del espejo, suscitar el doble de este doble que es ya la escritura,
descubrir de esa manera un infinito posible e imposible, perseguir sin término la palabra, mantenerla más allá de la
muerte que la condena, y liberar el centello de un murmullo”.
4 “[…] escenificación de un territorio recorrido por los fantasmas de la noche y de la muerte, memoria de un
olvido que será siempre el olvido de la razón”.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 15
de sentido, oculta em seu interior o inconsciente reprimido atrás da aparência
cotidiana dos fatos, “apresentando na forma de problemas, fatos anormais,
irracionais ou irreais, em contraste com os fatos reais, normais ou naturais”5
(BARRENECHEA, 1978, p. 90). O conflito ocorre quando os eventos anormais
colidem contra a ordem da realidade, e é precisamente nessa fissura em que
o fantástico se manifesta.
Na literatura fantástica hispano-americana do século XX, escritores como Jorge
Luis Borges e Julio Cortázar se destacam, entre outros autores, na produção
de obras primas do gênero. “O modo fantástico mostrou, em todo este período,
uma extraordinária vitalidade, e capacidade de inspirar formas sempre distintas
de representação e de estruturação do imaginário” (CESERANI, 2006, p. 122-
123), aportando ao gênero instrumentos novos, linguagem e uma concepção
também nova de literatura.
Aceita como fantástica pelo próprio autor, “por falta de melhor nome”, a
narrativa de Julio Cortázar (1914-1984), objeto de reflexão neste estudo,
caracteriza-se pela mudança nos paradigmas literários e culturais ao colocar
em crise os pressupostos epistemológicos do leitor, oferecendo por meio de
seus relatos uma nova forma de percepção da realidade. Construído com
precisão rigorosa, o universo fantástico de Julio Cortázar inicia em 1951, com
a publicação de Bestiário (1982), primeiro livro de relatos no qual já aparece
a tônica do fantástico inserida na realidade objetiva. Presa ao real, a narrativa
de Cortázar caracteriza-se por ser uma “escritura poliédrica, polimorfa, cujos
planos da narração parecem refletir outros planos que reverberam em planos
inesperados” (DAMAZIO, 2000, p.15). Para o próprio Cortázar,

A nossa realidade esconde uma segunda realidade (uma realidade


maravilhosa), que não é nem misteriosa nem teológica, mas, ao contrário,
profundamente humana. Ela por causa de uma longa série de equívocos
permanece infelizmente escondida sob uma realidade pré-fabricada por
muitos séculos de cultura, mas uma cultura pode produzir muitas grandes
descobertas, mas também profundas aberrações, profundas distorções
(apud, CESERANI, 2006, p. 123-124).

Em diversos relatos, Julio Cortázar apresenta uma predileção pelo excepcional,


seja nos temas ou nas formas expressivas, impondo ao leitor um modo ambíguo
e paradoxal de compreender a realidade, para além da percepção rotineira do
“real”. A situação causal específica, criada a partir de procedimentos narrativos,
projeta uma nova luz sobre o fato banal que dessa forma é transformado em
acontecimento dual e surpreendente. Nessa operação metafísica se altera o
sentido da percepção para estabelecer uma nova forma de pensamento que é
paradoxal e subversivo do senso comum. Assim, pelo caminho do não sentido,
o autor/leitor adentra num sistema mais complexo de relações, aglutinante de
5 “[...] presentando en la forma de problemas, hechos anormales, irracionales o irreales, en contraste con
hechos reales, normales o naturales”.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 16
uma realidade infinitamente mais vasta, projetando dois planos do ser: um
profundo e real, outro, multiplicidade infinita do vir a ser, vazio abismal em que
o duplo é incluído como habitante.
A manifestação do excepcional, de uma ordem mais secreta e menos
comunicável, cria um sentimento de ambiguidade no leitor ao se deparar com
forças inexplicáveis provenientes de outros planos da realidade, que irrompem
em nossa cotidianidade como se fossem sonhos ou alterações psíquicas da
mente, para revelarem no espaço da ficção a sutil fronteira entre o real e o
irreal. Na narrativa fantástica de Cortázar, a irrupção do ‘outro’ acontece, como
já assinalamos, de forma trivial e prosaica, por meio de fatos insignificantes e
corriqueiros colocados em situações estranhas, que alteram, por isso mesmo,
nossa percepção do real. Como exemplos desse tipo de manifestações
podemos encontrar em Bestiário (1951) ou Final do Jogo (1956), livros nos
quais as projeções do estranho se expressam desde diferentes perspectivas:
às vezes, como identidades duplicadas (La noche boca arriba, Distante, Axolot,
continuidade dos parques), outras, como revelação da diferença (As portas ao
céu, Ônibus, Bestiário, Depois do almoço), para ficar em alguns exemplos.
A diferença de contos em que se apresenta o estranho como algo inexplicável ou
fora do espaço real, os relatos de Julio Cortázar postulam incerteza e ambiguidade
a partir da justaposição de realidades numa duplicidade do ser. Em Distante
(CORTÁZAR, 1986), por exemplo, o ‘outro’ é representado como dualidade, e o duplo
se manifesta num mundo paralelo, correlato da realidade do relato. Alina Reyes,
narradora protagonista relata sua história de vida num diário no qual registra, em
primeira e terceira pessoa, as vozes e delírios de uma personalidade fragmentada
que se funde e se confunde em Alina/mendiga, duplos de se mesma:

Não, horrível. Horrível porque abre caminho a esta que não é a rainha, e
que outra vez odeio de noite. A essa que é Alina Reyes, não a rainha do
anagrama; que será qualquer coisa, mendiga em Budapeste, frequentadora
de prostíbulo em Jujuy ou criada em Quetzaltenango, em qualquer lugar
distante e não rainha6 (CORTÁZAR, 1986, p. 36).

E mais adiante Alina Reyes afirma: “Porque a mim, à distante, não a querem”
(CORTÁZAR, 1986, p. 38), ao se referir a sua própria identidade, revelando a
troca de personalidades num jogo de vozes a partir das quais se constrói o
relato. Dessa divisão emerge a descontinuidade de um sujeito fragmentado,
projetando-se num outro plano da realidade. As personalidades se confundem
na urdidura narrativa alimentando uma à outra e dando ao leitor a possibilidade
de mover-se num horizonte de dimensões duplas no qual as sequências
sistemáticas de “Eu” - “Ela” são vozes em concerto que ordenam a vida da
protagonista e o desenvolvimento da história.
6 “No, horrible. Horrible porque abre camino a ésta que no es la reina, y que otra vez odio de noche. A esa que
es Alina Reyes, pero no la reina del anagrama; que será cualquier cosa, mendiga en Budapest, pupila de mala casa
en Jujuy o sirvienta en Quetzaltenango, cualquier lado lejos e no reina”.

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Dividido em duas partes, o relato narra simultaneamente a vida de Alina Reyes,
mulher rica, frívola, que vive em Buenos Aires num ambiente de festas, luxo e
excentricidades, e seu duplo, a ‘distante’(lejana), uma mendiga de Budapeste
atormentada pela fome e o frio. Alina sente de maneira simultânea a dor e o
sofrimento da mendiga, que é ela mesma,

Lembro-me que um dia pensei: ‘Lá me batem, lá a neve entra em meus sapatos,
e eu sei disto na hora, quando lá está me acontecendo eu fico sabendo
na mesma hora. Mas por que na mesma hora em que está acontecendo?
Talvez chegue tarde, talvez não tenha acontecido ainda. Talvez baterão nela
daqui a quatorze anos, ou já é uma cruz e um número no cemitério de Santa
Úrsula7 (CORTÁZAR, 1986, p. 42).

Ao final da história, produz-se a fusão das personalidades de Alina Reyes para


dar lugar a outra voz que até o momento não tinha se apresentado na narração.
Ao cruzar a ponte (lugar de encontro e separação), cria-se a passagem da
interioridade à exterioridade, e é precisamente o momento da simbiose das duas
personalidades que se acoplam para se dividir de novo de maneira imperceptível
e surpreendente. Como se houvesse uma superposição de identidades, Alina
convertida em mendiga grita:

Ao abrir os olhos (talvez gritasse agora) viu que se haviam separado. Agora,
sim, gritou. De frio, porque a neve estava entrando por seus sapatos furados,
porque andando a caminho da praça ia Alina Reyes, lindíssima em seu
vestido cinzento, o cabelo um pouco solto contra o vento, sem voltar o rosto
e andando8 (CORTÁZAR, 1986, p. 47).

Em La noche boca arriba (CORTÁZAR, 2004a), relato cuja história faz referência
ao ritual asteca do sacrifício humano na época da ‘guerra florida’, é outro dos
contos no qual Cortázar alude à dualidade do ser, mas a diferencia de Distante,
- nesse caso vemos a duplicidade a partir da interpenetração de realidades
temporais, do salto da interioridade (manifestada pela febre, o sonho, o pesadelo,
a antiguidade pré-hispânica) - e à exterioridade (o acidente, o hospital, a vigília,
a modernidade), revelando, assim, a luta interior do homem para atingir um
desenvolvimento mais excelso de sua consciência.
No relato, os desdobramentos temporais se produzem num ir e vir de realidades
estabelecidas a partir dos estados de sonho e de vigília, instaurando uma atmosfera
onírica e surreal. Um homem do século XX que sofre um acidente de moto é
internado num hospital, e em estado febril sonha ser um índio moteca que está
sendo perseguido pelos astecas para sacrificá-lo aos deuses na guerra florida:

7 “Me acuerdo que un día pensé: ‘Allá me pegan, allá la nieve me entra por los zapatos y esto lo sé en el mo-
mento, cuando me está ocurriendo allá yo lo sé al mismo tiempo. ¿Pero por qué al mismo tiempo? A lo mejor me llega
tarde, a lo mejor no ha ocurrido todavía. A lo mejor le pegarán dentro de catorce años, o ya es una cruz y una cifra en
el cementerio de Santa Úrsula”.
8 “Al abrir los ojos (tal vez gritaba ya) vio que se habían separado. Ahora sí gritó. De frío, porque la nieve le
estaba entrando por los zapatos rotos, porque yéndose camino de la plaza iba Alina Reyes lindísima en su sastre gris,
el pelo un poco suelto contra el viento, sin dar vuelta la cara y yéndose”.

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Como sono era curioso, porque estava cheio de cheiros e odores que nunca
sonhou. Primeiro um cheiro pantanoso, pois do lado esquerdo da estrada
começam os pântanos, o tremor de onde ninguém jamais voltou. Mas o
cheiro cessou e em seu lugar veio uma fragrância composta e escura como
a noite na qual fugia dos astecas. E tudo era tão natural, tinha que fugir
dos astecas, que estavam á caça de homens, e sua única chance era se
esconder no meio da selva, tomando cuidado para não afastar-se da estreita
estrada que só eles, os Motecas, conheciam [...] Então pegou uma baforada
do cheiro terrível que ele temia, desesperado saltou para frente. -Vai cair
da cama, disse o paciente lado- Não pule muito meu amigo9 (CORTÁZAR,
2004a, p.228, tradução nossa).

Porém, em determinado momento do relato, o moteca também sonha ser um


homem do século XX, que sofreu um acidente de moto e é internado num
hospital. Os dois sonham ser outro, que é a mesma pessoa, mas no decorrer
da história os limites entre o real e o sonho se diluem cada vez mais numa
perspectiva em que fica difícil saber quem é o sonhador e quem é o sonhado:

Era difícil manter os olhos abertos, a sonolência foi mais forte do que ele.
Fez um último esforço, com a mão boa esboçou um gesto em direção à
garrafa de água; não chegou a tomá-la, seus dedos se fecharam em um
vazio negro, e a passagem foi interminável, rocha trás rocha, com súbitas
erupções avermelhadas, e ele de cabeça para acima gemeu vagamente
porque o teto estava prestes a terminar, ascendia, abrindo-se como uma
boca de sombra, os acólitos se levantavam e uma lua minguante caiu sobre
seu rosto onde os olhos não queriam vê-la, desesperadamente fechavam-se
e abriam tentando passar para o outro lado, redescobrir o teto de proteção
da sala10 (CORTÁZAR, 2004a, p.234, tradução nossa).

Pelos pesadelos, o homem do século XX sabe da existência do índio moteca


(duplo de si mesmo num outro estado de consciência), mas nega-se a reconhecê-
lo, lutando para se manter acordado. Ao mesmo tempo, o índio moteca quando
é caçado e levado à força ao teocalli, e diante da iminência da morte debate-
se lutando por despertar, chorando para voltar ao hospital onde ele acredita
estar sua verdadeira existência.
No jogo de temporalidades, podemos perceber duas perspectivas de interpretação:
uma remete a caça dos astecas na guerra florida e os sacrifícios humanos na
antiguidade pré-hispânica, outra representa a luta do homem da modernidade
para sair da materialidade e atingir seu ser superior. O conflito gerado por
9 “Como sueño era curioso porque estaba lleno de olores y él nunca soñaba olores. Primero un olor a pantano,
ya que a la izquierda de la calzada empezaban las marismas, los tembladerales de donde no volvía nadie. Pero el olor
cesó, y en cambio vino una fragancia compuesta y oscura como la noche en que se movía huyendo de los aztecas. Y
todo era tan natural, tenía que huir de los aztecas que andaban a la caza de hombre, y su única probabilidad era la de
esconderse en lo más denso de la selva, cuidando de no apartarse de la estrecha calzada que sólo ellos, los motecas,
conocían […] Entonces sintió una bocanada horrible del olor que más temía, y saltó desesperado hacia adelante.-Se
va a caer de la cama – dijo el enfermo de al lado-. No brinque tanto, amigazo”.
10 “Le costaba mantener los ojos abiertos, la modorra era más fuerte que él. Hizo un último esfuerzo, con la
mano sana esbozó un gesto hacia la botella de agua; no llegó a tomarla, sus dedos se cerraron en un vacío negro, y el
pasadizo seguía interminable, roca tras roca, con súbitas fulguraciones rojizas, y él boca arriba gimió apagadamente
porque el techo iba a acabarse, subía, abriéndose como una boca de sombra, los acólitos se enderezaban y de la
altura una luna menguante le cayó en la cara donde los ojos no querían verla, desesperadamente se cerraban y abrían
buscando pasar al otro lado, descubrir de nuevo el cielo raso protector de la sala”.

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essa luta interior é o desafio existencial da consciência para transcender sua
materialidade. Na persecução vivida pelo moteca, o ‘cheiro da guerra’ é o
cheiro mais temido porque significa o enfrentamento inevitável com a morte,
momento de purificação e revelação da verdade última. A purificação, símbolo
da transcendência, revela a luta do homem por atingir um estado superior. O
caráter antitético da consciência humana se estabelece precisamente nessa
luta interior que surge do questionamento acerca da essência do homem.
Ao final da história, o narrador revela que o sonhador não é o homem do século
XX, mas o índio moteca. No entanto, o caráter ambíguo do final deixa em aberto
um jogo de possibilidades de interpretação em virtude de o próprio sonho
poder representar a consciência do sonhador acidentado ou a consciência
do índio moteca:

Conseguiu fechar suas pálpebras novamente, mas agora ele sabia que não
iria acordar, que estava acordado, que o sonho maravilhoso tinha sido o
outro, absurdo como todos os sonhos; um sonho no qual ele tinha andado
pelas avenidas estranhas de uma cidade surpreendente11 (CORTÁZAR,
2004a, p.234, tradução nossa).

Nessa bipolaridade entre o sonho e a vigília, não podemos determinar com


clareza quem é o sonhador e quem é o sonhado; sem embargo, sim, podemos
estabelecer um eterno retorno entre sonhador - sonho - sonhador, passando
nesses ciclos de sonho para estados de vigília.
Esse sentimento de estranheza e de angústia, que assalta o homem quando
tem consciência de sua individualidade quando percebe que vive separado
dos outros, também pode ser chamado de otredad. Nas palavras de Octavio
Paz (1993, p. 36), a otredad “é a revelação da perda da unidade do ser do
homem”, sempre pensada como uma busca da identidade, do reconhecimento
do eu. Para encontrar os diferentes fragmentos que conformam o multifacetado
eu, é necessário estabelecer um plano paralelo à nossa realidade na qual o
ser possa se manifestar plenamente.
A partir da consciência da otredad, realiza-se um processo de justaposição
de realidades e transposição temporal que nos enfrenta com o novo, com o
“outro”, sendo forçados a reconhecer sua real existência. É precisamente essa
vivência que acontece em ‘Axolotl’ – um relato que começa com uma terrível
afirmação: “Houve um tempo em que eu pensava muito nos axolotl. Ia vê-los
no aquário do Jardin des Plantes e ficava horas olhando-os, observando sua
imobilidade, seus obscuros movimentos. Agora sou um axolotl”12 (CORTÁZAR,
2004a, p. 212, tradução nossa).
11 “Alcanzó a cerrar otra vez los párpados, aunque ahora sabía que no iba a despertarse, que estaba despi-
erto, que el sueño maravilloso había sido el otro, absurdo como todos los sueños; un sueño en el que había andado
por extrañas avenidas de una ciudad asombrosa […]”.
12 “Hubo un tiempo en que yo pensaba mucho en los axolotl. Iba a verlos al acuario del Jardin des Plantes y
me quedaba horas mirándolos, observando su inmovilidad, sus oscuros movimientos. Ahora soy un axolotl.”

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De pouco em pouco, o narrador vai ficando hipnotizado por esses pequenos
anfíbios, que descobriu “por azar” um dia no aquário do Jardin des Plantes e,
à força de visitá-los diariamente, começa um diálogo mudo e intenso com eles,
obcecado pela ideia de que essas larvas queriam se comunicar com ele, de
que haveria neles qualquer coisa de terrivelmente humano:

Comecei vendo nos axolotl uma metamorfose que não conseguia anular uma
misteriosa humanidade. Eu os imaginei conscientes, escravos de seu corpo,
infinitamente condenados a um silêncio abissal, a uma reflexão desesperada.
Seu olhar cego, o diminuto disco de ouro inexpressivo e sem dúvida, terrivelmente
lúcido, me penetrava como uma mensagem: <<salve-nos, salve-nos>>. Eu me
surpreendia murmurando palavras de consolo, transmitindo ingênuas esperanças.
Eles continuavam me olhando, imóveis [...] Nesse instante eu sentia uma dor
surda; talvez me vissem, captavam meu esforço em penetrar no impenetrável de
suas vidas. Não eram seres humanos, mas em nenhum animal havia encontrado
uma relação tão profunda comigo13 (CORTÁZAR, 2004a, p. 215, tradução nossa).

Um axolotl, que no passado foi um homem, agora mantém uma estranha


comunicação com seu antigo corpo, transformação, como já vimos, revelada
desde o início do relato. Mas, à medida que a narração avança, a situação
torna-se inquietante e o processo de osmose vai transformando o narrador num
axolotl: “Não há nada de estranho nisso; logo desde o primeiro instante eu senti
que alguma coisa me ligava a eles, algo muito longínquo e esquecido que, no
entanto, continuava a nos unir”14 (CORTÁZAR, 2004a, p. 212, tradução nossa).
O processo de metamorfoses do homem-axolotl ou do axolotl-homem já se
encontra presente na própria palavra axolotl, que em nahuatl significa larva, e
em latim larva significa também máscara ou fantasma. Máscara ou fantasma
de quem, senão dele próprio. Eis o abismo insondável que o eu deve vencer
para chegar a ser aquele que não é: a “otredad”, a excisão primordial:

Sem transição, sem surpresa, vi minha cara contra o vidro, ao invés do axolotl vi
minha cara contra o vidro, eu a vi fora do aquário, eu a vi do outro lado do vidro.
Então ela se distanciou e eu compreendi. Só uma coisa era estranha: continuar
pensando como antes, saber. Dar-me conta disso foi, no primeiro instante, como
sentir o horror de quem é enterrado vivo e logo desperta para seu destino [...] Ou eu
estava também nele, ou todos nós pensávamos como um homem, incapazes de
qualquer expressão, limitados ao resplendor dourado de nossos olhos que olhavam
a cara do homem colada no aquário15 (CORTÁZAR, 2004a, p. 217, tradução nossa).
13 Empecé viendo en los axolotl una metamorfosis que no conseguía anular una misteriosa humanidad. Los
imaginé conscientes, esclavos de su cuerpo, infinitamente condenados a un silencio abisal, a una reflexión deses-
perada. Su mirada ciega, el diminuto disco de oro inexpresivo y sin embargo terriblemente lúcido, me penetraba
como un mensaje: <<sálvanos, sálvanos>>. Me sorprendía musitando palabras de consuelo, transmitiendo pueriles
esperanzas. Ellos seguían mirándome, inmóviles [...] En ese instante yo sentía como un dolor sordo; tal vez me veían,
captaban mi esfuerzo, por penetrar en lo impenetrable de sus vidas. No eran seres humanos, pero en ningún animal
había encontrado una relación tan profunda conmigo”.
14 “No hay nada de extraño en esto, porque desde un primer momento comprendí que estábamos vinculados,
que algo infinitamente perdido y distante seguía sin embargo uniéndonos”.
15 “Sin transición, sin sorpresa, vi mi cara contra el vidrio, en vez del axolotl vi mi cara contra el vidrio, la vi fuera
del acuario, la vi del otro lado del vidrio. Entonces mi cara se apartó y yo comprendí. Sólo una cosa era extraña: seguir
pensando como antes, saber. Darme cuenta de eso fue en el primer momento como el horror del enterrado vivo que
despierta a su destino [...] O yo estaba también en él, o todos nosotros pensábamos como un hombre, incapaces de
expresión, limitados al resplandor dorado de nuestros ojos que miraban la cara del hombre pegada al acuario”.

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O inquietante adquire maior intensidade no último parágrafo do conto quando
se invertem totalmente as perspectivas, deixando o leitor estupefato perante
tão incrível paradoxo. Desta vez é o narrador que se encontra no aquário e
pensa no homem que de vez em quando o vem visitar, cada vez menos agora,
já liberto da sua terrível obsessão: “E nesta solidão final para a qual ele não
voltará mais, resta-me o consolo de pensar que talvez ele escreva qualquer
coisa sobre nós; vai pensar que inventa um conto e vai escrever tudo isso sobre
axolotls”16 (CORTÁZAR, 2004a, p. 218, tradução nossa).
No desfecho do relato, a ficção torna-se ambígua quando o axolotl, com mente
de homem, conclui que o homem que ele foi, no passado, vai escrever uma
história sobre a transmigração de sua mente tal como se tivesse sido imaginada.
Assim, a visão do narrador do conto se entrelaça com a visão do axolotl do
narrador, e desse entrelaçamento surge a significação do conto.
Um jogo de possibilidades emerge da contemplação que o narrador faz do
outro ser ao ponto de se fusionar com a consciência do sujeito que contempla
e do sujeito contemplado. O eu do narrador é homem e axoltl ao mesmo tempo,
e ao reencarnar no outro compreende sua dupla condição mental, sua nova
forma, em que pode apreciar a sutileza desse seu novo estado de consciência,
eu e outro, essa otredad que sou eu:

Como a única coisa que faço é pensar, pude pensar muito nele. Eu me dou
conta de que desde o princípio permanecemos em comunicação, que ele
se sentia mais do que nunca unido ao mistério que era sua obsessão. Mas
as ligações entre ele e eu estão cortadas, porque o que era sua obsessão
é agora um axolotl, alheio à sua vida de homem. Creio que no princípio eu
era capaz de regressar a ele, de certo modo – ah, apenas de certo modo
– e manter desperto o seu desejo de nos conhecermos melhor. Agora sou
definitivamente um axolotl, e se penso como homem é somente porque
todo axolotl pensa como um homem dentro de sua imagem de pedra rosa17
(CORTÁZAR, 2004a, p. 217-218, tradução nossa).

A metamorfose vivida pelo narrador do relato explica a estranheza que produz


em nós a leitura do conto. A angústia e a ambigüidade, experimentadas pelo
leitor, surgem da possibilidade de que esse mesmo fato possa suceder em
seu próprio mundo, ao se dar conta que o sinistro nos espreita, e em qualquer
momento pode transpassar os limites do texto, tomando conta de nossa realidade.
Resta ao leitor decidir em qual plano da realidade vai se instalar.

16 “Y en esta soledad final, a la que él ya no vuelve, me consuela pensar que acaso va a escribir sobre no-
sotros, creyendo imaginar un cuento va a escribir todo esto sobre los axolotl”.
17 “Como lo único que hago es pensar, pude pensar mucho en él. Se me ocurre que al principio continuamos
comunicados, que él se sentía más que nunca unido al misterio que lo obsesionaba. Pero los puentes están cortados
entre él y yo, porque lo que era su obsesión es ahora un axolotl, ajeno a su vida de hombre. Creo que al principio yo
era capaz de volver en cierto modo a él – ah, sólo en cierto modo – y mantener alerta su deseo de conocernos mejor.
Ahora soy definitivamente un axolotl, y si pienso como hombre es sólo porque todo axolotl piensa como un hombre
dentro de su imagen de piedra rosa.”

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Considerações Finais

No corpo textual, as vozes se conjugam para dar lugar a uma sucessão de


imagens que revelam e ocultam os sentidos perdidos do texto. Na multiplicidade
de percursos, a linguagem, zona marginal na qual tudo é possível, transforma o
tempo e o espaço “real” em território do imaginário, recuperando em outro plano
o que a realidade nos furta. Assim, a linguagem faz da escrita um espelho cuja
função seria “refletir” ou “representar” a língua. Porém, ao final esse espelho
termina traindo a imagem refletida: junto a ela faz emergir outra imagem, outra
cena que é o espaço do imaginário: “Espaço fantasmático onde o desejo tece
as figuras de sua monstruosidade, fazendo desse denso tecido textual uma
figura monstruosa em si mesmo, que recorta sua diferença contra o fundo
homogêneo de todo saber e discurso”18 (PEREIRA, 1985, p. 12, tradução nossa).
No imaginário cortazariano a narrativa potencializa e corporiza fantasmas por
meio de um duplo e contraditório movimento de forças em choque, que não
emergem da luz, mas das obscuras zonas do sonho e da mente projetadas
no espaço da realidade para preservar a possibilidade do ‘real’. Da mesma
forma, o duplo manifesta-se como figura metamorfoseada no texto para fazer
emergir um corpo textual que tenta fusionar-se no tecido virtual da escrita como
identidade ou diferença. Um que é também idêntico e diferente ao mesmo
tempo, reflexo ou sombra de si mesmo. Condição dilacerada do ser, suspensa,
sem poder recobrar sua verdadeira identidade, situada num limite movediço
que divide e separa. Nem cá nem lá, zona de incertezas, lugar do imaginário
e, mesmo assim, real, porque em sua ambiguidade a ficção torna possível a
sua impossibilidade.
As vertigens do duplo cortazariano revelam novas realidades nas quais “eu sou
outro eu”, desdobrado ou transvestido nos fragmentos de mim mesmo. Nessa
poética, não há lugar para as leis da identidade, só contradição e exclusão da
lógica e da razão. Porém, se concebemos o real como uma dimensão em que
também se alberga “o irreal”, a lógica causal primeira transforma-se em “aparição”,
permitindo assim a manifestação de uma presença invisível e silenciosa, antes
oculta pela lógica causal do real, que agora se revela para dar espaço a essa
nova realidade, mas complexa e ilimitada em sua multiplicidade ficcional. Não
um reflexo nem um sonho ou devaneio, simplesmente uma aparição no lugar
impalpável da ficção.

18 “Espacio fantasmático, pulsional, en el que el deseo teje las figuras de su monstruosidad, haciendo a su vez
de ese denso tejido textual una figura monstruosa en sí mismo, que recorta su diferencia contra el fondo homogéneo
de todo saber y todo discurso”.

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Another Plane of Being: The Poetry of Duplicity
in Julio Cortázar’s Fantastic Narrative

ABSTRACT:

Diverse reports of Julio Cortázar present a predilection for the exceptional,


whether in themes or the form of expression, imposing upon the reader an
ambiguous and paradoxical manner of comprehending reality, going beyond
the routine perception of “real”. The specific causal situation, created through
narrative processes, projects a new light upon the trivial fact that this form is
transformed into dual and surprising happening. In this metaphysical operation,
the sense of perception towards establishing a new form of thinking which is
paradoxical and subversive of common sense is altered. Thus, along the path
of nonsense, the author/reader enter a more complex relationship system,
bound to an infinitely vaster reality on which two planes of being are projected;
one profound and real and the other the infinite multiplicity of coming to be, an
abysmal emptiness in which the dual is included as an inhabitant. Based on
previous considerations, this study seeks to achieve poetic reflection upon the
presence of the dual in the fantastic narrative of Julio Cortázar, understanding
this concept as a synonym and correlate to fiction.

Keywords:

Fantasy Literature; Dual; Reports; Julio Cortázar.

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Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 24
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Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 25
O DIABO NÃO FOI CONVIDADO:
CONTO FANTÁSTICO E TRADIÇÃO QUEBEQUENSE

Ana Luiza Ramazzina Ghirardi

Resumo

Quando parte do Canadá ainda se chamava Nova França, a língua francesa


encontrava entraves para se consolidar em sua forma escrita e, por isso, a literatura
quebequense conheceu um nascimento tardio. Por aproximadamente um século,
ela se confina quase totalmente à dimensão oral, conhecendo suas primeiras
manifestações escritas apenas quando seu povo começa a resgatar da memória
ancestral canções, contos e lendas. No século XIX, essa literatura escrita revela
uma nova figura narrativa, a do contador. Este é um simples e fiel transcritor que
adapta histórias criadas pela imaginação popular, ocorridas na França ou na
colônia. Elas são objeto de crença popular e revelam o fantástico e o maravilhoso,
descrevendo personagens quotidianos como símbolo de uma cultura que existe e
que resiste. Este artigo se propõe a percorrer brevemente a história do Quebec e
verificar como, inicialmente, prevaleceram as narrativas orais. Em seguida, mostra o
desejo de um povo de estabelecer uma literatura escrita, literatura que irá resgatar
histórias do universo oral. Como fio condutor, analisa-se o Conte Populaire de
Charles Laberge sob a ótica de Propp (2010) e se sugere como essa mudança
da literatura oral para a escrita impactou a criação de uma linguagem fantástica.

Palavras-chave:

Literatura quebequense; literatura fantástica; identidade; literatura oral

O fantástico, a história: identidade cultural e a gênese dos contes


fantastiques quebequenses

O que nos leva a acreditar que no decorrer de uma festa o diabo possa chegar
como um personagem não convidado? Como a narrativa literária nos leva por
caminhos que nos conduzem por situações fantásticas que, normalmente,
dificilmente nos convenceriam? Por meio de quais artifícios o texto nos seduz?
O leitor, apesar de se ver diante de uma situação aparentemente sem qualquer
verossimilhança, encontra-se capturado por uma narrativa capaz de convencê-
lo de movimentos extraordinariamente fantásticos. Através de uma linguagem
convincente, o leitor é surpreendido por estratégias discursivas que o levam a
acreditar em diabos, cafeteiras que se transformam em damas, pés de múmias com
vida própria, etc. Que efeitos são esses que nos conduzem ao universo fantástico?

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No Quebec, o mundo fantástico dá seus primeiros passos a partir de uma
tradição oral que tem sua origem nos fatos históricos e na sua crença popular.
As tradições francesas combinadas com o cenário do Novo Mundo e com o
desejo de construir uma nova identidade mesclam-se para construir a base
imaginativa sobre a qual se estruturam os contes fantastiques quebequenses,
de sabor tão particular. Assim, para jogar um pouco de luz nesse universo,
importa fazer um sobrevoo sobre as origens históricas desse povo e de seu
desejo de narrar. De fato, pensar em contos fantásticos dentro da tradição
quebequense, requer, primeiramente, relembrar um pouco da história do Canadá
e sua ligação com a França na época da colonização.1
A história começa em 20 de abril de 1534 quando Jacques Cartier é incumbido
por François I, rei da França, de explorar o Canadá e a região do rio Saint-Laurent.
Ao chegar à praia de Gaspé, no golfo Saint-Laurent, Cartier finca uma cruz e
reivindica a posse do continente para o rei cristão. Esse gesto que aproxima
religião e território aponta, desde o princípio para uma conexão fundamental
no imaginário do futuro povo do Quebec – como se verá em Conte Populaire.
Na França, o século XVI é um período de guerras entre católicos e protestantes.
Ecos dessa importância crucial da religião (e da violência que se pode fazer em
seu nome) chegam por certo ao Canadá que, no entanto, não oferecia naquele
momento grandes atrativos à nação francesa. Durante um longo período, o
Canadá fica esquecido pelos franceses e é preciso mais de cinquenta anos para
que, em 3 de julho de 1608, o explorador francês Samuel de Champlain funde
a cidade de Quebec. Ao criar a Nova França, Champlain tem como objetivo
primeiro incentivar o comércio de peles. Significativamente, a iniciativa vem em
conjunto com a intenção de colocar em prática a conversão dos indígenas. O
encontro da tradição cristã e das lendas dos nativos iria constituir, posteriormente,
o material de base para a construção do fantástico quebequense.
Quase quarenta anos depois, em 1642, é fundada a cidade de Montreal. A
partir daí, os franceses procuram se instalar nesse território da América do
Norte. A cidade de Quebec se desenvolve rapidamente até se tornar mais tarde
a capital da Nova França; inicia-se, então, um período em que o interesse da
França pelo Canadá se intensifica: os hábitos de vestuário do rei Louis XIV e
de sua corte transformam em produto extremamente vailoso a pele de castor.
Em que pese este surto econômico, a população da Nova França em seu total
continua pequena: em 1663, o Canadá abriga pouco mais de três mil habitantes
permanentes. Muitas mulheres eram enviadas da França como “noivas” para
equilibrar a distribuição de gêneros na colônia dominada exclusivamente por
homens. A dança dos jovens contada em Conte Populaire ilustra bem as
tensões e os medos das relações entre os gêneros. A vontade de aumentar
1 Os dados aqui apresentados têm como fonte Morton,D. Breve História do Canadá, São Paulo: Ed. Alfa-
Omega, 1989

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a população é grande porém, é preciso um século para que a Nova França
consiga ampliar seu número de habitantes para sessenta mil.
Mas a lenta expansão demográfica não significa que o interesse por peles
de castor não fosse ter efeitos importantes. Louis XIV concede o território da
colonia a uma companhia, la Compagnie des Indes Occidentales, e reestrutura
a administração sob os moldes das províncias francesas. A Nova França entra
então em um período de expansão e seu território se estende gradualmente
do Atlântico aos Grandes Lagos e da Baia de Hudson ao Golfo do México. Os
franceses se mostram negociantes hábeis com os indígenas, mas lhes falta
uma marinha poderosa e “determinação para igualar o fluxo de milhares de
imigrantes”2 que chegavam para as Treze Colônias vindos da Grã-Bretanha.
Guerras sucessivas entravam esse crescimento e, ainda em 1689, a Nova
França conta apenas com 12.000 habitantes espalhados sobre um território
imenso, comparativamente aos 250.000 das colônias inglesas. No momento
em que se inicia a guerra da Conquista (1756-1763), as colonias inglesas são
vinte vezes mais populosas que a colônia francesa. A sensação e solidão,
dos amplos espaços vazios, compõem um pano de fundo sobre o qual a
imaginação dos nativos das amplas planícies irá tecer histórias mesclando as
tradições nativa e cristã.
Em 1760, um evento militar iria ser decisivo para a construção de uma identidade
quebequense distinta daquela que se tornaria mais tarde canadense: a Inglaterra
conquista militarmente a Nova França. Quebec é capturada e Montreal cercada
por britânicos; as tropas francesas voltam para a metrópole. Após um século
e meio de criação da Nova França, os franceses deixam a colônia para trás.
Em 1763, o Tratado de Paris, coloca fim à guerra de Sete Anos e promove
a reconciliação entre França, Grã-Bretanha e Espanha. A sobrevivência da
cultura francesa depende agora desses imigrantes que, por sua vez, farão dela
elemento decisivo para a construção de sua identidade.
Com a Conquista, inicia-se a presença inglesa no Quebec. Os administradores
franceses voltam rapidamente para a França e a elite britânica se instala em seu
lugar. O território que se chamava Canadá se torna a província de Quebec, o
governador francês é substituído por um inglês e, com isso, as peles de castor
começam a ser enviadas para o mercado inglês. Ainda como consequência
do domínio inglês, a fé Católica é substituída pela Protestante. Mesmo com
tudo isso, “os canadiens3 manteriam seu idioma, sua lei civil e suas instituições
religiosas”4. O cenário é favorável aos ingleses. Após a independência dos
Estados Unidos, numerosos Lealistas emigram para a América do Norte britânica
e a proporção anglófona da população passa a aproximadamente 15%.

2 Morton, 1989, p. 25
3 Colonos vindos da França ou seus descendentes.
4 Morton, 1989, p. 27

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Em 10 de junho de 1791, o Ato constitucional 5 divide a colônia em duas
províncias: O Baixo-Canadá (o Quebec, região oriental) para os canadenses
franceses e o Alto-Canadá (o Ontario) para os colonos ingleses e lealistas ali
desenvolverem uma sociedade britânica. As linhas de divisão entre culturas e
histórias se estabelecem politicamente. Caberá aos canadiens construir uma
narrativa que dê sentido à sua experiência frente ao perigo, sempre presente,
de dominação pela cultura anglófona. Pode-se notar um progresso demográfico
nessa nova civilização, em 1784 os habitantes passam a 110 mil e em 1812, a
330 mil.6 O Baixo-Canadá se angliciza. Em 1812, a maioria dos habitantes de
Montreal fala inglês, assim como os moradores de Quebec.

O nascimento da literatura quebequense

• Da literatura oral à escrita

“(...) Longtemps après la Conquête de 1760, le français a continué d’être la


langue des fourrures dans l’espace américain, et le rêve d’une Amérique
française a poursuivi les esprits jusqu’à la fin du XIXe siècle, alimenté par
l’exode des Québecois vers les États-Unis et la fécondité remarquable des
Canadiens français.” (Plourde, 2003, p. XXVII)7

Após a Conquista inglesa de 1760, a quase totalidade da classe letrada volta


para a França. Nesse momento, havia “um choque de línguas” na colônia:
enquanto que a administração era de língua inglesa, a grande maioria da
população era de língua francesa. Contudo, a distância era grande e os canadiens
ficavam confinados aos modos da língua francesa conforme prevalentes em
seu território, sem nenhuma ligação com a evolução da língua francesa na
metrópole. Mas, semelhante ou diverso do francês metropolitano, o idioma se
revela, a partir daqui, como fator absoluto de afirmação identitária. A literatura
oral, traduzida por histórias contadas, ganha assim enorme importância: ela é
o foco de resistência de uma cultura e de um modo de dizer.

“C’est dans le cadre de la nouvelle constitution de 1791 que la question


linguistique se politise. [...] Les Canadiens défendent alors le français non
parce qu’ils veulent en faire une langue hégémonique, mais parce qu’ils doivent
résister aux pressions anglicisantes qui, elle, veut imposer la domination
absolue de l’anglais. (Monière, Denis in Plourde, 2003, pp. 105-106)8

5 lei adotada pelo Parlamento britânico cujo principal objetivo era satisfazer os pedidos de lealistas que tinham
deixado os Estados Unidos após a guerra da Independência americana - 1775-1783
6 Morton, 1989, p. 27
7 (...) Muito tempo depois da Conquista de 1760, o francês continuou a ser a língua das peles no espaço ameri-
cano, e o sonho de uma América francesa perseguiu os espíritos até o fim do século XIX, alimentado pelo êxodo dos
quebequenses em direção aos Estados Unidos e a fecundidade notável dos canadenses franceses.” (Plourde, 2003,
p. XXVII, tradução nossa)
8 “É no quadro da nova constituição de 1791 que a questão linguística se politiza. [...] Os canadenses defen-
dem então o francês não porque eles querem fazer dele uma língua hegemônica, mas porque eles devem resistir às
pressões anglicizantes que quer impor o domínio absoluto do inglês.” (Monière, Denis in Plourde, 2003, pp. 105-106,
tradução nossa)

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A língua francesa representará, então, um dos elementos que formará a
nacionalidade canadense e seu uso, a cada dia mais ampliado na década
de 1840-1850, acabará por se tornar o símbolo que unirá uma nação que
se recusa a aceitar a assimilação.9 A ascensão da Inglaterra como potência,
entretanto, e o declínio relativo do poderio francês fazem com que, a língua
francesa perca seu caché político o que, no território americano, faz com que
ela esteja sempre ameaçada de um desaparecimento total. A França, após a
derrota para os britânicos, como já dissemos, desiste da colônia e cria uma
distância entre sua nação e aquela canadense.10
No que diz respeito especificamente à sua literatura escrita, quando o Canadá ainda
se encontra sob o domínio de Louis XIV sob o nome de Nova França, encontramos
um conjunto de textos da literatura quebequense compostos sob o Antigo Regime:
são os chamados écrits coloniaux. Os escritos coloniais descrevem a gestão do
país e representam, em si mesmos, sua literatura; são obras de exploradores,
de colonos e de nativos do Canadá. Esses textos permitem descobrir as mais
profundas raízes da identidade quebequense. São representantes desse período
Jacques Cartier, Samuel de Champlain (os dois navegadores franceses que
compõem escritos sobre suas expedições), Marie Morin (religiosa, escritos sobre
a história de sua comunidade religiosa e as guerras iroquoises), Gabriel Sagard
(sacerdote, escritos sobre os costumes dos Hurons e as aventuras de sua missão)
e Jean Brébeuf (jesuíta, escrito sobre os ritos de morte dos Hurons).11 Como se
pode notar, esses textos da primeira literatura gravitavam em torno da colonização
e da religião e tinham um caráter utilitário e não ficcional.
Após essa primeiro período, encontramos um início de comunicação escrita
veículada de pessoa a pessoa e constituída por pessoas anônimas que faziam a
informação circular. Em 21 de junho de 1764, o primeiro jornal canadense bilíngue,
La Gazette de Québec/The Quebec Gazette, é impresso no Quebec12; Montreal
terá uma imprensa apenas quatorze anos depois. A importância da imprensa se
mostra fundamental nesse período pois impulsiona a literatura de ficção a dar seus
primeiros passos nos rumos daquela fusão de literatura antiga e contemporânea
que se espalhava nos jornais da época (James Huston, Octave Crémazie, Philippe
Aubert, entre outros). A literatura começa então a se diversificar e gêneros literários
como o romance, o conto, a poesia e a crítica literária se desenvolvem.13
9 Noël, Danièle in Plourde, 2003, pp. 72-79
10 “La distance qui s’est opérée entre le français du Canada et celui de France par suite de l’interruption des
échanges directs entre Canadiens et Fraçais, conséquence de la concession de la colonnie aux Britanniques, a été ac-
centée par la Révolution française, qui a renouvelé l’expression des idées et provoqué, des changements linguistiques
considérables. (Poirier, Claude in Plourde, 2003, p. 118)
11 Weinmann & Chamberland, 1996
12 En 1764, la première imprimerie voit le jour à Québec. La nouvelle élite canadienne crée des sociétés littérai-
res, anime des journaux et favorise l’éclosion des premières oeuvres d’une littérature proprement canadienne. (Plourde,
2003, p. 57).
De la fondation du premier journal, La Gazette du Québec/ The Quebec Gazette, en juin 1764, jusqu’au tout début du
XIXe siècle, la publication bilingue domine presque sans partage. Sur les neuf titres créés entre 1764 et 1804, huit sont
bilingues. Seule fait exception La Gazette littéraire, premier journal entièrement en français, lancé à Montréal par Fleury
Mesplet em 1778. Elle ne survit qu’un an. (Plourde, 2003, p. 123)
13 Ibid, pp. 29-32

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Antes da consolidação da imprensa, contudo, quando ainda não havia tipografia,
o Canadá era fortemente dominado pelas tradições orais: lendas, contos,
fábulas. A lenda, a princípio, tinha sua origem em narrativas religiosas, atos de
santos que pudessem servir de exemplo aos fiéis. Com o tempo, elas perdem
essa primeira conotação e guardam a ideia de maravilhoso.14 Philippe Aubert
fils define assim a lenda da seguinte maneira: “Tentaria definir [a lenda] como
sendo uma antiga tradição conservada pelos habitantes de um país.” 15
Por essa razão, encontramos no gênero conto uma forma literária que ocupará um
lugar central no século XIX quando a literatura escrita estava se consolidando16.
Essa literatura se apresenta povoada pelo imaginário popular e mostra uma
cultura canadense-francesa que surge de forma essencialmente oral. Lendas
povoadas de bruxas, de duendes, de lobisomens (loups-garous), de almas
perdidas e de diabos perpetuam uma moralidade no seio da qual o bem e o mal
são claramente definidos. Verdadeiro imaginário coletivo do qual os contadores
e escritores do século XIX buscaram sua fonte e que traduzirão através de um
misto de conto, lenda e fábula que ajudará a consolidar a literatura quebequense.

• Resgate da memória de um povo

Para assegurar a sobrevida de sua cultura francesa, os Canadenses,


instintivamente, começam a ressucitar da memória ancestral suas canções, seus
contos e suas lendas e daí, fazer frutificar com uma rara energia esta herança
que encontrou no Canadá sua terra de eleição. Essa literatura oral, patrimônio
cultural transmitido boca à boca durante gerações é, de fato, a expressão mais
fiel de matrizes culturais profundamente arraigadas na comunidade, trazendo
para o texto escrito traços de um contador. A expressão literatura oral designa,
em geral, exatamente esse conjunto de canções, contos e lendas, sem autores
conhecidos durante algumas gerações.

Le genre est déterminé par la façon dont la communication s’établit entre le


poète et son public. Le conte merveilleux et l’épopée sont des genres hérités,
soumis à des conventions narratives liées à l’oralité. Le souvenir de l’énonciation
orale s’inscrit dans l’image du conteur ou du récitant que le texte présente.

Les genres issus de la tradition orale, même lorsqu’ils s’incarnent dans


des œuvres littéraires écrites et signées, gardent des traces stylistiques et
énonciatives de leur situation de contact initiale entre le récitant physiquement
présent et ses auditeurs. (Rullier-Theuret, 2006, p. 28)17
14 “Dans son sens premier, le mot légende signifie donc ‘ce qui est lu’. Or, en se libérant de son sens religieux,
la légende se détache de ses liens avec l’écriture tout en gardant son caractère merveilleux.” (ibid, p. 35)
15 “J’essaierai de définir [la légende] comme étant une ancienne tradition conservée par les habitants d’um
pays”. (ibid., p. 36)
16 Au cours de la décennie 1840, plusieurs écrivains s’emploient à relever le défi lancé par lord Durham qui a
déclaré les Canadiens “peuple sans histoire et sans littérature. (Poirier, Claude in Plourde, 2003, p. 131)
17 “O gênero é determinado pelo modo como a comunicação se estabelece entre o poeta e seu público. O
conto maravilhoso e a epopéia são gêneros herdados, submetidos a convenções narrativas ligadas à oralidade. A
lembrança do enunciado oral se inscreve na imagem do contador ou do recitador que o texto apresenta.
Os gêneros saídos da tradição oral, mesmo quando se encarnam nas obras literárias escritas e assinadas, guardam
traços estilísticos e enunciativos de sua situação de contato inicial entre o recitador fisicamente presente e seus ou-
vintes.” (Rullier-Theuret, 2006, p. 28, tradução nossa)

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É a ligação cultural que une os pontos extremos da duração da história vivida
e imaginada de um povo, isto é, o passado e o futuro, a geração anterior e
a seguinte, o que há de contínuo e permanente na sucessão dos indivíduos.
Costumeiramente, no universo da literatura oral, não há autores individuais
mas uma produção coletiva. Essas narativas são veículo de aspirações, do
imaginário coletivo por formar a identidade cultural através da língua eleita, no
caso, a francesa. As lendas, os contos, as canções quebequenses de tradição
oral falam de um povo orgulhoso, jovial, hospitaleiro, confiante, bon vivant e
com espírito arisco de independência.
Pode-se notar a importância dessa literatura oral na dinâmica da cultura
quebequense no momento em que os primeiros escritores surgem no século
XIX e se mostram como que simples e fiéis transcritores dessas narrativas
que as gerações transmitiam como parte de sua vida. Eles representam a
narrativa de um fato real amplificado pela imaginação popular e que se tornou
um objeto de crença, e revelam o fantástico e o maravilhoso que constituía
a matéria-prima das histórias orais. É por isso que Malrieu (1992) afirma que
“desde suas origens, o fantástico não parou de oscilar entre literatura formal e
literatura popular”.18 Com essa explosão de desejo de resgatar uma memória
e vontade de consolidar uma língua através de sua literatura, pode-se contar
mais de 20.000 contos orais na América francófona.

• Conto fantástico ligado à tradição francesa e quebequense

Os contadores desse período, como se disse, se contentavam em adaptar e


em transcrever em língua escrita as lendas fantásticas. Essas versões escritas
fixam de maneira definitiva histórias tanto vindas da França como nascidas em
solo canadense, até então transmitidas unicamente boca à boca.

La frontière entre la légende et le conte, surtout le conte merveilleux, n’est


pas précise. Luc Lacourcière, grand spécialiste québécois des traditions
populaires, note que la plupart des contes du XIXe siècle sont des légendes:
“L’on peut dire sans se tromper que le XIXe siècle nous a laissé beaucoup de
légendes. Les premiers littérateurs canadiens se sont inspirés de la légende
et ont rédigé des légendes qu’is ont appelées des contes.” (Weinmann &
Chamberland, 1996, p. 38)19

Essas narrativas representam sempre uma visão particular do mundo, elas são
a projeção fora de si das virtudes e dos poderes que os quebequenses queriam
conquistar ou das fraquezas humanas e das angústias das quais eles desejavam
se livrar. Elas são, a um tempo, memória da coletividade e fator de união entre
seus membros. Elas constróem, e não apenas revelam, a identidade comum.
18 Depuis ses origines, le fantastique n’a cessé d’osciller entre littérature formelle et littérature populaire.
(Malrieu, 1992, p. 35)
19 “A fronteira entre a lenda e o conto, sobretudo o conto maravilhoso, não é precisa. Luc Lacourcière, grande
especialista quebequense das tradições populares, nota que a maior parte dos contos do século XIX são lendas:
‘Pode-se dizer sem se enganar que o século XIX nos deixou muitas lendas. Os primeiros literatos canadenses se inspi-
raram na lenda e redigiram lendas que chamaram contos” (Weinmann & Chamberland, 1996, p. 38, tradução nossa)

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O conto representa uma narrativa de ficção em geral bem breve, transmitida
oralmente. As ações, provas, peripécias são vividas por um ou mais personagens.
Elas estabelecem uma distância entre o universo do conto e nosso mundo, a ficção
e o real. Tempo e lugar são em geral indeterminados. No caso específico dos
contos fantásticos, há uma profusão de elementos inverossímeis e personagens
maniqueístas, mas ele permanece, em geral, como um gênero otimista, em
que tudo sempre acaba bem. Os contos tradicionais são em grande número
associados ao maravilhoso.

Um conto quebequense: Conte Populaire - Charles Laberge

Para ilustrarmos um pouco dessa história da literatura quebequense e da importante


função que aí tem as narrativas orais com o imaginário de seu povo, apresentamos
aqui um conto fantástico de Charles Laberge – cujo título, Conte Populaire,20
justamente indica tanto a sua origem oral (conto) e seu enraizamento na cultura
(popular). Esse conto foi publicado no jornal Avenir21, em fevereiro de 1848.
Ao analisarmos esse conto, a partir das reações e a natureza dos acontecimento,
veremos que ele se revelará fantástico-maravilhoso. Segundo ressalta Todorov:

[...] no “maravilhoso os elementos sobrenaturais não provocam qualquer


reação particular nem nas personagens, nem no leitor implícito. Não é uma
atitude para os acontecimentos narrados que caracteriza o maravilhoso, mas
a própria natureza desses acontecimentos”. (Todorov, 2010, p. 60)

Nesse conto encontramos um esquema narrativo bastante comum; há três


momentos chave que, segundo Propp (2010), caracterizam esse gênero: a
situação inicial que, apesar de trazer elementos positivos, tranquilizadores, já
apresenta também elementos negativos, perturbadores. O desenvolvimento
da ação que se dá a partir de um elemento perturbador: aqui a chegada do
diabo. O desenlace final, contudo, será – como de hábito - positivo: aqui, o
cura consegue espantar o diabo e restabelece a ordem.
A dinâmica do texto apresenta uma narrativa veloz e com fatos surpreendentes,
o que nos remete a um tipo de leitura que se promete breve – característica do
gênero conto - e que confirma as expectativas iniciais do leitor ao começar o
texto, como aponta Rullier-Theuret :

Ce ne sont pas les mêmes principes qui gouvernent les textes brefs et les
textes longs, simplicité et complexité sont liées au nombre de pages. La
brièveté prive le lecteur de détails et de développements, la rapidité de la
narration et l’économie des moyens cherchent l’intensité des effets. (Rullier-
Theuret, 2006, p. 11)22
20 O conto em sua íntegra encontra-se no final desse artigo.
21 Jornal publicado pela Fundação do Instituto canadense de Montreal a partir de 1847 (Plourde, 2003, p. 510)
22 “Não são os mesmos princípios que governam os textos breves e os textos longos, simplicidade e complexi-
dade estão ligados ao número de páginas. A brevidade priva o leitor de detalhes e de desenvolvimentos, a rapidez da
narrativa e a economia dos meios buscam a intensidade dos efeitos.” (Rullier-Theuret, 2006, p. 11, tradução nossa)

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O enredo de Conte Populaire é exemplar dessa brevidade e simplicidade
narrativas. Durante a festa, no início do conto, a sucessão de fatos se dá com
tamanha velocidade que conduz rapidamente a narrativa para o elemento
perturbador do conto.

• A situação inicial: Terrebonne essencialmente francesa

O conto apresenta uma narrativa em terceira pessoa; o narrador não representa


um personagem que empreenderá alguma ação. Ele se apresenta, entretanto,
como um contador que fará parte da história pois caberá a ele trazer informações
importantes para o desenrolar da trama (a situação geográfica da casa, a
importância da festa, por exemplo).

[...] les récits fantastiques à la troisième personne sont alors l’expression


d’un je. [...] Le narrateur, qu’il s’identifie ou nom au personnage, est celui
qui sait, ou tout au moins qui sait plus de choses que les autres. (Malrieu,
1992, pp. 135-136)23

Esse narrador/contador inicia sua narrativa fazendo uma comparação entre as


cidades de Paris e Terrebonne.24 Já nesse primeiro momento, mesmo que de
maneira rápida, o narrador remete o leitor para a cidade francesa retomando
a ligação da história de Quebec com o país dos colonizadores. A cidade, cujo
nome sugere o seu lado positivo (Terra Boa), surge como elemento introdutório
ao conto através de sua característica jovial. A afirmação da identidade local
a partir da identidade referencial francesa se dá com muita clareza embora
seja fácil deixar de perceber esse ponto, uma vez que ele vem envolvido em
relatos de maravilhas e espanto.
Também a descrição da pequena casa cuja localização se encontra em uma
encruzilhada de quatro caminhos é cheia de significado. Essa circunstância se
apresenta relevante pois o narrador nos explica que “é sempre ali que se faz
esse assustador contrato: a venda da galinha preta”25. Os elementos populares,
as crendices e medos que povoam a literatura oral encontram abrigo na forma
escrita da ficção. Em seguida, o narrador evoca a festa tradicional francesa
que se tornou importante no Canadá: la Sainte-Catherine26; o contexto histórico
vem junto com a observação de que a festa é “tão antiga quanto a primeira
cruz plantada sobre nosso solo”, fazendo alusão a Jacques Cartier que, como
já apontamos no início desse artigo, plantou uma cruz em solo canadense
reivindicando a posse do continente para o rei francês François I.
23 “[...] as narrativas fantásticas na terceira pessoa são então uma expressão de um eu. [...] O narrador, que
ele se identifique ou não com o personagem, é aquele que sabe, ou ao menos que sabe mais coisas que os outros.”
(Malrieu, 1992, pp. 135-136, tradução nossa)
24 Cidade do Quebec da periferia norte de Montreal, assim batizada em razão da fertilidade de suas terras –
terra boa (http://www.ville.terrebonne.qc.ca)
25 Sacrificando uma galinha preta à meia noite, em uma encruzilhada isolada, pode-se evocar o diabo para
com ele fazer um pacto ( http://www.chouette-noire.com/sorcellerie/poulenoire.htm)
26 25 de novembro, dia das catarinetes: todas as jovens de 25 anos que ainda não se casaram colocam um
chapéu verde e amarelo e saem às ruas na esperança de encontrar um marido (Cretin, 1991, pp. 52-53)

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Aos poucos, esse narrador/contador vai montando uma teia de informações
que compõem um esquema narrativo com dados que remetem à tradição
francesa e é nessa lógica que ele conclui: “Terrebonne era então, como é ainda,
essencialmente francesa”. Ainda que a narrativa seja feita em terceira pessoa,
como já dissemos, desde o início pode-se notar a importância do narrador/
contador que aparece como um personagem que fornece elementos que serão
importantes para a continuação e a compreensão dos fatos que virão a seguir.

• O desenvolvimento da ação: a tira e a música na festa

Também reminiscente da narrativa oral é a forma como os primeiros personagens


que compõem o conto são apresentados: “rapazes belos e altos com aparência
de cavaleiros e jovens moças charmosas”. O narrador, aqui, não apresenta um
personagem individual, mas sim um grupo de jovens reunidos para a festa;
esses personagens representam o pano de fundo da ação, mas nenhum deles
se destacará, nem assumirá um papel importante para a continuação da ação,
nenhum deles agirá de modo individual; todos jovens apresentam as mesmas
ações: “cabeças que se agitavam, pés que sapateavam, sorrisos, olhares,
palavrinhas ditas de forma negligente no ouvido de uma vizinha que passava,
apertos de mão, beijos”.
Cabe aqui o conceito de Propp sobre os atributos dos personagens e sua
significação. Segundo o autor, os personagens da vida real se sobrepõem
aos imaginários pois são mais “brilhantes, coloridos”, já os personagens dos
contos têm “influência da realidade histórica contemporânea, do epos dos
povos vizinhos, e também da literatura e da religião, tantos dos dogmas cristãos
como das crenças populares locais.” (Propp, 2010, p. 85)
Na sequência do conto, em meio à toda a agitação, o clima de festa já estava
instaurado e era causado pelo “fogo que ardia e a melaça obrigatória para as
tiras27 na Sainte-Catherine.” E novamente a reação do grupo de jovens causada
pelo forte odor do açúcar: “olhos brilhavam de alegria, (...) todos se atiravam
sobre as tiras, arrancavam os pedaços de açúcar das mãos de seus vizinhos
com gargalhadas loucas.” O narrador/contador já nos anuncia que esse
movimento trará alguma mutação: “todo o apartamento foi metamorfoseado
em uma manufatura de tiras.”
As tiras representam momento central da festa, por causa delas as pessoas
brincam e a metamorfose se dá à medida que “cada um se permitia dourar o
rosto de seu vizinho; todo mundo estava açucarado, sujo, tatuado, do modo
mais pitoresco. Era um zunzum na casa que não se ouvia mais nada, uma
balbúrdia ensurdecedora”. Nessa passagem, o narrador/contador nos dá o
tom do meio pelo qual uma transição vai se operando nos jovens convidados.
27 Tira. s.f. Tira de bordo: guloseima obtida por evaporação do xarope de bordo. (Tire n.f. Québec. Tire d’érable:
friandise obtenue par évaporation du sirop d’érable. - Le petit Larousse illustré, 2000)

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A festa apresenta elementos (o odor, a sensação dos convidados, o som, as
ações frenéticas) que se tatuam nos convidados e os transformam tirando-os
de seu cotidiano normal e conduzindo-os a um certo frenesi. A transição rápida
do equilíbrio da situação inicial para a crise do desenvolvimento da ação se dá
com a rapidez característica da oralidade, com a engenhosidade do contador
de feira seduzindo seus ouvintes.
Nessa estratégia, um novo elemento é introduzido na narrativa e faz os convidados
abandonarem a tira: a música. É preciso observar que, em um primeiro momento,
o odor das tiras agita os jovens, em seguida, o som os transforma. O narrador/
contador nos dá várias pistas sobre o estado de espírito dos convidados que,
ao ouvirem a música, “começam a cantarolar e a saltitar.” Já metamorfoseados
e tatuados pela tira, os convidados começam a dançar e “os sapatos e os
coletes voavam de um lado ao outro: era um encantamento, um feitiço. (...)
Os saltos, as cambalhotas, os vivas, as meia-voltas à direita e à esquerda, era
um verdadeiro turbilhão (...) todas as danças animadas, vivas e alegres (foram
tocadas). Todo mundo era transportado. Dançarinos e dançarinas, fora de
si, saltavam, se chocavam, sapateavam a perder a cabeça.” Ainda que nesse
primeiro momento, tudo pareça evoluir normalmente, já encontramos alguns
fatores quase imperceptíveis que começam a preparar espaço para o elemento
perturbador da narrativa. O narrador/contador alerta que através da música os
jovens passavam por um transe que os alucinava.

• Elemento perturbador: situação negativa

“No momento em que a dança estava mais animada, ouve-se subitamente,


uma batida à porta: pa, pa, pa”. A partir dessa batida, percebe-se que a
narrativa é redirecionada; o bater à porta aparece como um recurso sonoro
que acrescenta um novo elemento ao desenvolvimento da ação e o suspense
é introduzido: “Um homem, vestido de preto dos pés à cabeça, figura bela
e interessante, de aparência distinta, entra na casa”. A cena nos reporta ao
ensinamento de Propp:
O estudo dos atributos dos personagens inclui apenas as três rubricas
fundamentais, que são as seguintes: aparência e nomenclatura, particularidade
da entrada em cena e habitat. (Propp, 2010, p. 86)

O personagem que se apresenta à festa tem aparência “distinta” mas ainda não
há uma nomenclatura definida para ele além da característica de sua vestimenta
“de preto dos pés à cabeça”; entra em cena causando uma “certa surpresa”
nas pessoas. Mesmo que essa inesperada visita tenha causado surpresa,
o narrador/contador insiste no traço característico do povo canadense: os
convidados o recebem “com a educação hospitaleira, particularidade nacional
dos Canadenses”. A dança recomeça e, a partir daí, o visitante é chamado
pelo narrador/contador de étranger, termo que pode ter duas conotações,
estrangeiro ou estranho. O visitante se surpreende com “a alegria franca, tão

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ingênua, tão expansiva” dos jovens. O étranger é convidado a dançar, e não
só aceita, como escolhe a moça mais bonita e “a leva por toda parte ao som
de um tambor.”
Tem início aqui uma evolução do personagem na narrativa que culminará
com a revelação de sua identidade. Malrieu indica que a lógica da narrativa
fantástica se revela diferente daquela do cinema em relação aos efeitos que
serão causados no leitor/expectador; enquanto no cinema há a necessidade
de um efeito repentino que cause impacto no expectador, a narrativa fantástica
apresenta uma evolução progressiva do personagem até o momento em que
se revela o desconhecido.28
Assim, o início de um processo para essa revelação, nesse conto, se dá a
partir de uma dança e do som de um tambor. O tambor, instrumento musical
bastante popular, surge como um artifício desestabilizador para o conto. O
banal e quotidiano se torna potencialmente ameaçador; é como se um ritual
se preparasse: após esta cerimônia e um forte aperto de mão do seu partner a
“dançarina solta um grito que faz estremecer todos os assistentes e desmaia”.
Importante aqui notar que sempre é um elemento ligado aos sentidos que
redireciona o conto: olfato (a tira), audição (a música, o zunzum, o tambor),
visão (a figura do homem de preto), o tato (forte aperto de mão). A relação
do concreto, conhecido, com forças que nos transportam para dimensões
ameaçadoras é carcaterístico do tecido das lendas populares e constitui fator
determinante para o sucesso narrativo de Conte Populaire.
Importante também observar que, mesmo que o visitante tenha escolhido uma
jovem para dançar, em nenhum momento a narrativa identifica esse personagem
individualmente: ela é apenas uma bela dançarina jovem (no início do conto, o
narrador já havia deixado claro que a festa era composta de belos jovens). A não
individuação lembra o caráter geral das narrativas orais que, frequentemente,
tinham uma intenção moralizante. É como se o narrador/contador dissesse:
“Veja, isso pode acontecer com qualquer moça. É preciso ter cuidado”.
Com a dança interrompida e a desconfiança causada pela situação estranha,
as atenções voltam-se para o étranger. Os jovens, surpresos com o ocorrido,
querem saber quem é esse homem singular. Voltando à perspectiva de Propp,
encontramos aqui a esfera dos personagens que realizam funções: o homem
de preto aparece como o personagem Antagonista (ou malfeitor) cuja esfera
“compreende o dano, o combate e as outras formas de luta contra o herói, e
a perseguição.” (Propp, 2010, p. 77)

28 “Contrairement à ce qui se passe au cinéma, qui privilégie pour des raisons évidentes le phénomène et la
recherche de l’effet que celui-ci peut provoquer, le récit fantastique se fonde principalement sur la révélation progres-
sive par le personnage d’une réalité jusqu’alors inconnue.” (Malrieu, 1992, p. 69)

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Diante da insitência da pergunta dos jovens sobre a identidade do personagem,
vemos uma evolução nesse étranger que se mostra em um “mutismo e parecia
pregado em seu lugar, sem nenhum movimento, apenas seus olhos se tornavam
mais e mais brilhantes.” Os jovens continuam a interrogá-lo e exigem que ele
revele seu nome mas não há resposta. A cena se apresenta semeada de palavras
que criam o clima para o desfecho do momento fantástico: jovens apavoradas
/ ansiedade / cena extraordinária / todos indecisos, quase terrificados / homem
impassível que não se mexia./ Todos hesitam a casa treme.
O étranger continua imóvel, “apenas seus olhos se tornam mais e mais brilhantes
e lançam raios; todos estão fascinados, ninguém consegue sustentar seu olhar de
fogo.” Os jovens tentam tirá-lo à força mas ele fica imóvel “como uma massa de
chumbo.” A ação vai evoluíndo de tal forma que cria a tensão para a conclusão
da descoberta da identidade do homem de preto: “É o diabo! Grita com uma
voz estridente o violinista. Todos repetem: é o diabo! Impossível descrever o
pavor, a inquietação, a confusão” que são traduzidos por fugas, desmaios e
gritos. A confusão envolve todos os moradores da cidade que despertam e se
dão conta do insólito acontecimento. Quando alguns se acalmam, a decisão
é unânime: procurar o cura da cidade. Ainda aqui, a simplicidade com que
se aceita o maravilhoso – o diabo em pessoa vindo participar de uma festa -
aponta nitidamente para a dinâmica das narrativas orais populares.
Diante dessa revelação do diabo a todos os personagens do conto, podemos
aqui fazer uma distinção notando que esse conto se apresenta dentro do
conceito fantástico-maravilhoso. Segundo Malrieu, uma das maiores diferença
entre a narrativa fantástica e o conto maravilhoso é a percepção do fenômeno
pelos personagens:

Là [spécificité du personnage fantastique] réside l’une des plus importantes


différences entre le récit fantastique et le conte merveilleux: le phénomène
à l’œuvre dans le fantastique n’est pas plus ou moins étrange que celui des
contes merveilleux : il n’est même pas nécessairement d’une nature différente ;
en revanche, il n’est pas perçu par tous, pas de la même manière. […] le
personnage victime du phénomène n’est pas fondamentalement différent des
autres : le diable, manifestement, peut apparaître à tous, et son intervention
est vécue de la même manière par chacun. (Malrieu, 1992, p. 67)29

O diabo surge como elemento perturbador da ordem e é notado por todos


os convidados, sua visão faz com que todos os personagens da festa reajam
do mesmo modo. Em nenhum momento, a sua presença causará uma reação
individual em qualquer personagem.

29 Aqui [a especificidade do personagem fantástico] reside uma das mais importantes diferenças entre a nar-
rativa fantástica e o conto maravilhoso : o fenômeno em operação no fantástico não é mais ou menos estranho do que
o dos contos maravilhosos : ele não é tão pouco necessariamente de uma natureza diferente ; em contrapartida, ele
não é percebido por todos, não da mesma maneira. […] o personagem vítima do fenômeno não é fundamentalmente
diferente dos outros : o diabo, claramente, pode aparecer a todos, e sua intervenção é vivida da mesma maneira por
cada um. » (Malrieu, 1992, p. 67, tradução nossa)

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• Restabelecendo a ordem: situação final positiva

Voltando a Propp e à esfera dos personagens, o cura realizará a função Auxiliar


cuja ação compreende “o deslocamento do herói no espaço, a reparação
do dano ou da carência, o salvamento durante a perseguição, a resolução
de tarefas difíceis, a transfiguração do herói.” (Propp, 2010, p. 77) Podemos
dizer que esse personagem apresenta os três atributos levantados por Propp:
aparência e nomenclatura: o cura está pálido e desfigurado; particularidade
da entrada em cena: em pé, pálido e desfigurado e seu habitat : o presbitério.
Após ouvir os fatos sucedidos, o cura toma a decisão de ir ao local mas antes
mune-se de seu Petit-Albert, “o livrinho misterioso”30. Fica claro que o conto
caminha para o restabelecimento da ordem transgredida pelo diabo e como
esse conto não apresenta um herói individualizado, podemos dizer, como nos
ensina Propp, que o auxiliar vai cumprir a função que seria específica do herói,
ele vai “reparar o dano” (Propp, 2010, p. 81) causado pela visita do diabo.
A cena que vem a seguir e que restabelecerá a ordem é carregada de
intensidade; ao se aproximar da casa, o cura pára e pede para as pessoas
não se aproximarem. “Um clarão ofuscante” parecia espalhar pela casa um
grande incêndio; o cura pode ver dentro da casa, “um homem de fogo sentado
em uma cadeira sempre no mesmo lugar, imóvel.”
Mesmo que o personagem auxiliar apareça como aquele que vai restabelecer
a ordem, o narrador ainda diz que ele “supera o pavor que o dominava, abre o
Petit-Albert e lê em voz alta algumas passagens...” Nada acontece então o cura
recomeça, faz sinais misteriosos e diz em voz alta: “Em nome de Cristo, saia
daqui!” A cena mistura religião e magia, o livro de bruxarias + a evocação de
Cristo + os sinais misteriosos, juntos, conseguem desprender o diabo da cadeira.
A continuação mostra a violência que o narrador imprime às ações: a casa
sacode violentamente, o solo treme, um turbilhão de fogo passa através de
uma parede da casa, todos fogem gritando apavorados. Finalmente, para que
o fato deixe uma marca concreta, o narrador diz que o diabo foge levando com
ele uma parte da parede que nunca mais foi achada. Quanto ao cura, como se
nada tivesse acontecido, volta tranquilamente ao presbitério com o Petit-Albert
em baixo do braço.

Conclusão:

A crença de um povo, a identidade quebequense e a literatura oral

É importante ressaltar como o lado religioso mesclado pela crença popular e sua
história dão o tom a esse conto. Isto importa porque significa mais um elemento
que liga esse conto à tradição oral e às raízes do Quebec francês católico. Assim,
30 Livro de exorcismo contra bruxaria, inspirado pelos escritos de santo Alberto, o Grande; foi impresso pela
primeira vez na França em 1668. (Wikipédia)

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como vimos, temos, a princípio, o motivo desencadeador que dará o pano de
fundo ao conto: o encontro dos jovens para festejar Santa Catarina. Em seguida,
o elemento perturbador: a chegada do diabo, personagem ligado à religião, o
oposto de Deus que vem desestabilizar a ordem. Finalmente, o elemento que
reestabelece a ordem, o cura com o seu Petit-Albert. Três momentos chave e
decisivos do conto estão ligados à religião, à crença do povo quebequense.
Mesmo que o diabo apareça como personagem fantástico-maravilhoso nesse
conto, devemos ligá-lo também à crença de um povo em sua fé quando a
literatura era apenas oral e essa história era contada e não escrita. O diabo
que, nesse conto, representa um elemento perturbador da paz e que gera o
ambiente fantástico-maravilhoso, era, no momento em que foi contado oralmente,
parte da história desse povo e índice da relação estabelecida com a figura de
um elemento cultural da fé cristã. Bozzetto e Huftier ressaltam que até o século
XVII, esse tipo de aparição não perturbava a ordem e era aceita sem ligação a
um fenômeno fantástico e sim como um elemento racional, ligado à religião.31
O que faz a o universo literário fascinante é a possibilidade de múltiplas leituras
que nos oferece. Não há o modo certo de ler mas sim a descoberta da narrativa
aos olhos do leitor. Um conto fantástico-maravilhoso pode permitir uma enorme
gama de interpretações. O conto de Charles Laberge pode ser lido apenas
como uma história de uma festa em que o diabo chega inesperadamente e cria
uma grande confusão. Mas também pode oferecer muitos caminhos a serem
explorados revelando uma história fantástica-maravilhosa enraízada em uma
tradição secular. O que nos dispusemos a fazer nessa breve análise, foi encontrar
uma entre tantas possibilidades apontando a figura do diabo – com sua dimensão
cultural tão arraigada e tão antiga - estabelecendo o elo que reforça a ideia do
conto oral como elemento de consolidação e resistência cultural.
O Conte Populaire veio não só do folclore e da tradição quebequense mas
também da tradição francesa através da devoção à Santa Catarina e da
crença no Petit-Albert. Essas duas tradições se fundem e encontram a sua
consolidação através da escrita de autores como Charles Laberge, nesse
sentido emblemático do tipo de escrita que marca o Canadá do século XIX.
A relação entre imaginário popular e narrativa fantástica aparece também na
literatura francesa – como, por exemplo, em Nodier – mas, no Quebec, ela faz
parte de um movimento de afirmação nacional tão complexo quanto fascinante.

31 Jusque-là [XVIIe siècle), l’apparition de saints, de fantômes, la présence du diable etc., cela ne violait en rien
un ordre, et donc était accepté sans que surgisse um sentiment de trouble fantastique, mais simplement de la peur ou
de l’émerveillement, car la religion le rendait acceptable pour la raison. (Bozzetto & Huftier, 2004)

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THE DEVIL WAS NOT INVITED : Contes fantastiques and
Quebecois tradition

Abstract

Written forms of French took a long time to consolidate in Canada during the
period when part of the country was still la Nouvelle France. This entailed a
corresponding relative delay in the emergence of the first Quebecoise literature.
For around one century after the early occupation of the land, literature in Canada
remained mostly oral. The first written texts would be marked by attempts to
retrieve ancestral folk stories, legends and songs. In the 19th century, these texts
introduced the character of the narrator/story teller who functioned as the living
memory of stories coming from the time of the early settlers. Such stories, which
may be told as having taken place either in France or in Canada and bring to
the fore folk traditions, are full of fantastical and gothic elements and function
as a piece of cultural identity and resistance for Quebec. This paper analyses
one such text, the Conte Populaire from the theoretical perspective offered by
Propp (2010) by pointing its connections with the story of Quebec, which is
briefly presented here, and with its social function within Quebec society. 

Key words:

Quebec literature; contes fantastiques; cultural identity; oral literature

REFERÊNCIAS

BOZZETTO, R. & HUFTIER, A. Les frontières du fantastique – approches de


l’impensable em littérature. France, Presses Universitaires Valenciennes, 2004

CRETIN, N. & THIBAULT, D. Le livre des fêtes. Italie: Gallimard, 1991

MALRIEU, Joël. Le fantastique. Paris: Hachette, 1992

MORTON, Desmond. Breve História do Canadá. São Paulo: Ed. Alfa-Omega, 1989

PLOURDE, Michel (direction). Le français au Québec: 400 ans d’histoire et de


vie. Québec: FIDES, 2003

PROPP, Vladimir I. Morfologia do Conto Maravilhoso. Rio de Janeiro : Editora


Forense Universitária, 2010

RULLIER-THERET, Françoise. Les genres narratifs. Paris: Ellipses Éditions, 2006

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 41
TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2010

WEINMANN, H. & CHAMBERLAND, R. (direction). Littérature québécoise: des


origines à nos jours. Montreal: Éditions Hurtubise, 1996

Sites consultados:

http://www.chouette-noire.com/sorcellerie/poulenoire.htm

http://grandquebec.com/legendes-du-quebec/contes-du-quebec/

Anexo:

Conte Populaire – Charles Laberge (1827-1874) 32

Ce conte est une représentation typique des contes populaires de l’époque,


avec des personnages également typiques.
Paris ne s’est pas fait en un jour, Terrebonne non plus. Or, donc, Terrebonne
qui est aujourd’hui un beau et grand village, étendu de tout son long sur la
côte de la rivière Jésus, n’était, au dernier siècle, qu’un tout petit enfant qui
s’essayait en jouant à grimper sur la côte. Il y avait dans ce petit village une
petite maison, dont l’emplacement se trouve aujourd’hui au pied de la côte,
au beau milieu de Terrebonne. Cette maison se trouvait à la fourche de quatre
chemins, circonstance importante quand on sait que c’est toujours là que se fait
cet effrayant contrat : la vente de la poule noire. Le ciel était beau mais la terre
bien triste. L’automne l’avait jonchée de feuilles mortes, et les pluies l’avaient
recouverte d’une hideuse couche de boue. Pourtant, il n’y avait pas de mauvais
temps, quand il s’agit de chômer une de ces fêtes canadiennes aussi vieilles
que la première croix plantée sur notre sol. Or, c’était la Sainte-Catherine, ce
jour de réjouissances nationales ; c’était la fête de cette sainte dont le nom seul
apporte le sourire sur les lèvres des Canadiens. Terrebonne était alors, comme
il l’est encore, essentiellement français, de sorte que tout ce qu’il y avait de gai
s’était donné rendez-vous à la fourche des quatre chemins. La toilette était au
grand complet ; de beaux grands garçons à la tournure cavalière, et des jeunes
filles charmantes (comme il y en a encore à Terrebonne).
Quand tout ce jeune monde fut disposé dans un local de vingt pieds carrés,
c’était charmant à voir ; toutes ces têtes qui s’agitaient, ces pieds qui trépignaient,
ces sourires, ces oeillades, ces petits mots jetés négligemment dans l’oreille
d’une voisine en passant, tout cela formait le plus joli coup d’œil.
Après qu’on se fut donné force poignées de main, et peut-être quelques
baisers, … ce dont la chronique toujours discrète ne dit rien ; … quand les
32 http://grandquebec.com/legendes-du-quebec/contes-du-quebec/

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jeunes filles eurent bien babillé, et se furent débarrassées de leurs manteaux,
quelque chose frappa d’abord tous les jeunes gens à leur en faire venir l’eau
à la bouche : une forte odeur de sucre était répandue dans la maison. Dans
un coin, il y avait une cheminée que réchauffait un bon feu ; sur ce feu, étaient
disposées méthodiquement deux grandes poêles à frire, qui contenaient, ce
que tout le monde a deviné, de la mélasse ; car que faire à la Sainte- Catherine,
si l’on ne fait pas de la tire ? La liqueur s’élevait à gros bouillons au-dessus des
poêles, pour annoncer que tout serait bientôt prêt. Tous les yeux étincelèrent
de joie. Après quelques minutes d’attente, employées à se prémunir contre les
dangers qu’allait courir la toilette, le sucre fut apporté dans l’appartement. Il n’y
a pas besoin de dire que ce fut une fureur ; tout le monde se jetait dessus, en
arrachait les morceaux des mains de ses voisins, avec des éclats de rire fous;
tout l’appartement fut métamorphosé en une manufacture de tire. Il y en avait
partout, au plancher d’en haut comme à celui d’en bas ; l’appartement en était
saturé. Puis, les lignes se formèrent, on joua à la seine avec de longues cordes
de tire qui pêchaient les gens par le visage, chacun se permettait de dorer la
figure de son voisin ; tout le monde était sucré, barbouillé, tatoué, de la façon
la plus pittoresque. C’était un brouhaha dans la maison à ne plus entendre, un
tintamarre à devenir sourd.
Une seule chose pouvait ralentir l’entrain et, pour un instant du moins, donner
un peu de répit, c’était la musique, ce charme qui entraîne tous les êtres vivants,
quelque grossiers que soient ses accords. Mais ici le roi des instruments venait de
résonner. Un jeune blondin, à figure prétentieuse, assis dans un coin, promenait
à tour de bras son archet sur son violon, en battant la mesure à grands coups
de pied. Tout le monde se mit à fredonner et à sautiller : la tire était vaincue.
Les souliers volent d’un bout à l’autre de la chambre sans qu’on les voit partir,
les gilets en font autant : c’était un enchantement, un sort. Deux couples entrent
en danse, et entament une gigue furieuse, chacun de leur côté. Les sauts, les
gambades, les saluts, les demi-tours à droite et à gauche, c’était un vrai tourbillon,
c’était comme la chanson : sens dessus dessous, sens devant derrière. À la
gigue succédèrent la contredanse, la plongeuse, le triomphe, toutes danses
animées, vives et gaies. Tout le monde était transporté. Danseurs et danseuses,
hors d’eux-mêmes, sautaient, frottaient, piétinaient à en perdre la tête.
Au moment où la danse était le plus animée, on entend tout à coup frapper à
la porte : ta, ta, ta.
– Ouvrez, dit un des danseurs.
Un monsieur, vêtu en noir des pieds jusqu’à la tête, à la figure belle et intéressante,
à la tournure distinguée, entre dans la maison. Chacun des assistants, avec cette
politesse hospitalière, caractère national des Canadiens, s’empresse autour du
nouveau venu ; mille politesses lui sont prodiguées, et on lui présente un siège

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qu’il accepte. Les gens furent un peu surpris ; mais la politesse, l’hospitalité
vraie et cordiale est si naturelle chez nos habitants, fait tellement partie de leurs
mœurs, que l’étonnement fut de courte durée. La danse recommença comme
de plus belle. L’étranger émerveillé regardait avec intérêt cette gaîté franche, si
naïve, si expansive. Après quelques minutes, le monsieur étranger fut poliment
invité à danser ; il ne se le fit pas répéter et accepta l’offre de la meilleure grâce
du monde. Il choisit parmi les jeunes filles une des plus jolies, et la promena
tambour battant dans tout l’appartement. Tout le monde admirait les grâces
et la bonhomie de l’étranger, quand tout à coup la danseuse pousse un cri
qui fait tressaillir tous les assistants et s’évanouit. La main de son partner avait
violemment pressé la sienne. On la transporte dans une chambre, où les soins
lui sont prodigués. La danse fut interrompue, tous les assistants commencèrent
à regarder le monsieur avec soupçon. Le plaisir avait fait place à l’inquiétude.
Un des jeunes gens s’avance vers l’étranger et lui demande son nom. Pas de
réponse. Tout le monde se regarde avec étonnement : quel est cet homme
singulier ? La demande réitérée ne reçoit pas plus de réponse, même mutisme.
L’étranger paraissait cloué à son siège, sans mouvement aucun ; seulement, ses
yeux commençaient à devenir plus brillants. Les jeunes gens tinrent conseil, et
on résolut de le faire sortir. L’un d’eux lui dit tranquillement : monsieur, nommez-
vous, ou sortez.- Pas de réponse. Les jeunes filles effrayées se retirèrent dans
un coin de l’appartement, attendant avec anxiété le dénouement de cette scène
extraordinaire. Nommez-vous, ou sortez, répéta un des jeunes gens. - Pas de
réponse. Un silence morne régna pendant quelque secondes. Tous restaient
indécis, presque terrifiés, en voyant cet homme impassible qui ne bougeait
pas. Un des plus résolus dit aux autres : c’est la dernière fois, il faut qu’il sorte.
Chacun hésite à s’approcher le premier. L’étranger ne bouge pas davantage ;
seulement ses yeux deviennent de plus en plus brillants et lancent des éclairs;
tous les assistants en sont éblouis ; personne ne peut soutenir son regard de
feu. – Sortez, sortez. - Pas de réponse. - – Eh bien ! il faut le sortir, dit l’un d’entre
eux. Plusieurs s’approchent de lui en même temps, et le saisissent, l’un par le
bras, l’autre par le revers de son habit. Ils font un violent mais inutile effort ; il
reste ferme et inébranlable sur sa chaise, comme une masse de plomb. Ses
yeux deviennent plus ardents, toute sa figure s’enflamme graduellement ; en
même temps une violente commotion se fait sentir, la maison tremble. – C’est le
diable ! crie d’une voix perçante le joueur de violon, qui lance son instrument sur
le parquet. C’est le diable ! c’est le diable ! répète tout le monde. Impossible de
peindre la frayeur, le trouble, la confusion ; portes, châssis, tout vole en éclats
sous les coups des fuyards ; des cris déchirants se font entendre de tous côtés.
Il n’y a pas assez d’ouvertures pour recevoir à la fois tout ce monde qui se
heurte, se presse, s’étouffe. Les lambeaux de gilets et de robes restent accrochés
aux portes et aux châssis. Les blessures, les meurtrissures font pousser des
gémissements. À droite, à gauche, les jeunes filles tombent évanouies. Les

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plus alertes fuient à toutes jambes, en criant partout : le diable ! le diable ! et
réveillent tout le village avec ces lugubres mots. Tous les habitants se lèvent ;
on sort, on s’informe. Quand le fort de la terreur fut passé, que quelques-uns
eurent recouvré leurs esprits, ils racontent ce qu’ils ont vu. – Allons trouver M.
le curé, dit une voix ; – allons le trouver, répètent les autres.
Ils arrivent au presbytère, et trouvent le curé debout sur le seuil de sa porte,
pâle, défait, ne sachant que penser. On lui raconte l’effrayant événement dans
tous ses détails ; c’est le diable, lui dit-on, c’est le diable.
Quand le curé eut bien pris ses informations : – J’y vais aller, dit-il, attendez-
moi un instant.
Le curé rentre dans son presbytère, se dirige vers sa bibliothèque, et y prend
un petit livre à reliure rouge, le petit livre mystérieux, le Petit-Albert. Il revient
après quelques minutes, et tous se dirigent vers la maison, non sans trembler.
Le curé s’arrête à quelques pas, et fait signe à ses gens de ne plus avancer.
Une clarté éblouissante était répandue dans la maison, on eût dit que l’incendie
y exerçait ses ravages. Le curé regarde dans la maison, et aperçoit un homme
de feu assis sur une chaise toujours à la même place, immobile. Surmontant
la frayeur qui le gagnait malgré lui, il ouvre le Petit-Albert et en lit à haute
voix quelques passages… l’homme de feu ne bouge pas. Il recommence à
lire, accompagnant sa lecture de signes mystérieux, l’homme de feu s’agite
violemment sur son siège. Le curé lit encore quelques mots, puis il dit à haute
et intelligible voix : Au nom du Christ sortez d’ici !
Tout à coup la maison reçoit une violente secousse, le sol tremble sous leurs
pas. Un tourbillon de feu passa à travers un pignon de la maison. Tous s’enfuirent
en poussant des cris effrayants.
Le diable était parti, emportant avec lui un des pans de la maison, que l’on n’a
jamais pu retrouver. Le curé s’en retourna tranquillement à son presbytère, le
Petit-Albert sous le bras.
(L’Avenir, février 1848)

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 45
O estranhamento cotidiano: uma leitura dos
contos de Julio Cortázar

Laila Karla Lima Duarte1


Heloisa Helena Siqueira Correia2

RESUMO:

O subprojeto “O estranhamento cotidiano: uma leitura dos contos de Julio


Cortázar”, vinculado ao projeto O fantástico: intersecções críticas, debruça-se
sobre as marcas, procedimentos e ambientação fantásticas dos contos de Julio
Cortázar. A pesquisa objetiva: desvendar as amarras narrativas, buscando suporte
na teoria do fantástico enquanto gênero, elaborada pelo estudioso russo Tzvetan
Todorov e na releitura teórica do gênero realizada pelo crítico argentino Jaime
Alazraki, que se configura no que ele denomina neofantástico. Cortázar busca,
nas cenas do cotidiano, aberturas e fissuras por onde se entrevê o fantástico,
e tal visão desafia o leitor no sentido de criar um paralelo entre ficção e teoria.

PALAVRAS-CHAVE:

Fantástico; neofantástico; Cortázar; simultaneidades temporais; metaficção.


O texto que ora se apresenta tem por objetivo desenredar as amarras contidas
nas narrativas de Cortázar, que envolvem o leitor em várias realidades, mesclando
convenções sociais e culturais para encobrir determinada realidade fantástica.
As narrativas do escritor argentino apresentam um fantástico sutil com narrativas
enigmáticas, dualidades temporais, histórias que cruzam tempo e espaço,
narrativas que influenciam na noção de realidade e ficção do leitor, oferecendo
ao mesmo aporias da existência da humanidade e do universo; essas são as
ocorrências a serem analisadas.
Para auxiliar na compreensão das narrativas de Cortázar, é necessário conhecer
as várias teorias existentes sobre o fantástico e suas vertentes; elas oferecem
elementos para dialogar criticamente com os narradores que guiam o leitor por
meio de idiossincrasias, estratégias de envolvimento e elementos ficcionais,
questões que serão tratadas neste texto. Para embasar o olhar crítico-teórico
perante a obra, o procedimento adotado foi o estudo teórico do fantástico
enquanto gênero, por meio das reflexões de Tzvetan Todorov, e o neofantástico
de acordo com Jaime Alazraki, além de outros textos relevantes para a pesquisa.
1 Pesquisadora Voluntária do PIBIC/UNIR, acadêmica do Curso de Letras/Português da Universidade Federal
de Rondônia - UNIR. Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Literários. lailinhaduarte@hotmail.com
2 Pesquisadora Orientadora PIBIC/CNPq, docente de Literatura junto ao Departamento de Línguas Vernácu-
las da Universidade Federal de Rondônia – UNIR. Membro do Grupo de Pesquisa em Estudos Literários. heloisahe-
lenah2@hotmail.com

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A partir da leitura dos livros Bestiário, Todos os fogos o fogo e Octaedro,
realizou-se a escolha do primeiro conto a ser trabalhado: “Todos os fogos o
fogo”, do livro homônimo (CORTÁZAR, 1969). Tal escolha se baseou no fato de
o conto entrelaçar duas narrativas, que se desenvolvem simultaneamente em
duas dimensões temporais e espaciais, o que é feito gradualmente por toda a
estrutura da narrativa. Quando a narrativa provoca a ruptura do equilíbrio, o leitor
é instigado a desvendar a forma como foi conduzido a aceitar a intersecção
de dois planos operada pelo narrador.
Com a leitura dos livros Histórias de Cronópios e Famas e Final do Jogo,
veio o anseio em desvendar as amarras contidas no conto “Continuidade dos
Parques”, presente no livro Final do Jogo (CORTÁZAR, 1969). O interesse em
analisar este conto surgiu pelo fato da narrativa começar como uma cena do
cotidiano, a leitura de um livro pela personagem, e ao final transformar-se em
uma ficção dentro de uma ficção. Em outras palavras, o protagonista da narrativa
do conto de Cortázar que estamos lendo é o protagonista do romance que
a mesma personagem está lendo desde o início da história. Esta interligação
entre realidade e ficção e sua consequente angústia deixa o leitor de Cortázar
instigado a investigar até onde vai a realidade que conhece.
O escritor argentino tem a capacidade de manejar a realidade, o cotidiano e o
invisível aos olhos, de tal forma que o leitor sente que poderá estar frente a um
fato fantástico a qualquer instante ou que ações mais triviais do seu cotidiano
revelarão algo extraordinário.
Antes de conhecer Cortázar como contista, vamos conhecê-lo como ensaísta,
suas concepções acerca das sutilezas e estruturas de um conto. Em seu livro
Valise de Cronópio, no capítulo “Alguns aspectos do conto”, Cortázar afirma
que em um primeiro momento deve-se compreender a idéia de estrutura do
conto, pois, os contos têm seu tempo e espaço limitados. O ensaísta compara
o conto a uma fotografia, nas duas formas de artes o trabalho do artista é “(...)
o de recortar um fragmento da realidade, fixando-lhe determinados limites, mas
de tal modo que esse recorte atue como uma explosão que abra de par em
par uma realidade muito mais ampla (...)” (CORTÁZAR, 2006, p.151).
A próxima etapa de criação do conto, segundo Cortazar, é a escolha do tema,
pois tem que ser algo que não apenas toque o escritor, mas o leitor deve sentir
o que levou aquele conto a ser escrito. A tessitura do texto deve fazer o leitor
envolver-se na realidade do conto fazendo com que tudo a sua volta desapareça.
O olhar e a forma de escrever de Cortázar fazem com que o leitor se sinta
preso à leitura, coincidindo com o que defende para todos os escritores de
contos. Segundo Cortázar, os escritores de contos devem buscar seqüestrar
o leitor “(...) mediante um estilo baseado na intensidade e na tensão (...)”
(CORTÁZAR,2006.p.157). Exatamente como o escritor captura seu leitor no
conto “Todos os fogos o fogo”, com seu tema insólito e fantástico.

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Em seu conto “Continuidade dos Parques’’, Cortázar captura o leitor mediante
uma falsa simplicidade e um elemento fantástico, impossível de se desvendar, que
motiva o leitor a questionar: vivo em um mundo real ou em uma realidade ficcional?
O que ora se chama estilo fantástico de Cortázar é o seu peculiar modo de
olhar o cotidiano. De acordo com as palavras do escritor: “Não há um fantástico
fechado, porque o que dele conseguimos conhecer é sempre uma parte e por
isso o julgamos fantástico” (CORTÁZAR, 2006, p.178). A partir desta afirmação
de Cortázar, pode-se observar como o escritor argentino reflete sobre os
mistérios do cotidiano e como o fantástico está sempre em processo.
Como suporte teórico para o gênero fantástico, a primeira referência trabalhada
encontra-se no livro Introdução à Narrativa Fantástica, de Tzvetan Todorov. Para
definir o fantástico, o autor afirma que três condições devem ser preenchidas.
Primeiramente, que a narrativa conduza o leitor a acreditar no mundo das
personagens e indagar entre a explicação natural e sobrenatural. Em seguida,
esta indagação, que Todorov chama de hesitação, deve ser sentida por uma
personagem. E, por último, o leitor terá que decidir qual interpretação adotará,
se alegórica ou poética (TODOROV, 2003).
Todorov afirma que o fantástico dura apenas os instantes de hesitação do leitor,
que em seguida optará por alguma das quatro vertentes em que Todorov subdivide
o fantástico, o que será apresentado em seguida. São elas: fantástico- estranho,
que se relaciona às narrativas em que ocorrem fatos que possuem todas as
evidências de uma história sobrenatural, mas que recebem uma explicação
racional; estranho – puro, que se refere às narrativas em que os acontecimentos
podem ser explicados pelas leis da razão, embora pareçam extraordinários,
singulares ou chocantes provocando no leitor a mesma fascinação do fantástico
(TODOROV, 2003).
O fantástico-estranho e o estranho-puro não podem ser identificados nos
contos que são objetos de nossa análise (TODOROV,2003). Cortázar procede
de modo diverso, os recursos que utiliza deixam o leitor com dúvida a respeito
da possibilidade da existência de mais de um tempo no mesmo espaço, o que
cria existências bilaterais e/ou a possibilidade de vivermos uma ficção.
Em outra vertente, Todorov aborda o maravilhoso; primeiro: o fantástico –
maravilhoso, que abarca as narrativas que, embora comecem no fantástico,
encaminham-se para uma aceitação do sobrenatural; e o maravilhoso – puro,
o estudioso explica que, no maravilhoso, acontecimentos extraordinários não
causam estranhamento nas personagens e no leitor (TODOROV, 2003).
As últimas concepções de Todorov também não são identificadas nos contos
de Cortázar que foram selecionados. Em “Todos os fogos o fogo”, Cortázar
conduz o leitor a uma hesitação sim, porém, não o faz do modo como explica
Todorov. Em “Continuidade dos Parques” a narrativa começa de modo comum

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e não caminha para o sobrenatural; e a personagem não se percebe como
participante de um acontecimento extraordinário. Nos contos em questão a
hesitação do leitor é criada pela leitura simultânea de duas narrativas também
simultâneas e pela expectativa do leitor frente ao inusitado.
Como vimos acima nem sempre o conto dialoga com a teoria. Certa vez Cortázar
afirmou que seu conto era classificado como fantástico por falta de denominação
melhor. Jaime Alazraki afirma que “La dificultad nace, justamente, de ese esfuerzo
por definir comun denominadores en obras aparentemente heyerogéneas y sin un
nexo afin” (ALAZRAKI, 2001, p. 265). Com estas afirmações, passamos a outra
teoria que buscamos para auxiliar nas análises dos contos de Julio Cortázar.
No texto “Que es lo neofantástico?” Jaime Alazraki apresenta uma nova concepção
para pensarmos o fantástico: o neofantástico. Esta concepção baseia-se em três
elementos que a caracterizam: a visão que tem por definição a característica de
trabalhar com duas realidades; a intenção que diz respeito ao tom da narrativa
que não objetiva causar tensão e medo no leitor, e sim buscar uma semelhança
subentendida nos acontecimentos; e o modus operandi, que diz respeito ao
modo como o escritor trabalha para apresentar o elemento fantástico ao leitor.
Vejamos agora como o conto “Continuidades dos Parques” se relaciona com a
teoria apresentada acima. No conto observa-se o conceito de visão proposto
por Alazraki; percebemos que a primeira realidade abre espaço para a segunda
realidade e notamos que as duas podem estar ligadas. Este conceito também é
observado no conto “Todos os fogos o fogo”. O conceito de intenção também está
presente nos contos, uma vez que o medo não é o propulsor da narrativa fantástica
e a narrativa utiliza da vida cotidiana como metáfora para o enigmático. O modus
operandi como modo específico integrante do neofantástico, ao contrário, não é
encontrado nos contos de Cortázar, em que o elemento fantástico é apresentado
gradualmente, contrariando a proposta de Alazraki (ALAZRAKI, 2001).
No conto, “Todos os fogos o fogo” percebe-se como Cortázar consegue
encaminhar sua narrativa pela linha tênue que divide cada vertente defendida
por Todorov. No entanto, Cortázar quebra todos os preconceitos que o leitor
possa ter sobre a intersecção de planos na estrutura da narrativa, pois a sua
maneira de quebrar as crenças do leitor, em relação à intersecção de duas
narrativas em tempo e espaço diferentes, é quase imperceptível.
A sua estratégia no conto “Todos os fogos o fogo” é: na primeira fase coloca
cada narrativa em um parágrafo, alternando-as; na segunda intercala as histórias
nos mesmos parágrafos com apenas a pontuação proporcionando ao leitor o
limiar de cada narrativa; na terceira fase as duas histórias estão completamente
interligadas a tal ponto que, nas duas narrativas, o ponto de combustão é o
mesmo pedaço de pano. Esta gradual junção conduz o leitor à aceitação da
multiplicidade dos tempos.

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Para que se possa compreender o cruzamento dos planos narrativos é preciso,
ainda, recorrer ao pensamento do filósofo pré-socrático Heráclito. Quando na
narrativa do escritor argentino, surge o ditado de números encontra-se uma
alusão ao devir, conceito heraclitiano, que incita a transformação, a mutação
das coisas; os números marcam esta transformação, pois nada é como foi há
um instante. O pré-socrático defendia que tudo veio do fogo e tudo ao fogo
retornará, o que pode ser visualizado no conto de Cortázar, quando as duas
histórias interseccionam-se e acabam em fogo. Lembre-se, que segundo o
filósofo, o fogo é vivo e vai “(...) acendendo segundo a medida e segundo a
medida apagando”, (HERÁCLITO, 1996.).
No conto “Continuidade dos Parques”, Cortázar nos tira do hábito cotidiano
de ler um livro e nos convida a mergulhar em uma realidade ficcional. O leitor
inquieta-se diante do acontecimento de uma ficção da ficção. Jorge Luis Borges
investiga a causa desta inquietação, e afirma que assim como Quixote e Hamlet
podem ser leitores e espectadores de suas histórias, nós também podemos
fazer parte de um romance. (BORGES, 1999, p. 50). Mas a convivência com
esta possibilidade é angustiante para o leitor que passa a imaginar quando a
segunda realidade se apresentará.
Como se pode perceber pelo que foi discutido acima, a narrativa de Cortázar,
demonstrativa de determinado olhar particular sobre o fantástico, não se
“encaixa” nas definições de Todorov. Algumas características dos contos “Todos
os fogos o fogo” e “Continuidade dos Parques” impedem a junção esquemática
de ficção e teoria.
Mesmo buscando outra teoria acerca do fantástico para melhor compreender
Cortázar, nota-se que o contista gosta não só de jogar com seu leitor, mas
também com os teóricos da área. Cortázar “(...) joga com a matéria de que
somos feitos, o tempo. Em algumas narrativas fluem e se confundem duas
séries temporais” (BORGES, 1999, p. 522). A afirmação de Borges sobre
a literariedade de Cortázar também pode ser usada para exemplificar sua
habilidade peculiar de não se ajustar às teorias: “O estilo não parece cuidado,
mas cada palavra foi escolhida. Ninguém pode contar o argumento de um texto
de Cortázar; cada texto consta de determinadas palavras em determinada
ordem” (BORGES,1999, p. 522).
Pode-se afirmar que o mais fascinante na obra de Cortázar é como ele conduz
nosso olhar, não apenas nas narrativas, nos guiando, mas também fora da
história, quando sugere que o olhar do leitor busque encontrar uma fissura da
realidade para mergulhar, mesmo que por alguns segundos, em um universo
não regido pelas leis convencionais que conhecemos e aceitamos todos os dias.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 50
Daily life strangeness: a reading of Cortazar´s
short stories

Abstract

In this work we explore the marks, procedures and fantastic setting visible in
Julio Cortazar´s stories. We aim at unraveling the narrative ties, supported by the
theory of fantastic literature as a genre, developed by Russian scholar Tzvetan
Todorov and by the theoretical reinterpretation of the genre by Argentinean critic
Jaime Alazraki, which he calls neo-fantastic. Cortázar searches in everyday
scenes, openings and cracks through which the fantastic is seen. We argue that
this view challenges the reader to create a parallel between fiction and theory.

KEYWORDS:

Fantastic literature; neo-fantastic; Cortázar; temporal simultaneity; metafiction.

REFERÊNCIAS

ALAZRAKI, Jaime. “Qué es lo neofantástico?” In: ROAS, David (Org.). Teorías


de lo fantástico. Arco/ Libros: Madrid, 2001.(Texto Digitalizado)

BORGES, Jorge Luis.“ Magias Parciais de Quixote ”. In: _____. Obras Completas
II. Globo: São Paulo, 1999.

_____. “Julio Cortázar Contos”. In: _____. Obras Completas IV. Globo: São
Paulo, 1999.

CHAUÍ, Marilena. Introdução à História da Filosofia. São Paulo: Brasiliense,


1997. v. 1.

CORTÁZAR, Julio. “Continuidade dos Parques”. In: _____. Final do Jogo.


Expressão e Cultura: Rio de Janeiro, 1971.

_____. “Alguns Aspectos do Conto”, “ Do conto breve e seus Arredores”. In:


_____. Valise de Cronópio. São Paulo: Perspectiva, 2006.

_____. “Todos os fogos o fogo”. In: _____. Todos os fogos o fogo. Record: Rio
de Janeiro, 1969.

GENETTE,Gérard. “Utopia Literária”. In: _____. Figuras. Perspectiva: São Paulo,


1966.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 51
OS PENSADORES. Pré- Socráticos. São Paulo. Nova Cultural, 1996.

TODOROV, Tzvetan. “A narrativa fantástica”. In: _____. As estruturas narrativas.


São Paulo: Perspectiva, 2008. p. 147-166.

_____. Introdução à literatura fantástica. São Paulo: Perspectiva, 2003.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 52
A expressão do fantástico nos contos “Ligéia”, de
Edgar Allan Poe, e “Véra”, de Villiers de l’Isle-Adam.

Lígia Pereira de Pádua

RESUMO

Mesmo nos séculos em que as luzes da ciência monopolizam todas as áreas


do saber, os homens procuram decifrar o mundo via filosofias menos ortodoxas.
Essa curiosidade leva-os a se refugiarem em doutrinas ocultistas. No domínio
literário, esse ímpeto foi expresso pela literatura cunhada de fantástica e
caracteriza-se pela presença do sobrenatural. A literatura de veia fantástica
remonta à Idade Média, mas como afirma Malrieu (1992), o seu estabelecimento
enquanto gênero literário começa a ser ensejado pelos romances góticos na
França e na Inglaterra no século XVIII, e sua autonomia só encontrou terreno
fértil para florescer com o Romantismo. Assim, o conto fantástico ganha fôlego,
primeiramente, com as obras do alemão E.T.A Hoffmann e, posteriormente,
com as do norte-americano Edgar A. Poe em meados do século XIX. Dessa
forma, o autor francês Villiers de l’Isle-Adam, amplamente influenciado por
Poe, pretende, através do uso dos contornos e conteúdos próprios do gênero
fantástico, evocar a revelação de uma realidade superior, representada pela
busca ascética do Absoluto. Assim sendo, o objetivo do presente estudo é
fazer uma leitura comparativa das obras “Ligéia”, de Poe e “Véra”, de Villiers
no intuito de verificar a presença do fantástico como núcleo estruturador de
ambas as narrativas.

Palavras-chave:

Fantástico; Edgar Allan Poe; Villiers de l’Isle-Adam; Conto Poético.

O fantástico no século XIX

O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis


naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural (TODOROV,
1992, p.31).

A literatura fantástica responde à sede metafísica proveniente da desmistificação


da ideia cartesiana do mundo como um todo inteligível. Hoje, vulgarizado pelo
uso, o termo “fantástico” é aplicável a qualquer situação, porem, no universo
literário, ele caracteriza-se pela presença do sobrenatural, ou seja, pela intromissão
brutal do mistério na vida real. Se a literatura de veia fantástica remonta à Idade
Média, se estabelece como gênero no século XVIII e adquire autonomia com

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 53
a subjetividade aclamada pelo Romantismo e pelas obras do alemão E.T.A
Hoffmann; na França, o fantástico ganha ímpeto em meados do século XIX
com o Simbolismo/ Decadentismo pois, reproduz artisticamente o sentimento
de fin de siècle – sua linguagem foi usada para expressar esteticamente os
aspectos negativos da alma humana, outrora condenados pela estética clássica.
O gênero fantástico configura-se, assim, como um refúgio frente ao império
da razão e se estabelece como uma expressão de resistência à sociedade
da época, impregnada pelos valores burgueses, cujo epicentro era o capital.
Além disso, o cenário literário francês da época encontra no norte-americano
Edgar Allan Poe um grande expoente desse gênero.
Introduzido na França por Charles Baudelaire, os contos de Poe fizeram muito
sucesso na França devido à influência de suas reflexões estéticas na confecção
de suas obras, apesar da “estranheza de suas invenções”. Assim também o é o
escritor francês: põe a lógica a serviço da poesia burilando os conteúdos (desde
os mais assustadores) em função do efeito que quer produzir no seu leitor.
E é justamente nesse contexto que o autor francês Villiers de l’Isle-Adam,
grande inspirador do movimento simbolista, entra em contato com as obras
do autor norte-americano. Villiers encontra em Poe uma referencia, não só
em questões místicas e metafísicas, mas também estéticas. O seu gosto pelo
macabro, herdado de Poe, encontra no gênero fantástico um meio profícuo
para se propagar; também fiel ao seu precursor, Villiers elege o conto – pela
sua brevidade e seu estilo lacônico capaz de engendrar o leitor em um mundo
diferente do real – para exprimir suas criações.
O objetivo do presente estudo é, dessa forma, testemunhar o dialogo entre os
dois autores – embora inseridos em momentos históricos diferentes – no que
toca, especialmente, à expressão do fantástico. Para tanto, foram escolhidos dois
contos “Ligeia” (1838) de Poe e “Véra” (1876) de Villiers que, apesar de suas
diferenças no que concerne a sua estruturação formal e mesmo ao tratamento
do gênero, são exímios exemplos de contos fantásticos cujo discurso poético
evoca o sobrenatural como meio de transportar para o Absoluto os espíritos
inadaptados à realidade burguesa.

A expressão do fantástico em “Ligeia” e em “Véra”

Tanto a trama do conto de Poe, “Ligeia” 1, como a de “Véra” 2 de Villiers obedecem


a uma mesma dinâmica: o enclausuramento dos protagonistas depois da morte
prematura de suas respectivas amadas esposas; enviuvados, enlutados eles
se isolam em suas moradas e se fecham a qualquer contato com o mundo
exterior. Motivados pelo entorpecimento da consciência causado pela dor da
1 O conto “Ligeia” foi publicado pela primeira vez no Americam Museum of Science, Literature and the Arts em
setembro de 1838, e incluído em 1840 em Tales of the grotesque and arabesque.
2 O conto “Véra” foi publicado em revistas em 1874, 1876 e 1910, e incluído no livro Contes Cruels em 1883.

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perda (e também pelo uso do ópio, no caso do protagonista de “Ligeia”), eles
trazem suas amadas de volta à vida, seja por meio da suposta transfiguração
do cadáver de Lady Rowena, segunda esposa do viúvo, no da falecida Ligéia;
seja pelo delírio sonâmbulo do conde de Athol, saudoso viúvo, que restabelece
sua rotina com o fantasma de Véra “como se a morte nunca tivesse existido”.
A epigrafe do conto “Ligeia” e a frase de abertura de “Véra” servem de mote
para a trama e prenunciam ao leitor os fenômenos extraordinários que estão
prestes a ocorrer. Em “Ligeia”, a epigrafe é supostamente atribuída a Joseph
Glanvil: “ [...] o homem não se submete aos anjos nem se rende inteiramente
à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade (MENDES, 1981, p.64)
ideia que é reiterada pelo poema Conqueror Worm (em português, verme
vencedor) composto pela enferma Ligeia em seu leito de morte; já em Véra, a
frase que encabeça o conto O Amor é mais forte que a Morte, disse Salomão:
sim, seu misterioso poder é ilimitado (DOMINGOS, 2009, p.83) é, como se vê,
atribuída a Salomão , porém, sua versão original diz: O amor é forte, é como
a morte. Assim sendo, o narrador de Véra se apropria da fala de Salomão
transformando-a em favor da coesão da trama. Fica evidente, dessa forma,
o dialogo entre os dois contos, pois, ambos pregam que a força da vontade
e do amor é capaz, até mesmo, de superar a morte. Essa trama mirabolante
encontra, assim, no fantástico o meio propicio para ser concretizada uma vez
que seu intuito é penetrar no lado mais obscuro da mente humana, reconciliando
o mundo material e o espiritual. Os contos em questão responderão, dessa
forma, aos fundamentos básicos relativos à estruturação do gênero fantástico
com o objetivo de levar o leitor a indagar-se sobre a efetiva instauração do
fenômeno sobrenatural.
Segundo Joel Malrieu (1992) em Le Fantastique, o gênero conta com dois
elementos constitutivos básicos: uma personagem e um elemento perturbador
(seja um fantasma, um morto-vivo, a presença do duplo, etc.) que se caracteriza,
ou não, por manifestações de loucura, alucinação, que possam desestabilizar
profundamente o equilíbrio da personagem e do leitor. Para facilitar a identificação
entre ambos, a personagem deve ter configurações bem realistas; verifica-
se que grande parte dessas personagens estabelece uma imediata empatia
com o leitor, já que ela é um membro benquisto pela sociedade (não raro são
figuras ilustres e abastadas), porém, é uma figura ensimesmada que está mais
predisposta ao fenômeno sobrenatural por estar afetiva, intelectual e socialmente
isolada de seu contexto. Em “Ligeia”, essa personagem é o próprio narrador
que, apesar de anônimo, conta e escreve a sua história de amor com Ligeia,
antes e depois de sua morte. Entorpecido pelas penosas lembranças, ele se
revela ensimesmado e prefere o isolamento ao convívio social. É o que acontece
quando, devastado pela morte da amada, resolve refugiar-se em uma velha
abadia em ruínas no interior da Inglaterra:

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Morreu. E eu, aniquilado, pulverizado pela tristeza (...) adquiri e restaurei,
em parte, uma abadia, que não denominarei, em um dos mais incultos e
menos frequentados rincões da bela Inglaterra. (MENDES, 1981, p.72,
grifo nosso).

Em “Véra”, a personagem que presencia o elemento sobrenatural é o protagonista


conde de Athol, que, apesar do título nobiliárquico e das posses, prefere exilar-
se com sua amada na sua propriedade. E assim ele é apresentado ao leitor:
um jovem senhor (de trinta a trinta e cinco anos) de origem aristocrática – existe
aqui também o contraste entre o conforto financeiro e impotência perante a
morte e a empatia com o leitor é fomentada pela descrição do conde enlutado
pela recente morte da esposa:

Nos arredores do sombrio bairro Saint-Germain (...) Um homem de trinta


a trinta e cinco anos, de luto, com o rosto mortalmente pálido, desceu
(...). Era o conde de Athol. (DOMINGOS, 2009, p. 90, grifo nosso).

E quando o elemento perturbador entra em cena, os frágeis fios que ligavam


a personagem à realidade se rompem; na maior parte do tempo, todo esse
episódio mostra-se interno à personagem, revelando seus aspectos interiores
mais doentios, o que lhe atribui uma total duplicidade emocional e psíquica.
Em “Ligeia”, a revelação do fenômeno é sugerida gradualmente, mas sem a
presença de nenhum criado e estando a consciência do narrador abalada
pela droga, a percepção do fenômeno é confiada estritamente a ele. Porém,
Lady Rowena, em uma de suas crises, parece também testemunhá-lo, mas
o narrador, incrédulo, não a leva em consideração, uma vez que seu estado
mental estava muito debilitado pela doença.
Já no conto “Véra”, o “delírio” da personagem é testemunhado pelo criado
Raymond. De início, ele fica estupefato com a atitude do conde, mas resolve não
contrariá-lo, temendo que outro choque com a realidade lhe seja fatal, como um
sonâmbulo que é acordado de seu sono, e por fim ele acaba sendo envolvido
pela situação. Raymond parece vivenciar o processo de “verossimilhização”
evocado pela teoria de ROAS (2001): tomado pelo sentimento de piedade,
ele começa por compactuar com o delírio de seu patrão, porém, ao passar
pelo processo de naturalização do fenômeno, ele o vive quase que na mesma
intensidade que o protagonista. Se a obra leva o leitor a sentir empatia pelo
protagonista, pela sua condição miserável (do ponto de vista existencial), o
leitor identifica-se mais que prontamente com Raymond, já que ambos são
espectadores que acompanham de perto as peripécias da alma atormentada
do conde. Já a hesitação em relação ao fenômeno fantástico é levada a cabo
no final da narrativa, com o aparecimento da chave do túmulo onde estava
sepultada Véra, episódio que não é testemunhado pelo criado.

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Para produzir esse efeito de hesitação, muitos autores lançam mão da narração
em primeira pessoa para conferir dubiedade ao relato. Como é consensual,
em uma narração desse tipo, a tonalidade do que está sendo relatado é dada
pela personagem, é ela quem manipula as informações, pois tudo é visto e
sentido pela sua perspectiva. Assim, em “Ligeia” a primeira pessoa insere
diretamente o leitor na narrativa; isso lhe confere o sentimento de dominar toda
narração, reforçando o processo empático com o narrador personagem. Mas,
por outro lado, ele também é engendrado na trama de maneira a dificultar seu
distanciamento crítico frente aos acontecimentos:

Mesmo na infância, eu tomara gosto por tais fantasias, e agora elas me


voltavam como uma extravagância do pesar. Ai! sinto quanto de loucura,
mesmo incipiente pode ser descoberta nas tapeçarias ostentosas e
fantasmagóricas (...). Tornei-me um escravo acorrentado às peias do ópio,
e meus trabalhos e decisões tomavam o colorido de meus sonhos.”
(MENDES, 1981, p.73, grifo nosso)

Aqui, o narrador, em tom confessional, conta que sempre tivera a imaginação


fértil, e que, por conta do seu luto, do uso abusivo do ópio e do ambiente
fantasmagórico do quarto, seus trabalhos e decisões “tomavam o colorido de
(seus) sonhos”. Assim, o leitor é levado a desconfiar do poder de julgamento
do narrador e, em ultima análise, dos fatos por ele narrado. A trama é tecida
de forma a provocar a hesitação, a dúvida.
Já, em “Véra”, a narração é em terceira pessoa do singular. Segundo Grojnowski
(2000), esse tipo de foco narrativo favorece o desaparecimento do narrador
para dar mais destaque ao que está sendo narrado assim, o leitor tem a ilusão
de que os acontecimentos falam por si próprios. O narrador pode, desse modo,
ser caracterizado como onisciente, uma vez que relata as ações da personagem
ao passo que sinaliza seus impulsos interiores. Mas, apesar da narração em
terceira pessoa se pretender mais imparcial, a onisciência garante a hesitação
por parte do leitor, uma vez que o narrador onisciente reporta os fatos segundo
a sua interpretação.
Sendo assim, seja de primeira ou de terceira pessoa, o narrador e o leitor selam
um pacto no qual o fantástico se fundamenta: a hesitação diante do fenômeno
sobrenatural. Ora para que tal hesitação ocorra, o narrador deve ganhar
credibilidade junto ao leitor e, para tanto, ele se vale de atitudes realistas como
a da documentação espacial da trama. Assim, no que se refere ao espaço,
a narração fantástica acontece em locais aparentemente comuns, grandes
cidades ou até mesmo em propriedades rurais, porém em lugares isolados do
convívio social – aí a literatura fantástica não economiza nas referências góticas
(castelos, mansões mal-assombradas, cemitérios). Como afirma Gama-Khalil
(2009), Poe, em seus contos, atribui a todos elementos ficcionais uma função
importante na geração de sentidos e, desse modo, a atmosfera fantástica dos

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contos poeanos é, na maioria das vezes, desencadeada por intermédio da
constituição de espaços onde a história se desenrola; a opção pelo espaço
fechado é determinada, assim, não só em função da aclamada unidade de
lugar, mas também pela necessidade de gerar o sentido de insulamento. O
insulamento espacial, dessa forma, faz eco à personalidade hermética da
personagem e às mudanças conferidas ao ambiente pela presença do elemento
perturbador. O espaço é configurado, então, pelas dimensões do protagonista
em uma perspectiva determinista, em voga no século XIX. Em sentido amplo, o
determinismo geográfico é a concepção segundo a qual o meio ambiente define
ou influencia fortemente a fisiologia e a psicologia humana. Em “Ligeia”, como
já foi dito, o narrador, devastado pela morte da amada, refugia-se em uma velha
abadia em ruínas (referência notadamente gótica) no interior da Inglaterra. A
construção espacial é muito rica e influi diretamente na percepção do fenômeno
sobrenatural, ao restaurar a velha abadia, o quarto onde o protagonista passará
as noites com a sua segunda esposa é reconstruído de modo a criar um cenário,
pleno de sugestões fantasmagóricas como uma câmara mortuária:

O aposento achava-se numa alta torre da abadia acastelada [...]o leito


nupcial –, encimado por um dossel semelhante a um pano mortuário. Em
cada um dos ângulos do quarto se erguia um gigantesco sarcófago de granito
negro tirado dos túmulos dos reis [...]. (MENDES, 1981, p.75, grifo nosso).

Se em “Ligeia” a ambientação fantasmagórica do quarto favorece a aparição


do elemento sobrenatural, em “Véra”, o elemento sobrenatural provoca uma
mudança no ambiente que pode ser visualizada pelo jogo entre claro/escuro
atribuído a adjetivos que simbolizam, respectivamente, a presença e a ausência
de Véra. Como já fora antes citado, a narração se abre com adjetivos que
remetem ao sombrio (“sombrio”, “mortalmente pálido”), porém quando o conde
de Athol sente a presença de Véra, o ambiente se ilumina:

Os objetos, no quarto, estavam agora iluminados por uma claridade até


então imprecisa, a de uma lamparina, azulando as trevas, e que a noite,
erguida no firmamento, fazia aparecer ali como uma estrela (DOMINGOS,
2009, p. 95, grifo nosso).

O personagem fantástico é desse modo, arrastado para um espaço singular de


onde se irradia o sentimento de estranheza que faz eco à sua solidão, à sua
necessidade de escapar da convivência social. Quanto mais ele penetra nesse
espaço mais ele se recolhe, mais ele adentra a penumbra de seu inconsciente.
A experiência vivida pelos heróis se faz sentir também na demarcação temporal.
Quanto a esse aspecto, a narrativa fantástica conta com o tempo histórico real,
que comumente costuma ser recente e historicamente datado em relação ao
momento da narração, porém, quando ocorre o fenômeno sobrenatural, há
uma pausa, o arrêt du temps, ou seja, a suspensão da linearidade temporal,

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conferindo uma ambientação mítica e onírica ao que está sendo narrado.
Assim, a personagem fantástica é desenraizada de seu contexto social e
espaciotemporal, pois prefere viver alienada e exilada.
“Ligeia” é uma metaficção, pois o narrador conta e ao mesmo tempo escreve sua
própria história. Há, assim, a imbricação de dois tempos: o tempo da narrativa,
presente à enunciação, e o tempo da história, do passado, das reminiscências.
Esse recurso narrativo faz com que o narrador não enxergue os fatos contados
com clareza já que a distância temporal entre os acontecimentos e sua narração
reveste o conto de um fog, de uma nebulosidade eloquente.
Em “Véra”, a superposição do irreal e do real faz com que o tempo da narrativa
esteja sempre no limiar entre o histórico real, medido pela linearidade, e o
tempo psicológico, interior à personagem, permeado por pausas, feed-back,
culminando na total paralisação do tempo. O arrêt du temps é levado a cabo
no fim da narrativa, quando o conde de Athol perde, pela segunda vez, a
sua amada quando recobra a sua consciência e se dá conta que ela está,
efetivamente, morta:

[...] o balanço do pêndulo retomou gradativamente sua imobilidade. A


certeza de todos os objetos desapareceu subitamente. A opala morta
não brilhava mais. ( DOMINGOS, 2009, p. 102, grifo nosso).

A hesitação que anuncia o fantástico está justamente no fato de que, assim,


que o conde acorda de seu estado sonâmbulo, a chave do mausoléu onde
estava sepultada Véra cai no tapete do quarto nupcial. Se, para Todorov (1992),
a referida chave preconiza a presença do elemento maravilhoso, o presente
estudo é tentado a defender que, pelo contrário, ela ativa o fenômeno fantástico.
Pois, uma vez que se é levado a acreditar que de fato foi o espectro de Véra o
responsável pelo reaparecimento da chave, como fora sugerido pelo próprio
narrador; o estado de espírito, abalado, do conde pode induzir o leitor de que
tudo não passa de outro delírio, causado pelo impacto, quando confrontado
pela segunda vez com a dura realidade.
Uma vez superada todas as possíveis interpretações dos mais variados leitores,
nos seus diferentes contextos histórico-culturais (o leitor do século XIX poderia
estar mais propenso à explicação sobrenatural de ambos os contos, já o do
século XX, depois do incurso da psicanálise, poderia optar pela explicação
lógica, recorrendo ao entorpecimento da consciência pela dor), o que perdura
é a hesitação. Em qualquer época, o leitor encontra-se em uma corda bamba
suspensa entre a realidade palpável e a impalpável realidade sobrenatural, é
o que, de fato, caracteriza a instauração do gênero fantástico.
Já em “Ligeia”, essa hesitação vai sendo tecida ao longo do texto, seja pelo
recurso à narração em primeira pessoa, seja pelo constante uso de entorpecentes
pelo narrador, pela distância temporal entre os acontecimentos e sua narração,

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pelo ambiente fantasmagórico, ou até mesmo pela declaração do narrador de
que desde criança ele tomara gosto pelas fantasias. Por outro lado, a epigrafe
do conto, reiterada pela filosofia de Ligeia de que “o homem não se rende
inteiramente à morte, a não ser pela fraqueza de sua débil vontade”, pode dar
indícios ao leitor de que ela superou a barreira que separa o mundo espiritual
e o material para voltar ao mundo dos vivos se apropriando do falecido corpo
de Lady Rowena.
A presença da morte, desse modo, se faz mister em ambos os contos uma vez
que ela é trabalhada esteticamente pelo gênero fantástico como o elo entre o
mundo material e o espiritual. Porém, se em Poe o fantástico nasce não dos
sonhos, mas de um mórbido poder do terror exercido na consciência; em
Villiers, predomina o fantástico essencialmente simbolista, aquele marcado
pelo apego ao onírico e à espiritualidade.
Conclui-se, dessa maneira, que “Ligeia” e “Véra” são contos elaborados
poeticamente através do discurso fantástico, de teor altamente transgressor.
Assim, eles se comunicam, já que em ambos a presença do amor e da morte
é reivindicada como meio de superação da realidade material para se alcançar
o absoluto, levando o leitor, por meio de um processo catártico de identificação
com a personagem, a evadir-se das concepções positivistas do mundo, taxadas
como verdade absoluta.

Expression of the fantastic in the novels “Ligeia”


by Edgar Allan Poe and “Véra” by Villiers de l´Isle-
Adam

Abstract

Even in the centuries when the lights of science monopolize all the knowledge,
men had been finding decode the world by philosophies less orthodox. This
curiosity leads them to refuge in occult doctrines. In the literature’s domain, this
impulse was express by the literature named fantastic and it is characterized by
the presence of the supernatural. This fantastic literature goes back to Middle
Age but, like Malrieu (1922) says, its establishment as literary genre starts to be
initiated by the gothic´s novel in France and in England in the 18th century, and
its autonomy only found fertile ground to flourish with the Romanticism. Therefore,
the fantastic novel gain breath, first of all, with the novels of the German E.T.A
Hoffmann, and after, with the work of the American Edgar A. Poe in the middle
of the 19th century. In this way the French author Villiers de l’Isle-Adam, largely
influenced by Poe, intend, by the contours and contents of the fantastic genre,

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to evoke the revelation of a superior reality, represented by the ascetic pursuit of
the Absolute. Thus the aim of this study is produce a comparative lecture of the
novels “Ligeia” by Poe and “Véra” by Villiers in order to analyze the fantastic´s
presence like a structuring cadre of both narratives.

Key-words:

Fantastic; Edgar Allan Poe; Villiers de l’Isle-Adam; Poetic Novel.

Referencias

DOMINGOS, N. A tradução poética: Contes Cruels de Villiers de l´Isle –Adam,


2009, 278f, Tese (Doutorado em Estudos Literários) – Faculdade de Ciências
e Letras, Universidade Estadual Paulista, Araraquara, 2009.

GAMA-KHALIL, M. “O espaço ficcional e a instauração do terror nos contos


de Edgar Allan Poe”. In: Para Sempre Poe - Congresso Internacional 200 anos
do nascimento de Edgar Allan Poe, 2009, Belo Horizonte - MG. Caderno de
Resumos: Congresso Internacional para Sempre Poe. Belo Horizonte - MG :
Fale - UFMG, 2009.

GROJNOWSKI, D. Lire la nouvelle. Paris : Armand Collin, 2000.

MALRIEU, J. Le Fantastique. Paris : Hachette, 1992.

MENDES, O. “Ligeia”. In: Contos de Terror e Morte. Rio de Janeiro: Nova


Fronteira, 1981.

ROAS, D. Introducción, compilación de textos y bibliografia. In: ALAZRAKI, J.


Teorías de lo fantástico. Madrid : Arco/Libros, 2001.

TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Tradução de Maria Clara Correa


Castello. São Paulo: Perspectiva, 1992.

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ASPECTOS DO DUPLO NOS CONTOS “O EX-MÁGICO DA
TABERNA MINHOTA”, DE MURILO RUBIÃO, E “CARTA A UMA
SENHORITA EM PARIS”, DE JULIO CORTÁZAR

Luciano Antonio

Resumo:

As manifestações do duplo na literatura, ao mesmo tempo em que dificultam o


entendimento unívoco do tema, trazem uma riqueza de leituras bem-vindas ao
meio literário. Procuramos, neste trabalho, cotejar dois contos que apresentam
o duplo de modo distinto. Na narrativa de Murilo Rubião, o Outro aparece no
desdobramento da figura do mágico insatisfeito com seus poderes extraordinários
que se converte em funcionário público para se livrar de tal “problema”
e, assim, ao anular suas magias, mergulha na angústia de uma fastidiosa
existência burocrática. A busca da identidade passa pela atitude de escapar
da consciência de si através do mergulho em um “novo” estar no mundo. De
outro modo, temos no texto de Cortázar um homem que, ao também tentar
refúgio dos seus conflitos particulares, muda-se para o apartamento de uma
amiga e se vê invadido por seu duplo manifestado no insólito ato de vomitar
coelhinhos. Estes pequenos seres alternam sua rotina e tornam-se um grande
obstáculo, tendo o personagem que recorrer ao suicídio para se ver “livre”
deles. Assim, o duplo nesse conto de Cortázar pode ser lido pela perspectiva
de Jaime Alazraki, via estudos da psicanálise freudiana, como sendo uma
espécie de metáfora do inconsciente.

Palavras-chave:

Rubião; Cortázar; duplo; fantástico.


Tema recorrente na literatura, o duplo surgiu e continua a aparecer sob as mais
variadas formas. Diversas também são as abordagens críticas sobre o tema.
Para alguns autores o duplo é assunto cultivado na antiguidade e está ligado à
própria existência do homem que sempre buscou explicar a si mesmo. Contudo,
dentro desse percurso extenso, tal fenômeno pode ser analisado a partir de
dois momentos distintos, como nos aponta Adilson dos Santos:

O percurso de representação do duplo na história da literatura mundial pode


ser dividido em duas fases: na primeira, o duplo aparece como figuração do
homogêneo; na segunda como figuração do heterogêneo. A primeira fase
vai da antiguidade até o final do século XVI, deixa transparecer a concepção
unitária do homem. (...) o duplo simboliza o idêntico e aparece retratado
através de gêmeos ou de sósias: dois personagens dotados de identidade
própria e sustentando uma subjetividade autônoma, apresentam perfeita

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semelhança física e, às vezes, até comportamental, a ponto de dificultar a
sua identificação. (SANTOS, p. 66, 2009).

Nessa primeira fase há uma tendência ao homogêneo e o duplo passa a ser


um intercâmbio entre duas figuras representadas. Todavia, a partir do final
do século XVI inicia-se o crescente abandono dessa imagem unitária e, em
contrapartida, temos a introdução da subjetividade enquanto motivação desse
fenômeno, como salienta Santos:

(...) ocorre uma abertura para o espaço interior do homem e o duplo passa a
figurar a desagregação da personalidade, assinalando, assim, uma radical
mudança em sua concepção. (...) No século XIX, as investigações sobre a
natureza interna do homem, de um ponto de vista científico, tornam-se mais
agudas. Somadas ao clima favorável do romantismo a explorar e reconhecer
outras esferas de percepção humana, tais especulações se projetam na
criação artística; ou seja, ao colocar o sujeito no centro de suas questões,
o século XIX contribui para a emergência do tema da duplicidade do “eu”
em uma série de narrativas. (SANTOS, p. 68, 2009).

Vale destacar também outra divisão sobre a origem do duplo. Há o duplo exterior
cuja origem é extrínseca ao “eu” e do duplo interior, que ao contrário daquele tem
sua gênese no próprio sujeito. Pode-se dizer que no primeiro caso, o do duplo
exterior, existe um confronto entre o “eu” e o outro. A imagem do ser surge em
contraposição à visão que o externo faz aparecer. Neste embate, o que vem à
tona é a questão da identidade através do choque com o diferente. Assim, está em
jogo a alteridade que significa a aceitação do outro, daquele que é estrangeiro.
O duplo interior surge da divisão interna do “eu” como se fosse um conflito
psíquico que gera sentimentos (ansiedades, perturbações, angústias, medos,
pânicos, etc). Este segundo exterioriza-se como uma sombra. Tal materialização
levaria o sujeito a enxergar esse outro como algo atemorizante e até aparecer
em forma de um antagonista. (SANTOS, 2009). O diferente se manifesta também
numa segunda personalidade que convive e pode surgir em determinados
momentos, fazendo com que haja uma mescla de sujeitos no próprio ser. Tal
perspectiva ganha forças a partir de um ensaio de 1919 em que Freud explica
o conceito de unheimliche em sua língua materna, alertando, especialmente, a
dificuldade de se fixar-lhe um sentido preciso. Depois de percorrer pelas várias
nuances do termo no dicionário, expõe que tal palavra nasce de um paradoxo,
pois, partindo do adjetivo heimliche, o significado corresponderia àquilo que é
familiar, conhecido. Com o acréscimo do prefixo un, fundamental à nova palavra,
há um feixe de sentido contrário, que passa também ao significado de algo
que não é familiar. Nessa fusão, o termo unifica ideias contrárias denotando
o “estranho-familiar”. Portanto, a palavra desliza para um duplo de si mesma
– como se o vocábulo, de algum modo, estivesse frente a um espelho. Assim,
segundo Freud, o nosso outro, uma espécie divisão do indivisível, surge da
projeção dos desejos e medos recalcados no inconsciente.

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Objetivando verificar alguns aspectos do duplo na literatura contemporânea,
pretendemos cotejar aqui dois contos que apresentam esse fenômeno de
modo peculiar. Trata-se do texto “O Ex-mágico da taberna minhota” de Murilo
Rubião e “Carta a uma senhorita em Paris” de Julio Cortázar. E por estes dois
autores estarem ligados à literatura fantástica, apontaremos também como o
duplo pode funcionar como um dos componentes deste gênero.
No conto de Murilo Rubião observa-se desde o início o tom melancólico e
conformista do personagem-narrador. O texto começa com a descrição atual
do sujeito. “Hoje sou funcionário público e este não é o meu desconsolo
maior”. (RUBIÃO, 1999, p. 7). Estar empregado na burocracia do estado não
parece ser o motivo ou a explicação para o humor do personagem. Na visão
do leitor implícito, a narrativa se encaminha para uma espécie de lamentação
do personagem ou apenas uma descrição dos problemas que o levaram
ao desconsolo. Todavia, a própria identidade do narrador surge como algo
insólito: “(...) Fui atirado à vida sem pais, infância ou juventude. Um dia dei
com meus cabelos ligeiramente grisalhos, no espelho da Taberna Minhota. A
descoberta não me espantou e tampouco me surpreendi ao retirar do bolso o
dono do restaurante.” (RUBIÃO, 1999, p. 7). Temos aqui um elemento insólito
que expõe a não-identidade social do narrador. Essa primeira imagem anuncia
as especificidades tanto no modo de narrar a história quanto na construção
do próprio personagem.
Na sequência do texto, respondendo a estranheza revelada pelo dono do
restaurante ao se ver retirado do bolso, o narrador confessa: “O que poderia
responder, nessa situação, uma pessoa que não encontrava a menor explicação
para sua presença no mundo? Disse-lhe que estava cansado. Nascera cansado
e entediado.” (RUBIÃO, 1999, p. 7). O espelho, um dos elementos mais comuns
nas narrativas do duplo, funciona como meio para choque entre o eu que não se
via, apenas sentia tédio e aquela imagem de um sujeito com marcas físicas da
passagem do tempo. Temos aqui um encontro do sujeito com si mesmo. Além
de ter se visto pela primeira vez, ou melhor, ter se descoberto enquanto ser
social no espelho da Taberna Minhota, o personagem dá-se conta daquilo que
lhe falta e o incomoda: percebe-se apenas como um homem sem identidade,
vivendo num mundo para ele desprovido de sentido. Todavia, apesar da
“mágica” que foi tirar o dono do restaurante do bolso, ao leitor, o personagem
representaria um funcionário público cansado de sua rotina de trabalho, algo
que se reflete na visão de mundo do narrador.
Contudo, o desdobramento do insólito presente no início do texto surge com a
longa descrição da outra faceta do funcionário público: sua grande habilidade
de fazer mágicas. Temos, assim, um segundo momento da narrativa, ou seja,
retoma-se o que seria a primeira fase do narrador, um homem que tem como
principal ocupação os seus truques de magia. Tal imagem não seria de se

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 64
estranhar caso essa sua prática fosse apenas algo aprendido, uma forma de
ganhar a vida. Embora o dono do restaurante o tenha contratado para fazer
mágicas, como uma profissão, o que vemos na continuidade do texto é o
insólito fato de os truques surgirem de maneira involuntária. O que apareceria
como uma ilusão para o espectador, torna-se “real” e o que é mais absurdo,
sem que o mágico possa controlar esses seus truques. Interessante notar que
a habilidade de fazer mágicas, algo normalmente prazeroso, converte-se para
o personagem-narrador em motivo de tristeza, angústia e depressão. É como
se houvesse um “duplo” que fizesse surgir diferentes objetos e animais nas
horas mais impróprias, como descreve o narrador:

Às vezes, sentado em algum café, a olhar cismativamente o povo desfilando


na calçada, arrancava do bolso pombos, gaivotas, maritacas. (...) Se, distraído,
abria as mãos, delas escorregavam esquisitos objetos. A ponto de me
surpreender, certa vez, puxando da manga da camisa uma figura, depois
outra. Por fim, estava rodeado de figuras estranhas, sem saber que destino
lhes dar. Nada fazia. Olhava para os lados e implorava com os olhos por
um socorro que não poderia vir de parte alguma. (...) Também, à noite, em
meio ao sono tranquilo, costumava acordar sobressaltado: era um pássaro
ruidoso que batera as asas ao sair do meu ouvido. (RUBIÃO, 1999, p. 9-10).

Não é o mágico que controla ou produz os truques e sim estes que surgem e
incomodam o personagem. Há uma mudança na lógica, pois aquilo que seria
apenas uma ilusão de ótica, algo explicável pela razão, ou seja, a mágica
como criação do homem para enganar o espectador, passa a funcionar neste
texto de Murilo Rubião como algo interno, inerente ao próprio homem. Vale
destacar que o estranhamento se dá na percepção do leitor e não do narrador
que aceita o evento, tentando lidar com seus efeitos. E é neste contexto que
o personagem utiliza sua própria mágica para tentar se livrar do problema. A
saída foi arquitetar a sua própria morte: “Urgia encontrar solução para o meu
desespero. Pensando bem, concluí que somente a morte poria termo ao meu
desconsolo.” (RUBIÃO, 1999, p. 10). Porém, todas as tentativas foram frustradas
e o narrador conclui que não tem controle sobre sua vida, chegando ao limite
quando revela: “Rolei até o chão soluçando. Eu, que podia criar outros seres,
não encontrava meios de libertar-me da existência.” (RUBIÃO, 1999, p. 11).
Este desabafo do narrador aponta para o absurdo, o sem saída da existência.
O personagem anula-se enquanto indivíduo ativo, pois não só deixa de ter
controle sobre seus truques, mas, principalmente, descobre-se incapaz de
realizar o seu desejo.
A segunda saída encontrada pelo narrador para dar cabo a sua vida, também
foge ao comum e tem um sentido metafórico: “Uma frase que escutara por
acaso, na rua, trouxe-me nova esperança de romper em definitivo com a vida.
Ouvira de um homem triste que ser funcionário público era suicidar-se ao
poucos. (...) Por isso empreguei-me numa Secretaria de Estado.” (RUBIÃO,

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 65
1999, p.11). A prerrogativa do homem triste não foi desmentida pela realidade,
pois a vida do personagem transcorreu como se esperava, ou pior, além de
não morrer sente-se ainda mais entediado. Neste momento do texto temos o
desdobramento da figura do narrador. Surge aqui o duplo interior através de uma
segunda personalidade: a figura do mágico que não controla os seus truques
é bloqueada pela vida burocrática do funcionário público. Se não foi possível
sua morte física, como almejado, ele perdeu seus poderes incontroláveis e
agora é um simples empregado. Tal descoberta se dá quando o personagem
necessita dos seus truques:

Fui ao chefe da seção e lhe declarei que não podia ser dispensado, pois
tendo dez anos de casa, adquirira estabilidade no cargo. (...) Para lhe provar
não ser leviana a minha atitude, procurei nos bolsos os documentos que
comprovavam a lisura do meu procedimento. Estupefato, deles retirei apenas
um papel amarrotado – fragmento de um poema inspirado nos seios da
datilógrafa. Revolvi os bolsos e nada encontrei. Tive que confessar minha
derrota. Confiara demais na faculdade de fazer mágicas e ela fora
anulada pela burocracia. (RUBIÃO, 1999, p. 12-13) (grifo nosso).

Há aqui a transformação do narrador em cidadão comum, desprovido de qualquer


tipo de poder extraordinário. O sujeito-mágico com truques insólitos se desdobra
em personagem verossímil. Neste caso, o duplo pode funcionar como uma metáfora
crítica do cotidiano do homem contemporâneo, um ser pós-moderno incluso na
multidão. O texto indica que a banalização da vida moderna e a posição do sujeito
inserido nessa sociedade do consumo desembocam no absurdo, ou seja, no
sense do existir. Se o mágico com poderes de mudar a realidade tem banalizado
seus truques pela repetição espontânea, ao funcionário público desprovido dessa
faculdade, o cotidiano é ainda mais sufocante, pois nem mesmo tem-se a ilusão
trazida pela mágica. Assim, os poderes do mágico e com isso a possibilidade de
fuga do cotidiano são interrompidos pela inversão dos sentidos através dos truques
transformados em rotina sufocante, similar à do funcionário público.
De outro modo, a partir da imagem de um duplo interior como recalque do
inconsciente podemos situar o conto “Carta a uma senhorita em Paris” de
Julio Cortázar. Neste texto, o personagem-narrador descreve em forma de
carta a uma amiga que está na França sua rotina no apartamento desta. Já
no início do texto menciona sua tristeza relacionada à imagem dos coelhinhos.
Na sequência, fala das dificuldades ao tentar ficar à vontade em um espaço
impregnado de marcas pessoais. Contudo, essa tristeza que contamina a carta
advém de um evento insólito assim descrito pelo narrador:

(...) Mas fiz as malas, avisei a sua empregada que viria a instalar-me, e entrei
no elevador. Justo entre o primeiro e o segundo andar senti que ia vomitar um
coelhinho. Não havia explicado antes, não acreditava que por deslealdade,
mas naturalmente ninguém vai poder explicar às pessoas que de quando
em quando se vomita um coelhinho. (CORTÁZAR, 1982 p. 23).

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Para novo espanto do leitor há na continuidade do texto a descrição em moldes
realistas de uma cena insólita:

Quando sinto que vou vomitar um coelhinho, coloco os dedos na boca como
uma pinça aberta, e espero sentir na garganta a penugem morna que sobe
como uma efervescência de sal de frutas. Tudo é veloz e higiênico, transcorre
em um brevíssimo instante. (...) É um coelhinho normal e perfeito, somente
que muito pequeno, pequeno como um coelhinho de chocolate, mas branco
e inteiramente um coelhinho. (CORTÁZAR, 1982, p. 23-24).

Temos aqui o surgimento do insólito na narrativa e a relação do personagem


com o acontecido é a de não estranhamento ou tentativa de explicá-lo, mas
sim sugere ser algo “natural” que se incorporou à sua vida. A partir desta nova
“realidade”, o narrador descreve como fazia para esconder esses pequenos
seres da amiga que morava com ele. Os coelhinhos possuem vida própria e,
como qualquer outro animal cresce, necessitando de espaço para sobreviver.
Em número inicial de dez, esses bichinhos alteram a rotina do narrador: à noite,
eles correm, brincam, comem, enfim, vivem como coelhos normais. E durante o
dia dormem dentro do guarda-roupa, escondidos do olhar externo. Ou seja, os
animais que agora fazem parte da vida do personagem possuem um cotidiano
inverso à maioria dos homens urbanos, dormem durante o dia e brincam à noite.
Vale destacar que a narração segue descrevendo o modo como o evento insólito
de vomitar coelhinhos é algo rotineiro e se inclui nas ações diárias do personagem:

(...) eu já tinha perfeitamente resolvido o problema dos coelhinhos. Semeava


trevo na sacada da minha outra casa, vomitava um coelhinho, colocava-o
no trevo e ao final de um mês quando suspeitava que de um momento a
outro...então presenteava o coelhinho já crescido à senhora de Molina que
acreditava em um hobbie e se calava. (CORTÁZAR, 1982, p. 24).

À medida que lemos o texto, o evento insólito acaba sendo absolvido como
algo comum à vida do sujeito e aquilo que poderia ser visto como estranho,
torna-se apenas um problema a ser administrado. Embora o personagem
pareça conformado com o caso, as tentativas de “resolver” a questão passam
pela ideia de matar os coelhinhos, como se o extermínio destes fosse a única
saída encontrada. Todavia, a relação entre o narrador e os pequenos seres
que saem de sua garganta impede que ele tome uma atitude radical: “O
[coelhinho] fechei na caixa de primeiros socorros vazia e voltei a desempacotar
desorientado, mas não infeliz, não culpado, não ensaboando minhas mãos para
retirar a última convulsão. Compreendi que não podia matá-lo” (CORTÁZAR,
1982, p.26). A narrativa apresenta as diferentes sensações do narrador a se
ver cada vez mais envolvido com o caso inusitado. Esses pequenos animais
crescem assim como a destruição no apartamento da amiga. O personagem,
preocupado com o incômodo causado por estes visitantes, narra como ficou
o espaço depois de algum tempo de convivência com os novos hóspedes:

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Quebraram as cortinas, a capa das poltronas, a moldura do auto-retrato de
Augusto Torres, estiveram em círculo debaixo da luz do abajur, em círculo e
como abandonando-me de repente gritaram, gritaram como eu não acredito
que gritem os coelhos. (CORTÁZAR, 1982, p.32).

Verifica-se aqui por parte do narrador o abandono dos visitantes, deixados à


própria sorte. O homem parece já não ter mais forças para controlar o cotidiano
dos pequenos dos visitantes. Este desconsolo e fuga da responsabilidade sobre
os coelhinhos apontam para a sua atitude final de livrar-se para sempre do
problema: o suicídio. “Não acredito que lhes seja difícil juntar onze coelhinhos
salpicados sobre o piso, talvez não se fixem neles, atarefados com o outro
corpo que convém levar rápido, antes que passem os primeiros colegiais.”
(CORTÁZAR, 1982, p. 33) (grifo nosso).
Com este final, a carta ganha contornos de confissão, tendo o narrador
descrito os seus últimos passos antes de tirar a vida. Pelo apresentado acima,
os problemas acarretados pelo surgimento insólito dos coelhinhos na vida do
personagem podem ser lidos como materialização dos conflitos psicológicos
que o atormentavam. Contudo, nos interessa observar como esta metáfora do
inconsciente pode ser vista como manifestação do duplo. Assim, os coelhinhos
vomitados seriam a representação do duplo interior, uma espécie de expressão
deformada do unheimliche freudiano que enlaça ideias contrárias significando
o “estranho-familiar”. Essa imagem paradoxal aparece no conto já que vomitar
coelhinhos, além de ser insólito, funciona também como expressão de algo
desconhecido ao narrador-personagem. Por outro lado, o fato de vomitá-los, ou
seja, surgirem de dentro dele passa a significar o que há muito lhe é familiar.
Desse modo, a metáfora presente no texto pode ser associada à palavra
unheimliche, algo que deveria ficar escondido, mas veio à tona. Enfim, o fato
expressa a divisão do indivisível através da projeção dos desejos e medos
recalcados no inconsciente.
O que parece diferenciar o surgimento do duplo neste conto de Cortázar é a
tentativa de naturalizar o evento insólito. O outro que pode ser lido como aquilo
que estava recalcado no interior do sujeito e é materializado nestes pequenos
seres. Não há aqui o recurso da imagem obscura, dos símbolos indecifráveis ou
dos elementos sugestivos que muitas vezes compõe os textos que trabalham
com os eventos insólitos. O que Cortázar traz de novidade é a naturalização
desse duplo que passa ao mesmo tempo a ser diferente e igual ao personagem.
Além disso, o que seria irreal, o fato de um homem vomitar coelhinhos, torna-
se apenas mais um evento em sua rotina. A forma encontrada pelo escritor
para representar o duplo, apresenta-se como algo insólito, mas integrado aos
dia-a-dia do personagem.
Assim, o efeito alcançado na representação do duplo através de seres ao
mesmo tempo internos e externos ao homem dificulta uma leitura inequívoca

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dos sentidos do texto. A análise realizada aqui considera os coelhinhos como
duplo do personagem ao mesmo tempo que representa a manifestação
concreta do incomensurável que habita o homem. Esses pequenos animais
podem ser observados como elemento ambíguo que aproxima o real do irreal, o
comum do insólito. Desse modo, embora carregados de múltiplos sentidos, os
coelhinhos possuem sua face concreta, existem como seres reais. Mesmo que
o nascimento destes seja insólito, eles passam a ter uma vida externa igual a
qualquer outro animal. No terreno da ficção esses coelhinhos podem ser lidos
como pertencentes e não ao campo do verossímil. Se pensarmos pelo lado da
origem, há a quebra da verossimilhança, pois nenhum animal nasce do vômito
de um homem. Por outro lado, quando habitam o apartamento, seguem uma
vida normal, muito próxima à realidade. Segundo David Roas é neste ponto
que a metáfora nas narrativas fantásticas contemporâneas explora a irrupção
do insólito através de uma linguagem que se modela à medida que os medos
e a percepção da realidade se modificam.
Neste jogo que envolve a verossimilhança surge o duplo do personagem,
funcionando o ato insólito como reflexo do outro “eu”, da imagem concreta do
desconhecido. Interessante notar que a convivência com esse duplo torna-se
incômoda no início e, com a multiplicação dos pequenos animais, acaba sendo
insuportável. A própria narrativa em forma de carta pode ser lida como confissão
dessa inabilidade do “eu” em relacionar-se com aquilo que paradoxalmente
lhe é estranho e familiar. A revelação do duplo interior lhe causa mal-estar, ou
seja, para tentar se livrar do incômodo do outro, daquilo que surge fora do seu
controle, o personagem anula-se, chegando ao extremo do suicídio. Mesmo
antes de revelar o fim que deveria dar a tal situação, o personagem expõe as
sensações incomunicáveis causadas pelo duplo: “(...) esta mudança me alterou
também por dentro – não é nominalismo, não é magia, somente que as coisas
não podem variar assim de repente, às vezes as coisas viram bruscamente e
quando você esperava a bofetada à direita – assim, Andreé, ou de outro modo,
mas sempre assim.” (CORTÁZAR, 1982, p. 29).
Neste conto, Cortázar transforma a imagem do duplo em metáfora imagética do
inexplicável. O vomitar coelhinhos, ato que a princípio só pode ser entendido
dentro do terreno do insólito, converte-se em um duplo interior que é observado
não pela sua deformação, mas ao contrário, por sua latência psíquica em forma
de pequenos seres “reais” em sua (in)existência verossímil.
Podemos também dizer que o duplo neste texto do escritor argentino expõe
o eixo principal das representações do insólito na narrativa contemporânea,
conforme aponta o crítico Jaime Alazraki. De modo diferente do fantástico
tradicional, esta narrativa de Cortázar modifica a relação entre a realidade e o
elemento insólito. Se na ficção fantástica do século XIX partia-se do real para
o evento fantástico, estranho às leis da razão, nos contos contemporâneos, o

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insólito irrompe primeiro integrando-se à vida do personagem. Enfim, o que
seria irreal passa a fazer parte de uma nova realidade, mais profunda e com
o sentido duplicado.
Analisando este conto de Julio Cortázar, o crítico argentino destaca:

O arbítrio reside no haver escolhido os coelhinhos, como Kafka escolhe um


inseto em “A metamorfose”, mas nada de arbitrário há no ato de vomitá-los, de
sentir que esses pequenos monstros que são parte de um, feitos de nossas
próprias inquietudes, fobias e angústias, se liberam de nosso controle e,
como um demiurgo, se voltam contra nós para nos governar e nos arrastar
em suas brincadeiras e fogos, saltos e sobressaltos. Não é outro o sentido
da frase final: para eliminá-los, o narrador deve também eliminar-se. Cortázar
observou que contos como “Carta e uma senhorita em Paris” teve sobre
ele o efeito de um exorcismo, no sentido de que, ao escrevê-los, curou-se
de certos sintomas neuróticos que então sentia. (ALAZRAKI, 1983, p. 78).

Para o crítico, fica claro que a metáfora usada por Cortázar neste conto revela
o duplo interior, aquilo que existe recalcado e de algum modo veio à tona. O
vomitar coelhinhos funcionaria como ato de exorcismo dos medos, fobias,
traumas que irrompem no cotidiano e só podem ser eliminados com a morte
do sujeito, pois são intrínsecos a ele. Sem entramos no terreno biográfico, a
carta em forma de confissão pode ser lida como um duplo do próprio Cortázar.
Haveria uma mescla entre o narrador-personagem que tenta expor seus conflitos
e o próprio autor que ficcionalmente revela o seu imaginário e com isso se
reflete na construção do texto literário.
Tanto no texto de Rubião quanto no conto do escritor argentino o duplo aparece
de forma diferente daquela canônica. Contudo, há diferenças entre a construção
do “outro” em Murilo Rubião e no escritor argentino. Como observamos, no
conto “o Ex-mágico...” o duplo aparece no desdobramento da personalidade
do narrador. O “eu” do funcionário público surge como tentativa de perda dos
poderes mágicos. Ou seja, o outro, o duplo do personagem é o não-mágico,
o funcionário público entediado com sua rotina burocrática. Neste sentido,
o outro funciona como reflexo da perda de identidade e também ocasiona
um conflito com o mundo. Neste sentido, a burocratização da vida surge
metaforizada nos truques involuntários do narrador. Tal atividade que deveria
ter como base o extraordinário, transforma-se no mais opressor cotidiano, pois
tira do personagem a sua liberdade de criar e o coloca como simples produtor
de mágicas absolutamente involuntárias.
Diferente desta posição do duplo enquanto reflexo da relação entre identidade e
alteridade, o conto “Carta a uma senhorita em Paris” de Júlio Cortázar, trabalha
com a manifestação do duplo interior. Esta perspectiva pertence ao terreno do
subjetivo, da exposição dos medos, fobias e traumas do personagem. Todavia,
como apontamos anteriormente, tal apresentação do duplo converte-se em
metáfora, cujas bases estão na manifestação do insólito enquanto parte do real.

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Por isso, o personagem não questiona o ato inexplicável de vomitar coelhinhos
e sim descreve como fazia para integrá-los à sua rotina, escondendo-os da sua
companheira e dos amigos. O personagem entra em choque com seu estar
no mundo a partir de um problema insolúvel, produzido por um conflito interior
que acaba sendo manifestado exteriormente pelo ato de vomitar coelhinhos. De
modo distinto do personagem de Murilo Rubião, condenado a viver na burocracia
do estado, apontando para um repetir exaustivo da realidade, o sujeito que
escreve a carta no conto de Cortázar sucumbe à própria personalidade, pois
só se livra do seu estado psicológico através do suicídio.
Vale destacar que por outro lado os dois contos se aproximam por alterarem
tanto a manifestação canônica do duplo na literatura como também apontam
para a manifestação do insólito na narrativa contemporânea. O personagem de
Murilo Rubião ao invés de criar os seus truques para iludir o público, torna-se
refém dos seus próprios poderes, já que não tem controle sobre suas ações.
Não muito diferente dessa situação encontra-se o personagem do conto de
Cortázar. A este, o viver é sufocante, pois, além de vomitar coelhinhos, ato
por si só inexplicável pelas leis da biologia, apenas contorna o problema que
ao invés de ser amenizado, aumenta a cada dia a ponto de levá-lo à morte.
Pelo que foi destacado, o duplo nos dois contos analisados se diferencia daquele
comumente apresentado nos textos que tratam deste fenômeno. De um lado,
no conto de Murilo Rubião, um “eu” anula-se para dar lugar a um segundo “eu”.
Porém ambos são acometidos do tédio comum ao homem inserido no mundo
pós-moderno. A diferença entre esses dois lados do personagem são apenas
os truques espontâneos que são próprios do mágico. A questão central neste
conto de Rubião, além do elemento insólito, parece ser a busca da identidade
e o choque causado pelo contato com o outro.
Já no conto “Carta a uma senhorita em Paris” de Júlio Cortázar, o duplo aparece
como projeção daquilo que está no psíquico do personagem. O evento insólito,
um homem que de quando em quando vomita um coelhinho, torna-se metáfora
do desconhecido que é ao mesmo tempo familiar. Ou seja, as projeções do
inconsciente transformam-se em algo concreto que embora seja inexplicável
em sua origem, ganha contornos realistas na sua materialização enquanto
elemento textual. Nos contos de Cortázar, como diz Teodósio Fernandes, a
aparição do fantástico não reside na alteração por elementos estranhos de
um mundo ordenado pelas leis rigorosas da razão e da ciência. Basta que se
produza uma alteração do reconhecível, da ordem ou desordem familiares. A
suspeita de que outra ordem secreta (ou outra desordem) pode por em perigo
a precária estabilidade de nossa visão de mundo.
Para finalizar, destacamos que ambos os textos podem ser lidos como exemplos
do fantástico contemporâneo, pois, através do uso do duplo, os autores constroem

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metáforas que envolvem o estar no mundo do homem contemporâneo. Para David
Roas, tais relatos colocam o sobrenatural diante do leitor como questionamento
dos limites entre o sólito, o racional e o elemento insólito, irreal. O que poderia
suscitar apenas medo do sobrenatural com a segurança de que este estaria
totalmente deslocado da realidade concreta, no relato fantástico contemporâneo,
traz a insegurança do real e o questionamento da sua pretensa estabilidade.
Assim, os aspectos principais que estão na base das transformações do fantástico
e aparecem nos textos aqui analisados seriam a progressiva cotidianização
promovida pelos diferentes autores ao longo do tempo e, principalmente, o uso
de novas formas de comunicar, objetivar esse impossível.

ASPECTS OF DOUBLE IN the TALES “The EX-MAGICIAN’S


of the TAVERN Minhota”, by Murilo Rubião, AND
“LETTER TO a MISS in PARIS”, by Julio CortÁzar

Abstract:

The various manifestations of the double in the literature, at the same time that
make difficult the understanding of the topic, bring a wealth of readings that is
welcome to the literary mean. In order to better understand some of the double
projections, we seek, in this work, through different theoretical studies on the
subject, to compare two tales that show the double in a different way. In the
narrative of Murilo Rubião, the Other appears though the figure of the magician
who is dissatisfied with his extraordinary powers and because of it converts to
a public official to get rid of this “problem”. When he nullifies his spells, delves
into the anguish of a tedious and bureaucratic existence. In this brief review,
we believe that the search for identity is the attitude of escaping from self-
consciousness through the dip in a “new” being in the world. Otherwise, we
have in the Cortázar’s text a figure of a man who, while also trying to retreat
from their private conflicts, moves to an apartment of a friend and finds that
his routine has become his major obstacle, making the character to decide for
killing himself to see “free” from all disturbs. Thus, the double in this Cortázar’s
tale can be read by the prospect of Jaime Alazraki, via studies of Freudian
psychoanalysis, as a kind of metaphor of the unconscious.

Keywords:

Rubião; Cortázar, double; fantastic.

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REFERÊNCIAS

ALAZRAKI, Jaime. En busca del unicornio: los cuentos de Julio Cortázar.


Madrid: Editorial Gredos, 1983.

CORTÁZAR, Julio. Bestiário. México DF: Editora Nueva Imagen, 1982.

FREUD, Sigmund. O estranho In. ______. Obras completas. v VII. Edição


standart brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Trad.
J. Salomão. Rio de Janeiro: Imago, 1996b.

ROAS, David. La Realidade Oculta. Cuentos fantásticos del siglo XX. Paléncia-
España: Menoscuarto, 2008.

______. Tras los límites de lo Real: Una definición de lo fantástico. Madrid:


Páginas de Espuma: 2011.

RUBIÃO, Murilo. Contos reunidos. São Paulo: Editora Ática, 1999.

SANTOS, Adilson dos. Duplos em Tutaméia: terceiras estórias. 2009. 290 f.


Tese (Doutorado em Letras) Universidade Estadual de Londrina, Londrina, 2009.

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NAÇÃO E UTOPIA EM A JANGADA DE PEDRA E O FEITIÇO DA
ILHA DO PAVÃO

Marco Antonio Rodrigues

Resumo:

O artigo propõe uma leitura comparativa sobre os temas “nação” e “utopia”


em dois romances contemporâneos de língua portuguesa: A jangada de pedra
(1986), de José Saramago, e O Feitiço da Ilha do Pavão (1997), de João Ubaldo
Ribeiro. A análise baseia-se em conceitos de Fredric Jameson sobre a utopia
na pós-modernidade, e na aproximação entre o mecanismo utópico e a nação
como “comunidade imaginada”, de Benedict Anderson. A conclusão destaca
que, mesmo recorrendo ao fantástico, ao sobrenatural, as utopias de Saramago
e de João Ubaldo são acanhadas, e que, como propõe Jameson, talvez não
haja mais espaço para a utopia na contemporaneidade.

Palavras-chave:

Nação; utopia; José Saramago; João Ubaldo Ribeiro; Fredric Jameson.

Introdução

Este artigo propõe uma leitura comparativa sobre os temas “nação” e “utopia”
em dois romances contemporâneos de língua portuguesa: A jangada de pedra,
de José Saramago, e O Feitiço da Ilha do Pavão, de João Ubaldo Ribeiro.
Para esboçar o entendimento da utopia no contexto da pós-modernidade,
contexto em que as obras de Saramago e João Ubaldo foram produzidas, será
útil resgatar as formulações de um dos principais pensadores do (e sobre o)
período, curiosamente também um dos que mais têm se dedicado à questão da
utopia em tempos atuais, Fredric Jameson. Especificamente, serão retomados
conceitos expressos no artigo “A política da utopia” (JAMESON, 2006), em que
o autor sumariza seu entendimento a respeito do tema na contemporaneidade.
O primeiro desses conceitos é sobre o caráter constructo da utopia, quase
que exercício de bricolagem. O segundo deles refere-se à observação de que a
produção utópica de diferentes períodos sempre esteve associada a momentos
de crise de valores. O terceiro elemento refere-se ao caráter ideológico da
utopia. E, por último, a mais controversa das proposições de Jameson, sobre a
função negativa da utopia, nosso confinamento em um presente não-utópico
sem historicidade nem futuridade. Em outras palavras, nossa incapacidade de
imaginar um mundo melhor.

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A palavra Utopia, cunhada por Thomas More na obra homônima publicada em
1516, funde o advérbio grego ou (não) ao substantivo tópos (lugar) - não lugar, “o
que está em nenhum lugar”. A obra de More trata, porém, de um tema - a melhor
constituição de uma República - já presente em Platão e Aristóteles. (LOGAN e
ADAMS, 2009, p. XXVII) More inova na adoção do relato fictício sobre a utopia,
inaugurando uma temática de grande recorrência na abordagem literária.
Na construção ficcional, a ilha é vista como espaço privilegiado para a utopia,
a começar pela ilha de More. Se não a ilha propriamente dita, a situação de
insulamento, de isolamento:

A utopia é sempre isolada da nossa história, mesmo quando não é uma ilha: a
Cidade do Sol de Campanella, por exemplo, fica “numa vasta planície situada
sob o Equador”. Tal insularismo não é apenas uma ficção geográfica: é uma
atitude mental da qual a ilha clássica é apenas a representação, responde à
exigência de preservar a comunidade da corrupção externa e de apresentar
um mundo fechado, um microcosmo no qual existam leis específicas que
escapam ao campo magnético do real. (BERRIEL et. all. 2008, p. 5)

Centrada na especulação sobre um não-lugar, a utopia é, porém, vinculada a


uma localidade e um tempo historicamente determinados. É, nesse sentido,
datada, por fornecer respostas a problemas contemporâneos à sua elaboração.
Por consequência, a utopia é também ideológica, é “transmitida e expressa
a partir da experiência social do pensador utópico, a qual só pode ser uma
experiência de classe e refletir o ponto de vista de uma classe específica
sobre a sociedade” (JAMESON, 2006, p. 172). Decorre dessa historicidade e
desse ponto de vista de classe que a análise literária de narrativas de caráter
utópico dificilmente poderá prescindir de elementos contextuais, sem grandes
prejuízos para a interpretação.

Utopia e nação

Mantidas as ressalvas de Paulo Arantes (2006, p.28) quanto à motivação


“material” do surgimento das nações, parece bastante óbvia a proximidade
entre a definição de Benedict Anderson (2008), da nação como “comunidade
imaginada”, e o mecanismo da utopia tal como sumarizado até aqui. A utopia
nasce da especulação sobre a melhor constituição da República; como metáfora
pseudo-geográfica em espaço delimitado, assume frequentemente a forma de
país hipotético, com população, leis e instituições próprias. A nação, por sua
vez, ao congregar sujeitos que sequer se conhecem em torno de uma ideia
comum, não deixa de ser em certo sentido uma utopia, cuja expressão mais
evidente é seu “hino nacional”.
A utopia, porém, é uma construção que não tem seu nexo fixado a partir de
experiências como as relatadas por Anderson no processo de “imaginação”
de uma nação, como o trânsito e intercâmbio de funcionários peregrinos e a

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troca de experiências pela leitura de jornais e do romance. Ela é construção
fabular que contribui no processo de formação e formalização das nações.
Jameson (2006, p. 165) identifica a “constituição” como gênero ou tipo de
discurso correlato à utopia.
No contexto deste artigo, interessa descrever e comentar, ainda que brevemente,
como os utopistas ocasionais José Saramago e João Ubaldo reconstroem (ou
desconstroem) literariamente as suas nações, diretamente representadas nos
romances A jangada de pedra e O feitiço da Ilha do Pavão.

Saramago - da inutilidade da palavra “utopia”

Em sua participação no Fórum Social Mundial – 2005, em Porto Alegre – RS,


José Saramago, ao tratar do tema “Quixotes hoje: utopia e política”1, foi no mínimo
provocativo ao sugerir que a palavra “utopia” deveria ser eliminada do dicionário.
É preciso interpretar com reserva a fala de Saramago, já que ela é dirigida para
uma plateia específica de “quixotes”, como em um comício. O momento e o
contexto eram propícios a palavras de ordem, a sugestões de novos rumos para
uma esquerda desconcertada. É para esse público que Saramago anuncia,
logo ao início de sua palestra: “Tenho uma má notícia para vos dar: eu não
sou utopista. E pior notícia ainda: considero a utopia, ou o conceito utopia, não
só inútil, como também tão negativo como a ideia de que quando morremos
todos iremos para o paraíso”.
O argumento de Saramago é simples, por isso mesmo cativante: para o autor,
projetamos a utopia em um futuro que não nos será acessível; um futuro talvez
acessível somente a novas gerações, para as quais o necessário atual não
mais o será. A utopia se configura assim, para o romancista português, como
o “discurso sobre o não existente”, já que as palavras, “essas desgraçadas”,
sempre estão a mudar de sentido. Se as utopias fossem projetadas para o dia
de amanhã, iríamos alcançando-as em curto prazo e elas não se chamariam
mais utopia, mas apenas “trabalho”.
Saramago faz, portanto, a defesa do pragmatismo na luta pela igualdade
e justiça, mas é difícil não pensar em desdobramentos contraditórios entre
esse posicionamento e sua ficção, ou mesmo sua atividade política. É que,
para Saramago, o problema está mais na palavra “utopia” que nas posições
e ações que ela suscita. A jangada de pedra é um desses registros ficcionais
de Saramago que guardam estreitas relações com o gênero utópico, como já
tratado em diversas leituras acadêmicas2.

1 O vídeo da palestra de Saramago está disponível em


http://www.youtube.com/watch?v=yh2GDMzdMBE&feature=related Acesso em: 07/11/2011.
2 A respeito da utopia em A jangada de Pedra, ver, por exemplo, Martins (2004), Rocha (2009) e Penha (2004).

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A obra é de 1986; anterior, portanto, à queda do Muro de Berlim e ano da inclusão
de Portugal e Espanha na União Europeia. Duas utopias do mundo político, uma
em decadência, outra em ascensão. O autor, Saramago, não era indiferente a
nenhuma delas: “comunista hormonal”, como se autodefiniu em certa ocasião, o
autor era também bastante cético quanto às perspectivas de Portugal na União
Europeia. Uma década após a publicação de A Jangada de pedra, em visita ao
Brasil para receber o Prêmio Camões, Saramago profere a palestra intitulada
“Portugal - Fim de milênio, princípio de quê?”3 Nada mais esclarecedor de seu
posicionamento a respeito da União Européia do que a passagem a seguir:

Historicamente, aquilo que sempre esteve em causa na Europa – a disputa,


pelas nações mais poderosas, da hegemonia sobre o continente – está hoje
sendo orientado no sentido duma definição de soluções e métodos que,
apresentando-se como qualitativamente novos, permitam chegar a idêntico
resultado quantitativo, sem ter de recorrer pela milésima vez à guerra como
a ultima ratio, por esse modo se instituindo uma concentração de poder
que, aparentemente consubstanciada numa comunidade de povos, é, na
realidade, administrada de facto por alguns países dessa mesma comunidade,
precisamente, mas não por acaso (oh, ironia), aqueles que, até ao passado
mais recente, foram os actores directos ou os promotores indirectos das
terríveis lutas que, ao longo dos séculos, e sob os mais diferentes pretextos,
cobriram de mortos e de ruínas o continente europeu. (SARAMAGO, 1996)

Essa denúncia da falsa comunhão europeia, pela qual não só os países ibéricos,
mas principalmente Grécia e Itália hoje pagam caro, parece ter sido mesmo
um dos mastros principais dessa jangada que, ao desprender-se fisicamente
do continente europeu, retoma o destino navegante de seus ocupantes, não
com a antiga ambição da descoberta do Eldorado, mas simplesmente à deriva,
numa busca involuntária de melhor posicionamento no concerto das nações.

Um socialismo espontâneo em A jangada?

O argumento de A jangada de pedra é bastante conhecido: sem que haja qualquer


explicação plausível para o fato, a Península Ibérica destaca-se (melhor dizer
“descola-se”) da Europa, bem na junção dos Pirineus, e passa a vagar pelo
Oceano Atlântico em velocidade regular e aparentemente sem rumo definido.
Hipoteticamente relacionados ao grande fato, acontecimentos banais, tratados,
porém, como obscuros, acabam por unir o grupo que protagoniza a narrativa:
Joana Carda risca o chão com uma vara de negrilho, o que “faz” ladrarem os
cães mudos de Cérbere (na França); Joaquim Sassa, um funcionário de escritório,
lança ao mar, a uma grande distância, uma pedra que mal deveria poder suster;
o espanhol Pedro Orce, farmacêutico, sente a terra tremer, intermitentemente; o
professor José Anaiço é acompanhado, em qualquer parte aonde vá, por uma
grande revoada de estorninhos; Maria Guavaira, espanhola como Orce, desfaz
uma meia, puxando um fio que nunca se finda; e o cão Ardent, remanescente
3 Citada por Eduardo Calbucci (1999).

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de Cérbere, salta o abismo da fenda formada inicialmente entre a França e
a ex-península, optando pelas “regiões infernais” e vindo, mais adiante na
narrativa, a servir de guia do grupo em suas aventuras.
Os efeitos imediatos da separação se desdobram em fenômenos sociais (a
fuga em massa dos turistas, a ocupação dos hotéis de turismo por famílias
sem posses, a desocupação do litoral, etc.), econômicos (a fuga do capital
especulativo, junto com as pessoas de posse; a crise no abastecimento interno;
a desvalorização da propriedade privada, principalmente os automóveis sem
combustível) e políticos (a crise junto à União Europeia e a intervenção política
dos Estados Unidos). Diante desses e outros fatos, as pessoas passam a cultivar
valores mais simples, ligados à subsistência diária, enquanto esperam por uma
definição de seus destinos. O grupo de protagonistas, cada qual a seu tempo,
abandona seus lares, suas profissões e passa a se dedicar exclusivamente à
jornada pelo território ibérico. De início, quando o número de viajantes ainda
permite, cruzam o território de automóvel, para depois seguirem adiante em
uma carroça. Vão, de Portugal à Espanha, à procura de Pedro Orce; rumam
para o litoral, com o propósito de ver o rochedo de Gibraltar passar; retornam
ao interior, seguem para Espanha, vão ao que restou dos Pirineus, observar o
abismo, e retornam à Espanha, para o enterro de Pedro Orce.
No âmbito político, o governo português propõe e implanta a formação de um
governo de salvação nacional, com a participação de todas as forças políticas
(p. 184). A medida proposta pelo novo governo de desocupação do litoral
pressupõe a mudança de grandes massas para o interior, a reaproximação
dos lugares de origem e o apelo à solidariedade familiar do “onde comem
dois, comem três”. Já ao final da narrativa, a gravidez simultânea de todas as
mulheres férteis da Península sugere o nascimento de uma nova geração, em
uma nova sociedade, plantada no mesmo território, porém em outro contexto.
Todos esses desdobramentos sinalizam a volta aos valores e costumes de uma
“época de ouro”, espécie de socialismo espontâneo, não planejado, muito embora
seja indispensável destacar que, em todos os casos relatados, a chave da narrativa
é irônica. Ou seja, o anúncio de que “assim será” não significa que de fato tenha
sido, e o narrador de Saramago é mestre no cinismo em passagens como:

A grande maioria, por que não dizê-lo, a maioria esmagadora dos habitantes
de Lisboa não nasceram lá, e os que nela nasceram encontram-se ligados
aqueles por laços familiares. As consequências de um tal facto são amplas
e decisivas, sendo a primeira que uns e outros deverão transferir-se para os
lugares de origem, onde, regra geral, ainda têm parentes, alguns mesmo que
as circunstâncias da vida fizeram perder de vista, assim se aproveitando esta
oportunidade forçada para reintroduzir a harmonia nas famílias, sanando-se
antigos desentendimentos, ódios por heranças más e partilhas péssimas,
rixas de mal-dizer, a grande infelicidade que nos cai em cima terá o mérito
de aproximar os corações. (SARAMAGO, 2006, p. 193)

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A mesma abordagem irônica servirá, logo adiante, para traçar um retrato oposto
a esse, de harmonia e entendimento, desarmando, também, a expectativa do
leitor quanto ao destino de uma utopia clássica:

Quem, por estar longe destes acontecimentos e lugares, imaginou que os


retirantes ibéricos, amontoados em casas, asilos, hospitais, quartéis, armazéns,
barracões, ou nas tendas e barracas de campanha que foi possível requisitar,
mais as que foram cedidas e armadas pelos exércitos, e aquela outra gente,
ainda mais numerosa, que não encontrou alojamento, e vive por aí debaixo
das pontes, ao abrigo das árvores, dentro de automóveis abandonados,
quando não ao puro relento, quem imaginou que Deus veio viver com estes
anjos, saberá muito de anjos e de Deus, mas de homens não conhece nem
a primeira letra. (SARAMAGO, 2006, p. 206)

Em seguida, descreve-se o inferno em terras flutuantes, sob o fundamento


também irônico da crítica do narrador ao ponto de vista idealizante, maniqueísta,
que enaltece os valores morais das classes baixas, em contraponto com o
egoísmo e a ganância das elites, o que suscita “ódios e antipatias, a par desse
mesquinho sentimento que é a inveja, fonte de todos os males” (p. 206). Ora,
se a inveja fosse de fato a fonte de todos os males, ou a ganância, como é
comum às utopias desde More, a construção utópica deveria orientar-se para
a sua extinção ou seu pleno controle, o que nem de perto acontece à Ibéria à
deriva. Onde a utopia, então?

Trans-iberismo na rota da jangada

Portugal e Espanha se desprendem do continente e saem valsando oceano afora.


Na Europa, não deixam saudades. Ao, num primeiro momento, tomarem o rumo
da América do Norte, vêem-se alvos de uma cobiçosa diligência dos EUA em
sua anexação ao território americano. Enquanto isso, na Europa, os jovens de
diversos países saem às ruas a gritar “nós também somos ibéricos”, como que
a exercitar aleatoriamente a sua rebeldia. Nova orientação do movimento faz a
jangada rumar para o Sul, deslizando entre a América Central e a África. Seu
destino final permanece desconhecido, só se sabe que é essa sua orientação
quando, já no desfecho do romance, o movimento se interrompe.
O trajeto da ilha é acompanhado à distância pela agitação política em diferentes
partes do globo, em que os líderes mundiais especulam sobre as possíveis
providências para o restabelecimento da harmonia entre as nações ocidentais.
Essas especulações, por sua vez, são acompanhadas de perto por um anedotário
de cunho nacionalista do tipo “se a Península Ibérica se queria ir embora, então
que fosse, o erro foi tê-la deixado entrar” (p. 38). Ou esta mais sutil: “E não foi
da França que a península se separou, foi da Europa, parece a mesma coisa,
mas faz a sua diferença”. Ou, da parte dos britânicos, quando da afirmação do
Parlamento quanto a sua soberania sobre Gibraltar: “O senhor primeiro-ministro

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incorreu numa grave falta de precisão vocabular quando chamou península
àquilo que já é hoje, sem qualquer dúvida, uma ilha, ainda que sem a firmeza
da nossa, of course”. (44)
Esse anedotário diz muito sobre o nacionalismo dos países europeus, mas o
autor José Saramago teve, em vida, posições mais objetivas, por isso mesmo
polêmicas, sobre a situação de Portugal e Europa no continente europeu.
Sobre o assunto, o autor nos deixou um documento interessante, publicado
em espanhol, quase que com instruções a respeito do tratamento que deveria
merecer o tema “iberismo” em sua obra literária e em sua atuação política:

“cualquier identificación que se haga de mi trabajo literario o de mi intervención


cívica y política con un cuerpo de doctrina, plan de acción o una estrategia
que apunten al resurgimiento o a la reactivación de la cuestión ibérica tendrá
que plegarse, o al menos no ignorar, los argumentos y precisiones aquí
expresados.” (SARAMAGO, 1990)

Inevitável acompanhar, ainda que à distância, seus argumentos a respeito.


Para Saramago, qualquer português, antigo ou moderno, foi ou é instruído com
a convicção de que a Espanha é seu “inimigo natural”, o que teria ajudado
a formar, a robustecer e a consolidar sua própria identidade nacional. Com
o tempo, o interesse e contato direto com a Espanha teriam possibilitado a
Saramago identificar as diversidades nacionais que emergiam da unidade
estatal, o que, por sua vez, teria motivado a aspiração a uma nova relação,
não entre os estados, mas um encontro contínuo entre as nacionalidades da
Península, baseado na harmonização dos interesses, nos intercâmbios culturais,
enfim, na intensificação do conhecimento (SARAMAGO, 1990).
De certa forma, a experiência vivenciada pelo grupo de protagonistas faz as vezes
de “balão de ensaio” desse intercâmbio. O conhecimento de diferentes regiões e
diferentes culturas ocorre simultaneamente ao conhecimento afetivo entre o grupo,
tanto que em certo momento ele passa a figurar uma micro-utopia em viagem pelo
território. Mas o argumento de Saramago em favor do iberismo não para por aí. O
processo de re-conhecimento das “nacionalidades” espanholas teria sido frustrado
pela adesão de Portugal e Espanha à União Europeia, e caberia ao homem desse
tempo jurar à Europa, mesmo sem saber bem que Europa seria essa.
Desencantado com os fatos políticos, ao voltar sua atenção para a América, onde as
pessoas seguem falando e escrevendo português e castelhano, o autor teria chegado
à conclusão de que a própria Península Ibérica não poderá ser hoje plenamente
entendida fora de sua relação histórica e cultural com os povos de ultramar (Saramago,
1990). A metáfora da jangada não deixa de ser também, pois, um gesto de vingança,
a vingança possível para um escritor. Ao mesmo tempo, o trajeto da ilha indica o
caminho a ser tomado pelos povos ibéricos, tanto que o narrador faz questão de
substituir a palavra deriva por “navegação”, na passagem abaixo:

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Ora, esses governos, em vez de nos apoiarem, como seria demonstração de
elementar humanidade e duma consciência cultural efectivamente europeia,
decidiram tornar-nos em bodes expiatórios das suas dificuldades internas,
intimando-nos absurdamente a deter a deriva da península, ainda que,
com mais propriedade e respeito pelos factos, lhe devessem ter chamado
navegação. Esta atitude é tanto mais lamentável quanto é sabido que em
cada hora que passa nos afastamos setecentos e cinquenta metros do que
são agora as costas ocidentais da Europa, sendo que os governos europeus,
que no passado nunca verdadeiramente mostraram querer-nos consigo, vêm
agora intimar-nos a fazer o que no fundo não desejam e, ainda por cima,
sabem não nos ser possível. (SARAMAGO, 2006, p. 146)

A defesa do intercâmbio cultural e da harmonização de interesses transcende,


portanto, o espaço ibérico, abrangendo a América Latina e a África e motivando a
nova expressão com a qual Saramago define seu posicionamento: trans-iberismo.

A jangada de pedra e O feitiço da Ilha do Pavão – exercício comparativo

O exercício comparativo entre Jangada e Feitiço tem como pressuposto teórico, não
uma gênese comum entre as obras, mas principalmente similaridades formais e
temáticas, ou, na caracterização de Claudio Guillén (2005), processos que implicam
“condições socio-históricas comuns”. Compartilhando, as obras, da mesma língua
de expressão e contando com um hiato de uma década entre o surgimento de
uma e outra, não seria motivo de surpresa a leitura e o conhecimento prévio de
João Ubaldo Ribeiro sobre A Jangada de Pedra. No entanto, não se percebem
referências explícitas no romance do autor brasileiro ao texto que o antecede.
Essa ausência de uma gênese comum explícita, se bem observada, não inviabiliza
ou diminui a validade do exercício comparativo, tendo em vista ser a cada dia mais
aceito em literatura comparada o estudo não genético de categorias supranacionais
(GUILLÉN, 2005, p. 115). No contexto deste artigo, são categorias supranacionais
os elementos formais e temáticos que aproximam as obras da narrativa utópica,
bem como o próprio conceito de “nação” por elas problematizado.

Utopia e construção

Uma das similaridades formais entre as obras está na construção do foco


narrativo. Na tipologia de Norman Friedman, sumarizada por Ligia Chiappini
(1985), tanto o narrador de Saramago como o de João Ubaldo se aproximam
do que caracteriza o narrador onisciente intruso, sendo o de Saramago mais
explicitamente digressivo. As características de intrusão e digressão contribuem
para o tom satírico de ambas as narrativas, estando a narrativa de Saramago
mais próxima da sátira intelectual de Swift (sátira ao gênero utópico), e a de
João Ubaldo mais familiarizada com a narrativa rabelaisiana (dessacralizadora,
“baixo ventre”). A sátira, por sua vez, distancia as obras de uma idealização
utópica nos moldes tradicionais.

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No que se refere à ambientação das narrativas, percebe-se em Saramago a
representação de um tempo presente, em sua complexidade social e política.
O espaço representado é o da própria Península Ibérica em assombrosa
transformação. Já em João Ubaldo, o tempo representado está associado a um
passado colonial, com suas instituições (escravidão, aculturação indígena, religião
inquisitória, etc.) e seus costumes. Quanto ao espaço, também uma ilha que existe
ou não e que dá condições ao necessário isolamento da construção utópica. A
Ilha do Pavão é representada como alegoria do Brasil, mas está localizada no
recôncavo baiano e, por decorrência, é parte da Bahia, que é parte do Brasil.
Há também similaridade no protagonismo múltiplo projetado para ambas as
narrativas. Também em O feitiço da Ilha do Pavão um grupo heterogêneo de
heróis sai em peregrinação pela ilha, à procura de solução para os problemas da
comunidade. Balduíno, Io Pepeu, Capitão Cavalo, Degredada, Hans e Crescência
são aparentados ao grupo de portugueses e espanhóis que protagoniza A jangada
de pedra, não só pela heterogeneidade do grupo, mas pela aura de misticismo
e bruxaria que acolhe parte de seus integrantes. É também em meio ao grupo
que surgem os ideais de uma vida mais humana, mais livre e mais justa.

Utopia e crise

Para Fredric Jameson (2006), o surgimento das grandes utopias vincula-se a


“períodos de grande fermentação social, mas aparentemente sem leme, sem
força motriz nem direção”, algo que encontra reflexo em ambos os romances
analisados. No caso de A jangada de pedra, uma crise mais evidente, uma
metáfora da própria (perda da) identidade nacional. Saramago parte de um
contexto histórico adverso para os portugueses e constrói a fábula de um novo
destino para a nação, um contexto, como vimos, trans-ibérico, aproximando
Portugal e Espanha das maiores concentrações de falantes de língua espanhola
e portuguesa – não por coincidência suas principais ex-colônias.
Já a narrativa de João Ubaldo é centrada nos dilemas históricos da formação
da nação brasileira. Qual a organização política mais adequada? As populações
indígenas devem ter acesso à cidadania? Como enfrentar a mácula da escravidão?
Como conviver com o falso moralismo religioso? São essas algumas das grandes
crises enfrentadas pela utopia da Ilha do Pavão. Por ocasião do lançamento
de O feitiço, João Ubaldo assim se refere aos propósitos da obra: “Um Brasil
meio maluco, um Brasil afastado do Brasil, mas brasileiro. Eu quis fazer uma
utopia. Uma utopia relativa a um lugar que não existe. Fazer um cadinho de
Brasil onde o Brasil se desenvolvesse de forma diferente.”4
Diferente, porém não necessariamente utópica, no sentido de encontrar e propor
a solução para a “raiz de todo o mal” (JAMESON 2006, p. 160).

4 Revista CULT. Nº. 6, janeiro de 1998, p. 32-39.

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Utopia e ideologia

Quais seriam as utopias subjacentes às narrativas? Para Jameson, a utopia está


sujeita a duas formas principais de análise: uma causal, ou diacrônica, a outra
institucional, ou sincrônica. Na abordagem sincrônica, está em causa a utopia como
construção, já abordada em parte. Já na abordagem diacrônica, importa definir
qual a “raiz de todo o mal” que a utopia deve combater. No caso de A jangada
de pedra, Saramago contrapõe à utopia da União Europeia sua própria utopia, a
re-situação dos países ibéricos numa “bacia cultural atlântica” (ROCHA, 2009).
Em O feitiço da Ilha do Pavão, a raiz de todo mal está na escravidão, na tirania
dos líderes e na intromissão da igreja no mundo laico. No combate a essas
forças, parece não ser possível dispensar o uso da força e o derramamento
de sangue. Eis então que se revela qual o feitiço da Ilha: uma porta para os
futuros possíveis que, enquanto acessada por um dos aventureiros, paralisa o
tempo em todo o território da ilha. Os protagonistas têm assim a oportunidade
de fazer parar o tempo, quando os desdobramentos da ação lhes parecem
indesejáveis, e de escolher uma “nova versão” para o futuro entre as versões
que se lhes apresentam.
Subjaz à construção utópica, em ambos os romances, um ideário humanista,
de valorização dos direitos humanos e de condenação ao acúmulo material.
Ao delimitarem, cada qual ao seu modo, a “raiz de todo mal” em torno dessas
questões, os autores reafirmam seus compromissos políticos de enfrentamento
da desigualdade e da injustiça social.

Utopia e negatividade

Em Jameson (2006), o que caracteriza a utopia como essencialmente negativa


é nossa incapacidade de imaginar um mundo melhor, revelando o “fechamento
ideológico do sistema em que estamos, de algum modo, cercados e confinados.”
Por isso não raro as utopias desembocam em seus contrários. Não há qualquer
segurança, por exemplo, no futuro reservado para a ilha ibérica, isolada dos
continentes em pleno Atlântico. Ao final do romance, a vara de negrilho espetada
sobre o túmulo de Pedro Orce “talvez floresça” no ano seguinte. No desfecho
de O Feitiço da Ilha do Pavão o desencanto é também evidente. Tendo em
mãos o próprio futuro, podendo, talvez, aspirar à perfeição, os heróis optam
pelo menor dos males possível, algo que restabeleça o equilíbrio, sem alterar
radicalmente as relações de poder na ilha:

Muito bem, o quilombo viria abaixo por sua própria vontade, D. Afonso Jorge
seria no máximo rei de suas mulheres, as vilas escolheriam seus próprios
destinos, provavelmente tudo iria acontecer como já queria a maioria, Borges
Lustosa seria duque de São João, não mais da ilha, padre Tertuliano seria
grão-bispo também de São João e, mais tarde, talvez de toda a ilha, até

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porque, em seu papado, padres e freiras poderiam continuar consagrando-
se à vida religiosa, mas casando-se ao bel-prazer. E Balduíno, detentor de
segredos básicos dos homens e da Natureza, continuaria como despachador,
sempre influindo aqui e acolá e desfrutando da vida que sempre quis ter, com
os outros índios também podendo morar nas vilas. (RIBEIRO, 2011, p. 263)

Conclusão

Diante das acanhadas utopias representadas em ambas as obras, é interessante


retornar ao primeiro parágrafo do texto “A política da utopia”, de Fredric Jameson,
que vimos seguindo até aqui:

A utopia parece ser a demonstração de um daqueles raros fenômenos cujo


conceito é indistinguível de sua realidade, cuja ontologia coincide com sua
representação. Essa entidade peculiar ainda tem função social? Se não a tiver
mais, talvez a explicação esteja naquela extraordinária dissociação histórica
em dois mundos distintos que caracteriza a globalização de hoje. Num
desses mundos, a desintegração do social é tão absoluta – miséria, pobreza,
desemprego, fome, corrupção, violência e morte – que os elaboradíssimos
esquemas sociais dos pensadores utópicos tornam-se tão frívolos quanto
irrelevantes. No outro, a riqueza sem paralelo, a produção computadorizada,
as descobertas médicas e científicas inimagináveis há um século, além de
uma variedade interminável de prazeres comerciais e culturais, parecem ter
tornado a fantasia e a especulação utópicas tão tediosas e antiquadas quanto
as narrativas pré-tecnológicas de vôos espaciais. (JAMESON, 2006, p. 159)

Esses dois mundos de que nos fala Jameson convivem e se confrontam em


vários momentos em A Jangada de Pedra. Convivem e também se separam,
com a fuga das elites para o Continente. Em O feitiço da Ilha do Pavão temos
a gênese desses mundos, ainda sob a influência de uma tecnologia incipiente.
Nos dois romances, o “salto utópico”, isto é, a passagem para a nova realidade,
só é possível mediante a ação do fantástico, do sobrenatural, e mesmo assim
resulta em formulações que estão distantes da ideia original da utopia. Talvez,
de fato, ela não seja mais possível, ou talvez ela tenha se tornado inútil. Ainda
assim, segundo Eduardo Galeano, que debateu com Saramago no Fórum Social
Mundial em 2005, a utopia servirá para algo:

Ventana sobre la utopía

Ella está en el horizonte - dice Fernando Birri -. Me acerco dos passos, ella
se aleja dos passos. Camino diez pasos y el horizonte se corre diez passos
más allá. Por mucho que yo camine, nunca la alcanzaré. ¿Para que sirve la
utopía? Para eso sirve: para caminar.5

5 GALEANO, Eduardo H. Las palabras andantes. México: Siglo Veintiuno, 1993.

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Nation and utopia in A jangada de pedra and
O feitiço da Ilha do Pavão

Abstract:

This paper proposes a comparative reading about the topics “nation” and
“utopia” in two contemporary romances of portuguese language: A jangada de
pedra (1986), by Jose Saramago and O feitiço da Ilha do Pavão (1997), by João
Ubaldo Ribeiro. The analysis is based on Fredric Jameson’s concepts on utopia
in postmodernity, and the approach between utopia and the concept of nation
as “imagined community,” by Benedict Anderson. The conclusion points out
that, even resorting to the fantastic, the supernatural, the utopias of Saramago
and João Ubaldo are timid, and that, as Jameson suggests, perhaps there are
no more space for utopia nowadays.

Keywords:

Nation; utopia; José Saramago; João Ubaldo Ribeiro; Fredric Jameson.

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Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 86
Encenações do fantástico e do absurdo em
Veronica Stigger1

Maria Fernanda Garbero de Aragão

Resumo:

Este artigo é uma proposta de análise de dois contos de Veronica Stigger,


tendo como hipótese a criação ficcional de contextos que, ao proporem uma
intensa ruptura com o real, conduzem o leitor ao encontro de uma escritura
fantástica. Para isso, fazem parte deste trabalho os textos “Tristeza e Isidoro”,
de Gran cabaret demenzial (Cosac Naify, 2007), e “Curta-metragem”, conto-
roteiro dividido em duas partes, de Os anões (Cosac Naify, 2009). A partir da
ideia de que nessas construções verifica-se uma descrença no diálogo como
possibilidade de interação entre as personagens, observa-se a elaboração
de outras perspectivas de mediações afetivas viáveis a esses cenários que,
de certa forma, conduzem à estranheza. Ademais, uma proximidade entre o
universo narrativo de Stigger e o Teatro do Absurdo também se configura,
pois as inserções da desolação e da incomunicabilidade do homem moderno
rompem com a dramaturgia tradicional e estabelecem novos sentidos. Ao
avesso, as personagens aqui presentes experimentam o caos e encenam
precárias sobrevivências entre acidentes, quedas e cacos.

Palavras-chave:

Ruptura; fantástico; absurdo; contemporaneidade.

Introdução

Começar pelas palavras finais de Tvetan Todorov (1980)2, em Introdução à


Literatura Fantástica, parece-nos um caminho interessante para pensar as
fronteiras entre realidade e ficção no texto fantástico. De acordo com o crítico,
“A operação que consiste em conciliar o possível e o impossível pode chegar
a definir a palavra “impossível”. E entretanto, a literatura é: eis aqui seu maior
paradoxo.” (TODOROV, 2003, p. 187).
O paradoxo da literatura, assim, permite rupturas e dissoluções de sentidos
capazes de promoverem novas configurações acerca do provável, logo, das
referências ao mundo real. As ressignificações que se operam no texto literário
conduzem à compreensão de elementos que, na ficção, representam outras
1 Maria Fernanda Garbero de Aragão é doutora em Literatura Comparada pela Universidade do Estado do Rio
de Janeiro e Professora Adjunta de Literatura Brasileira na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro.
2 A edição analisada neste artigo é de 2003, publicada pela editora Perspectiva.

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formas de ler o que poderíamos considerar, em seu aspecto amplo, diferentes
realidades. Estas, por sua vez, são aceitas nesses textos, ao estabelecerem
um “pacto ficcional”, segundo Umberto Eco (1994), em Seis passeios pelos
bosques da ficção. É dessa aceitabilidade que o texto ficcional se realiza para
o leitor, o qual encontrará verossimilhanças, não verdades, e estará consciente
da suspensão de uma relação direta com o seu mundo real.
As relações construídas com o texto fantástico, com efeito, acarretam perspectivas
de distância e de recriações ainda maiores, pois é preciso crer que é pelo
viés de uma construção insólita, impossível, que as significações se projetam.
O encontro com o fantástico retira o leitor de suas certezas, forçando-o a,
continuamente, reelaborar seus pressupostos acerca das correspondências
com o que se crê como viável e, por que não, verossímil.
É a partir de um olhar dialético, formado por sequenciais dissoluções e reconstruções
de sentido, que vemos nas narrativas da escritora gaúcha Veronica Stigger um
relevante cenário para o trato do fantástico na literatura brasileira contemporânea.
Seus textos conjugam o bizarro e o improvável em situações que, na composição
ficcional, se tornam parte das relações entre as personagens e seus contextos. A
ironia é uma das figuras mais importantes dessa composição: a autora “brinca”
com o intratável, joga com as mazelas e miserabilidades, e as traduz numa
banalidade constitutiva de nossa relação com o outro, inserindo nesses cenários
uma mirada à condição trágica. Incômodas, impertinentes e deslocadas, essas
personagens fantásticas nos questionam através de situações absurdas, e é pela
ruptura com o possível que o paradoxo da literatura se perfaz.

Absurdo e fantástico, encenações teóricas em Veronica Stigger

Fazer uma seleção entre os contos de Stigger, para analisar o fantástico nessa
escritura, é encontrar-se com uma série de possibilidades que, até quando se
mostram menos insólitas, são atravessadas por circunstâncias bizarras. Desde
seu primeiro livro, O trágico e outras comédias (2004), a aposta na criação de
enredos absurdos confirma uma característica indissociável de sua escritura.
Com efeito, algumas composições de personagem ganham relevo, como é o
caso da reincidência de casais que parecem formar uma personagem contígua:
as situações por eles experienciadas se projetam em duplicada e redimensionam
nossa percepção acerca dessas experiências.
Eles aparecem em vários momentos, como em “Rotina” (2004), com o casal que
estabelece um diálogo precário pela adivinhação dos sonhos do parceiro; “O
cubículo” (2007), narrativa nonsense em que, oprimidos pelos abusivos aluguéis,
ambos passam a viver no ânus do amigo; “Escada rolante” (2007), conto em
que uma turista suíça tem seu corpo tragado ao subir a escada de um shopping,
servindo-se de espetáculo ao marido que assiste à cena contemplativamente;

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“200 m²” (2009), biografia fantástica da autora e seu esposo, na qual encenam
uma performance do absurdo; “Os anões” (2009), na composição trágica de
dois anões espancados até o desfalecimento pleno, numa confeitaria, além de
“Tristeza e Isidoro” (2007) e “Curta-metragem” (2009), sobre os quais teceremos
nossas considerações neste estudo.
“Tristeza e Isidoro” e “Curta-metragem” conduzem à releitura do “Teatro do
Absurdo”, principalmente em relação às personagens de Eugène Ionesco.
Segundo a perspectiva do crítico teatral Martin Esslin3, o termo “absurdo”
definiria peças cuja união entre comicidade e tragédia delineia a deriva como
condição indissolúvel no trato das personagens, e as inserções da desolação
e da incomunicabilidade do homem moderno rompem com a dramaturgia
tradicional. Por outro lado, embora a ruptura seja a marca da novidade, são as
inserções de elementos tradicionais que tornam essa tendência interessante,
pois o retorno é trazido na diferença. Assim, como exemplo, vemos o resgate da
comédia de nonsense (com falas, a princípio, desconexas); dos mimodramas
(espetáculos gestuais surgidos na antiguidade greco-romana); da commedia
dell’arte (gênero cômico entre os séculos XVI e XVIII) e do vaudeville (mescla
de números musicais burlescos, cômicos e de dança).
O nonsense se sobressai como recurso de Veronica Stigger em grande parte
dessas construções, e o diálogo com as personagens de Ionesco, como o Sr. e
a Sra. Martin, da peça “A cantora careca” (1950)4, decorre de uma elaboração
discursiva que, ao não se concretizar como mediadora de compreensões, provoca
o espectador a reelaborar novos sentidos ao que lhe é apresentado. Na cena IV,
vemos o casal discutir se eles se conhecem ou não, e elementos que denotam
a incomunicabilidade em questão são atribuídos às falas, gradativamente:
“(...) SR. MARTIN: Desculpe minha senhora, mas me parece, se não estou
enganado, que a conheço de algum lugar.
SRA. MARTIN: Eu também, meu senhor, parece que o conheço de algum
lugar. (...)
SR. MARTIN: Desde que cheguei a Londres, moro na Rua Bromfield, minha
cara senhora.
SRA. MARTIN: Que curioso, que estranho! Eu também, desde a minha
chegada a Londres, moro na Rua Bromfield, meu caro senhor. (...)
SR. MARTIN: Eu tenho uma filhinha, minha filhinha, ela mora comigo, minha
cara senhora. Ela tem dois anos, é loira, tem um olho branco e um olho
vermelho, é muito bonita e se chama Alice, minha cara senhora.
SRA. MARTIN: Que estranha coincidência! Eu também tenho uma filhinha,
ela tem dois anos, um olho branco e um olho vermelho, é muito bonita e
também se chama Alice, meu caro senhor.
SR. MARTIN: [com a mesma voz arrastada, monótona] Que curioso e que
coincidência! E estranho! Talvez seja a mesma, minha cara senhora!
SRA. MARTIN: Que curioso! É bem possível, meu caro senhor. (...) (IONESCO,
1999, p.27)”
3 Esslin não fala de movimento teatral, mas sim de uma tendência verificada no final dos anos cinquenta, no
contexto Pós-Guerra.
4 A edição presente neste artigo é a de 1999, publicada pela editora Papirus.

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Ao termino da cena, é pela descoberta das personagens – são casados – que
se verifica a inscrição do absurdo, uma vez que é preciso aceitar a proposta de
encenação como construtora de sentidos não aparentes no texto escrito. Assim, o
que não é dito precisa das inferências operadas pelos leitores/espectadores. Na
há dúvidas de que se trata de uma inter-relação cômico-trágica; a ironia viabiliza
a proposta crítica de Ionesco, quanto ao desconhecimento do outro tão próximo,
com o qual já não parecem mais possíveis quaisquer partilhas de entendimento.
Em “Tristeza e Isidoro”, título que conduz a uma inevitável referência à imprecisa
lenda medieval5, o questionamento do diálogo/discurso, como construtor de
sentidos entre as personagens, revela que algumas mediações são inviáveis,
pois a comunicação parece interrompida, inconclusa e, sobretudo, codificada por
códigos desconhecidos, a princípio. O reconhecimento desse impasse faz-se ainda
mais latente em decorrência dos gêneros imbricados nessa composição híbrida
de textos que são apresentados como “contos”, como no caso da peça-conto em
análise, a qual, no livro, traz a legenda: “Drama, ato único” (STIGGER, 2007, p. 82).
Como no texto teatral, são pelas rubricas que temos acesso ao contexto em que
as personagens tecem seus diálogos. Neste caso, um acidente automobilístico
inicial é o mote para a composição cênica emergente do caos, aos cacos.
Em vão, Tristeza e Isidoro tentam atabalhoadamente uma conversa capaz
de solucionar a saída do veiculo acidentado. É neste momento que vemos a
conjunção de elementos provenientes do Teatro do Absurdo em enclave com as
teorias a respeito da literatura fantástica. E, se as falas denotam incompreensões,
religando a autora a Ionesco, a série de pequenos incidentes decorrentes desse
diálogo impossível nos remete às narrativas de Kafka; o improvável é elevado
à condição de protagonista, atuando junto às personagens, conduzindo suas
ações. O acidente inicial vai perdendo sua perspectiva de marcação nas cenas
que o sucedem, e outras situações insólitas parecem convergir nesse contexto.
Concomitantemente ao desespero entoado por Tristeza, ao sentir a porta cair
sobre os seus dedos numa das bizarras tentativas de sair do carro, Isidoro canta
canções de bossa nova em que o nome da mulher aparece, misturando-as com
gargalhadas. Uma série de novos machucados se processa e, quando o leitor
espera pelo final trágico de um dos dois, senão de ambos, um novo ciclo de
situações estranhas se inscreve. Ainda que este leitor vacile sobre as certezas
quanto às possibilidades de sobrevivência, ele precisa aceitar que as personagens
saem do carro com vida, bem como uma gravidez – mostrada somente no final
– que não inviabiliza um sem números de contorcionismos, dentro de um espaço
exíguo, desempenhados por Tristeza durante o texto. Além disso, é necessário
pactuar com a não revelação do motivo pelo qual não podem acionar a polícia,
suspendendo, assim, um desfecho capaz de explicar a tensão do casal que parece
5 Embora reconheçamos que a escolha do título não seja fortuita, o enredo de “Tristeza e Isidoro” não propõe
relações com as histórias concernentes à lenda de Tristão e Isolda. No presente texto, isso funciona como um jogo com
os nomes das personagens e, sobre essa inversão, incide mais uma possibilidade de ruptura dos signos.

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fugir de alguém. A peça-conto termina com os dois fora do veículo, e Tristeza
contando histórias trágicas que Isidoro desconhece, porém ouve deitado sobre
seu colo. Assim, as “bizarras canções de ninar” ratificam a incomunicabilidade,
marca da relação entre as personagens e o mundo do qual elas fogem.
O acidente se torna banal, atribuído de elementos estranhos, cujas construções
na ficção são modeladas pela ironia e pelo que de menos usual delas seja
possível prever, além de forçarem a recomposição de cenários fantásticos, onde
o impossível conduz os elementos ali presentes, suspendendo-os, distorcendo-
os, para mostrar sentidos pelo avesso. Tristeza e Isidoro podem ser lidos pelo
que neles há de insólito, termo que, em Stigger, revigora a ideia do paradoxo da
literatura (recuperando as palavras finais de Todorov) e confirma um investimento
no absurdo, compreendido como algo desmedido e fora do tom (do latim: ab-,
aquilo que deflagra, e surdus, que não pode, não quer ou não deve ouvir).
A interação (entre si e com os contextos e espaços) só pode ser compreendida
pelo nonsense e pela imagem advinda dos espetáculos de vaudeville, sobretudo
no que tange à representação do “Circo dos horrores”; o aspecto humano é
delineado por sua possibilidade caricatural inscrita na aberração. Distantes
de um olhar moralizante, o que vemos nessa inversão de projeção valorativa
é uma possibilidade de narrar o espanto, percurso que traz, à cena literária
contemporânea, a inserção de um olhar – pela fenda – ao incômodo, através
de questionamentos inevitáveis às miradas de um leitor atento e disposto à
aceitação das mediações propostas no texto.
Em “Curta-metragem”, temos uma divisão em duas partes, as quais se conectam
para reafirmarem estranhezas em reciprocidade e consequência. Escrita como
um roteiro cinematográfico do gênero que dá nome ao conto (também sublinhado
por hibridizações), a história referente à primeira parte começa com uma cena
apta à reprodução corriqueira de uma relação a dois, não fosse pelo que se
anuncia ao leitor: “Ele, então, coloca a perna direita sobre a murada da sacada,
projeta o corpo para frente e diz a ela, sorrindo. ELE: Olha só.” (STIGGER, 2009,
p. 15-16). A aceitabilidade do insólito é requisitada continuamente, e tonifica a
percepção do improvável: “ELA: Você podia, pelo menos, trocar essa calça.
Ela volta a assistir à televisão. A câmera retorna a ele e se aproxima até focá-lo
em plano americano. Ele se joga da sacada.” (STIGGER, 2009, p.16). Ao vê-
lo estendido sobre a calçada, seus óculos caem e, novamente, é introduzida
no texto a linguagem do cinema, indicando a posição da câmera, que sai do
plano americano (enquadre do joelho para cima), para a projeção de imagens
turvas, fora de foco, sugerindo que a mulher também tenha se atirado, ação
posteriormente confirmada na descrição da cena.
Como continuação, na segunda parte, “Curta-metragem II”, a proposta imagética
recupera o universo das animações infantis: “A imagem vai aparecendo

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gradualmente, do centro para as bordas, como em alguns desenhos animados
antigos.” (STIGGER, 2009, p. 48). A inserção dessas referências recria a aposta
no nonsense, assim como em “Tristeza e Isidoro”, confirmando a ruptura como
mediadora de significados. Após a descrição cênica, aparece o casal, um sobre
o outro, conversando acerca da quebra dos óculos, cujas lentes israelenses
haviam custado muito caro. Embora eles pouco consigam movimentar-se, é da
irrupção de um diálogo aparentemente impossível àquele contexto que emerge
o aspecto cômico, além de estabelecer com o leitor a concordância de que
não seja dita a altura em que se deram as quedas, informação fundamental
para o deslinde das probabilidades de sobrevivência.
Suspensas as referências requeridas pelo mundo real, a impressão de
estranheza permanece irredutível, corroborando a inscrição do fantástico, pois
a sequência das falas sugere que a queda tenha sido deletéria a “ELE”, que
passa a não sentir as próprias pernas, após o salto de “ELA”. O término reforça
o contexto insólito: estendido na calçada, o casal espera um fusca passar, a
fim de confirmar “o mito do fusca” (sempre que este veículo aparece, outro o
procede), mencionado pela mulher. Incompreensíveis, diálogos e personagens
denotam propósitos desconexos e inviáveis, contudo, é de uma perspectiva
capaz de coadunar absurdo e fantástico, que o leitor aceita o impossível como
possibilidade. Na construção de situações estranhas (concernentes ao universo
do fantástico, e não do estranho como gênero, como propõe Todorov), Stigger
convoca seus leitores à aceitabilidade do incômodo, tão presente na imprecisão
de seus enredos. O leitor continuamente é provocado à disposição de novos
sentidos, à troca de lugares que, como numa dança das cadeiras, depende
de sua atenção e agilidade para não ficar fora do jogo.

O fantástico como diferença

No cenário da literatura brasileira contemporânea, não tem sido raro a presença


de autores cuja aposta no insólito parece escrever uma característica de
nosso tempo. Ao lado de escritores como Santiago Nazarian, Joca Reiners
Terron, Ana Paula Maia, João Paulo Cuenca e Cecília Gianetti, apenas para
citar alguns nomes em que podemos verificar uma proposta de ruptura,
bem como de elementos estranhos inseridos em suas narrativas, vemos, em
Veronica Stigger, essa aposta sublinhar sua escritura. Não se trata aqui de
uma incidência episódica, mas sim de um traço presente na maioria de suas
narrativas. A ironia em relação à nossa capacidade de compreensão do real
conduz à leitura desses elementos revelados por uma crença no impossível
como possibilidade na trama ficcional.
Distantes de uma perspectiva alegórica ou maravilhosa, os traços que revelam o
fantástico nessas composições decorrem do que Todorov considera a respeito
da necessária inserção da estranheza, pois “sem ‘acontecimentos estranhos’

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o fantástico não pode nem sequer dar-se. O fantástico não consiste por certo
nesses acontecimentos, mas estes são para ele uma condição necessária.”
(TODOROV, 2003, p. 136). Logo, verificamos, nas narrativas da autora, uma
elaboração simples e direta no trato dessa condição, a qual conjuga espanto
e perplexidade frente às relações das personagens com aquilo que lhes é
apresentado como realidade na ficção. Não há explicações viáveis à inserção
de fenômenos sobrenaturais, bem como não se encontram engendramentos
alegóricos: tudo é direto, com uma precisão de sentidos distorcidos, próprios
de um forte desejo de imprecisão e subversão do real.
Não é por acaso que, em Ficção brasileira contemporânea (2009), Karl Erik
Schollhammer compara algumas transfigurações propostas por Stigger a Kafka,
em A Metamorfose (1915) e ao que o escritor argentino Cesar Aira diz sobre
Raúl Damonte Botana, mais conhecido como Copi. Em relação à primeira
comparação, Karl Erik escolhe como corpus de sua análise a narrativa “Marta
e o minhocão”, de Gran cabaret demenzial. O paralelo entre Stigger e Kafka é
constituído pela inserção do elemento fantástico que, em ambos os contextos,
é tratado com naturalidade pelas personagens. Assim como o inseto de A
Metamorfose, o extravagante minhocão, habitante da casa de Marta, força o
reconhecimento do real através do que se mostra pelo fio da estranheza e,
como afirma Karl Erik “a realidade ganha dimensões fantásticas e suprarreais”.
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 158).
O absurdo como proposta comparativa decorre da menção a Copi, escritor e
dramaturgo argentino do século XX, integrante da companhia de teatro “Grupo
do Pânico”, ao lado do dramaturgo espanhol Fernando Arrabal, uma das
principais referências ao Teatro do Absurdo, juntamente com Ionesco, Samuel
Beckett, entre outros. Ao citar o livro Copi (AIRA, 1991), Karl Erik destaca a
importância da percepção artística no trato de autores como Copi e Stigger,
e propõe uma conclusão que recupera a ideia do paradoxo da literatura a
que se refere Todorov, mencionado no início do presente artigo: “a felicidade
abandona o campo do possível, onde foi enquadrada pela compreensão comum,
para se instalar na realidade do estranho, com tudo o que traz de absurdo e
extravagante.” (SHOLLHAMMER, 2009, p.158).
Essa recorrente menção ao estranho torna-se relevante para algumas reflexões
acerca do termo, recuperando seu conceito em Freud, ora em diálogo com
o que Todorov nos propõe sobre sua relação com o gênero fantástico. De
acordo com as diferenciações estabelecidas no terceiro capítulo (“O Estranho
e o Maravilhoso”) de Introdução à literatura fantástica, Todorov considera que
o fantástico deva ser tratado como um gênero capaz de abarcar sub-gêneros,
nos quais estaria presente o estranho, bem como o maravilhoso, sem excluir a
possibilidade de textos em que tanto um quanto o outro apareceriam “puros”.
No tocante ao “Fantástico-estranho”, ele destaca:

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“Os acontecimentos que com o passar do relato parecem sobrenaturais,
recebem, finalmente, uma explicação racional. O caráter insólito desses
acontecimentos é o que permitiu que durante comprido tempo o personagem
e o leitor acreditassem na intervenção do sobrenatural. A crítica descreveu
(e frequentemente condenou) esta variedade com o nome de ‘sobrenatural
explicado’.” (TODOROV, 2003, p.38).

Como exemplo dessas narrativas, ele menciona O manuscrito de Saragoça


(1812), de Jan Potocki. Nesta narrativa em que se conjugam mistérios e elementos
provenientes da cabala, o leitor imerge num universo onírico, decorrente de
circularidades que irrompem o enredo, para trazerem à cena a inserção de
projeções sobrenaturais. Entretanto, é da explicação racional desses “milagres”,
segundo Todorov, que o gênero “fantástico-estranho” se produz. E, após diversas
diferenciações sobre o que o crítico considera como “estranho puro”, ele afirma:
“o estranho não cumpre mais que uma das condições do fantástico: a descrição
de certas reações, em particular, a do medo. Relaciona-se unicamente com os
sentimentos das pessoas e não com um acontecimento material que desafia
a razão.” (TODOROV, 2003, p.40).
Logo, a partir dessa minuciosa análise, algumas questões sobre os gêneros
enviesados na costura ficcional de Stigger parecem romper com esse esquema,
ao proporem, assim como suas narrativas, um olhar conceitual que permita
novos sentidos à teoria sobre a incidência do texto fantástico. O estranho, a que
tantas correspondências verificamos em seus textos, remete-nos à dubiedade
do termo em Freud, em “Das unheimlich” (1919). Como já tratado pelo próprio
autor, a traduzibilidade desse conceito é bastante complexa, uma vez que
as possibilidades lexicais da língua alemã fazem com que as palavras se
envolvam por aspectos filosóficos, como neste caso. Desta forma, o conceito
de “estranho” traduziria, concomitantemente, aquilo que é – e não é – familiar,
daí o incômodo, o desconforto. Em Stigger, ao se confrontar com recriações
de contextos banais, mas tangenciados pela ruptura com o real, o leitor tem
em mãos uma narrativa que suspende suas conjecturas: tudo pode acontecer,
como algo natural, muitas vezes apresentado como único desfecho plausível
e verossímil frente a tantas situações escabrosas e insólitas.
Morar no ânus do amigo; ser engolida pela própria contemplação do umbigo;
ver uma repentina chuva de variados tamanhos e formas de pênis; retirar o
Papa de uma privada sugadora; ter a cabeça cortada por um descuido e
permanecer como espectador de uma peça de teatro, ou ter o corpo multilado
durante um bizarro passeio cronometrado com o namorado 6 são apenas alguns
dos exemplos que, ao lado de “Tristeza e Isidoro” e “Curta-metragem”, nos
levam a refletir acerca de uma construção fantástico-absurda. A junção desses
gêneros conecta Stigger às narrativas nas quais experienciamos a estranheza,

6 Respectivamente, os enredos fazem referências aos contos: “O cubículo” (2007), “Janice e o umbigo”
(2004), “A chuva” (2004), “Sheila e Miguelão” (2007), “No teatro” (2004) e “Domitila” (2007).

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ao mesmo tempo em que vemos a convergência de diálogos que remontam
aos textos dos dramaturgos do absurdo.
A elaboração literária insere em sua composição escrita uma perspectiva
discursiva proveniente da incomunicabilidade entre as personagens, sem,
porém, anular a compreensão de um discurso hábil à construção de sentidos
às avessas, em consonância com os contextos da autora. O fantástico atua,
assim, nas situações insólitas, e o absurdo, na projeção cênica das falas
proferidas pelas – e sobre – as personagens, encenadas como artifícios que
Stigger encontra para quebrar ainda mais com nossas certezas quanto aos
limites do bizarro nessas narrativas.
Autora e textos respondem ao que Karl Erik afirma sobre alguns escritores
brasileiros contemporâneos, no que tange à relação própria de uma ruptura com
a realidade histórica reconhecível. Segundo ele, “a realidade não é objeto exterior
à ficção, mas a potência de transformação e de criação que nela se expressa.”
(SCHOLLHAMMER, 2009, p. 159). Essa potência de transfiguração/transformação
na escritura de Stigger evidencia um intento literário que, ao coadunar enredos
fantásticos ao absurdo, desvela o paradoxo tão caro à literatura. Como leitores,
vemos possibilidades de existência para as suas situações maquinadas na
impossibilidade. E é aí, onde tudo parece em desencaixe, que as peças nos
questionam e, por inúmeras vezes, debocham de nossas (in)certezas.

Conclusão

O encontro com os textos de Veronica Stigger, sem dúvidas, conduz-nos a


alguns questionamentos acerca do que experienciamos como leitores. Desde o
princípio, é preciso entrar nesse “bosque”, a que se refere Umberto Eco, disposto
ao contorcionismo de suas personagens, exercitando com elas a recriação
de sentidos para o que se mostra em estado de dissolução. Fragmentadas as
certezas sobre o que iremos encontrar, pois no mundo de Stigger tudo pode
acontecer, aceitamos que aquilo projetado na inverossimilhança possa – e deva
– ganhar significados em ruptura, sempre dispostos a novas ressignificações.
Assim como suas personagens podem sofrer quaisquer metamorfoses, o texto,
como objeto literário, também traz a reboque uma capacidade de hibridização
conceitual, alinhando-se aos pressupostos do texto fantástico e aos procedimentos
discursivos decorrentes do Teatro do Absurdo.
Com efeito, a formação de Stigger – crítica literária e professora de história
da arte – contribui para o trânsito livre e, por que não, despretensioso, entre
perspectivas teóricas, auxiliando-a para que essas inserções sejam traduzidas
em narrativas que, ambivalentemente, incomodam e provocam gargalhadas
em seus leitores. Suas histórias são cômicas, escandalosas, tonificadas pela
infinidade de palavrão que, como diz Karl Erik, é “usado e abusado com a

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alegria de uma criança que descobre a força da palavra proibida e insiste nela
até o esgotamento.” (SCHOLLHAMMER, 2009, p. 156).
Debochada, irônica e mordaz, vemos nessa escritura uma junção de conceitos e
brincadeiras correspondente ao texto de fruição a que se refere Roland Barthes,
em O prazer do texto (1973). É quando tudo parece sem sentido, sem propósito,
que somos forçados à reelaboração de nossas crenças, inclusive sobre nossas
projeções no trato do texto de ficção. E, nesse “deixar levar-se”, o fantástico e o
absurdo conduzem os leitores à experimentação de circunstâncias nas quais o
bizarro é natural, e o insólito se configura como matéria essencial à fabulação
de novos sentidos. O texto de prazer surge no “momento em que meu corpo
vai seguir suas próprias ideias – pois meu corpo não tem as mesmas ideias
que eu”. (BARTHES, 1973, p. 24) e, juntos, experienciaremos o paradoxo como
mote, mediação e desfecho.

Performances of the fantastic and absurd in


Veronica Stigger

Abstract:

This article is an analysis proposal of two tales of Veronica Stigger, considering


the fictional creation of contexts by proposing a severe break with reality,
conduct the reader to meet a fantastic writing. To achieve this aim, the texts
“Tristeza e Isidoro”, of Gran cabaret demenzial (Cosac Naify, 2007) and “Curta-
metragem”, script-tale in two parts of Os anões (Cosac Naify, 2009) form part
of this study. Based on the idea that in these constructions there is a distrust of
dialogue as the possibility of interaction between the characters, is noticeable
the development of other viable ways of affective mediations to these scenarios
that somehow suggest the concept of uncanny. In this perspective, it is noticed
also a proximity between the Stigger’s narrative universe and the Theater of the
Absurd, in which the insertions of desolation and incommunicability of modern
man break with the traditional dramaturgy and set new directions. Inside out,
the characters present here experience the chaos and act out precarious forms
of survival among accidents, falls and pieces.

Keywords:

Rupture; fantastic; absurd; contemporaneity.

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REFERÊNCIAS

BARTHES, R. O prazer do texto. Tradução de J. Guinsburg. 5ª edição. São


Paulo: Perspectiva, 2010.

ESSLIN, M. The theater of the absurd. Londres: Randon House IC, 2004.

FREUD, S. Lo siniestro. In: Obras Completas. Tomo III. Trad. Luis Lopes Ballesteros
y de Torre. Madrid: Biblioteca Nueva, 1981.

IONESCO, E. A cantora careca. São Paulo: Editora Papirus, 1999.

SCHOLLHAMMER, K. E. Ficção brasileira contemporânea. Rio de Janeiro:


Civilização Brasileira, 2010.

STIGGER, V. O trágico e outras comédias. Rio de Janeiro: 7 Letras, 2004.

______. Gran Cabaret Demenzial. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2007.

______. Os anões. Rio de Janeiro: Cosac Naify, 2009.

TODOROV, T. Introdução à literatura fantástica. Coleção Debates 98. 2ª edição.


São Paulo: Perspectiva, 2003.

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POLÍTICA DO FANTÁSTICO

Nuno Manna

RESUMO:

Este trabalho busca refletir sobre uma dimensão política implicada no fantástico,
a partir de uma análise sobre a configuração sensível constituída por suas
narrativas e sobre a normatividade do saber moderno. Para isso, evocamos uma
compreensão de política baseada sobretudo na teoria de Jacques Rancière,
e em seus conceitos de partilha do sensível, dissenso, e um entendimento de
democracia baseada não na semelhança, mas nas diferenças. Além disso,
convocamos as contribuições de contos de autores como Poe, Hawthorne e
Borges para uma análise de uma potência política do fantástico.

PALAVRAS-CHAVE:

Fantástico; política; Rancière

“A verdade não penetra num entendimento rebelde.”


(O Aleph, Jorge Luis Borges)

Se por um lado o projeto civilizatório do homem moderno pode ser caracterizado


por um saber fundado em valores como a ordem, a racionalidade, a razoabilidade,
o equilíbrio, o progresso, em noções como as de positividade, de linearidade,
de atualidade, de correspondência entre causas e consequências, por outro
lado, a literatura da modernidade nos oferece um vastíssimo repertório que
coloca em crise tal empreendimento. Ou ainda, mais do que isso, essa literatura
revela que tal empreendimento só existe em função de uma crise constante do
pensamento ocidental. Se à luz o saber moderno é coerente e transparente,
nas sombras ele se escreve ambíguo, misterioso, opaco.
Essas expressões da parte da sombra do pensamento moderno podem ser
encontradas no terror gótico de Marry Shelley ou Bram Stocker, no romantismo
de Hoffmann, Poe ou Maupassant, na werid fiction de Lovecraft, nas parábolas
de Kafka ou Rubião, na ficção científica de Welles e Clarke, no insólito cotidiano
de Borges e Cortázar, no realismo mágico de García Marquez ou Saramago...
Ultrapassando definições e limitações de gênero, todas essas expressões
podem ser reunidas pela insígnia do fantástico, termo que define aqui não uma
generalidade abstrata que abarca uma diversidade de “não-realismos”, mas
aquilo que atravessa cada uma dessas manifestações literárias de maneira

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fundamental: construções narrativas cujas operações despragmatizantes e
desfamiliarizantes colocam em crise a progressividade da experiência temporal;
e se qualquer narrativa é fundada por um processo dinâmico de concordância
discordante (RICOEUR, 1994), as narrativas fantásticas são aquelas em que
a dimensão discordante – encarnada na sobrenaturalidade, no absurdo, no
irrazoável, no insólito – se põe a desafiar a concordância – a normalidade, a
estabilidade, o equilíbrio, a ordem.
Enquanto cada expressão do fantástico possui uma maneira singular de colocar
tais operações em jogo e, assim, constituir singulares implicações, é inegável a
maneira como todas elas colocam em questão uma visão unívoca da realidade
coletivamente compartilhada, entram em conflito com a normatividade de um
saber que define como as coisas são, como devem ser vistas e compreendidas.
Nesse sentido, como apontam os mais diversos estudos desse universo de
narrativas, o fantástico é caracterizado por um motor transgressivo em relação
a um saber monumental, uma vez que não simplesmente nega ou fantasia o
real, mas oferece novos e desafiadores olhares sobre ele.
Se parece inegável a dimensão poética que tal compreensão do fantástico
implica, em um sentido de ação criadora da poiesis, nos lançamos à possibilidade
de perceber nessa ação transgressiva uma dimensão política do fantástico.
Cabe-nos, nessa breve reflexão, não simplesmente comprovar a efetividade
de tal dimensão, mas precisar que compreensão de política é colocada em
jogo na relação fantástico/política.
No prefácio do livro Políticas da escrita (1994), o filósofo francês Jacques Rancière
nos diz que escrever é um ato que não pode ser realizado sem significar, ao
mesmo tempo, aquilo que realiza: “[...] uma relação da mão que traça linhas ou
signos com o corpo que ela prolonga; desse corpo com a alma que o anima e com
os outros corpos com os quais ele forma uma comunidade; dessa comunidade
com a sua própria alma.” (1994, p. 7) Nesse prefácio, podemos encontrar o cerne
de uma compreensão sobre a relação entre estética e política – tema ao qual
Rancière tem se debruçado há décadas –, particularmente ali sobre a conexão
entre a política e a escrita. Segundo ele, a escrita é coisa política não porque é
o instrumento do poder ou a via real do saber. Antes de ser o exercício de uma
competência, a escrita é uma maneira de ocupar o sensível e de dar sentido a
essa ocupação; e é exatamente esse seu gesto que a torna coisa política, uma
vez que ela “[...] pertence à constituição estética da comunidade e se presta,
acima de tudo, a alegorizar essa constituição.” (1994, p. 7)
O pensamento de Rancière parece-nos valioso para a compreensão de uma
dimensão política implicada na narrativa fantástica, em primeiro lugar, ao oferecer
uma percepção da política que não se restringe ao diagnóstico de que a linguagem
é fundada por ideologia e fundadora de relações de poder – e, nesse sentido,

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qualquer narrativa teria uma dimensão política –; em segundo lugar, o pensamento
rancieriano se desfilia de uma noção de política tradicional que prevê uma troca
pública de razões em uma cena previamente estabelecida, ou, ainda, que supõe
a política pelo simples exercício de/luta por poder. Para Rancière a política opera
no estabelecimento de uma partilha do sensível, em uma divisão dos espaços
reais e simbólicos, na criação de uma forma de visibilidade e de dizibilidade do
que é próprio e do que é comum. Em um sentido ainda mais fundamental, essa
partilha oferece uma divisão entre o que é e o que não é visível, distingue o que
é da ordem do discurso e o que constitui simples ruído dos corpos. É por essa
dimensão que a escrita pode ser política, uma vez que ela “[...] traça, e significa,
uma re-divisão entre as posições dos corpos, sejam eles quais forem, e o poder
da palavra soberana, porque opera uma re-divisão entre a ordem do discurso e
a das condições.” (1994, p. 8)
A tarefa a que nos propomos aqui é a de promover uma reflexão sobre uma
dimensão política em uma modalidade particular de ocupação do sensível, a
qual Rancière parece nunca ter se dedicado em sua obra: a narrativa fantástica
– tomada nesse ensaio em suas expressões literárias. Que configurações do
sensível são tecidas pela narrativa fantástica? Que relações entre modos do fazer,
do ser e do dizer são constituídas? Como o fantástico (re-)distribui os corpos e
entendimentos em relação a suas atribuições e finalidades? Todas essas são
questões que nos animam nesse exercício. Não propomos um apanhado sistemático
de um conceito de política que tem em Rancière um importante teórico, nem
mesmo um apanhado de manifestações ficcionais do fantástico (implicadas,
aqui, por suas cargas teóricas); trata-se da promoção de uma interlocução e um
diálogo teórico entre eles, tentando não dobrar levianamente um ao outro, mas
deixando-nos afetar, nas páginas que se seguem, por um e por outro.

Reductio ad absurdum

Interessado em conhecer de perto um singular método de tratamento da loucura,


um homem decide fazer uma visita à Maison de Santé, uma instituição manicomial
pioneira em tal método. O diretor da instituição Monsieur Maillar resume ao
homem no que consistia a famosa “prática de apaziguamento” na lida com os
pacientes: “Não contradizíamos quaisquer fantasias que entravam na cabeça do
enlouquecido; pelo contrário: não apenas as tolerávamos como as estimulávamos.”
(POE, 2009, s/p, grifos do autor) Em seguida, o diretor exemplifica:

Tivemos homens, por exemplo, que se imaginavam frangos. A cura consistia


em tomar a ideia como um fato, acusar o paciente de estupidez por não
a perceber competentemente como um fato, e assim negar-lhe, por uma
semana, qualquer outro tipo de dieta que não fosse propriamente típica a
um frango. Desse modo, um pouco de milho e cascalho faziam maravilhas!
(2009, s/p, grifos do autor)

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Convidado a ficar para o jantar junto aos funcionários do manicômio, o homem
se vê diante de um grupo de pessoas de comportamento esdrúxulo, que
proseava, ria, cometia milhares de absurdos ao som de violinos que guinchavam
e trombones que berravam como muitos touros de latão de Faláris. “De modo
geral, não podia deixar de pensar que tudo o que via tinha algo de bizarre –
contudo, o mundo é feito de todos os tipos de pessoas, com vários modos de
pensar e diferentes tipos de hábitos convencionais” (2009, s/p, grifos do autor),
ponderou ele. Enquanto isso, Monsieur Maillard explicava-lhe que tal prática de
apaziguamento havia há algum tempo sido suspensa, depois de descobrirem
a duras penas que nunca é seguro deixar um louco livre, sem ser vigiado.

Um lunático pode ser “apaziguado”, como se diz, por algum tempo, mas,
no fim, é muito provável que se torne turbulento. Sua astúcia, além disso, é
grande e notória. Se tem algo em mente, disfarça seu intento com maravilhosa
prudência, e a habilidade com que dissimula sanidade apresenta, ao metafísico,
um dos mais singulares problemas no estudo da mente. Quando um louco
aparenta ser completamente são, já está mais do que na hora de metê-lo
numa camisa de força. (2009, s/p, grifos do autor)

Se a estranha situação parece desde o início contaminada por bizarria e


sarcasmo, ao final descobriremos que Monsieur Maillard, dois ou três anos
antes, por ter sido acometido ele mesmo pela loucura, passara de diretor a
paciente. Como tal, um tempo depois, liderou uma rebelião, quando não só a
situação de dominação se inverteu, como os novos pacientes passaram a ser
tratados a piche e penas, além de um pouco de pão e de água em abundância
– “A última, através de uma boma, lhes era jorrada diariamente.” (2009, s/p). A
situação, no entanto, ao final daquela noite, é contornada com a insurgência
dos presos, e a ordem original é restabelecida.
Tendo presenciado a situação, o visitante conta que o sistema de apaziguamento,
com importantes modificações, foi readotado no château, e comenta: “Contudo,
não posso deixar de concordar com Monsieur Maillard: seu próprio sistema
de ‘tratamento’ era, realmente, de primeira. Como ele mesmo observou com
exatidão, era ‘simples, asseado, sem apresentar problemas – nem mesmo o
menor deles.’” (2009, s/p)
O cômico conto de Poe O sistema do Doutor Pixe e do Professor Penna é
exemplar no sentido de colocar em cena, de maneira bastante radical, uma
redistribuição de lugares e de identidades, um rearranjo na hierarquia que
define quem profere palavra e quem profere ruído. No manicômio, recorte de
comunidade, as relações de poder são fortemente demarcadas, instituem quem
detém a razão e quem sofre sua falta, definem dominadores e dominados.
Nessa ordem, os loucos não constituem o excesso ou a falta, mas, nos termos
de Rancière, a parte dos sem parte. Ao, ironicamente, colocar os loucos como
detentores da palavra e inverter a situação de dominação, Poe promove uma

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confusão na distinção entre sujeitos falantes e animais barulhentos. Mesmo com
o retorno a uma situação inicial de “equilíbrio”, experienciamos a irrazoabilidade
que funda os postos dessa comunidade. De uma realidade saturada, passamos
a percebê-la por algo que lhe falta ou que lhe sobra, um ruído que se instaura
na conta que inicialmente estabelecia o que era possível, pensável, dizível.
Não por acaso, o conto de Poe é mencionado, ainda que em uma pequena nota,
no texto de Rancière O continente democrático (1994). Neste ensaio, Rancière
explicita sua visão de política, particularmente da noção de democracia, a
partir de uma crítica a uma concepção tradicional de democracia das ciências
políticas, que tem os EUA como principal representante e Alexis de Tocqueville
seu grande teórico/entusiasta. Rancière aponta que, para a teoria tocquevilliana, a
igualdade se traduz na democracia estadunidense na medida em que, nos EUA,
todas as leis sairiam do mesmo pensamento, toda a sociedade se baseariam
em um único fato, tudo decorreria de um princípio único. É uma democracia da
luz, de um espaço simbólico da visibilidade integral e da semelhança infinita.

Uma vez mantido o princípio, a igualdade das condições, vê-se tudo. Tudo
é identicamente repetição do princípio. A igualdade é uma estrutura do
visível: a igual visibilidade do semelhante. A América é o lugar da visibilidade
perfeita das condições e é o lugar que se assemelha infinitamente a si
mesmo. (1994, p. 192)

Nessa perspectiva, como aponta Rancière, a democracia não é uma cena


política, mas um estado dos corpos, um estado do social, em que o princípio
da política se realiza esquecendo a si mesmo, absorvendo o excesso, o ser
a mais, o que sobra da visibilidade e que produz a perturbação democrática.
Na concepção tocquevilliana, a democracia estadunidense seria exemplar de
uma boa democracia, boa porque excepcional, excepcional porque virgem,
pura de qualquer antecedência em relação a si mesma, de qualquer mácula
nascida de um combate contra um regime adverso. “A América é a democracia
semelhante a si em toda parte, perfeitamente visível, perfeitamente opaca. Nela
a democracia é absorvida exatamente em sua matéria, o social.” (1994, p. 200)
Rancière critica essa visão de democracia, afirmando que a América para
Tocqueville é uma utopia sociológica, uma utopia da democracia exatamente
semelhante à sua ausência, do visível absolutamente exposto/absolutamente
opaco. Essa “boa” democracia, a democracia anestesiada, ignora uma relação
tensa do visível e do invisível, ignora o que está no âmago da democracia tal
como Rancière busca evidenciar:

[...] a fronteira instável, perpetuamente contestada e perpetuamente cruzada,


às vezes erguida em barricada, a fronteira onde se definem as relações entre
o ver e o não ver, ser visto ou não ser visto, ser visível e ser dizível; a fronteira
onde o ânimo dá a si mesmo um nome que é o de alguma comunidade, onde
o qualquer dá a si mesmo uma forma que é a da multidão, mas também, ao

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contrário, o lugar onde aquilo que estava reunido se dispersa novamente,
condenado à mentira o que era verdade, onde a promessa desfeita corre o
risco de se transformar em ódio que reúne. O lugar da democracia é o da
visibilidade provisória e ambígua, da verdade inverossímil. (1994, p. 200-201)

É esse visível problemático, essa verdade inverossímil que Poe instala em seu
conto, e é por isso que ele é convocado por Rancière. A América (espaço
simbólico) de Poe é uma manifestação dessa democracia viva, essa “má”
democracia, em toda sua plenitude e sua radicalidade, configuração de jogos
do múltiplo que, nos termos de Rancière, se faz e se desfaz nas relações
complexas do visível e do dizível. A América não do consenso, mas do dissenso1.
Nesse sentido, aponta Rancière, o lugar da visibilidade do semelhante da “boa”
democracia relatada nas utopias sociológicas pouco se assemelha à América
de seus ficcionistas; este, um território de um visível sempre problemático.

[...] onde há, não apenas um índio ou um bandido virtualmente oculto atrás
de cada arbusto, porém, mais profundamente, um segredo por trás de
cada porta e cada corpo; um alienado escondido em cada diretor de asilo,
um culpado em cada inocente e um inocente em cada culpado, uma turba
histérica em cada multidão de pessoas honestas e [...] uma inverossimilhança
em cada verdade. (1994, p. 192-193)

Quando se refere aos ficcionistas da literatura estadunidense, Rancière menciona


nominalmente Poe e Hawthorne, deste último pontuando seu romance A letra
escarlate. O conto de Poe e o romance de Hawthorne têm lugar importante na
argumentação de Rancière por encarnar a tematização de uma comunidade
ordenada invadida pela ambiguidade, pela diferença, ou mesmo pela inversão.
Ali, vemos de forma claramente manifesta, a ordem que fixa pessoas, suas
palavras e sentidos, no tempo e no espaço, que prevê e limita as capacidades
de atuação e visibilidade, que delimita a parcela dos sem parcela e a vemos
ser invadida pelo jogo que tira corpos e entendimentos do lugar previsto, a
instauração de uma cena dissensual.
No entanto, o fato de que Poe e Hawthorne representam autores emblemáticos
das manifestações literárias do fantástico não parece pesar na análise do
filósofo. As próprias obras mencionadas não são exatamente exemplares por
possuírem aspectos fantásticos marcantes, se levarmos em conta outras inúmeras
outras que se baseariam fortemente em tal dimensão. Perguntamo-nos, então,
ultrapassando um pouco o escopo de Rancière, que configurações podem ser
criadas e que implicações políticas estabelecidas quando o fantástico tem um
papel ainda mais protagonista na constituição de uma narrativa. Não é preciso
ir longe para encontrá-las.
1 Compreende-se aqui porque Rancière é frequentemente associado ao pensamento da democracia radical,
que tem em Chantal Mouffe e Ernesto Laclau alguns de seus representantes, e que é crítico em relação a qualquer
forma de projeto universalista, a formas unívocas de luta (uma vez que as formas de repressão são é múltiplas), que vai
de encontro a noções de identidade e racionalismo e que ressalta a importância da diferença na luta pela igualdade e
pela liberdade.

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O véu negro

A obra de Hawthorne está repleta de exemplares bastante expressivos do efeito


entrópico na concepção da realidade precipitado pela intromissão do insólito.
Seu antológico conto fantástico O jovem Goodman Brown é uma perfeita fábula
de um dano encenado narrativamente. A vida pacata de Goodman (“Bom-
homem”) e sua esposa pura e iluminada Faith (“Fé”) na puritana vila de Salém
é profundamente abalada no momento em que descobre-se que a Salém das
luzes pode ser somente uma face da Salém que se lança às trevas da floresta. O
vislumbramento dessa vida oculta dos habitantes da comunidade, dessas novos
posicionamentos de possíveis em tempos e espaços outros, é o provocador de
um dano que comprometerá para sempre uma percepção de Goodman sobre
a realidade como ordem e transparência. E a dúvida que se sustenta sobre a
natureza daqueles acontecimentos – alucinação?, pesadelo? – será uma eterna
fagulha de dissenso que impedirá qualquer tipo de adesão ou sujeição à realidade
imediata, será uma parcela de vazio que jamais será solapado pela saturação.

Sempre, acordando surpreendentemente no meio da noite, ele abandonava


o peito de Faith; pela manhã ou ao crepúsculo, quando a família se ajoelhava
para orar, ele franzia a testa, sussurrava consigo mesmo, encarando
cortantemente sua esposa, e saía. E depois de viver muito, deixando à cova
um corpo encanecido, secundado por Faith, uma mulher de idade, e pelos
filhos e netos, uma graciosa procissão, além de muitos vizinhos, não foi
esperançoso o epitáfio que gravaram sobre a lápide, pois ele morreu cheio
de culpa e cercado de trevas. (HAWTHORNE, 2008, p. 185)

Impossível não notar que a Salém fissurada de Goodman Brown possui relação
umbilical com a perturbadora Salém de John Hathorne, ancestral de Nathaniel
Hawthorne, juiz e executor nos famosos casos de julgamento por bruxaria
de dezenas de pessoas no final do século XVII – protagonista lembrado
particularmente por ser o único que, em nome do bem e da justiça, nunca se
arrependeu de suas ações.
No conto O véu negro do ministro, Hawthorne encontra uma maneira mais sutil,
mas não menos perturbadora, de precipitar o dissenso no seio de uma ordem
consensual. Dessa vez, Hawthorne não promove grandes deslocamentos
espaço-temporais dos corpos de uma comunidade, mas instaura uma incômoda
alteridade no âmago desse grupo. Na fronte do reverendo, Sr. Hooper, figura
máxima da santidade na comunidade, estendeu-se um véu negro, interrompendo
o trajeto direto do olhar entre ele e seus paroquianos, entre ele e a Divindade.
Nada a princípio sobrenatural ou absurdo; insólito justamente porque inacessível
a qualquer entendimento. O mistério e a opacidade do véu impediam o acesso
a qualquer verdade. Ao mesmo tempo em que fechava o ministro com seus
irrevelados demônios, revelava as trevas no espírito de sua própria comunidade.
Diante do pedaço de crepe, mesmo o iluminado médico da aldeia se assombrava:

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– Na inteligência de Sr. Hooper deve haver alguma deficiência [...] Mas a
parte mais estranha dessa extravagância, é o efeito que causa até mesmo
num homem equilibrado como eu. O véu preto, embora cubra apenas o rosto
do nosso pastor, influencia toda a sua pessoa, torna-o fantasmagórico da
cabeça aos pés. (HAWTHORNE, 1991, p. 38)

Ainda que cumprimentasse bondosamente seus paroquianos, ninguém retribuía


a saudação de Sr. Hooper. Ao lado do reverendo que se escondia nas sombras,
ninguém aspirou a honra de caminhar; e menos ainda a de com ele ficar a sós:
“– Por nada desse mundo eu ficaria a sós com ele. Será que ele não tem medo
de ficar a sós consigo mesmo?” (1991, p. 38) O véu negro do ministro – para
os paroquianos e para o leitor – foi responsável por despertar um profundo
sentimento de horror, “[...] nem claramente confessado nem cuidadosamente
disfarçado” (1991, p. 41) Mesmo os pecadores em agonia da morte que gritavam
pelo ministro eram assolados diante seu rosto velado quando ele se abaixava
para murmurar uma palavra de consolo: “[...] tal era o terror provocado pelo
véu, até mesmo no instante em que a Morte mostrava a sua cara!” (1991, p. 44)
No entanto, é no fim de sua própria vida, sem nunca mais ter retirado da face
o pedaço de crepe preto, que o ministro aponta para o véu oculto na fronte de
cada um que o rodeia. Só ele, com as lentes negras e opacas, parece enxergar
a realidade problemática:

– Por que tremeis apenas quando estais diante de mim? - gritou ele, voltando
a face velada para o círculo de espectadores. - Tremeis também vós, uns
diante dos outros! […] Olho em torno de mim, e eis que vejo em cada rosto
um véu negro igual ao meu! (1991, p. 47)

Nos dois contos de Hawthorne, o insólito funciona como uma espécie de catalisador
para a evidenciação de uma cena dissensual, na medida em que produz um
ruído nas relações significante-significado, causa-consequência, planta na teia
de causalidades efeitos que não eram previstos. A desnaturalização, importante
operação para a constituição da política, é o motor da narrativa fantástica. Seja
uma situação delirante (o possível ritual satânico na floresta) ou a imposição
de um misterioso objeto (o véu negro), o fantástico embaralha qualquer relação
ordenada do saber. Nesse sentido, não é a simples irrupção do insólito que
torna fantásticas tais narrativas, a insuperável sombra no rosto do ministro, mas
o poder que o insólito possui de revelar a parte da sombra da realidade. E essa
revelação nunca é a exposição de uma verdade oculta, mas o vislumbre de que
por de trás da verdade está o mistério, vislumbre esse não pode se dar senão
de forma enviesada e errante, ante a opacidade de um véu negro.
No fantástico de Hawthorne ou de Paul, não encontramos o território dos costumes
suaves e do espaço visível de toda parte e semelhante a si mesmo. O mesmo
podemos dizer sobre os territórios de Ambrose Bierce, de Washington Irving,
de Henry James, de Herman Melville, de Francis Marion Crawford, de Charlotte

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Perkins Gilman, entre tantos outros – se ficamos no fantástico estadunidense
do século XIX, de contemporâneos não só das teorias de Tocqueville, mas de
dispositivos fundamentais que caracterizam a tradição do pensamento político
estadunidense, como o Destino Manifesto e a Democracia Jeffersoniana.
Encontramos nesses autores territórios assombrados por algo de outro, ainda
que as ficções sociológicas insistam em enxergar territórios do mesmo.
Podemos perceber, então, que o insólito não se oferece como uma nova razão
posta em jogo, um novo termo para a conta de uma cena saturada, mas um
elemento estranho que embaralha os entendimentos – não necessariamente
dos personagens, mas necessariamente do leitor. O fantástico caracteriza-se,
portanto, questionando a ordem de significados ao suspender as certezas e
apontar para novos horizontes de possíveis, horizontes esses que surgem aqui
de forma absolutamente incômoda e assustadora, justamente porque revelam
as trevas onde a luz era suposta. A narrativa fantástica vem, então, propor
uma nova cenografia do possível, do visível, do dizível, uma cenografia não
de outro possível mas de possíveis outros. Ele quebra a organização prévia
do comum e promove uma partilha do sensível aberta, porosa, inconclusiva,
na qual a conta jamais fecha.
É nesse sentido que o fantástico é da ordem do suplemento, da promoção da
desidentificação das identidades, da fixidez espaço-temporal. É a expressão de
uma vida que não é a manifestação da lei; ao contrário, é a irrupção de vazios, de
interstícios. Se, em termos rancierianos, o enunciado acompanhado, socorrido,
explicado, conduzido do ponto de partida ao ponto de destino pelo dono é a
matriz de qualquer pedagogia, o fantástico, à sua maneira, vem investir contra
as pedagogias, vem incidir contra a normatividade do saber e embaralhar as
relações ordenadas de uma sociologia, de um fazer, de um ver e de um dizer.
Se o fantástico pode estar pleno de potência política é justamente porque suas
narrativas se constituiem ante o estabelecimento de uma ordem ou do consenso.
O fantástico pode ser político não por ser “engajado”, não por propor pedagogias
de posicionamento, mas por criar situações e relações novas, por povoar um
sensorium espaço-temporal por objetos e por um ritmo que interferem com o
recorte dos espaços e dos tempos, dos sujeitos e dos objetos, do privado e do
público, das competências e das incompetências, que define uma comunidade
política. Retomamos aqui uma precisa definição de Rancière sobre a relação
entre a arte e apolítica, na qual, acreditamos, o fantástico pode tomar parte:

A arte não é política em primeiro lugar pelas mensagens e pelos sentimentos


que transmite sobre a ordem do mundo. Ela também não é política pelo
seu modo de representar as estruturas da sociedade, os conflitos ou as
identidades dos grupos sociais. Ela é política pela distância que toma em
relação a essas funções, pelo tipo de tempo e de espaço que institui, pelo
modo como recorta esse tempo e povoa esse espaço. (2010, p. 20)

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Por ocupar uma posição de fronteira entre nosso mundo como o normalmente
conhecemos, a realidade prática cotidiana, e o mundo do mistério e do
desconhecido, o fantástico invade a instituição da realidade e injeta nela
capacidade de imaginação. Se a realidade cotidiana é frequentemente formada
por enquadramentos para as interações cujas contradições são passadas
despercebidas e constitui situações fundamentalmente inalteráveis, o dissenso,
como aponta Rancière, é o que permite um intervalo, a descontinuidade entre
a norma e o vivido. As ficções fantásticas, fundamentalmente dissensuais,
colocam o insólito exatamente no percurso naturalizado entre leis e fatos, criando
idiossincrasias irrefutáveis. Assim como acontece com Goodman Brown, nosso
mundo não será o mesmo depois da experiência do fantástico, uma vez que
nossos quadros de sentido foram invadidos por uma fagulha de alteridade.
Em última instância, o fantástico pode ser político ao se propor a questionar a
universalidade pressuposta, ao verificar a verdadeira igualdade, não somente
de indivíduos, mas de possíveis.

A multiplicidade

Ao longo da obra de Rancière, os mais variados exemplos artísticos levantados


para uma evidenciação da relação entre estética e política parecem ter em comum
o fato de “representar” grupos de indivíduos que têm sua comunidade invadida
pelo dissenso. Acreditamos, no entanto, que a potência política das narrativas
fantásticas não se restringe àquelas obras que figuram essa comunidade de
maneira tão direta, como parecem fazer mesmo os exemplos que levantamos de
Poe e Hawthorne, verdadeiras alegorias do dissenso. Propomos, então, um último
apontamento sobre manifestações em que o insólito interfere de maneira ainda
mais sutil – e não menos poderosa – na reorganização da partilha do sensível,
a recorremos a Borges nessa dobra. Isso não implica, necessariamente, em um
afastamento da concepção de política para Rancière. Talvez signifique dar um
passo atrás da ponta mais fina onde o filósofo desenvolve seus diagnósticos
e promove suas análises, para alcançar uma dimensão mais fundamental de
seu pensamento. Nesse gesto, podemos encontrar grandes contribuições em
sua herança foucaultiana, na qual encontramos não só bases para a teoria de
Rancière, mas também pistas valiosas para a compreensão de uma dimensão
política no fantástico.
Quando o protagonista narrador do conto O Aleph desce ao porão da casa
de sua antiga amada, ele se depara com a visão de algo tão absolutamente
fascinante que escapa-lhe a capacidade de relatá-lo de maneira coerente.

Chego, agora, ao inefável centro de meu relato; começa aqui meu desespero de
escritor. Toda linguagem é um alfabeto de símbolos cujo exercício pressupõe um
passado que os interlocutores compartem; como transmitir aos outros o infinito
Aleph, que minha temerosa memória mal e mal abarca? (BORGES 1998, p. 695)

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Mas o que poderia ser tão assombrosamente inescapável a ponto de atormentar
o narrador? Diante dele, em um mesmo ponto, em um instante gigantesco,
abre-se a mais absoluta multiplicidade das coisas do mundo. Porém, o fato de
serem atos tão prazerosos ou atrozes não o assombraram mais do que o fato de
que todos ocupassem o mesmo ponto, sem superposição e sem transparência.
Dessa maravilhosa visão, nós, leitores, temos acesso somente ao relato do
protagonista, que nada pode fazer a não ser transformar sua experiência em
narrativa: “O que viram meus olhos foi simultâneo; o que transcreverei, sucessivo,
pois a linguagem o é.” (1998, p. 695).
No conto de Borges, o dissenso encontra-se diluído na mais profunda estrutura
da representação. Borges, uma das mais brilhantes mentes capazes a dar vida
ao fantástico, nos oferece em seu conto uma expressão fascinante da relação
entre unidade e multiplicidade. No Aleph, em um recorte mínimo de um sensorium
espaço-temporal, encontra-se a mais plena diversidade do universo, que não é a
universalidade ou a totalidade porque sequer constitui um todo. Supor a totalidade
seria encerrar o múltiplo, impor a ele um limite, uma configuração última. Além
disso, a multiplicidade implicada no Aleph não é universal porque não configura
identidade nem apaga as diferenças: é a multiplicidade do universo convivendo
no mesmo tempo, no mesmo espaço, sem transparência ou sobreposição.
Não é a simples aparência do Aleph, exemplar máximo de heterotopia, o que
torna o conto de Borges uma narrativa fantástica, mas sim o fato de que tal
heterotopia é plantada no seio da ordem e da regularidade cotidiana. E o fato de
que o narrador precisa transformar sua própria visão do múltiplo em relato linear
não significa a morte dessa multiplicidade; pelo contrário, é a transposição da
multiplicidade à linearidade da narrativa que faz dela uma narrativa fantástica.
O mundo ficcional do conto, assim, torna-se ele próprio uma heterotopia, uma
vez que passou a abrigar o germe da multiplicidade dentro de si, uma fagulha
potente de alteridade que, mesmo transformado em linguagem, nunca é
aplainado, reduzido ou transformado em mesmo. Essa operação só é possível
pela potencialização da dimensão discordante da narrativa, que, mesmo na
sucessão, coloca em crise a linearidade progressiva.
O descobrimento de heterotopias são temas recorrentes na obra do escritor
argentino. Ela é tema, inclusive, na crônica El idioma analítico de John Wilkins, que
traz a famosa taxinomia do “Empório celestial de conhecimentos benevolentes”,
celebrada por Foucault no prefácio de As palavras e as coisas. Assim a relata
Borges a organização da suposta enciclopédia:

En sus páginas remotas está escrito que los animales se dividen en (a)
pertenecientes al Emperador, (b) embalsamados, (c) amaestrados, (d)
lechones, (e) sirenas, (f) fabulosos, (g) perros sueltos, (h) incluidos en esta
clasificación, (i) que se agitan como locos, (j) innumerables, (k) dibujados
con un pincel finísimo de pelo de camello, (l) etcétera, (m) que acaban de
romper el jarrón, (n) que de lejos parecen moscas. (2005, p. 152-153)

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O que tanto fascina Foucault na leitura da taxinomia de Borges não é o simples
caráter “fabuloso” de seus animais, ou mesmo o caráter insólito do encontro
de uma variedade desses seres. O gesto que causa genuína estranheza é a
forma heterogênea como esses seres são dispostos em sua taxinomia, ou seja,
a forma múltipla de relações estabelecidas entre a própria multiplicidade: o e,
o em, o sobre que, em uma enumeração aparentemente lógica, garantem a
possibilidade de uma coexistência. Nesse sentido, o que salta como impossível
na classificação de Borges é “[...] a estreita distância segundo a qual são
justapostas aos cães em liberdade ou àqueles que de longe parecem moscas.
O que transgride toda imaginação, todo pensamento possível, é simplesmente
a série alfabética (a, b, c, d) que liga a todas as outras cada uma dessas
categorias.” (FOUCAULT, 2000, p. X).
O que Borges cria, então, em sua enumeração monstruosa é uma configuração
espacial fantástica, em que o impossível “[…] não é a vizinhança das coisas, é
o lugar mesmo onde elas poderiam avizinhar-se.” (2000, p. X) Nos termos de
Foucault, o que Borges faz é subtrair o solo, o quadro, a tábua que permite ao
pensamento deitar, colocar, dispor os seres e neles operar uma ordenação, uma
repartição em classes, um agrupamento pelo qual são designadas similitudes
e diferenças. Tal subtração provoca, ao mesmo tempo, confessa Foucault, riso
e mal-estar, confrontando-se com a suspeita de que há desordem pior que
aquela do incongruente e da aproximação que não convém: a desordem que
faz cintilar fragmentos de um grande número de ordens possíveis na dimensão,
ordens que não possuem lei ou geometria.
Em vão nosso pensamento buscará uma coerência, guiado por uma necessidade
constante de ordenação diante da perda de um encadeamento a priori e
conteúdos imediatamente sensíveis, para essa heterotopia criada por Borges,
sobrecarregada de figuras complexas, de caminhos emaranhados, de locais
estranhos, de secretas passagens e imprevistas comunicações. Ao contrário das
utopias, que se situam na linha reta da linguagem, as heterotopias dessecam o
propósito, estancam as palavras nelas próprias, contestam toda possibilidade
de gramática; elas são tão inquietantes

[…] porque solapam secretamente a linguagem, porque impedem de nomear


isto e aquilo, porque fracionam os nomes comuns ou os emaranham, porque
arruínam de antemão a sintaxe”, e não somente aquela que constrói as
frases — aquela, menos manifesta, que autoriza “manter juntos “ (ao lado e
em frente umas das outras) as palavras e as coisas. (2000, p. XIII)

Nesse sentido, fica evidente que a narrativa fantástica é coisa política não
somente ao encenar um dano a uma comunidade de forma figurada, mas ao
desafiar os códigos fundamentais de uma cultura – “[...] aqueles que regem
sua linguagem, seus esquemas perceptivos, suas trocas, suas técnicas, seus
valores, a hierarquia de suas práticas” (2000, p. XV). Esses códigos, como

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diagnostica Foucault, tentam fixar logo de entrada as ordens empíricas com
as quais terá de lidar e nas quais se há de encontrar até formar o suporte
positivo do conhecimento. Em última instância, a provocação feita pela narrativa
fantástica vem questionar a ordem que determina qual pensamento é pensável
e quem pode pensá-lo.
No entanto, se é nesse lugar que percebemos a ação do fantástico, é preciso,
mais uma vez, retornar a Rancière para compreender a política não como
máquina de relações de poder, mas como operação rara e com forte potencial
de instituição da diferença. Eis a política do fantástico.

O duplo

Enquanto muitos dos limites dos estudos de Todorov (2004) sobre o gênero
fantástico parecem ter sidos superados pelos estudos recentes, muitas de suas
formulações permanecem valiosas, e auxiliam-nos, inclusive, a concluir de forma
precisa as implicações políticas do fantástico. Dizia Todorov que o fantástico
corre sempre o risco de ser minado no momento da leitura, se for submetido a
uma interpretação “poética” e não literal da narrativa. Com isso, Todorov insistia
que uma leitura que toma o fantástico por sua carga metafórica esvazia-o de
seu mistério. Tais argumentos de Todorov já foram bastante criticados e devem,
de fato, ser questionados, uma vez que a capacidade alegórica é uma das
maiores forças da narrativa fantástica.
Como alegoria, no entanto, é preciso compreender a abertura para significados
outros, uma experiência de intersecção viva entre texto e interpretação do leitor,
verdadeiro momento em que a transgressão do fantástico ganha realidade.
Transformado em metáfora, o fantástico, de possibilidades múltiplas de sentido
e instauração de dissenso, é reconduzido à compreensão fechada, ditada
pela ordenação de um sentido único. Tomemos como exemplo o caso célebre
do conto de Cortázar Casa tomada, que frequentemente é sobressignificado
como uma metáfora rasa da ação do peronismo da Argentina. Não há potência
política que sobreviva à pedagogia da interpretação codificada.
Lembremos ainda do momento em que Todorov afirma que “[...] a literatura
fantástica nada mais é do que a má consciência deste século XIX positivista.”
(2004, p. 117) A formulação de Todorov pode apontar para além dos limites de
um gênero restrito e dos seus limites do século XIX. Em todas as expressões
literárias a que nos referimos aqui, o fantástico configura um má consciência
de um regime de saber moderno. E, precisamente, uma má consciência,
e não uma inconsciência ou outra consciência (em um sentido paralelo ou
concorrente). Arriscamos, então, às últimas analogias com o pensamento de
Rancière, parafraseando abertamente seus termos (1995, p. 201): assim como
a “má” democracia, a má consciência oferecida pelo fantástico opera no ponto

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sempre crítico entre o aparecimento e o desaparecimento do múltiplo, sua
inocência e sua culpa, sua verdade e sua inverossimilhança. E é justamente
porque essa analogia nos parece possível, por colocar em cena uma relação
multiplicada do visível e do invisível, que o fantástico possui uma potência
política, colocando em cena uma parcela do pensamento que não está prevista
na conta da racionalidade moderna; uma parcela que, apesar de não estar
prevista nessa conta, é produto das próprias ambiguidades e fraturas do saber
moderno, e não sua negação.
Ao criar ficções baseadas fortemente na discordância, o fantástico encena
o saber moderno diante de uma alteridade que revela-se o si próprio como
outro. Não por acaso, o duplo é uma figura tão frequente e tão expressiva nas
expressões do fantástico. O saber e seus duplos são todos colocados em
uma mesma cena, compartilhando de um mesmo comum, no qual, no entanto,
não há consenso nem sobreposição. Com Rancière, passando por Foucualt,
entende-se porque o fantástico pode ser político: porque lança mão das
palavras que sobram, dos enunciados sem referente e relações que desfazem
qualquer lei de correspondência entre a ordem monumental das palavras e das
coisas; porque, confrontados com o limite de um pensamento outro, atingimos
(alcançamos/investimos contra) o limite do nosso pensamento, pensamento
que é, ao mesmo tempo, próprio e comum.

Politics of fantastic

ABSTRACT:

This paper reflects the political dimension implied in the fantastic, from an
analysis of the sensible configuration constructed in its narratives and of the
normativity of modern knowledge. For that, we evoke an understanding of politiks
based overall on Jacques Rancière’s theory and his concepcts of distribution
of the sensible, dissensus, and an understanding of democracy based not on
similarities, but on differences. Besides, we bring the contributions from tales
of authors such as Poe, Hawthorne and Borges for the analysis of a politik
potencial of the fantastic.

KEYWORDS:

Fantastic; politiks, Rancière

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O ECO MATERIALIZADO: CONSIDERAÇÕES SOBRE O TEOR
PROFÉTICO DA CANÇÃO DE SIRUIZ

Patrícia Tavares da Cunha Fuza


Ederson Vertuan

Como os sonhos esfingéticos que acometem José, filho de Jacó, na passagem


bíblica, também Guimarães Rosa, em seu Grande sertão: veredas (1956), “instaura
a completa desordem no coração de Riobaldo” (REINALDO, 2005) a partir de
uma canção entoada por alguém sem rosto, quase ausente, uma voz imaterial
que ecoa pela noite e passa a pulsar em Riobaldo durante toda a sua jornada.
A canção de Siruiz trata da busca do conhecimento de si e do outro através da
decifração de um enigma que engloba o “redemunho” da própria existência de
Riobaldo. Ao ouvi-la, ele tem sua “iniciação”, prova do fruto proibido, mergulha
nos “remansos” do São Francisco, largando a pacata vida abastada ao lado do
padrinho Selorico Mendes para lançar-se ao seu destino, à aventura da vida de
jagunço e do amor proibido por Diadorim, a “moça virgem”. Envereda-se, a partir
de então, no grande sertão que é o mundo. O caminho do jovem Riobaldo está
traçado e nem ele mesmo sabe. Assim como não pode fugir da força arrebatadora
daquela canção, também é impossível fugir de seu destino.

Palavras-chave:

Guimarães Rosa; canção de Siruiz; profecia.

“A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes. Tem as neblinas de Siruiz.
Tem as caras todas do Cão, e as vertentes do viver.”
Grande Sertão: Veredas

A conversão de energia em matéria, apesar de uma realidade Física1, parece


ainda não ter servido de argumento para defender a hipotética noção do
sobrenatural enquanto responsável pelo surgimento do mundo material. Desse
modo, também em Grande sertão: veredas (1956) há uma forte relação entre
material e imaterial2, desenvolvendo-se por vias tão complexas quanto a proposição
acima. Uma canção imaterial3, uma voz entoada numa ”madrugada dobrada
inteira” (p.103), torna-se o elo profético entre Riobaldo e seu destino, marcado
por forças desconhecidas, que esta mesma canção profetiza. Por conseguinte,
1 Em laboratório, a energia de um fóton de raios gama pode ser convertida, facilmente, em duas partículas
muito pequenas de matéria.
2 Por material, entenda-se concreto, mundano. Imaterial, nesse estudo, refere-se à energia sobrenatural ou
àquilo que com ela mantém estreita relação.
3 A música, o som, obviamente, são inerentes ao mundo físico, tanto no que diz respeito à sua fonte quanto à
sua propagação. Este estudo, no entanto, os considera imateriais, pois se atém apenas às suas propriedades energé-
ticas e sua consequente relação com forças supranaturais. Muitos consideram o som como uma energia, teoria essa
que se confirma ao se considerar os toques ritualísticos usados por algumas religiões para atrair entidades diversas.

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a energia etérea, adquirida por Riobaldo através do pacto sobrenatural, revela-
se em eventos e circunstâncias que o favorecem. Nesse entremeio, a canção
tão familiar toma forma, materializa-se no cavalo Siruiz, símbolo da profecia
antes lançada e do contrato etéreo firmado com o desconhecido.
Muitos pesquisadores defendem a ideia da canção de Siruiz enquanto uma
profecia4, similar a outros tantos enigmas existentes na história da literatura e da
civilização. Imagens vagas que povoam sonhos premonitórios, sons que evocam
situações passadas e futuras, frases aparentemente desconexas que escamoteiam
revelações profundas, “neblinas” capazes de revelar outras verdades, outras
“matérias-vertentes”, outras veredas. A história da humanidade, em suas mais
variadas expressões, sejam elas ficcionais ou não, apresenta inúmeras passagens
em que indivíduos testemunham situações de natureza mística e metafísica, nas
quais enigmas lhes são propostos com o intuito de, por meio de sua resposta,
revelar informações sobre o passado e o futuro. Tais revelações

podem ser as profecias, maldições, prenúncios, expectativas, dúvidas,


planos, avisos, pressentimentos, fé e aspirações. O anúncio indica, para o
leitor, uma experiência iminente que um personagem poderá ter ou não...
aponta o que vem adiante, usando as intenções dos personagens de obter
ou realizar um evento futuro (ABEL, 2003, p. 204).

Muitos episódios, de épocas e fontes diversas, constituem exemplos dessas


parábolas enigmáticas propostas a figuras humanas ou míticas ilustres. Em
Édipo Rei, de Sófocles, o personagem principal recorre ao auxílio de entidades
adivinhatórias, como o oráculo de Delfos e a Esfinge, a fim de desvendar sua
origem e seu destino. Na Teogonia, de Hesíodo, também as musas afirmam
que, quando querem, sabem “proclamar muitas verdades”. Ainda tratando-
se da tragédia, Orpheu, após ter seu corpo despedaçado pelas Mênades e
lançado ao rio Hebro, tem a cabeça encontrada na Jônia por um pescador,
que a enterra. Naquele lugar, é erigido um templo, ao qual os moradores e
viajantes passam a recorrer em busca de respostas para suas ações futuras.
Na Antiguidade, um sonho esfingético que nos legou a expressão “vacas magras
e vacas gordas” como símbolo de penúria e abundância, é o do faraó do Egito,
referido na Bíblia, no capítulo 41 do livro de Gênesis, que foi interpretado por
José, filho de Jacó, passando à História como José, governador do Egito. No
hinduísmo, praticado na Índia, o quarto livro sagrado, chamado Atarva Veda
(veda = conhecimento, tradição), fonte de inspiração espiritual presumivelmente
escrito no século 25 a.C, também contém um capítulo sobre presságios oníricos.
No entanto, todos esses presságios, sejam eles como forem, não revelam
claramente o conteúdo de suas verdades. Exigem a experiência para que suas
mensagens sejam compreendidas (REINALDO, 2005). Recorrentemente, vemos
situações emblemáticas, muitas vezes decifradas apenas no momento derradeiro
4 Roncari (2001), Moraes (2005), Davi Arriguci Jr. e Pereira (2008).

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da existência. São respostas enevoadas, subjetivas, intimistas, prostradas diante
dos olhos, vistas, mas não enxergadas no seu sentido mais stricto.
Nos três primeiros exemplos citados, embora os presságios sejam enigmáticos,
enevoados, há a presença da materialidade, já que os veículos usados para
a transmissão de tais enigmas e responsáveis pelas adivinhações são seres
humanos ou míticos, como a Esfinge e as sacerdotisas de Delfos. No entanto,
como os sonhos que acometem José na passagem bíblica, Guimarães Rosa,
em seu Grande sertão: veredas, “instaura a completa desordem no coração
de Riobaldo” (REINALDO, 2005) a partir de uma canção entoada por alguém
sem rosto, quase ausente, uma voz imaterial que ecoa pela noite e passa a
pulsar em Riobaldo durante toda a sua jornada.
Certa noite, quando o bando de Joca Ramiro se instala na propriedade do
padrinho Selorico Mendes, Riobaldo, já impressionado pela visão dos capangas
de Joca Ramiro - dentre eles o Hermógenes, seu futuro inimigo -, sente-se tocado
por uma canção entoada pelo desconhecido violeiro-jagunço Siruiz. Quando
os homens, “perto duns cem”, acomodam-se na fazenda de Selorico, “num
fechado, mato caapuão”, seguidos pelos olhos atentos do moleque Riobaldo,
“um falou mais alto, aquilo era bonito e sem tino: - ‘Siruiz, cadê a moça virgem?’”
(p. 101). Nesse momento, “algum, aquele Siruiz, cantou, palavras diversas”,
para Riobaldo, a “toada toda estranha”:

Urubú é vila alta,


mais idosa do sertão:
padroeira, minha vida
vim de lá, volto mais não...
Vim de lá, volto mais não?...
Corro os dias nesses verdes,
meu boi mocho baetão:
burití — água azulada,
carnaúba — sal do chão...
Remanso de rio largo,
viola da solidão:
quando vou p’ra dar batalha
convido meu coração...
(ROSA, 1986, p. 101)

Instantaneamente, Riobaldo se sente tocado e intrigado com aquela canção.


Ela ecoa dentro dele durante toda a narrativa, mas mantém-se emblemática,
como uma espécie de canto esfingético, uma neblina que, contrariamente a
Édipo, é incapaz de decifrar.

O que eu guardo no giro da memória é aquela madrugada dobrada inteira:


os cavaleiros no sombrio amontoados, feito bichos e árvores, o refinfim do
orvalho, a estrela d’alva, os grilinhos do campo, o pisar dos cavalos e a
canção de Siruiz. Algum significado isso tem? (ROSA, 1986, p. 103)

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Marcado profundamente por essa canção, Riobaldo, no entanto, não deixa de
admitir que a considera “estúrdia”. E não é descabido afirmar que o leitor de
Grande sertão: veredas, o mais das vezes, partilha da mesma opinião.
Embora a canção de Siruiz tenha como base uma métrica tradicional simples5, ela
nada tem de popular. Uma referência a Dante Alighieri6 e os significados ocultos na
sonoridade metafórica do poema7 não fazem muito para mudar isso. Daí Riobaldo ser
o único a ver beleza nos versos, que, de fato, não eram populares entre os demais
jagunços8. Consequentemente, a canção de Siruiz não pode ser considerada uma
canção campesina comum, assim como Riobaldo e sua sina não o foram. Toda
a relação da canção com a sugestão do mistério e do oculto vem a servir a outro
propósito: a antecipação da relação de Riobaldo com forças desconhecidas.

A propriedade profética da cancão

A canção de Siruiz trata da busca do conhecimento de si e do outro através da


decifração de um enigma que engloba o “redemunho” da própria existência de
Riobaldo. Ao ouvi-la, ele tem sua “iniciação”, prova do fruto proibido, mergulha
nos “remansos” do São Francisco, largando a pacata vida abastada ao lado
do padrinho Selorico Mendes para lançar-se ao seu destino, à aventura da
vida de jagunço e do amor proibido por Diadorim, a “moça virgem”. Envereda-
se, a partir de então, no grande sertão, que é o mundo. O caminho do jovem
Riobaldo está traçado e nem ele mesmo sabe. Assim como não pode fugir da
força arrebatadora daquela canção, também é impossível fugir de seu destino.
O canto, a palavra cantada, que a poesia hesiódica considerava “a mais
elevada expressão da palavra mítica criadora” (REINALDO, 1998), se junta ao
som de seu acompanhamento, a viola, um instrumento imbuído em fantasia e
ancestralidade9, para compor um par sonoro ideal ao anúncio profético.
O canto, o som da viola e, também, os números que se pode extrair do
poema (3 quadras; 12 versos; 7 sílabas10) se reúnem enquanto sinais de uma
5 A redondilha menor, preferida do sertanejo.
6 Os versos da canção foram elaborados de forma a esconder seus temas. Por exemplo, Roncari (2001) con-
sidera o verso “Urubú é vila alta,” que se refere a certa “vila do urubu”, como uma paródia do tema inicial da Divina
Comédia: “No meio do caminho de nossa vida / Encontrei-me numa selva obscura / Que a estrada reta fora perdida”.
O pesquisador afirma que “vila do urubu” representa uma metáfora da metáfora “selva obscura”. Uma vez que selva
assume valor simbólico de “vida terrena”, vila assume o lugar de selva (vida terrena) e urubu substitui “obscura”, donde
se conclui a ideia de “vila do urubu” como metáfora para “vida terrena sombria”.
7 O âmbito estilístico dos versos da canção traz consigo sentidos ocultos. O ditongo nasal “-ão”, por exemplo,
rima que perpassa todo o poema, possui, segundo Nilce Sant’Anna Martins, dois níveis de propriedades sonoras. O
primeiro diz respeito a sons velados, isto é, sons ocultos, escondidos, encobertos, sem timbre puro. O segundo diz
respeito à sua capacidade de expressar alongamento: seu som prolongado serve tanto para evocar distância quanto
lentidão, moleza e melancolia . O som alongado, assim, serve como alusão à escuridão e aos mistérios da selva/vida
de Riobaldo, bem como ao longo tempo durante o qual a travessia de sua sina é realizada.
8 No entanto, a afirmação de Riobaldo sobre ser o único interessado na canção contrasta com um episódio
anterior em que os jagunços, aparentemente familiarizados com a canção, pedem, com entusiasmo, para que Siruiz
entoe a “canção da moca virgem”.
9 Segundo Correa (2000), o universo da viola implica toques ancestrais e versos marcados pela tradição,
o que faz do instrumento um auxiliar na expressão da alma. Para os violeiros antigos, apenas quem possui um dom
divino é capaz de dominar o instrumento, a não ser que o indivíduo que não recebeu tal bênção recorra a um pacto.
10 Números com sentidos simbólicos diversos, mas que tem em comum a associação a ideias de totalidade e

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sacralidade profética que prenuncia, quase em tom sublime, todo o ciclo da
sina de Riobaldo. São esses os elementos que relacionam a canção de Siruiz
com o profético e o sagrado. E que, além disso, constituem pano de fundo
ideal para a condição mágica do envolvimento de Riobaldo com forças ocultas
que, acionadas a seu favor, serão materializadas em episódios e elementos
narrados ao longo do livro, assim como no próprio cavalo.
Os versos entoados pelo jagunço Siruiz perseguem Riobaldo durante sua
peregrinação pelas veredas do sertão e de seus próprios medos, desejos, frustrações
e lembranças. Siruiz não tem rosto, carne, matéria. É apenas uma voz que ecoa
no meio da madrugada, uma névoa… que somente se materializará a partir da
posse do novo cavalo, a quem Riobaldo nomeia Siruiz, ao invés de Barzabú.

O insólito em Siruiz

A canção não vem a ser apenas uma profecia: ela também revela uma face soturna,
imaterial enquanto proferida por uma presença na ausência; porém material, na
medida em que se faz palpável na tomada de posse, por parte de Riobaldo, das
“rédeas” de seu próprio destino através do cavalo batizado de Siruiz.
No transcorrer da narrativa, Riobaldo questiona a existência do Demo e sua real
influência nas ações humanas. Ouve de seus companheiros que Hermógenes
é pactário e, seduzido pela possibilidade de tornar-se tão ou mais poderoso
que o jagunço, abandonando suas dúvidas e receios, Riobaldo decide fazer o
pacto. Numa encruzilhada das Veredas Mortas, à meia-noite, invoca o Tinhoso,
mas acredita não ter resposta. No entanto, volta do vale com a coragem e a
ousadia que sempre almejou. Ao encontrar-se com o bando, outro acontecimento
insólito: os cavalos, ao verem Riobaldo, agitam-se.

A sua influência no meio ambiente foi muito sentida, principalmente, pelos


cavalos- antenas do mundo das trevas. Quando reuniram os cavalos, fez
um “rebuliz”. Os quadrúpedes viram-no chegar, como não podiam escapulir,
“suavam, e já escumavam e retremiam, que com as orelhas apontavam”.
Riobaldo pulou “para o meio deles: - ‘Barzabú! Aquieta, cambada!’” E os
cavalos se aquietaram (ABEL, 2003, p. 304).

Nesse instante, chega seu Habão com um corcel, “gateado formoso” (p. 378)
que “chicoteia alto o ar”, empinando. Riobaldo grita “- Barzabú!” e o “cavalão
lão lão” se acalma. Ao ver que o corcel estranhamente obedece a Riobaldo,
seu Habão resolve presenteá-lo com o cavalo. Os outros jagunços sugerem a
Riobaldo que chame seu presente de Barzabú. No entanto, como uma tentativa
de negar para si o pacto sugerido a pouco, Riobaldo o batiza de cavalo Siruiz.
Com o bem observa Moraes (2001), esse novo cavalo substitui o cavalo morto
Padrim Selorico. De acordo com a pesquisadora, a substituição do nome do
de cumprimento de um ciclo. No contexto da obra, tais números sugerem o cumprimento da vida jagunça de Riobaldo.

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pai-padrinho de Riobaldo, Selorico Mendes, pelo de um desconhecido — o
jagunço Siruiz — representa uma metáfora de rompimento com os laços de
paternidade-apadrinhamento e de pertencência, para que a posição de Riobaldo
enquanto autoridade seja assumida.
No entanto, é importante complementar: é também no plano sobrenatural
que o apadrinhamento divino se desfaz, para que, em seu lugar, se instale o
auxílio de forças desconhecidas. O nome do novo cavalo de Riobaldo assinala
o desligamento de sua anterior condição passiva e subserviente para a de
agente, de dono de seu destino e de entrega a tudo o que a canção de Siruiz
profetizara. O cavalo com que Habão presenteia Riobaldo representa a primeira
insígnia de chefia e de comando que lhe é conferida. Mas essa condição
superior, convém lembrar, só é assumida após o pacto.
E essa relação entre o pacto de Riobaldo e o recebimento do novo cavalo
Siruiz chama a atenção para uma relação existente entre as quatro faces de um
quadrilátero: Riobaldo, seu cavalo, as forças sobrenaturais e a canção de Siruiz.
Com toda a profecia sombria descrita na canção de Siruiz, que já sugeria as
trevas, o desvio e a travessia, inclusive, de ordem espiritual11, o batismo do cavalo
como Siruiz não mostra apenas a união com os laços sobrenaturais. É também
uma energia que se materializa e que passa a auxiliar/conduzir Riobaldo em
sua nova fase, mediando suas vontades entre dois mundos. Além disso, uma
vez que o cavalo representa uma insígnia de poder que veio após o pacto, logo
ele marca simbolicamente o contrato sobrenatural feito por Riobaldo. E, assim,
fecha-se a relação entre as faces do quadrilátero Riobaldo/canção/pacto/cavalo.
É o lado estranho, sombrio e oculto da canção que acaba se cumprindo com
as atitudes de Riobaldo enquanto pactário. Montar em Siruiz significa unir-se
intimamente com a canção profética que tanto o intrigara e com seu destino e
identidade jagunças. Mas o destino de Riobaldo e o destino descrito na canção
de Siruiz se confluem apenas com a ajuda do sobrenatural, quando Riobaldo,
ao menos, tem a chance, de estar no controle de sua própria vida.

Pactos e pacto: um contrato sobrenatural REPLETO de brasilidade

Segundo uma lenda bastante conhecida por folcloristas portugueses e brasileiros


e originada no Brasil pela prática de muitos fazendeiros do interior de Minas
Gerais, um pactário pode se utilizar de um diabinho chamado Famaliá12 para
atingir seus objetivos mundanos. Trata-se de uma prática extraída de um ritual
descrito no livro de São Cipriano, em que o então-feiticeiro Cipriano instruía
a todo interessado a encontrar um ovo de galo, levá-lo sob o braço a uma
encruzilhada, pronunciar algumas palavras a Lúcifer e esperar a eclosão. No
11 Ou seja, a travessia do bem para o mal.
12 Corruptela de [demônio] Familiar. Essa popular lenda folclórica chegou a servir como enredo para a tel-
enovela Renascer (1993), de Benedito Ruy Barbosa.

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Brasil, apesar de algumas modificações menores, o ritual permanece fiel ao
português. O pactário deve manter um relacionamento estreito com a criatura
resultante da eclosão, um diabinho, algumas vezes, com forma humana. O dono
deve batizá-lo, guardá-lo em uma garrafa, mantê-lo em segredo e alimentá-lo.
Todos os pedidos do pactário devem ser dirigidos a essa criatura, que assume
o papel de mediador entre seus pedidos e o mundo inferior.
O cavalo Siruiz também erige-se como uma espécie de famaliá, selando o pacto.

Um tal presente tinha de ser para o chefe, fatalmente Zé Bebelo se sentiria


ofendido, mas Riobaldo não recusou do presente. Zé Bebelo não passou
recibo e elogiou sua nova montaria. [Riobaldo] entregou o cavalo ao Fafafa,
para que o cuidasse, retirou-se, dando as costas a Zé Bebelo, sem nenhum
receio de levar um tiro nas costas. Nada lhe aconteceria, porque tinha a
proteção do “Drão- o demoninhão (ABEL, 2003, p. 304).

Nesse caso, a escolha do cavalo como aquele que “sela” o pacto de Riobaldo
com o Diabo13 e, por conseguinte, com seu destino irrefutável, pode ser
compreendida a partir da relação desse animal com o mundo das trevas:

Uma crença, que parece estar fixada na memória de todos os povos, associa
originalmente o cavalo às trevas do mundo ctoniano, quer ele surja, galopante
como o sangue nas veias, das entranhas da terra ou das abissais profundezas
do mar. Filho da noite e do mistério, esse cavalo arquetípico é portador de
morte e de vida a um só tempo, ligado ao fogo, destruidor e triunfador, como
também à água, nutriente e asfixiante. A multiplicidade de suas acepções
simbólicas decorre dessa significação complexa das grandes figuras lunares
em que a imaginação associa, por analogia, a Terra, em seu papel de Mãe,
a Lua, seu luminar, as águas e a sexualidade, o sonho e a divinação, o reino
vegetal e sua renovação periódica. (CHEVALIER; GHEERBRANT, 2002, p. 202)

Inúmeros exemplos literários, históricos e religiosos trazem consigo marcas do


aspecto sombrio dessa crença com relação ao cavalo e as forcas que ele pode
sinalizar. Segundo uma lenda popular da Ásia Central, um herói chamado Töshtük,
esposo de Kenjeke, se vê em perigo ao ter sua alma roubada por um cruel feiticeiro.
Para recuperá-la, Töshtük precisa cruzar a fronteira entre o mundo dos vivos e o
mundo subterrâneo. Ciente dos perigos que seu marido estava prestes a enfrentar,
Kenjeke presenteia o herói com um cavalo prodigioso, chamado Tchal-Kuiruk,
que é capaz de entender e de conversar com os humanos. No entanto, antes
da arriscada viagem, o cavalo mágico afirma que o herói precisará renunciar à
sua própria personalidade e confiar em seus poderes sobrenaturais para que
sua busca tenha sucesso. Tchal-Kuiruk, então, auxília o herói na procura por sua
alma, infiltrando-se no mundo inferior e livrando-o de inimigos.
13 O cavalo Siruiz, portanto, é para Riobaldo o que o ‘’cão” de proporções monstruosas Mefistófeles foi para o
Fausto de Goethe, ou seja, a reiteração e a chave para o poder, a coragem, o prazer, que são exercidos por ambos
os protagonistas através da violência e da crueldade. E do mesmo modo que Riobaldo e Fausto se perdem, tem suas
almas salvas ao final de suas travessias. Riobaldo, matando o Hermógenes, sofrendo e expurgando o amor e a morte
de Diadorim, largando a vida de jagunço, reencontrando-se com Zé Bebelo, casando-se com Otacília. Fausto, sendo
raptado por anjos que surgem e espargem rosas odoríferas de efeito narcotizante, fazendo recuar o demônio.

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Assim narra o poema épico quirguiz Er-Töshtük (1885)14 e que constitui um
exemplo literário e simbólico acerca da natureza não apenas mágica, mas
íntima, da relação entre o cavaleiro e seu cavalo. A lenda de Er-Töshtük foi
construída oralmente em meio às tradições da Ásia Central, onde a influência do
xamanismo se faz intensa. No contexto xamânico, atribui-se ao cavalo poderes
sobre-humanos, além da imagem que o animal possui enquanto clarividente,
guia, intercessor e familiarizado com as trevas e com o outro mundo.
Ao pano de fundo religioso que ajudou a moldar a alegoria das relações
míticas entre o cavalo e o cavaleiro15, somam-se outras narrativas históricas
e literárias que alargam o simbolismo entorno da natureza dessas mesmas
relações. Além de Er-Töshtük, a lenda do cavalo Bayard, iniciada no século XII e,
desde então, recorrente em poemas e romances16, também trata de um cavalo
com poderes sobrenaturais e que se comunica com humanos17. No entanto,
convém relembrar as mais antigas fábulas em torno do cavalo Bucéfalos, que
pertenceu a Alexandre, O Grande. Uma das lendas chega mesmo a afirmar
que os poderes de Bucéfalos ultrapassavam os de Pégaso18.
Assim, em várias culturas e fábulas inspiradas por crenças e práticas voltadas ao
sobrenatural, evidencia-se a ideia de que “corcel e cavaleiro estão intimamente
unidos”19 — assim como Riobaldo e Siruiz — e de que o “cavalo instrui o homem,
ou seja, a intuição esclarece a razão”20. Essa crença, convém reafirmar, parece
ter exercido influência nas lendas e na literatura, como atestam as histórias
de Tchal-Kuiruk e Bayard. Trata-se de uma vasta tradição religiosa, lendária e
literária a mostrar o quão simbólica e íntima pode ser a relação entre cavaleiro
e cavalo; ligação esta que não deve ter passado despercebida por Guimarães
Rosa21 e que, no universo do sertanejo, não deixa de ser bastante comum.
Desse modo, montando naquele que de imaterial materializou-se, Siruiz,
Riobaldo Tatarana assume também seu próprio destino, tornando-se o grande
chefe Urutú-Branco. Trata-se da comunhão íntima do homem com aquilo que
lhe foi traçado, sua trajetória, travessia; do “batismo” do cavalo Siruiz e do
próprio Riobaldo: “E o velho homem-cujo. Ele entendia de meus dissabores?
Eu mesmo era de empréstimo. Demos o demo… E possuía era meu caminho,
nos peitos de meu cavalo. Siruiz. Aleluia só” (ROSA, 1986, p. 460).

14 Epopéia asiática. É considerada um poema épico folclórico muito popular no grupo étnico dos quirguizes,
no Quirguistão.
15 É interessante perceber que a ideia xamânica por trás de Tchal-Kuiruk encontra fundamento similar na
tradição do Vodu haitiano, em que a individualidade do praticante — alcunhado de “cavalo” — deve ser abdicada para
que a personalidade de um espírito superior — que “cavalga” o praticante — se manifeste.
16 Em poemas com temática de cavalaria de Luigi Pulci e Ludovico Ariosto, e, em tom jocoso, com Chaucer em
Troilo e Criseide (1380) e em Contos de Canterbury (1286).
17 Como bem observam Chevalier & Gheerbrant (2002, p. 205).
18 Um cavalo alado relacionado às virtudes espirituais.
19 Idem, Ibidem, p. 205.
20 Idem, Ibidem. p. 205.
21 Sabe-se que o escritor possuía vasto conhecimento acerca de práticas religiosas diversas.

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Para Riobaldo, para sempre reverbera aquela canção, certeza de sua
predestinação, de que tudo estava escrito: a vida de jagunço, o amor proibido
e sem medidas, o pacto, a chefia do bando (reiteração da hybris), a morte de
Hermógenes e Diadorim, o abandono da vida de jagunçagem, o reencontro
com Zé Bebelo, o casamento com Otacília.

Fui o chefe Urutú-Branco – depois de ser Tatarana e de ter sido o jagunço


Riobaldo. Essas coisas larguei, largaram de mim, na remotidão. Hoje eu
quero é a fé, mais a bondade… Assim, aquela outra- que o senhor disse:
canção de Siruiz- só eu mesmo, meu silêncio, cantava (ROSA, 1986, p. 482).

A canção de Siruiz é tão mágica quanto o cavalo Siruiz, e montar neste último
é cavalgar os versos da canção — capaz de percorrer o ar, tal qual Pégaso, e
o submundo, tal qual Tchal-Kuiruk —, assumi-los todos para si, embrenhar-se
em seus desvios obscuros e em sua energia mágica e oculta. A canção é um
cavalo poderoso.
A trajetória do herói está traçada e é impossível fugir dela. Ficam para sempre
as neblinas rosianas, as neblinas de Siruiz.

THE MATERIALIZED ECHO: CONSIDERATIONS ABOUT THE


PROPHETIC PURPORT OF THE SONG OF SIRUIZ

Like the mysterious dreams that disturb Joseph son of Jacob in the biblical
passage, Guimarães Rosa, in his The Devil to Pay in the Backlands (1956), also
“establishes a complete disorder in Riobaldo’s heart” (REINALDO, 2005) with
a song performed by a faceless and almost absent individual; by an immaterial
voice that echoes through the night and pulsates in Riobaldo throughout his entire
journey. The song of Siruiz deals with the search for knowledge about oneself
and others by means of deciphering a puzzle that includes the “dustnado” of
Riobaldo’s own existence. When he hears the song, he has his “initiation”, he
tastes the forbidden fruit and dives into the “backwaters” of the San Francisco
river, leaving behind the quiet life in company of his wealthy godfather Selorico
Mendes to abandon himself to his destiny and to the adventures of both his
henchman life and his forbidden love for Diadorim, the “virgin lady”. Riobaldo,
then, meanders into the great wild which is the world. His path is traced: a path
unknown even to him. He cannot escape from the power of that song and, thus,
from his own destiny.

Keywords:

Guimarães Rosa; song of siruiz; prophecy.

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REFERÊNCIAS

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vida e da obra de João Guimarães Rosa. Rio de Janeiro: FAPERJ, 2002.

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de Janeiro: José Olímpio, 2002.

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em Grande Sertão: Veredas. Belo Horizonte: Autêntica, 2001. 176 p.

REINALDO, Gabriela. Uma cantiga de se fechar os olhos…: mito e música em


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______. A mitopoiesis na canção de Siruiz de Grande Sertão: Veredas. PUC/SP.


1998. Dissertação de Mestrado. Disponível em: <http://www6.ufrgs.br/infotec/
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Revista eletrônica de crítica e teoria de literaturas. Dossiê: oralidade, memória
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MARTINS, José Maria. Guimarães Rosa: o alquimista do coração. Petrópolis:


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Seminário Internacional Guimarães Rosa (1998: Belo Horizonte). Veredas de


Rosa. Belo Horizonte: CESPUC, 2000.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 122
‘Stagnus Ignis’: O Apocalipse reescreve
Homero! “horizontes homéricos” na narração
religiosa e mítica de textos e contextos
apocalípticos (Ap 20, 14-15)?

Pedro Paulo Alves dos Santos

Resumo

Através da expressão apocalíptica ‘LAGO DE FOGO’, única no Novo Testamento


cristão, pode-se ler no texto grego do último livro canônico cristão formas de
intertextualidade com as temáticas da aventura homérica da viagem de Odisseu
ao mundo hádico, aos subterrâneos da Morte e da memória? De que maneira o
texto do Apocalipse refere-se ou alude ao evento homérico da superação das
fronteiras dos vivos, em busca da palavra profética, encenando o mito, como
palavra que justifica e torna apta a vida e a prática social em busca de novos
efeitos? Pois, se no capitulo 1,18, o protagonista da narração cristão se auto-afirma
como o Senhor (kyrios), que tem as chaves do Hades, (et vivus et fui mortuus et
ecce sum vivens in saecula saeculorum et habeo claves mortis et inferni), que
significado possuiria a alusão do poeta cristão ao mistério do “lago de fogo”
(Lymnes tou pyrou), que conclui a narrativa do Cordeiro, como viagem homérica?

Palavras-chave:

Literatura crista e cultura Clássica – Hades na literatura apocalíptica –


Intertextualidade e teorias do Insólito
A pretensão de re-ler o mito. Esta comunicação se insere no contexto do
‘Symposium’ “Escrever e reescrever na Antiguidade: Entre a Magia e o Humor,
Terror e Julgamento”, emoldurada na perspectiva mais ampla do Congresso
sobre o Insólito em suas “Vertentes teóricas e ficcionais”. Tocamos aqui em algo
fascinante: O tema sobre os mitos, como modelos geradores do desenvolvimento
‘tradicional’ da literatura antiga. E mais ainda, levantamos a seguinte questão:
De que maneira o mito grego antigo (narração) ultrapassa as fronteiras das
narrações bíblicas? A expressão ‘Lago de Fogo’ em Ap 20 (vv.14-15) seria, por
sua ‘originalidade’, uma possível ‘invasão’ da viagem homérica na trama cristã?
A atual comunicação por isso ocupar-se-á primeiramente da questão da natureza
do mito antigo, como narração que se reinscreve na narrativa antiga, formando
os elos da literatura clássica. Os conceitos de ‘intertextualidade’ (BETTINI,
1989) e ‘alusão’ (CONTE e BARCHIESE, 1989) aplicados a este processo
na “criação poética’ da antiguidade servirão de premissas ao exame dessa
hipótese, analisada na segunda parte: Isto pode ter ocorrido em Ap 20,14-15?

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I. Intertextualidade, Alusão e Mito: Estruturas da Escrita poética?

Reconhecer que processos de ‘reescrituração’ do mito caracterizariam a


literatura na antiguidade clássica se baseia no fato que o mito é ‘uma narração
permanente, aberta, vazada, e aqui reside sua ‘originalidade’.
As relações entre o mito e o desenvolvimento da literatura clássica fundam-se
na tendência estrutural da escrita antiga: insistir na progressiva elaboração de
um ‘corpus’ já conhecido de estórias, os mitos!

Ecco allora la riflessione che potremmo azzardare. Che la letteratura antica, nata
dalla composizione orale e prossima, ancora, alla sua matrice, ne mantenesse
ativa una fondamentale tendenza strutturale: quella di puntare alla progressiva
rielaborazione di un corpus già noto di storie – i miti ... (BETTINI, 1989, p. 24.).

O poeta (autor) antigo reescrevia o mito oralizado, encenado e picturado em


busca de novos ‘efeitos’. Reescreviam-se os próprios temas, combinando em
histórias “novas” elementos e funções já conhecidos e pertencentes ao gênero
em questão, fosse o romance ou a comédia.
É o poeta antigo confiando a eficácia do texto não à ‘originalidade’ da invenção
temática ou de enredo (uma pretensão da criação moderna, alias, romântica),
mas aos efeitos sociais de reescrita do mito.

(...) In altre parole, per ciò che riguardava l’intreccio, l’autore antico generalmente
si preocupava piú di ri-scrivere che non di scrivere.(...). Il fatto è che la
letteratura clássica e una letteratura che vive di mito. Diciamo meglio: è una
letteratura che, non è capace di concepire questa operazione se non nella
forma di chi racconta un mito già noto ((BETTINI, 1989, p. 16).

Temos diante dos olhos não somente aspectos da ‘práxis’ literária clássica,
mas alguns elementos caracterizadores da natureza produtiva e fecunda da
narrativa mítica.
De um lado, o escritor e autor antigos que reescrevem os mitos para mantê-
los vivos, e contá-los novamente. Do outro, sabemos que o ‘discurso mítico’
caracteriza-se exatamente por não existir em ‘forma definitiva’, uma vez por todas:
A sua ‘existência’ é preferivelmente uma existência genérica, uma existência
de ‘corpus’, algo que resulta do conjunto de suas variantes.

La letteratura clássica, sì è detto, tende più ad agire su soggetti noti che


non ad inventarne radicalmente dei nuovi. Presa da questo punto de vista
- ma solo da questo punto di vista, è chiaro – essa rassomiglia dunque alla
produzione favolistica. Anche qui, l’arte del narratore consiste più nel sapere
raccontare ogni volta dele fiabe che fanno già parte di um patrimônio noto che
non nell’inventare soggetti nuovi. E anche quando ciò avviene, ci si accorge
facilmente che l’invenzione corrisponde piú a una diversa combinazione di
elementi (o “funzioni”) già presenti nel corpus virtuale degli intrecci che non
creazione di storie assolutamente nuove (BETTINI, 1989, p. 20).

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Eles permanecem como lugares da memória e da cultura que se recriam pela
variação do mesmo, em busca do prazer de novas recepções e interpretações
do mito. Mesmo a potente noção de contar uma história que coincidia com
aquela da comunidade (Nação, classes, Estado) passa por ocasiões fixas,
trazendo sempre à tona novas possibilidades de compreender o que já se
ouvira, já se sabia, mas que se modificava a cada reescritura, na encenação,
na pintura, na mudança de gênero, no humor que invade o desejo de contar
uma nova história.

(...) il testo mítico, con il suo intreccio e i suoi contenuti, nel mondo antico ha
anche un secondo campo di applicazione- non scritto, ma dovremmo dire, o
comunque narrato: ma agito. Nel mondo, infatti, anche molte pratiche della vita
sociale si trovavano ad avere alle spalle un racconto, o insieme di racconti, a
carattere mítico: e nella loro ripetizione, tali pratiche possono essere dunque
analizzate, o viste, come “ri-scritture” di quel complesso mítico che esse per
l’appunto si trovano ad agire (BETTINI, 1989, p. 24).

Recontando o mito, o poeta o reescreve no contexto da ação social, criando


‘variações’, que não existem somente na literatura, mas baseando-se numa
noção ampliada de ‘texto’ (histórias) que comporta a experiência vivida (ação)
em permanente mudança. São as ‘ações’ (situações vitais) que reescrevem
o mito. E aqui, o (relato) mito reescrito exibe sua força própria. Somente ele
suporta esta ‘prática’ social, garantida em sua plena ‘aceitação’, enquanto relato
crível, confiável por uma comunidade interpretante.
O contexto do mito (grego) em suas reescrituras nos referenda a situar toda esta
discussão literária no espaço social romano, de práticas bem determinadas,
nas quais a arte, a literatura e a própria filosofia são entendidas como um
verdadeiro ‘agir estético’.
O mito se apresenta como a lógica da ação social, que no Rito e na Religião
encontram suas reescrituras máximas, de relevância social. Reescreve-se o
mito, como narração socialmente confiável (VERNANT), para reexperimentar
sua cumplicidade com a atualidade de praças diversas, de necessidades de
construção de sentido que se desenvolve em contextos diversos.
Deste modo, o mito haure da natureza de ‘documento cultural’ a sua autoridade
de fonte da ‘reescritura’ de histórias interessantes à diversidade e à variação
de contextos sociais.

Il mito come documento culturale: che agisce e viene “riscritto”, in determinati


comportamenti della vita sociale. Stiamo uscendo, come si diceva, dall’universo
letterario per entrare in quello, più ampio, della cultura, e stiamo alargando la
mostra nozione di “texto” da quella tradizionale a quella lotmaniana, di “testo
di cultura”. Ma è bene fare una precisazione, qui come là, resta comunque
fisso um carattere fondamentale del mito: la sua ‘forza’, il suo essere un testo,
come dire, piú importante degli altri. Il mito è qualche cosa di cui si può fidare,
qualche cosa che può essere utilizzato quando se ne senta la necessità

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 125
(...)Il fato è che, questo vocabolario del discorso mítico, ha la straordinaria
capacità di contenere lessemi buoni tanto per la letteratura quanto per la
vita (BETTINI, 1989, p. 29).

A vida e a literatura (política, ética e religião) se encontram bem confortáveis


nas narrações do mito, como reescritura do passado em sua multiplicidade de
formas e significações. E aqui cabe referir-se não somente à ‘recontextualização’
da narração mítica, que indica um elemento de permanente mudança, mas
àquele da tradição, expresso nas práticas da arte alusiva, tão conhecida na
antiguidade clássica, sobretudo, romana.
Aqui a ‘intertextualidade’ exibindo-se no ‘prazer da alusão’, traz ao rigor das
discussões, os arcabouços teóricos que explicitam a ‘criação literária antiga’,
como ‘reescritura do mito’:

(...) conviene subito ammetere che l’allusione letteraria – lo scrittore che cita un
precedente – è un fatto di passione e sentimento. I poeti tendono a presentarsi
come amanti della poesia che hanno letto e che ricordano. Ricordare un
modelo, nel senso di citarlo, serve a riprodurre nella scrittura la passione, la
sollecitazione, prodotta dalla lettura. O poeta che ama i suoi predecessori
tanto da offrire loro la parola, vuole in realtà essere amato almeno altrettanto
dai suoi lettori. Essi, i lettori, assistono ad un atto di passione, ed imparono
dal poeta che cosi dà un buon esempio (CONTE e BARCHIESE, 1989, p. 81).

Na análise da ‘arte alusiva’ da poética antiga, a memória do poeta é um mecanismo


eficiente de produção de sentido, ou melhor, de reescritura do texto aludido,
mas que depende, para a sua eficácia, da memória dos leitores (ouvintes, na
antiguidade) em vista da ‘produção de efeito’ estético provocado pela ‘arte
alusiva’: ler na ‘paixão’ do transformador (o poeta/tradutor) as vicissitudes do
mito lido e reexperimentado em um novo contexto social e de sentido.
A alusão por isso refere-se a um fenômeno que estabelece não somente uma
operação ‘intersubjetiva’, autor e leitores, mas uma relação intertextual, que
coloca a leitura e a escritura no horizonte do ‘diálogo’ entre textos, alias, entre
‘modelos’ textuais:

L’idea della letteratura come pratica intersoggettiva viene utilmente affiancata


da quella della lettteratura come intertestualità. Ogni testo letterario si configura
allora come assorbimento e assimilazione di altri testi, soprattutto come
trasformazione di quelli (questo ci sembra nell’intertestualità il momento piú
importante: la trasformazione) (CONTE e BARCHIESE, 1989, p. 87).

Seguindo a lógica da alusão, compreende-se melhor que a literatura é um


sistema criativo, na qual cada passagem, isto é, cada reescritura (suposta a
releitura) do texto mítico implica na ação de ‘transformação’ em outro texto.
Houve neste processo da tradição a ‘absorção’ e a assimilação de temas e
propósitos das narrações míticas.

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Do que decorre a necessidade de uma ‘vida literária’. Isto é, do contexto de
produção literária numa sociedade concreta é que os leitores podem ser aptos
à compreensão e ao manuseio de mecanismos literários dos gêneros, que os
torna ‘legíveis’ em vista de uma recepção orientada a efeitos bem precisos.

Dall’altra parte, la definizione di ‘arte allusiva’ è prevalentemente centrata sull’altro


verso del fenômeno: cioè insiste molto sulla cooperazione interpretativa del
lettore. Averne tenuto conto non è fra i meriti piú piccoli del saggio di Pasquali
che ha reso popolare la formula: ‘le reminiscenze possono essere inconsapevoli;
le imitazioni, il poeta può desiderare che sfuggano al pubblico; le allusioni
non producono l’effetto al produtto voluto se non su un lettore che si ricordi
chiaramente del testo a cui si riferiscono (CONTE e BARCHIESE, 1989, p. 87).

Os processos de leitura na antiguidade romana, em particular, exigiam uma


‘cooperação interpretativa’ entre textos aludidos e leitores. Dos mecanismos da
‘alusão’ surgem os ‘efeitos’ (estético-culturais) pretendidos, porque estes supõem
a existência de uma ‘prática de leitura’ que se realiza no âmbito de ‘sistemas
literários’, como guias de leitores (intérpretes) no circuito de espaços literários
e sociais determinados. A ‘alusividade’ pressupõe a competência de leitura:

Di fatto, un’opera può essere letta solo in conessione con altri testi o contro
di loro. L’intertestualità è la dimensione in cui se traspassa dalla “produzione
del texto a mezzo testi” alla ricezione orientata. In questa prospettiva, il
destinatario che si avvicina al testo – lettore o imitatore, che è anche un
tipo di lettore – è già lui stesso una pluralità di altri testi, e anche di codici.
L’intertestualità allora, lungi dall’essere un curioso effetto d’ecco, definisce
la condizione della legibilità letteraria (CONTE e BARCHIESE, 1989, p. 88).

O pressuposto do pensamento intertextual é que uma ‘obra’ só pode ser lida


em conexão com outros textos, mesmo que seja em contraste com estes. Neste
domínio, o leitor, seja ele o poeta, o tradutor, ou o publico alvo são testados
em sua competência de legibilidade literária na medida em que ‘decifram’
esta selva de textos ‘pluri-textuais’, isto é, cada texto é uma ‘rede complexa’
de outros textos:

Al grado in cui un’opera letteraria è intertestuale, essa diventa come distorta,


persino opaca: como un mito, per esempio. Diventa quase una rete stradale
con cartelli indicatori che segnalano paesi, strade, luoghi, che retrocedono
per cosi dire all’infinito. In tal modo nel testo sta nascosta una pluralità di
altri testi, di codici infiniti (o piú esattamente perduti all’evidenza) (CONTE e
BARCHIESE, 1989, p. 88-9).

II. O Lago de Fogo no Apocalipse e Mito Grego?

Nesta segunda parte de nossa comunicação desejo expor a ‘possibilidade’ de (re)


pensar a interpretação de textos bíblicos à luz de teorias literárias contemporâneas,
aplicáveis à produção e aos processos literários antigos. E assim, examinar as

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 127
relações entre a escuta e a repetição do ‘mito’, enquanto narração tradicional
na esfera da ‘produção’ de textos cristãos no fim do primeiro século desta era
(REESE, 1990, THISELTON, 1992, SANTOS, 2008). Escolhi assim intrigante
expressão “Stagnus Ignis” utilizada no contexto de Apocalipse 20, 10-15:

10 et Diabolus, qui seducebat eos, missus est in stagnum ignis et sulphuris,


ubi et bestia et pseudopropheta, et cruciabuntur die ac nocte in saecula
saeculorum.11 Et vidi thronum magnum candidum et sedentem super eum,
a cuius aspectu fugit terra et caelum, et locus non est inventus eis. 12 Et vidi
mortuos, magnos et pusillos, stantes in conspectu throni; et libri aperti sunt.
Et alius liber apertus est, qui est vitae; et iudicati sunt mortui ex his, quae
scripta erant in libris, secundum opera ipsorum. 13 Et dedit mare mortuos,
qui in eo erant, et mors et infernus dederunt mortuos, qui in ipsis erant; et
iudicati sunt singuli secundum opera ipsorum. 14 Et mors et infernus missi
sunt in stagnum ignis. Haec mors secunda est, stagnum ignis. 15 Et si
quis non est inventus in libro vitae scriptus, missus est in stagnum ignis.()

A presença exclusiva da tradição ‘joanina’ na expressão “Lago de Fogo”,


presente por no capítulo 20, permitira que se lesse no texto grego do último
livro canônico cristão uma forte marca de ‘intertextualidade’(KRISTEVA, 1984)
com as temáticas da aventura homérica, na viagem de Odisseu ao mundo
Hádico, aos subterrâneos da Morte e da memória? De que maneira o texto do
Apocalipse refere-se ou alude ao evento homérico da superação das fronteiras
dos vivos, em busca da palavra profética, encenando o mito, como palavra que
avalizava a vida e a prática social, em busca de novos efeitos? (
Pois, se no capítulo 1,18, o protagonista da narração cristão se auto-afirma
como o Senhor (kyrios), que tem as chaves do Hades (... et vivens et fui mortuus
et ecce sum vivens in saecula saeculorum et habeo claves mortis et inferni.),
que significado possui a alusão do poeta cristão ao mistério do “lago de fogo”
(Lymnes tou pyrou), que conclui a narrativa do Cordeiro (Apoc 5-22), como
viagem homérica?
Segundo Lichtenberger (1998) no conjunto dos escritos do Cristianismo antigo,
o Novo testamento, o Apocalipse seria aquele mais ‘pirotécnico’, pois das 73
citações entre os 28 livros, 26, pertencem ao último livro do cânon.
O termo fogo (pyros) contempla ao menos dois campos semânticos diversos,
aquele denotativo, sólito, isto é, os campos do artesanato, da agricultura, e
outro metafórico e insólito: o fogo estaria conjugado nestes termos aos temas
do juízo, da purificação e da condenação eterna.
No conjunto metafórico, o ‘fogo’ pode ainda dividir-se em duas situações: a)
pertence à identidade divina; b) instrumento da ação da justiçadora de Deus.
As citações do Apocalipse dialogam com a literatura mais antiga do Antigo
Testamento, entre aquela canônica (Dn 7) e os apócrifos de Henoc, o Apoc
Baruc. (STRACK-BILLERBECK, 1994).

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É o que se percebe nas citações de Ap 1,14 em suas relações e diferenças
com as perspectivas de Dn 7,9. O mesmo ocorre na citação de Ap 4,6, na qual
aparece a famosa imagem do mar de cristal mesclado com fogo(!).
O livro do Apocalipse explora de forma excelente o papel do fogo na intervenção
escatológica de Deus. Para o autor ou a tradição do livro, o fogo tem um papel
no processo soteriológico no qual está inserido, como uma linguagem apta à
exploração do imaginário do fim do mal e a eliminação dos agentes maléficos
no campo da história.
Por isso, o fogo está relacionado, não só no Apocalipse joanino, mas nas
passagens escatológicas do Novo Testamento ao inferno. Trata-se do castigo
por antonomásia aos maus: o fogo do inferno.
No limiar da narração épica no livro, a unidade 20-22, epílogo da travessia do
Cordeiro, ocorre então, antes da narrativa do casamento ou festas nupciais do
Cordeiro e da esposa (Ap 21), o anúncio da condenação dos inimigos (I Cor
15): eles serão lançados no lago de fogo (limnen tôu piros) nos versículos14 e
15 do capitulo 20.
Afogar-se no mar de fogo é a ‘segunda morte’ (déuteros thánatos)

In questo quadro viene spiegata l’espressione Et mors et infernus missi sunt


in stagnum ignis. Haec mors secunda est, stagnum ignis ( a segunda morte),
dopo essere già stata adoperata due volte (2,11; 20,6), tramite l’identificazione
con lo “stagno di fuoco” (stagnum ignis) in cui vengono gettati la morte e il
mondo-dei-morti (20, 14b) (DOGLIO, 2005, p.314).

Para a maioria dos autores modernos permanece como ‘ordinário’ ou sólito


buscar as referências de interpretação na soleira dos escritos judaicos,
sobretudo, aqueles insólitos da tradição targúmica e rabínica, isto é, no ‘corpus
interpretans’ dos textos sagrados do Judaísmo (oficial)

Le fond le plus ancien n’était donc autre que les mythes proto-sémitiques
communs à Babylone, à Canaan, et aux ancêtres aramèens des Hébreux.
Plus tard, après la captivité de Babylone, le contact avec les Perses, dont
l’action religieuse s’étendit, avnt Alexandre, très profondément dans l’Asie
Mineure, dut encore enricher les traditions populaires. On croit qu’au moins
l’angelologie d’après l’exil s’en est ressentie. Enfin, dans bien des cas, de
chercher à démêler ces diverses influences. Au reste, l’hellénisme des derniers
siècles s’était mêlé lui-même à tant d’éléments orientaux , comme on le voit
surtout à as mythologie astrale, que le plus sage est de s’em tenir, pour
caractériser les sources du symbolisme em cause (...) (ALLO, 1921, XXXII).

Estes buscam justificar a presença do ‘stagnus ignis’ partir das teorias da


‘Quellesforschung’ (LAPLANCHE, 1992) ou ao menos a compreensão desta
imagem na lógica narrativa dos Capítulos 20-21 do Livro do Apocalipse.

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Le formule per indicare tale negativa condizione escatologica non sono
originali dell’Apocalisse comme aviene per la ‘prima rissurrezione’, ma
appartengono al linguaggio dell’ambiente giudaico di quel tempo. Anzitutto
l’immagine mítica del lago infernale in cui bruccia lo zolfo è comune nella
tradizione apocalittica: esso non indica annientamento, quando piuttosto
perpetua dannazione; è nominato sei volte con insistenza nell’ultima parte
dell’apocalisse e alla fine, chiudendo la sezione 20,1-21,8, sembra svolgere
una funzione di sintesi ammonitiva, mostrando come ‘la parte’ dei peccatori
sia nello stagno di fuoco (...) (DOGLIO, 2005, p.314).

Segundo Doglio, as fórmulas para indicar uma escatologia negativa, baseada


no lago de fogo, não seriam originais do Apocalipse, ao contrário do que ocorre
na seção anterior com a expressão ‘Prima Rissurrezione’ (Beatus et sanctus, qui
habet partem in resurrectione prima! 20,5). Esta atmosfera do Mal condenado
ao ‘lago de fogo’ pertenceria ao ambiente judaico heterodoxo daquele tempo
(COLLINS e KUGLER, 2000).
As considerações eruditas sobre a procedência literária da expressão ‘stagnus
ignis’, sem a compreensão da ‘poetae intentio’ (autor) não servem aos leitores
para ativar-lhes a plena leitura (intertextualizada) do texto. Sobretudo, se eles
não forem judeus, ou ao menos de mentalidade ‘ortodoxa’, quais seriam os
‘efeitos’ desta alusão ao mito (narrativa do fim do mal)? Não seria provável que
os judeus helenizados e os cristãos de origem ‘pagão’ (Ásia Menor) tivessem
familiaridade com o mito homérico (NOCK, 1973)?

‘Stagnus Ignis’: the Apocalypse rewrites Homer?


«Homeric horizons» in religious and mythical
narration of apocalyptic texts and contexts
(Rev 20: 14-15).

Abstract

Through the apocalyptic expression ‘LAKE of FIRE’, unique in the Christian New
Testament, can be read in the Greek text of the last canonical book Christian forms
of Intertextuality with the themes of Homeric adventure of Odysseus ‘ journey to
the underground world of the Hades, to Death and memory? That way the text of
Revelation refers or alludes to the Homeric event of overcoming of borders of the
living, in search of the prophetic Word, re-enacting the myth, as Word that justifies
and makes it able to life and social practice in search of new effects? Therefore,
if in Chapter 1.18, the protagonist of the narration Christian self presents as the
Lord (kurios) which has the keys of Hades, (et vivus et went mortuus et ecce in
saecula saeculorum et vivens sum habeo claves mortis et inferni), what would the

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allusion of the Christian poet to the mystery of “Lake of fire” (Lymnes tou pyrou),
that concludes the narrative of the Lambas Homeric journey?

Keywords:

Christian literature, Classical culture; Hades in the apocalyptic literature;


Intertextuality and Unusual theories.

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Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 132
O ESPAÇO NA CONSTRUÇÃO DO FANTÁSTICO NO CONTO
“NATAL NA BARCA”, DE LYGIA FAGUNDES TELLES

Rosana Gondim Rezende Oliveira

Resumo:

O presente trabalho propõe-se a estudar as espacialidades no conto “Natal na


barca”, de Lygia Fagundes Telles, observando suas relações com a instauração
do fantástico. Pretendemos também focalizar a capacidade inventiva da escritora
de mesclar o conto de atmosfera ao conto de personagem, evidenciando que
o espaço/ambiente contribui para acentuar uma atmosfera de solidão e morte,
associada a um perfil de incompletude e solidão das personagens. Se os espaços
são bastante significativos, assim também o são as imagens, articuladas pelo
cromatismo simbólico da narrativa de Lygia Fagundes. O verde, reconhecido pelo
senso comum como cor da esperança, da imaturidade, assume, nesse conto,
um significado ambíguo – fruto da mistura do azul com o amarelo, equilibra-se
entre a vida e a morte, entre a alegria e a morbidez. A presença do fantástico
evidencia que nem tudo pode ser explicado e detalhado. Assim, um misticismo
religioso subjacente se mostra, mas se os fatos religiosos são dogmáticos,
eles acabam por encontrar no fantástico – instaurado substancialmente pelo
espaço – uma análise racionalizada pela lucidez científica. Nossos principais
referenciais teóricos serão os estudos de Michel Foucault, de Mikhail Bakhtin,
de Chevalier e Gheerbrant e de Todorov.

Palavras-chave:

Conto; insólito; espaço narrativo; fantástico.

“Ali estávamos os quatro, silenciosos como mortos num antigo barco de mortos
deslizando na escuridão. Contudo estávamos vivos. E era Natal.”

(LFT)

Um olhar atento sobre as incontáveis análises de obras literárias em prosa revela-


nos que, até o século XIX, as preocupações voltavam-se para o tempo narrativo.
A partir do século XX, talvez como um reflexo da preocupação do homem em
diminuir o espaço ocupado pelos objetos para aumentar o espaço humano,
os estudos deslocaram-se para as espacialidades, que, surpreendentemente,
ofereceram-nos um campo rico e vasto de relações nos planos físico e mental.
Michel Foucault, em sua conhecida conferência “Outros espaços”, proferida
no Círculo de Estudos Arquitetônicos, em 1967, afirma: “A época atual seria

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talvez de preferência a época do espaço. Estamos na época do simultâneo,
estamos na época da justaposição, do próximo e do longínquo, do lado a lado,
do disperso” (2001, p. 411).
Figurar o espaço, em uma análise, é perceber as relações entre os vários
posicionamentos de uma sociedade. O que somos nós senão seres que se
classificam segundo o espaço ocupado? Estruturas de um todo, estabelecemos
conjuntos de relações também identificadas pelo espaço. Há de se recordar a
antiga pirâmide hierárquica na sociedade feudal, cujo topo afunilado representava
o poder absoluto. Na Modernidade1, mais especificamente a partir do século
XX, incomodados pelas fronteiras da estrutura social, filósofos, sociólogos e
literatos passaram a refletir e questionar, por exemplo, sobre a alteridade, que,
grosso modo, traduz-se pela interferência de um ser no espaço do outro, de
certa forma, intrusa, oblíqua, visando à sobreposição.
Em se tratando de arte, é necessário aceitar que habitamos o espaço da ficção,
portanto, sem compromisso aparente com a realidade, embora possa fazê-la
emergir com ferocidade. Intencionalmente ou não, a literatura trabalha no cotidiano
do homem, transformando comportamentos e relações. Segundo Beatriz Sarlo,

[...] a literatura é, pelo menos desde o século XIX, quase sempre incômoda
e, por vezes, escandalosa. Acolhe a ambigüidade ali onde as sociedades
querem bani-la; diz, por outro lado, coisas que as sociedades prefeririam
não ouvir; com argúcia e futilidade, brinca de reorganizar os sistemas
lógicos e os paralelismos referenciais; dilapida a linguagem porque a usa
perversamente para fins que não são apenas prático-comunicativos; cerca
as certezas coletivas e procura abrir brechas em suas defesas; permite-se
a blasfêmia, a imoralidade, o erotismo que as sociedades somente admitem
como vícios privados; opina, com excessos de figuração ou imaginação
ficcional, sobre história e política; [...] falsifica, exagera, distorce porque não
acata os regimes de verdade dos outros saberes e discursos. Mas nem por
isso deixa de ser, a seu modo, verdadeira. (1997, p.28)

Como espelho das relações humanas, a arte literária nos apresenta obras em
que este elemento narrativo – o espaço – recebe tratamento de destaque. É o
caso de “Natal na barca”, conto que integra a obra Antes do baile verde, de
Lygia Fagundes Telles.
Escrito em 1958, o conto “Natal na barca” é narrado em 1ª pessoa; de acordo
com a terminologia de Gérard Genette, narrador homodiegético, isto é, conta
uma história de que participa e se destaca, mas não como protagonista.
O primeiro período da narração já se apresenta como um recurso para despertar
a curiosidade do leitor, uma vez que a personagem sugere certo grau de mistério
no acontecimento em que esteve envolvida: “Não quero nem devo lembrar aqui
por que me encontrava naquela barca.” (TELLES, 1982, 74)

1 “A modernidade”, escreveu Baudelaire, em seu artigo “Sobre a Modernidade” (publicado em 1863), “é o


transitório, o efêmero, o contingente; é uma metade da arte, sendo a outra o eterno e o imutável.” (1996, p. 25)

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Considerando-se que Lygia Fagundes Telles empresta sua voz a personagens
ilhadas em seu sofrimento, pode-se afirmar que o impacto da apresentação do
conto trava uma relação de intimidade entre personagem e leitor, pois o que
se lerá parece tratar-se de um “segredo” revelado, um desabafo, tornando-se
bastante sugestivo esse tom confessional que a narrativa assume. Wolfgang
Iser, ao teorizar sobre o leitor implícito, diz:

Tal ponto de vista (do artista) situa o leitor no texto; desse modo ele consegue
construir o horizonte de sentido, ao qual é conduzido pelas perspectivas
matizadas do texto. Mas como o horizonte do sentido nem copia algo dado
do real, nem do hábito de um público intencionado, o leitor deve imaginá-
lo. Apenas a imaginação é capaz de captar o não-dado, de modo que a
estrutura do texto, ao estimular uma seqüência de imagens, se traduz na
consciência receptiva do leitor. (1966, p.79)

Uma segunda observação é a aproximação intertextual que pode ser feita entre
esse início e o início do conto “Missa do galo”, de Machado de Assis: “Nunca pude
entender a conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu
dezessete, ela trinta.” (1977, p.75). E as semelhanças não se limitam à apresentação
apenas; em ambos os contos, os narradores-personagens lançam mão de detalhes
significativos que reforçam a relevância daquele momento em suas vidas.
Sabemos que as personagens, presentes na barca, são quatro: um velho – “um
bêbado esfarrapado” (p. 74) que conversava com “um vizinho invisível” (p. 74),
uma mulher “jovem e pálida” (p. 74) que carregava uma criança “enrolada em
panos” (p. 74) e o narrador, uma mulher –, o que só é possível saber quase no
final do conto pela seguinte declaração: “[...] era como se estivesse mergulhada
até o pescoço naquela água.” (TELLES, 1982, p.77) (grifo nosso)
Nessa linha do mistério, observa-se que a barca encerra um cenário lúgubre:
“desconfortável”, “tosca”, “tão despojada”, “tão sem artifício”, “grade de madeira
carcomida”, “chão de largas tábuas gastas”, abria um “sulco negro” no rio, “em
redor de tudo era silêncio e trevas”, os passageiros eram iluminados com a “luz
vacilante” de uma lanterna. Observe-se que a caracterização do ambiente se
dá entremeada à narração do comportamento do protagonista, o que se traduz,
de acordo com Osmar Lins, em uma ambientação franca, “que se distingue
pela introdução pura e simples do narrador” (1976, p.79), e que deste espaço/
ambiente emerge o fantástico.
Aproveitando aqui as observações de Foucault, em sua reflexão “Outros
espaços”, reconhecemos que a barca é uma heterotopia, a saber:

Há, igualmente, e isso provavelmente em qualquer cultura, em qualquer


civilização, lugares reais, lugares efetivos, lugares que são delineados na
própria instituição da sociedade, [...] (1984, p.415)
[...]

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[...] se imaginarmos, afinal, que o barco é um pedaço de espaço flutuante,
um lugar sem lugar, que vive por si mesmo, que é fechado em si e ao
mesmo tempo lançado ao infinito do mar [...] ao mesmo tempo não apenas,
certamente, o maior instrumento de desenvolvimento econômico (não é disso
que falo hoje), mas a maior reserva de imaginação. O navio é a heterotopia
por excelência. Nas civilizações sem barcos os sonhos se esgotam, a
espionagem ali substitui a aventura e a polícia, os corsários. (1984, p.421-22)

Assim, pela análise do título, podemos afirmar que há nele um jogo significativo
entre tempo e espaço. Tal jogo inscreve ficcionalmente aquilo que Mikhail
Bakhtin concebeu como cronotopia:

No cronotopo artístico-literário ocorre a fusão dos indícios espaciais e


temporais num todo compreensivo e concreto. Aqui o tempo condensa-se,
comprime-se, torna-se artisticamente visível; o próprio espaço intensifica-
se, penetra no movimento do tempo, do enredo e da história. Os índices
do tempo transparecem no espaço, e o espaço reveste-se de sentido e é
medido com o tempo. (1990, p. 211)

Com mais ousadia, podemos afirmar que o tempo se encerra em um espaço, pois
se trata de uma data religiosa – Natal – que se passa em uma barca. Guardadas
as devidas proporções, a barca acaba por assumir uma simbologia ambígua:
em primeiro lugar, trata-se de um lugar real, efetivo, um meio de transporte
que liga o subúrbio à cidade ou o interior à metrópole, pois a personagem que
resguarda mistério – uma mulher “jovem e pálida” – residia em Lucena, cidade
do interior da Paraíba, e, a conselho do farmacêutico, levava seu filho a um
médico especialista.
Em outra análise, tal barca pode adquirir um significado místico se a enxergarmos
como símbolo de viagem, travessia realizada por vivos ou mortos. O dicionário
de símbolos nos adverte para interessantes simbologias da barca:

Na arte e na literatura do antigo Egito, acreditava-se que o defunto descia


para as doze regiões do mundo inferior numa barca sagrada. (CHEVALIER
E GHEERBRANT, 1999, p.121)
[...]
Na tradição cristã, a barca dentro da qual os crentes ocupam seus lugares
a fim de vencer as ciladas desse mundo e as tempestades das paixões é a
Igreja. A esse propósito, pode-se evocar a Arca de Noé, que é a prefiguração
da Igreja. (CHEVALIER E GHEERBRANT, 1999, p. 122)

Logo, se considerarmos a vida como uma navegação perigosa, a barca é um


símbolo de segurança, afinal, não era a primeira vez que aquela mulher, com
“aspecto de uma figura antiga” a utilizava: “Já tomei esta barca não sei quantas
vezes, mas não esperava que justamente hoje...” (TELLES, 1982, p.75)
Remetendo-nos, ainda, à teoria dos espaços, de Michel Foucault, temos que
as embarcações são, conforme já evidenciamos, espaços que permitem
o desencadeamento dos sonhos. As civilizações sem barcos interditam os

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 136
sonhos e toda a complexa e rica imaginação que deles advém. No caso do
conto analisado, a espacialidade da barca deflagra a ambientação fantástica,
instaurando a possibilidade da emergência do insólito na narrativa. Segundo a
própria narradora, a barca aludia à morte: “ali estávamos os quatro, silenciosamente
como mortos num antigo barco de mortos deslizando na escuridão.” (TELLES,
1982, p.74). De acordo com a mitologia, como já citado anteriormente, o
defunto descia de doze regiões do mundo inferior numa barca sagrada e se
conseguisse vencer os desafios do inferno, que desejavam se apoderar de sua
alma, concluiria seu percurso subterrâneo. Há, portanto, um terceiro significado
para esse espaço, pois, ainda segundo Foucault, a barca é um “espelho”, uma
espécie de experiência mista entre a “utopia” e a “heterotopia”:

[...] o espelho funciona como uma heterotopia no sentido em que ele torna
esse lugar que ocupo, no momento em que me olho no espelho, ao mesmo
tempo absolutamente real, em relação com todo o espaço que o envolve,
e absolutamente irreal, já que ela é obrigada, para ser percebida, a passar
por aquele ponto virtual que está lá longe. (1984, p.415)

Desta feita, a viagem subterrânea da barca nos permite intuir uma exploração
do inconsciente, no caso, da narradora-personagem, implícita em suas palavras
iniciais: “Não quero nem devo lembrar aqui por que me encontrava naquela
barca.” (TELLES, 1982, p.74), ato falho que sugere certa resistência às revelações
do subconsciente, cujo paradoxo se encerra no ato de revelar as experiências
lá vividas; experiências estas, sobretudo, emocionais, psicológicas, percebidas
em cada gesto, em cada fala que não se conteve:

Estávamos sós. E o melhor ainda era não fazer nada, não dizer nada, apenas
olhar o sulco negro que a embarcação ia fazendo no rio. (TELLES, 1982, p.74)
[...]
[...] Era incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta, mas agora não
podia mais parar. (TELLES, 1982, p.75)
[...]
Fixei-me nas nuvens tumultuadas que corriam na mesma direção do rio.
Incrível. Ia contando as sucessivas desgraças com tamanha calma, num
tom de quem relata fatos sem ter participado deles realmente. (TELLES,
1982, p.76)

O caráter polissêmico da barca acentua sua indefinição, o que gera mistério.


Este, por sua vez, abre as portas para o fantástico, causando no leitor a hesitação
própria desse gênero.
Refletindo sobre o tempo, é evidente o predomínio do psicológico, uma vez que
a estória é narrada por meio das lembranças da protagonista. Cronologicamente,
equivale ao tempo gasto na viagem percorrida pela barca: “Pensei em falar-lhe
assim que entrei na barca. Mas já devíamos estar quase no fim da viagem e até
aquele instante não me ocorrera dizer-lhe qualquer palavra.” (TELLES, 1982, p.74)

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Entretanto há outro sinalizador de tempo exposto no título ― Natal ― que nos oferece
observações interessantes. A época do Natal caracteriza-se, tradicionalmente,
como momento de fé, de renovação, de esperança, de perdão; comemora-
se o nascimento de Jesus Cristo, o cordeiro de Deus, cujo sangue lavou os
pecados da humanidade que nEle acreditou. Paralelamente, é momento de
muitas luzes, de alegria, de festa, de troca de presentes. Daí a ambiguidade do
texto, haja vista a ambientação soturna da barca e o estado de alma angustiado
da narradora-personagem:

Nem combinava mesmo com a barca tão despojada, tão sem artifícios, a
ociosidade de um diálogo. (TELLES, 1982, p.74)
[...]
Ali estávamos os quatro, como mortos num antigo barco de mortos deslizando
na escuridão. Contudo, estávamos vivos. Era Natal. (TELLES, 1982, p.74)
[...]
Uma obscura irritação me fez sorrir. (TELLES, 1982, p.76)
[...]
E, ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem saber por que, perturbei-
me. (TELLES, 1982, p.76)

Não se expõem os motivos de sua angústia, mas pode-se inferir uma decepção
amorosa, quem sabe o sofrimento por um desenlace. Isso é aventado por um
monólogo interior, em que ela revela seu desejo por estar só e sem lembranças
e se queixa da necessidade incontrolável de laços humanos, e também através
de seu interesse incontido por mais informações quando a tal mulher “jovem
e pálida” revela ter sido abandonada pelo marido:

Eu queria ficar só naquela noite, sem lembranças, sem piedade. Mas os


laços – os tais laços humanos – já ameaçavam me envolver. Conseguira
evitá-los até aquele instante. Mas agora tinha forças para rompê-los.
– Seu marido está à sua espera?
– Meu marido me abandonou.
Sentei-me novamente e tive vontade de rir.
Era incrível. Fora uma loucura fazer a primeira pergunta, mas agora não
podia mais parar.
–Há muito tempo? (TELLES, 1982, p. 74)

Focalizando nossa análise, agora, na mulher “jovem e pálida”, constatamos que


essa personagem, aparentemente secundária, rouba a cena por, assim como
a barca, resguardar todo um mistério, a começar por sua descrição física:

Era uma mulher jovem e pálida. O longo manto escuro que cobria a cabeça
dava-lhe o aspecto de uma figura antiga. (TELLES, 1982, p.74)
[...]
Tinha belos olhos claros, extraordinariamente brilhantes. Deparei em suas
roupas, pobres roupas puídas, tinham muito caráter, revestidas de uma certa
dignidade. (TELLES, 1982, p.74)
[...]

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Suas mãos destacavam-se exaltadas sobre o xale preto, mas o rosto era
tranqüilo. (TELLES, 1982, p.75)
[...]
Levantou a cabeça com energia. O queixo agudo era altivo, mas o olhar
tinha a expressão doce. (TELLES, 1982, p.75)
[...]
(...) aqueles olhos vivíssimos e aquelas mãos enérgicas. (TELLES, 1982, p.76)
[...]
E começou, com voz quente de paixão. (TELLES, 1982, p.76)
[...]
[...] Sob o manto preto, de pontas cruzadas e atiradas para trás, seu rosto
resplandecia. Apertei-lhe a mão vigorosa. (TELLES, 1982, p.77)

Além dessas descrições de qualificações por vezes antitéticas, sabemos que


ela carrega nos braços uma criança enrolada em panos. A criança estava
doente, com febre, sendo levada a um médico especialista. A narradora sente
vontade de conversar com ela assim que adentra a barca, mas pensa que o
ambiente lúgubre e precário em que se encontravam não combinava com a
“ociosidade de um diálogo”. (TELLES, 1982, p.74)
Após um comentário espontâneo da narradora que se agacha para pegar sua
caixa de fósforos e mergulha as pontas dos dedos na água, o diálogo se inicia:

– Tão gelada – estranhei, enxugando a mão.


– Mas de manhã é quente.
[...]
– De manhã esse rio é quente – insistiu ela, me encarando.
– Quente?
– Quente e verde, tão verde que a primeira vez que lavei nele uma peça de
roupa, pensei que a roupa fosse sair esverdeada. É a primeira vez que vem
por estas bandas? (TELLES, 1982, p.74)

Ponderando sobre a espacialidade da água do rio e sua caracterização em


“gelada”, pela narradora e “quente e verde”, pela jovem mulher, entendemos que
a barca torna-se o espaço da união dos opostos, manifestados não somente
por duas mulheres tão díspares em ideias, comportamentos e, principalmente,
crença (fé), quanto pela representação que ela carrega de nascimento e morte,
quente e gelado, manhã e noite. O curso das águas representa a corrente da vida
e sua travessia é o transpor de um obstáculo, daí a narradora, aparentemente
cética, estranhar a água, para ela, “tão gelada”, ao passo que a jovem mãe
refere-se inversamente ao mesmo elemento, considerando-a “quente” e, mais,
“verde”, neste caso, simbolizando esperança, vida. Outra análise do atravessar
as águas, de caráter místico-religioso, envolve a questão do batismo cristão,
após o qual se renasce para uma nova vida.
Uma das significações do verde apontadas por Chevalier e Gheerbrant sustenta
nossa leitura: “O verde é a cor do reino vegetal se reafirmando, graças às
águas regeneradoras e lustrais nas quais o batismo tem todo o seu significado

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 139
simbólico. O verde é o despertar das águas primordiais, o verde é o despertar
da vida.” (1999, p. 939). A barca não era estranha àquela mulher; já a tomara
outras vezes, mas incomodava-lhe ter que estar ali justamente no dia de Natal,
porém tinha fé e, portanto, a certeza de que Deus estaria ao seu lado, mais
que isso, despertaria a criança para a vida:

– [...] Já tomei esta barca não sei quantas vezes, mas não esperava que
justamente hoje...
[...]
– É. Está doente [...] Ainda ontem ele estava bem, mas de repente piorou.
Uma febre, só febre... [...] – Só sei que Deus não vai me abandonar. (TELLES,
1982, p. 75)

Como se não bastasse esse infortúnio, ao ser questionada pela narradora se


aquele era o filho caçula , a mulher relata outro sofrimento:

– É o único. O meu primeiro morreu o ano passado. Subiu no muro, estava


brincando de mágico, quando de repente avisou, vou voar! E atirou-se. A
queda não foi grande, o muro não era alto, mais caiu de tal jeito... Tinha
pouco mais de quatro anos. (TELLES, 1982, p.75)

Embora a narradora tente desviar o assunto para o outro filho, aquele que ali
estava, e vivo, a mulher ainda insiste em contar detalhes do primeiro. Aquela
levanta-se, tentando romper o diálogo, mas ainda pergunta-lhe se o seu marido
(da jovem mãe) ficara à sua espera. É surpreendida pelo terceiro dissabor:

– Meu marido me abandonou.


[...]
– Faz uns seis meses. Imagine que nós vivíamos tão bem, mas tão bem!
Quando ele encontrou por acaso com essa antiga namorada, falou comigo
sobre ela, fez até uma brincadeira, a Ducha enfeou, de nós dois fui eu que
acabei ficando mais bonito... E não falou mais do assunto. Uma manhã ele
se levantou como todas as manhãs, tomou café, leu o jornal, brincou com o
menino e foi trabalhar. Antes de sair ainda me acenou, (...) recebi a carta à
tardinha, ele mandou uma carta. Fui morar com minha mãe numa casa que
alugamos perto da minha escolinha. Sou professora. (TELLES, 1982, p.75)

Observemos que a fala dessa personagem é marcada por reticências, exatamente


nos momentos acentuados por maior emoção e, por isso, o pensamento é
suprimido, intensificando também a emoção no leitor.
Quanto aos valores sócio-culturais, temos aqui três fatores relevantes, que
retratam as tradições daquela época: o primeiro mostra que, abandonada pelo
marido, a mulher retorna à casa dos pais, no caso, parece que ela não tinha
pai, não se sabe se sua mãe era viúva ou também fora abandonada; o segundo
revela que ela era professora, profissão respeitosa e bem aceita pela sociedade
preconceituosa da época, de valores nitidamente patriarcais; no entanto, suas
roupas – “pobres roupas puídas” (p. 74) e o diminutivo ao se referir ao local

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 140
de trabalho – “escolinha” (p. 76) – aliados ao local em que morava – Lucena
– denunciavam um baixo rendimento financeiro. E, por último, a sua aceitação
passiva e resignada diante do abandono, do fato de ser trocada por outra e,
mais afrontoso ainda, de ser comunicada da traição por uma carta, refletindo
a condição da mulher a quem poucos direitos eram concedidos.
A obra de Lygia Fagundes Telles é, de várias formas, uma obra que vasculha
a alma feminina, o que se comprova pela larga incidência de personagens
femininas em busca de sua identidade, em conflito com o mundo que as rodeia,
em luta por sua liberdade e, como qualquer ser humano, vítimas e cúmplices de
desencontros, de perdas, de traições. Seus contos, em Antes do baile verde, são
testemunhos de um mundo moral em decomposição. A Literatura não reforça,
aqui, esses valores preconceituosos, mas simplesmente coloca-os à mostra.
No entanto, embora a jovem mulher fosse uma provinciana, de parcos recursos
financeiros, que enfrentara o abandono do marido, a morte do filho mais velho
de apenas quatro anos e agora a doença do mais novo e único, emanava de
si caráter, dignidade, tranquilidade, energia, docilidade, vida, paixão, luz, o que
nos remete a uma interpretação mística do conto: essa mulher é a conotação
viva da fé extrema, ao ponto de a narradora sentir-se irritada com tamanha
resignação, mas, logo após, viver um momento de epifania 2:

– A senhora é conformada.
– Tenho fé, dona. Deus nunca me abandonou.
– Deus – repeti vagamente.
– A senhora não acredita em Deus?
– Acredito – murmurei. E, ao ouvir o som débil da minha afirmativa, sem
saber por que, perturbei-me. Agora entendia. Aí estava o segredo daquela
confiança, daquela calma. Era a tal fé que removia montanhas... (TELLES,
1982, p. 76)

A imagem daquela mulher “jovem e pálida” (p.74), com um “manto escuro”


(p.74) sobre a cabeça, assemelhando-se a uma “figura antiga” (p.74) com uma
criança no colo, nos faz aludir à Virgem Maria, renovada pela fé que lhe conferia
os atributos mencionados. E, reforçando essa hipótese, ela ainda narra uma
experiência sobrenatural fascinante que vivera em um dia de desespero pela
saudade do filho morto:

— Foi logo depois da morte do meu menino. Acordei uma noite tão desesperada
que saí pela rua afora, enfiei um casaco e saí descalça e chorando feito louca,
chamando por ele... Sentei num banco do jardim onde toda tarde levava ele para
brincar. E fiquei pedindo, pedindo com tamanha força, que ele, que gostava
tanto de mágica, fizesse essa mágica de me aparecer só mais uma vez, não
2 Nádia B. Gotlib, em Teoria do Conto, teoriza sobre o “momento especial” presente na maioria dos contos: “Assim
como para Poe o conto depende de um efeito único ou impressão total que causa no leitor, para outros, é o próprio conto
que representa um momento especial em que algo acontece. [...] Um dos momentos especiais é concebido como o que se
chama de epifania. Epifania, tal como a concebeu James Joyce, é identificada como uma espécie ou grau de apreensão do
objeto que poderia ser identificada com o objetivo do conto, enquanto uma forma de representação da realidade. [...] Para
Joyce, “é uma manifestação espiritual súbita”, em que um objeto se desvenda ao sujeito”. (1991, p. 49-51)

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 141
precisava ficar, só se mostrasse um instante, ao menos mais uma vez, só mais
uma! Quando fiquei sem lágrimas, encostei a cabeça no banco e não sei como
dormi. Então sonhei e no sonho Deus me apareceu, quer dizer, senti que ele
pegava na minha mão com sua mão de luz. E vi o meu menino brincando com
o Menino Jesus no jardim do Paraíso. Assim que ele me viu, parou de brincar
e veio rindo ao meu encontro e me beijou tanto, tanto... Era tal sua alegria que
acordei rindo também, com o sol batendo em mim. (TELLES, 1982, p.76-7)

Nesse momento, temos a presença do gênero fantástico traduzido pelo sonho, cuja
porta é o jardim, símbolo de paraíso terrestre. Em “Outros espaços”, Michel Foucault
nos esclarece os valores dessa heterotopia – “o que justapõe em um só lugar real
vários espaços, vários posicionamentos que são em si próprios incompatíveis”:

O jardim tradicional dos persas era um espaço sagrado que devia reunir
dentro do seu retângulo quatro partes representando as quatro partes do
mundo [...] Quanto aos tapetes, eles eram, no início, reproduções de jardins.
O jardim é um tapete onde o mundo inteiro vem realizar sua perfeição
simbólica, e o tapete é uma espécie de jardim móvel através do espaço. O
jardim é a menor parcela do mundo e é também a totalidade do mundo. O
jardim é, desde a mais longínqua Antiguidade, uma espécie de heterotopia
feliz e universalizante (daí nossos jardins zoológicos). (2001, p. 418).

Assim, o jardim aparece muitas vezes nos sonhos como a manifestação feliz
de um desejo puro. Mas se aquele jardim era íntimo e comum aos dois, fora
realmente sonho ou ela vira o filho e fora beijada por ele?
Segundo Tzvetan Todorov, o fantástico equilibra-se exatamente nessa incerteza:

Aquele que o percebe deve optar por uma das duas soluções possíveis; ou
se trata de uma ilusão dos sentidos, de um produto da imaginação e nesse
caso as leis do mundo continuam a ser o que são; ou então o acontecimento
realmente ocorreu, é parte integrante da realidade, mas nesse caso esta
realidade é regida por leis desconhecidas para nós.
[...]
O fantástico é a hesitação experimentada por um ser que só conhece as leis
naturais, face a um acontecimento aparentemente sobrenatural. (2004, p.30-1)

Após a narração dessa experiência, a narradora-personagem, um tanto


sensibilizada e incomodada com os fatos, busca fazer algo que descontraia
aquele clima, assim, levanta a ponta do xale que cobria a criança e constata
que o menino estava morto. Fica totalmente atormentada. A barca chega ao
seu destino e a narradora pensa em descer logo, despistando-se da mulher,
pois não quer compartilhar de mais um momento de perda e dor. Mas aquela
mãe ignora a tentativa de despedida da mulher e vira-se para apanhar a sacola,
ao que a narradora tenta ajudá-la; no entanto ela ignora novamente seu ato e
afasta o xale que cobria a cabeça do filho.

– Acordou o dorminhoco! E olha aí, deve estar agora sem nenhuma febre...
– Acordou?!
Ela teve um sorriso.

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– Veja...
Inclinei-me. A criança abrira os olhos ― aqueles olhos que eu vira cerrados
tão definitivamente. E bocejava, esfregando a mãozinha na face de novo
corada. (TELLES, 1982, p.77)

Novamente o fantástico se manifesta, instaurando a hesitação sobre o acontecido,


afinal, naquela barca, aconteceram a morte e o milagre da ressurreição ou a
narradora fizera julgamento enganoso a respeito do estado anterior da criança?
Sobretudo as duas mulheres, após a travessia do rio, foram renovadas. A
jovem mãe acentuara sua fé e a narradora mostrara-se incomodada, reflexiva,
o que se evidencia em suas últimas e repetidas palavras, olhando para trás, a
imaginar como seria o rio de manhã: “verde e quente” (p.78), simbolizando o
primeiro o despertar e o segundo, a chama da vida, o que a mantém acesa.
Queremos, ainda, lançar nossos olhos para a relevância do número quatro
nesse conto: são quatro pessoas na barca. Embora não se tenha informado
a idade delas, sabemos que há uma criança, uma jovem mulher, a narradora
– aparentemente madura – e um velho bêbado, portanto, representantes das
quatro fases da vida. A propósito, o quatro é um numeral simbólico; os pontos
cardeais são também quatro: Norte, Sul, Leste e Oeste, bem como as estações
do ano e as fases da Lua. No conto, o filho morto tinha quatro anos quando
morreu, o manto da jovem mãe tinha “as pontas cruzadas”, o que nos remete
à cruz e suas quatro pontas, lembrando que a cruz – em Cristo – simboliza
morte e início de uma nova vida. Na Bíblia, o número quatro aparece inúmeras
vezes, representando o universo: quando se diz que no Paraíso havia quatro
rios (GÊNESIS 4: 10), significa que todo o cosmos era um Paraíso antes do
pecado de Adão e Eva. Ezequiel, ao invocar o Espírito dos quatro ventos para
soprar sobre os ossos secos (EZEQUIEL 37: 9), conclama os ventos de todo
o mundo. E, em “Apocalipse”, o trono de Deus assentado sobre quatro seres
(4: 6) é a imagem de que toda a terra é o próprio trono de Deus.
Portanto, constatamos que as obras de Lygia Fagundes Telles ― em meio a um
misticismo sutil e aparentemente ingênuo, mas de grande ressonância ― perscrutam
o íntimo do ser humano em seus conflitos mais primitivos. Acreditamos que
Lygia Fagundes Telles renova o conto, um gênero cujos recursos pareciam já
ter sido esgotados e estudados. Por meio de frases nominais, falas reticentes,
justeza de adjetivos, frequência do discurso direto, caracterizado muitas vezes
pela oralidade, proporcionando um ritmo dinâmico ao texto, a escritora promove
a condensação da forma, repercutindo no conteúdo, uma vez que detém maior
condensação dramática e maior densidade emotiva.
O trabalho do artista literário é este: recriar a vida cotidiana, recriação esta
que se embrenha nesse terreno de metáforas, de sugestões, de insinuações,
de emoções, pois ele só é capaz de plasmar e dar vida à sua arte, à sua
apropriação do mundo a partir de termos do seu próprio campo simbólico.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 143
A qualidade literária das narrativas de Lygia Fagundes Telles em imagens visuais,
táteis e oníricas prova que a barca da Literatura abre um sulco verde e quente
no rio da alma humana e, parafraseando Heráclito, depois de nos banharmos
nesse rio, nem ele nem nós jamais seremos os mesmos.

The space in the construction of the fantastic


in “Christmas on the barque”, by Lygia Fagundes
Telles

Abstract:

This study aims to examine the spatialities in the story “Christmas on the barque”,
by Lygia Fagundes Telles, noting its relations with the establishment of the
fantastic. We also intend to focus on the contrivance of the writer to merge the
tale atmosphere to the tale character, showing that the space / ambience helps
to accentuate an atmosphere of loneliness and death, associated with a profile
of incompleteness and loneliness of the characters. If the spaces are quite
significant, so are the images, articulated by chromaticism symbolic narrative
of Lygia Fagundes. Green, recognized by common sense as the color of hope,
immaturity, assumes, in this tale, an ambiguous meaning - the result of mixing
blue and yellow, is balanced between life and death, between joy and morbidity.
The presence of the fantastic shows that not everything can be explained and
detailed. Thus, an underlying religious mysticism shows itself, but if the facts are
religious dogmatists, they eventually find in the fantastic - brought substantially
into space - a reasoned analysis for scientific clarity. Our main theoretical studies
will be Michel Foucault, Mikhail Bakhtin, Chevalier and Gheerbrant and Todorov.

Keywords:

Short story; unusual; narrative space; fantastic.

REFERÊNCIAS

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BAUDELAIRE, Charles. Sobre a modernidade. Coleção Leitura. São Paulo: Paz
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GENETTE, Gérard. Nouveau discours du récit. Paris: Seuil, 1983.

GOTLIB, Nádia Battella. Teoria do Conto. 6.ed.. São Paulo: Ática, 1985.

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SARLO, Beatriz. Paisagens imaginárias. São Paulo: Edusp, 1997.

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TODOROV, Tzvetan. Introdução à Literatura Fantástica. São Paulo: Perspectiva,


2007.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 145
O FANTÁSTICO COMO REPRESENTAÇÃO DO TEMOR AO
ESTRANGEIRO: UMA LEITURA EM CONTRAPONTO DE “O
HORLA”, DE GUY DE MAUPASSANT

Rosângela de Medeiros

RESUMO:

Este artigo realiza uma “leitura em contraponto”, conforme definida por Edward
Said, das duas versões do conto “O Horla” de Guy de Maupassant, visando
revelar o pensamento imperialista e colonialista francês imbricado em suas
tessituras. Para tanto, analisa a maneira como a criatura invisível, o Horla,
configura-se como um “outro” aterrador, elemento basilar na configuração da
Literatura Fantástica, construído em ambos os textos a partir da imagem do
estrangeiro como uma ameaça.

PALAVRAS-CHAVE:

Imperialismo, “leitura em contraponto”, estrangeiro, Literatura Fantástica


Guy de Maupassant escreveu duas versões do conto “O Horla”. Em ambas as
versões a narrativa centra-se no aparecimento de um ser transparente, que
aos poucos domina o protagonista, vampirizando-o. Este ser fantástico, que o
narrador batiza com o nome de Horla, teria chegado à França em uma galera
brasileira. Para investigar e desvelar a presença do discurso idealizante colonial e
imperialista no texto de Maupassant, as duas versões do conto serão analisadas
a partir do que Edward Said cunhou como “leitura em contraponto”. Ou seja,
uma leitura avisada que busca abrir brechas nos textos dando visibilidade ao
imaginário colonial arraigado à escritura de ambas as narrativas. Tal leitura
nasce da provocação realizada por Said em Cultura e Imperialismo:

Devemos ler os grandes textos canônicos, e talvez também todo o arquivo


da cultura européia e americana pré-moderna, esforçando-nos para extrair,
estender, enfatizar e dar voz ao que está calado, ou marginalmente presente
ou ideologicamente representado em tais obras. (...) Ao ler um texto, devemos
abri-lo tanto para o que está contido nele quanto para o que foi excluído pelo
autor (SAID, 1995, p. 104-5).

Para adentrar os contos de Maupassant a procura dos “rastros” deixados por


“todos aqueles diversos discursos disciplinadores e instituições de saber que
constituem a condição e os contextos da cultura”, (BHABHA, 1998, p. 229) é
preciso contextualizar a realidade francesa do século XIX. Said nos dá valiosas
informações a respeito da condição imperialista francesa:

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 146
A Guerra Franco-Prussiana de 1870 estimulou diretamente o crescimento
das sociedades geográficas francesas. A exploração e o conhecimento de
geográfico, a partir daí, passaram a se vincular ao discurso (e à conquista)
imperial, e na popularidade de gente como Eugène Etiene (fundador do Groupe
Colonialism 1892) podemos retraçar a ascensão da teoria imperial francesa
até se tornar quase uma ciência exata. A partir de 1872, e pela primeira vez,
desenvolveu-se no núcleo do Estado francês uma doutrina política coerente
de expansão colonial; entre 1880 e 1895, as possessões coloniais francesas
passaram de 1 milhão para 9,5 milhões de quilômetros quadrados, e de 5
milhões para 50 milhões de habitantes nativos. (SAID, 1995, p. 221)

Maupassant, que viveu de 1850 a 1893, é fruto de um país imperialista e sua realidade
de vida está intimamente ligada à memória das colônias dominadas pela França,
que participaram da configuração política e economia do país. Segundo Said:

Para os cidadãos da Inglaterra e da França oitocentista, o império era um


grande tema de atenção cultural sem que houvesse qualquer constrangimento.
As Índias britânicas e o norte da África francês desempenharam um papel
inestimável na imaginação, economia, vida política e trama social das
sociedades britânica e francesa. (SAID, 1995, p. 39)

Conforme Said, o abuso da França sobre a Argélia “e os escândalos resultantes


de obscuros esquemas financeiros, montados por inescrupulosos para quem
a liberdade do lugar permitia que se fizesse praticamente qualquer coisa
imaginável, desde que houvesse promessa ou esperança de lucro” (SAID,
1995, p. 235), são temas que percorrem silenciosamente a literatura francesa,
de Balzac a Psichari e Loti. E a dominação imperialista avança para além dos
limites da dominação direta e da dominação pela força, possuindo meios de
persuasão “de muito maior eficácia ao longo de muito tempo, os processos
cotidianos de hegemonia – com freqüência criativa, inventiva, interessante e
sobretudo prática” (SAID, 1995, p. 153). Além disso, o imperialismo transformou
o ambiente físico e deu origem a novos estilos artísticos como a fotografia de
viagem, a pintura, a poesia, a literatura, as músicas exóticas e orientalistas
e também repercutiu na criação de um estilo jornalístico. Said utiliza como
exemplo a caracterização memorável e jornalística feita por Maupassant em
Bel-Ami, que apresenta um retrato dessa situação, uma vez que no romance
se visualiza a maneira como a experiência colonial e imperialista está arraigada
à produção e à vida do escritor de maneira tão intensa a ponto de não ser
analisada, ou notada. E destaca Said que, os escritores “estão profundamente
ligados à história de suas sociedades, moldando e moldados por essa história
e suas experiências sociais em diferentes graus” (SAID, 1995, p. 23).

As duas versões de “O Horla”

Conto clássico da literatura fantástica a respeito do tema do duplo, na linha


temática do emblemático conto de Edgar Allan Poe, “William Wilson”, “O

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 147
Horla” desvela o estado de insegurança e de angústia de alguém perseguido
pela imagem de um duplo malévolo, apresentando o temor desse estado de
duplicação e divisão. “O Horla” é considerado por muitos críticos como uma
das obras-primas de Maupassant, sendo, com certeza, um de seus contos
mais conhecidos. O escritor inglês Henry James, porém, não via nessa obra o
melhor da produção de Maupassant, chegando à conclusão de que ali o autor
oferece “a única ocasião em que ele tem a fraqueza da imitação, quando nos
dá a impressão de emular com Edgar Allan Poe” (JAMES, 1951, p. XIII).
Em ambas as versões do conto, Maupassant apresenta a figura do narrador-
protagonista, visando criar uma identificação entre o leitor e o personagem.
Contudo, a narrativa em primeira pessoa é extremamente suspeita, uma vez
que o narrador-protagonista “narra de um centro fixo, limitado quase que
exclusivamente às suas percepções, pensamentos e sentimentos” (CHIAPPINI,
1994, p. 45). Além disso, a narrativa em primeira pessoa ajuda a instaurar a
hesitação entre uma explicação natural, o narrador está louco e tem alucinações;
ou outra, sobrenatural, o Horla realmente existe. E tal hesitação, conforme
postula Tzventa Todorov, em Introdução à Literatura Fantástica, configura o
cerne do gênero fantástico:

En un mundo que es el nuestro, el que conocemos, sin diablos, sílfides, ni


vampiros se produce un acontecimiento imposible de explicar por las leyes
de ese mismo mundo familiar. El que percibe el acontecimiento debe optar
por una de las dos soluciones posibles: o bien se trata de una ilusión de los
sentidos, de un producto de la imaginación, y las leyes del mundo siguen
siendo lo que son, o bien el acontecimiento se produjo realmente, es parte
integrante de la realidad, y entonces esta realidad está regida por leyes que
desconocemos. (...) Lo fantástico ocupa el tiempo de esta incertidumbre. Lo
fantástico es la vacilación experimentada por un ser que conoce más que
las leyes naturales, frente a un acontecimiento aparentemente sobrenatural.
(TODOROV, 1972, p. 34)

1886 – A primeira versão

Na primeira versão, escrita em 1886, a narrativa é contada como relato de


um caso clínico, possuindo dois narradores: um narrador onisciente e outro
narrador-protagonista. O narrador onisciente relata os acontecimentos no
manicômio e apresenta o Dr. Marradame: “o mais ilustre e eminente dos
alienistas” (MAUPASSANT, 1997, p. 73), e seu paciente: “Ele era muito magro,
de uma magreza cadavérica, como são magros certos loucos obcecados por
uma ideia” (MAUPASSANT, 1997, p. 73). E é o Dr. Marradame quem pede ao
paciente que conte sua história “a três de seus colegas e a quatro sábios”
(MAUPASSANT, 1997, p. 73). Nesse ponto o paciente assume a narrativa
que passa a ser realizada em primeira pessoa, através de um flash-back ele
conta sua extraordinária experiência com o ser invisível que ele batizou de

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 148
Horla. Como pistas da existência do Horla, o narrador-protagonista relata o
desaparecimento da água e do leite, deixados ao lado da cama e a incrível
visão de uma rosa “quebrar-se como se uma mão invisível a tivesse colhido”
(MAUPASSANT, 1997, p.78). É através da narrativa do paciente que os leitores
conhecem os fatos que culminam com a sua internação no manicômio. Para
avalizar a sua história, o narrador-protagonista busca a cumplicidade do Dr.
Marradame, pedindo em diversos momentos que o médico confirme algumas
das informações:

O doutor Marradame, após ter duvidado durante muito tempo, decidiu-se


a fazer - sozinho - uma viagem até minha terra. Atualmente, três dos meus
vizinhos estão com a mesma doença que eu tive. É verdade?

O médico respondeu; “É verdade!”

O senhor aconselhou-os a deixarem água e leite, todas as noites, no quarto


deles, para ver se esses líquidos desapareciam. Fizeram-no. Esses líquidos
desapareceram como em minha casa?

O médico respondeu com uma gravidade solene: “Desapareceram”


(MAUPASSANT, 1997, p. 82)

As respostas do Dr. Marradame dão credibilidade à narrativa e acabam criando


uma hesitação quanto à loucura do narrador-protagonista, pois até mesmo
ele questiona a insanidade de seu paciente: “Não sei se este homem é louco
ou se ambos o somos... ou se... se o nosso sucessor chegou realmente”
(MAUPASSANT, 1997, p. 84).
Nessa versão, a referência à galera brasileira acontece no final da narrativa após
o narrador-protagonista descobrir através de um jornal vindo do Rio de Janeiro
que em São Paulo, “uma espécie de epidemia de loucura parece alastrar-se
há algum tempo. (...) Os habitantes de várias aldeias fugiram, abandonando
suas terras e suas casas, dizendo-se perseguidos e devorados por vampiros
invisíveis que se alimentam da sua respiração durante o sono e que, além
disso, só beberiam água, e às vezes leite!” (MAUPASSANT, 1997, p. 84). A
notícia o faz lembrar que alguns dias antes de sofrer seus primeiros ataques
avistara perfeitamente “passar uma grande galera brasileira com a bandeira
desfraldada” (MAUPASSANT, 1997, p. 84). O narrador-protagonista conclui
então que o Horla deve ter viajado escondido nesta embarcação. Ou seja, a
origem do estranho Ser que atormenta a vida do protagonista, é o Brasil.

1887 – A segunda versão

A segunda versão, escrita em 1887, é a mais divulgada, estando presente na


maioria das antologias de contos do escritor. Ao contrário da versão anterior
que utiliza o flashback e antes mesmo do depoimento do narrador-protagonista
já se sabe que ele é paciente de um manicômio; esta versão apresenta os fatos

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narrados linearmente pelo protagonista em forma de diário. O leitor comparte
com o protagonista-narrador o estranhamento gradual frente aos acontecimentos
em sua casa e acompanha o crescimento de sua angústia por sentir-se agindo
como sob a influência de uma hipnose.
A galera brasileira aparece já no primeiro dia do diário: “Diante de duas escunas
inglesas, cujo pavilhão interno ondulava contra o céu, vinha uma soberba galera
brasileira, inteiramente branca, admiravelmente limpa e luzidia” (MAUPASSANT,
1997, p. 86). E a informação sobre a epidemia que assola a província de São
Paulo chega ao narrador-protagonista através da Revue du Monde Scientifique,
que a partir desta notícia relembra a galera brasileira que avistara subindo o
Sena, resignificando assim a referência que fora feita a ela no primeiro dia. Pois
é justamente após a passagem da embarcação que começam o seu mal-estar
e os estranhos acontecimentos, o que o leva a deduzir que o Ser transparente
viajou nesta embarcação até as margens do Sena.
Nesta versão não há o Dr. Marradame, personagem importante para dar
credibilidade ao protagonista na primeira versão. A busca pela credibilidade
se dá através de informações científica. O narrador-protagonista é uma pessoa
ligada à ciência, que lê revistas científicas, se interessa pela hipnose e busca
informações consultando o tratado do fictício Dr. Hermann Herstauss. O
narrador-protagonista resiste muito a uma explicação sobrenatural, buscando
sempre a ciência como contraponto. Mas na narrativa em primeira pessoa,
como já foi salientado, existe sempre uma dúvida a respeito da credibilidade
do narrador. Além disso, por ser a narrativa construída em formato de diário
não há informações exteriores à percepção do narrador, podendo ser tudo
apenas o delírio de um insano.
Perturbado pela sensação de ser dominado pelo Horla, o narrador-protagonista
decide eliminá-lo, criando subterfúgios para prendê-lo e exterminá-lo. Mas no
afã de realizar sua tarefa, ele acaba incendiando a própria casa e esquece de
mandar saírem os criados. E mesmo após esse ato nefasto, ele não se sente
livre do Horla, restando-lhe apenas buscar a própria morte: “Não... não... sem
dúvida alguma, sem duvida alguma...ele não morreu... Então... então... vai ser
preciso que eu me mate!” (MAUPASSANT, 1997, p. 120)

O Outro como representação assustadora do inconsciente

Apesar das mudanças de uma versão do conto para outra, o local de origem do
Horla é o mesmo em ambas, o Brasil, distante e exótico país sul-americano. O
Horla surge então como ser estrangeiro que gradativamente domina o narrador-
protagonista de maneira assustadora. Sobrevivendo como um parasita do ser
humano que se alimenta de sua força vital, o Horla assemelha-se ao vampiro,
pois ambos atacam à noite, na escuridão e na treva, que se configura então

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como espaço do estrangeiro. Após sua chegada, o Horla passa a compartilhar
a intimidade do narrador-protagonista, habitando em sua casa e dividindo com
ele o quarto:

Mal me deitava, fechava os olhos e desaparecia. Sim, caía no nada, no nada


absoluto, numa morte de todo o ser da qual era bruscamente, horrivelmente,
arrancado pela horrível sensação de um peso esmagador sobre o peito e
de uma boca sobre a minha, que bebia a minha vida por entre os lábios.
(MAUPASSANT, 1997, p. 75)

Sua presença é assustadoramente próxima, possuindo algo que é estranhamente


familiar. Esta familiaridade é fundamenta à estrutura do estranho, pois, conforme
Julia Kristeva, a presença do Outro é a projeção para fora do ego, do “que sente
em si mesmo como perigoso ou desagradável em si, para dele fazer um duplo
estranho ou desagradável, inquietante, sobrenatural, demoníaco” (KRISTEVA,
1994, p. 193). Nas duas versões, o narrador-protagonista exorciza seu inconsciente
imperialista ao projetar no Horla suas próprias atitudes: destronar, subjugar,
dominar. Ou seja, o Horla é o “duplo malévolo onde ele expulsa a parte de
destruição que não pode conter” (KRISTEVA, 1994, p. 193). Na segunda versão
o narrador quase tem consciência de sua relação com o Outro:

Então eu era sonâmbulo, vivia, sem saber, esta misteriosa vida dupla que leva
a pensar se não há dois seres em nós, ou um ser estranho, desconhecido e
invisível, não anima, por momentos, quando a nossa alma está entorpecida,
o nosso corpo cativo que obedece a este outro como a nós mesmos, mais
do que a nós mesmos (MAUPASSANT, 1997, p. 94).

E partindo da colocação de Kristeva de que “o Outro é meu (próprio) inconsciente”,


(KRISTEVA, 1994, p. 190) começa a desvelar-se a relação entre o narrador e o
Horla. Ou seja, a essência da natureza opressora e dominadora do Horla está
presente no inconsciente do homem imperialista. Conforme Kristeva, a busca
em torno da angústia se forma a partir da percepção do estranho. Nas duas
versões isso se realiza claramente, pois é a partir dos acontecimentos estranhos
– a água e o leite que são bebidos, a rosa quebrada como que por uma mão
invisível, o reflexo no espelho que é obstruído pelo Ser transparente – que inicia
a busca do narrador-protagonista pela verdade. O Ser transparente emerge na
realidade do narrador-protagonista instituindo uma situação sobrenatural, mas,
a partir de algo familiar. Como explica Kristeva, a respeito do sobrenatural, no
influxo do pensamento freudiano, que decorre da semelhança semântica do
adjetivo alemão heimlich (familiar) com seu antônimo unheimlich (estranho):

A imanência do sobrenatural no familiar é considerada como uma prova


etimológica da hipótese psicanalítica segundo a qual “o sobrenatural” é essa
verdade particular da coisa assustadora que remota ao há muito já conhecido,
há muito familiar. Assim portanto, o que é sobrenatural seria o que foi familiar
e que, em certas condições se manifesta (KRISTEVA, 1994, p. 192).

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A presença sobrenatural do Horla é criada a partir da identidade imperialista
recalcada, que se volta contra o próprio homem imperialista. Ele não recrimina
as ações de sua nação sobre outras nações, considerando-as necessárias.
Pois, como destaca Said, “o europeu imperialista não queria ou não conseguia
enxergar que era imperialista” (SAID, 1995, p. 213). Mas ser o objeto de uma
dominação, semelhante à exercida por sua nação frente aos países que colonizou,
é uma coisa aterradora. O Horla que se esgueira sobre os ombros do narrador-
protagonista, acompanhando-o como uma sombra, corrobora o que diria Homi
Bhabha a respeito da sensação de estranhamento decorrente dos contatos
interculturais que resignificam o lugar familiar; “O momento estranho move-se
sobre nós furtivamente, como nossa própria sombra (...) Tomando a medida de
nossa habitação em um estado de terror incrédulo” (BHABHA, 1998, p. 30). Tal
colocação descreve perfeitamente os sentimentos do narrador-protagonista de “O
Horla”, que se sente amedrontado dentro de sua própria casa, sentindo a invasão
do estranho. E a presença deste Ser estrangeiro interfere sobre sua auto-imagem,
dificultando seu próprio reconhecimento e colocando sua identidade em crise:

Pois bem!... Enxergava-se como em pleno dia... e eu não me vi no espelho!


Ele estava vazio, claro, profundo, cheio de luz. Mina imagem não estava lá...
E eu estava diante dele... Via de alto a baixo o grande vidro límpido! E olhava
para aquilo com um olhar alucinado; e não ousava mais avançar, não ousava
mais fazer qualquer movimento, sentindo, no entanto, que ele estava lá, mas
que me escaparia de novo, ele, cujo corpo imperceptível havia (absorvido)
devorado o meu reflexo (MAUPASSANT, 1997, p. 81).

Ao interpor-se entre o narrador-protagonista e o espelho, o Horla impede que


ele se enxergue, fazendo-o sentir-se angustiado por perder a própria imagem.
Nas duas versões o episódio é igual, uma das poucas mudanças é a troca do
termo absorvido (absorbé), utilizado na primeira versão, pelo devorado (dévoré),
na segunda. O episódio pode ser visto como uma alegoria da formação das
identidades culturais, uma vez que nenhuma identidade existe por si só e
sempre há o medo de perder a própria identidade quando da interferência de
outras culturas. O Horla, devorador, pressagia a antropofagia brasileira:

Porque nós somos, antes de tudo, antropófagos... Sim, porque nós da América
– Nós, o autóctone: o aborígine – rodeamos o cerimonial antropófago de ritos
religiosos. (...) Porque, que eles viessem aqui nos visitar, está bem, vá lá; mas
que eles, hóspedes, nos quisessem impingir seus deuses, seus hábitos, sua
língua... Isso não! Devoramo-lo. (ANDRADE, 1990, p. 43-4)

Ao trocar a palavra absorver por devorar, Maupassant torna a ação mais


imperativa e a impregna de voracidade e de violência. O Horla pode ser visto
então como o colonizado que se revolta contra o colonizador.

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O temor ao estrangeiro

O nome da criatura, Horla, palavra inexistente na língua francesa, cunhada


pelo autor, parece apontar para a condição estrangeira da criatura. Pois se
para alguns a palavra é apenas uma criação fonética bem sucedida, uma
combinação de sílabas que não corresponde a nenhum nome conhecido, fruto
da imaginação do autor; para outros ela advém do francês hors-là que significa:
de fora, do além, de lá. Levando em consideração os possíveis significados
do nome da criatura, corrobora-se a ideia de que a ameaça vem de um lugar
distante e desconhecido de além mar. Essa preocupação com o estrangeiro
é reforçada ainda pela figura do Dr. Hermann Herestauss, autor ficcional de
um tratado sobre habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno,
cujo nome, criado por Maupassant a partir das palavras alemãs Herr (senhor,
mestre) e Aus (fora de), significa aquele que “é de alhures”, “de um outro lugar”.
Reforçando assim a ideia de que há no conto uma preocupação e um temor
com aquilo ou com quem que vem de fora.
A imagem criada por este “além” configura o imaginário de uma distância
espacial, como esclarece Bhabha: “O imaginário da distância espacial – viver
de algum modo além da fronteira de nossos tempos – dá relevo a diferenças
sociais, temporais, que interrompem nossa noção social conspiratória da
contemporaneidade cultural” (BHABHA, 1998, p. 23). Tal imaginário representa
o desejo de ir “além”, que se configura como um limite e que, portanto, é
temido. Desta forma, o Horla pode ser visto como representação deste desejo,
personificação do “além” que atemoriza, por ser projeto de uma ruptura na
estrutura da identidade em decorrência das possibilidades de mudança que a
presença estrangeira representa. O Horla corporifica a ameaça do estrangeiro
à hegemonia cultural européia que já não pode mais ser negada, gerando ao
mesmo tempo temor e fascínio. Da mesma forma, como em A Morte em Veneza,
de Thomas Mann, a peste que assola a Europa é de origem estrangeira, asiática.

Desde alguns anos, a cólera hindu havia demonstrado uma tendência a


alastrar-se e emigrar. Originada dos pântanos quentes do delta do Ganges,
aparecendo com o alento mefítico daquele exuberante-inútil mundo antediluviano
e ilhas selvagens evitadas pelo homem, em cujos espessos bambuzais
espreitava o tigre, a epidemia desencadeara-se em todo o Indostão, continua
e extraordinariamente violenta, alastrara-se para a China ao oeste, para o
Afeganistão e a Pérsia ao leste e, seguindo as estradas principais do tráfego
de caravanas, levara seus horrores até Astracã, e mesmo até Moscou. Mas,
enquanto a Europa temia de que por terra o fantasma pudesse fazer sua
entrada, este fora desviado pelo mar por comerciantes navegadores sírios,
aparecendo, quase que ao mesmo tempo, em vários portos mediterrâneos,
erguera sua cabeça em Toulon e Málaga, mostrara sua máscara muitas
vezes em Palermo e Nápoles e parecia não mais querer retroceder de toda
a Calábria e Apúlia (MANN, 1979, p. 157).

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A respeito do romance de Mann comenta Said:

A combinação entre medo e esperança, degeneração e desejo, tão bem


exposta na psicologia de Aschenbach, é a maneira de Mann sugerir, a meu
ver, que a Europa, com sua arte, mentalidade e monumentos, não é mais
invulnerável, nem pode mais ignorar os laços que mantém com seus domínios
ultramarinos. (SAID, 1995, p. 242)

A invasão da peste representa a impossibilidade da Europa em manter-se


imune à influência asiática. A própria escolha de Veneza (um lugar limite onde
as identidades estão borradas, um pedaço do Ocidente que possui em si a
forte marca do Oriente, um lugar híbrido de sentidos) como cenário do romance
corrobora essa ideia. A peste é um fantasma, que assombra a Europa, amorfo
e invisível como o Horla.
Seguindo o raciocínio de Said, a origem brasileira do Horla remete à imagem
dos países ultramarinos, que não podem mais ser ignorados, representando a
diferença cultural que confronta e influencia silenciosamente. Assim, é do Novo
Mundo que surge a ameaça ao equilíbrio do antigo mundo europeu. E o temor
dessa ameaça aos padrões etnocêntricos se revela nas entrelinhas de ambas
as narrativas que apresentam o colonizado através da imagem “apagada” desse
Ser, contraditoriamente, invisível e ameaçador. A presença invisível e muda do
Horla é representada através da narrativa angustiada do narrador-protagonista.
E existindo então apenas graças à fala de quem o representa, lhe é negado o
direito a uma voz própria, sendo apenas uma imagem filtrada pela percepção
de quem o representa. Pois, como afirma Said: “Os discursos universalizantes
da Europa e Estados Unidos (...) pressupõem o silêncio, voluntário ou não, do
mundo não europeu” (SAID, 1995, p. 86). Ao negar voz a quem representa, o
colonizador o impede de responder à agressão que sofre e de questionar as
ações colonialistas. Temendo que o dominado, ao possuir o poder da fala, o
utilize para lutar e recuperar sua posição, como diz Caliban em A Tempestade:
“Vós me ensinastes a falar e todo o proveito que tirei, foi saber maldizer. Que
caia sobre vós a peste vermelha, porque me ensinastes vossa própria língua!”
(SHAKESPEARE, 1989, Cena 2). Contudo, o Horla apesar de não possuir voz
ou imagem, influencia o narrador-protagonista: “E o Horla não me deixava
mais. Dia e noite eu tinha a sensação, a certeza da presença desse vizinho
inacessível, e também a certeza de que se apoderava da minha vida, hora
após hora, minuto após minuto” (MAUPASSANT, 1997, p. 80). As intenções de
dominação do Horla são definidas pela fala do narrador-protagonista, é ele
quem verbaliza, baseando-se em sua própria memória imperialista.
A imagem do Horla, que chega impondo sua presença e tomando a terra, é
um reflexo da própria cultura colonizadora do narrador-protagonista. O Horla
configura-se como seu duplo, no qual o protagonista confronta a própria vocação
colonizadora em sua ânsia cultural imperialista que chega, domina e subjuga.

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Pois, para o pensamento imperialista e colonialista a subjugação de povos e
raças consideradas inferiores era uma ação natural, como coloca Said:

Para o imperialismo e o colonialismo (...) Havia um comprometimento por


causa do lucro, e que ia além dele, um comprometimento na circulação e
recirculação constantes, o qual, por um lado, permitia que pessoas decentes
aceitassem a ideia de que territórios distantes e respectivos povos deviam
ser subjugados e, por outro, revigoravam as energias metropolitanas, de
maneira que as pessoas decentes pudessem pensar no imperium como
um dever planejado, quase metafísico de governar povos subordinados,
inferiores ou menos avançados (SAID, 1995, p. 41).

É natural então que o narrador-protagonista, representante de uma elite imperialista,


ao perceber o Horla como superior aos seres humanos, reconheça nele a certeza
da dominação: “Quem é? (...) Aquele que vem nos destronar, nos subjugar, nos
dominar” (MAUPASSANT, 1997, p. 83). Na segunda versão do conto, a memória
da conquista e da dominação é claramente apresentada no episódio em que o
narrador-protagonista imagina a existência de seres inteligentes em algum outro
planeta, projetando para esses o desejo colonialista e imperialista: “Será que
um deles, mais dia menos dia, atravessando o espaço, não aparecerá na nossa
Terra para conquistá-la, como os normandos outrora atravessaram o mar para
subjugar povos mais fracos?” (MAUPASSANT, 1997, p.110)
A angústia do narrador-protagonista em relação à sensação de ser dominado
pelo Horla é demonstrada também por seu temor à hipnose. Na primeira
versão, a referência à hipnose serve para explicar e exemplificar o poder do
Horla: “E tudo que os senhores mesmos fazem há alguns anos, aquilo que
chamam de hipnotismo, sugestão magnetismo – é ele que anunciam, é ele
quem profetizam” (MAUPASSANT, 1997, p. 83). Já na segunda versão há todo
um episódio dedicado à hipnose. Em um jantar, na casa de sua prima, Sra.
Sablé, o narrador-protagonista presencia uma experiência na qual o Dr. Parent
propõe-se a hipnotizar a incrédula anfitriã. A princípio o narrador duvida,
acreditando ser tudo uma brincadeira para enganá-lo, mas no dia seguinte,
quando a Sra. Sablé realiza o que o Dr. Parent havia-lhe programado para fazer,
ele compreende o poder da hipnose. E assim, quando começa a sentir-se
influenciado pelo Horla: “Não consigo mais querer; mas alguém quer por mim;
e eu obedeço” (MAUPASSANT, 1997, p. 107); ele compara a sua sensação ao
domínio hipnótico: “Sem dúvida, era assim que estava possuída e dominada
a minha pobre prima. Ela sofria a influência de um querer estranho que nela
entrara, como uma outra alma, parasita e dominadora” (MAUPASSANT, 1997,
p. 108). Ao incluir esse episódio Maupassant reforça a ideia da angústia criada
pela ação de uma força exterior que controla e subjuga. O colonizado não tem
mais querer, alguém quer por ele, esse alguém é o colonizador. A existência do
Horla faz com que a visão de mundo do narrador-protagonista seja abalada.
A ação deste Ser estrangeiro, cria no narrador o questionamento a respeito de

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seus próprios paradigmas culturais e científicos. E isto será bem demonstrado na
segunda versão do conto, quando o narrador viaja ao Monte Saint-Michel e faz
um passeio no qual é acompanhado por um monge. O diálogo entre o narrador
e o monge centra-se no questionamento do desconhecido e do sobrenatural.
O monge relata ao narrador alguns fatos misteriosos comentados na região.
O narrador resiste a tais informações, questionando a opinião do monge: “Se
existisse na Terra outros seres além de nós, como não os conheceríamos há
muito tempo; como o senhor não os teria visto? Como eu não os teria visto?
(MAUPASSANT, 1997, p.92). Ao que o monge lhe responde: “Será que nós
vemos a centésima milésima parte do que existe? Olhe, eis o vento (...) que
mata, que assobia, que geme, que ruge – já o viu ou poderá ver? E, no entanto,
ele existe! (MAUPASSANT, 1997, p.92)
A inquietação do narrador quanto à incerteza de seus conhecimentos é o próprio
temor do colonizador frente uma realidade cultural diferente da sua, temendo
aquilo que não compreende ele domina e subjuga. O que difere de sua realidade
sócio-cultural é relegado a uma categoria inferior, sendo indigno de atenção
e deve ser apagado e/ou substituído. Pois tentar compreender a diferença é
angustiante e requer abrir mão de pressupostos há muito estabelecidos. O
narrador-protagonista, personagem de uma realidade imperialista, acredita
conhecer tudo, crê que os saberes de sua sociedade são totais, e que o que
se distancia ou diverge de seu conhecimento não existe. Mas sua certeza é
articulada em forma de interrogação; “Como eu não os teria visto?” O monge
age então como contraponto, como voz dissonante, que confronta o narrador,
dialogando com a sua dúvida.
Essa curiosidade/temor em relação ao estrangeiro é reforçada pela preocupação
do narrador em pesquisar o tratado escrito por Hermann Herestauss sobre
habitantes desconhecidos do mundo antigo e moderno, resgatando a memória
européia das inúmeras investigações a respeito de outras raças que habitariam
terras desconhecidas e teriam costumes exóticos.
Esse imaginário imperialista habita também a construção da cena na qual
o narrador-protagonista às margens do Sena observa a passagem das
embarcações estrangeiras. A margem do rio representa o limiar de passagem
atravessado pelo Horla. A imagem da galera brasileira, presente nas duas
versões, faz alusão às relações comerciais entre as nações, além de remeter
à exploração realizada sobre as colônias de ultramar. O fascínio pela galera
brasileira é mais declarado na segunda versão: “Vinha uma soberba galera
brasileira, inteiramente branca, admiravelmente limpa e luzidia. Eu a saudei,
não sei por quê, tal o prazer que senti ao ver este navio” (MAUPASSANT, 1997,
p. 86). Enquanto na primeira versão a descrição é menos efusiva: “Lembro-me
perfeitamente de ter visto passar uma grande galera brasileira com a bandeira
desfraldada (...). Inteiramente branca” (MAUPASSANT, 1997, p. 84). Mas em

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ambas as versões o narrador-protagonista destacada a brancura da galera
que evoca a ideia de pureza, como se neste país do Novo Mundo houvesse
uma inocência originária, contudo, é nesta galera que viaja o Horla, causa de
todo o mal que o aflige. O que revela uma percepção contraditória em relação
ao estrangeiro.
O rompimento do limite entre o Eu e o Outro, entre o Eu e o estrangeiro, condena
o narrador-protagonista, pois não há como sair ileso ao contato com o estrangeiro.
Seja qual for o fim do narrador-protagonista: o manicômio ou o suicídio reafirma-
se a ideia de que, na maioria das vezes, o contato com o estrangeiro leva à
desgraça e à morte. A morte simboliza o questionamento dessas identidades
em conflito e sugere a criação de novas identidades híbridas, fundamentadas
na diferença cultural. Pois, conforme coloca Bhabha:

O objetivo da diferença cultural é rearticular a soma do conhecimento a partir


da perspectiva da posição significante da minoria, que resiste a totalização – a
repetição que não retornará como o mesmo, o mesmo-na-origem que resulta
em estratégias políticas e discursivas nas quais acrescentar não soma, mas
serve para perturbar o cálculo de poder e saber, produzindo outros espaços
de significação subalterna. (BHABHA, 1998, p. 228)

Confrontar o Horla representa para o narrador-protagonista enfrentar esta


possibilidade ameaçadora, pois significa a ruptura de padrões e a perda das
certezas arraigadas à sua identidade através de discursos etnocêntricos e
pedagógicos.

THE FANTASTIC AS REPRESENTATION OF THE FEAR OF THE


FOREIGN: A COUNTERPOINT READING OF “THE HORLA”,
BY GUY DE MAUPASSANT

ABSTRACT:

This paper performs a “contrapuntual reading”, as defined by Edward Said,


of the two versions of the tale “The Horla” by Guy de Maupassant, aiming to
reveal the presence of the French colonialist and imperialist thought imbricate
in their texture. Thus, analyzes how the invisible creature, the Horla, figure of
the “other”, fundamental element in the configuration of Fantastic Literature,
built in both texts from the image of the foreigner as a threat.

KEYWORDS:

Imperialism, “contrapuntual reading”, foreign, Fantastic Literature

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Referências

ANDRADE, Oswald de. Os dentes do Dragão: entrevistas. São Paulo: Globo;


Secretaria de Estado da Cultura, 1990.

BHABHA, Homi K. O local da Cultura. Belo Horizonte: Editora UFMG, 1998.

MANN, Thomas. A Morte em Veneza. São Paulo: Editora Abril, 1979.

CHIAPPINI, Lígia. O Foco Narrativo. Série Princípios. 7ª ed. São Paulo: Editora
Ática, 1994.

JAMES, Henry. “Guy de Maupassant”. In: MAUPASSANT, Guy. Novelas e Contos.


Porto Alegre: Editora Globo, 1951.

MAUPASSANT, Guy de. Contos Fantásticos: O Horla & outras histórias. Porto
Alegre: L&PM, 1997.

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Traduzido por Maria Carlota
Carvalho Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

SAID, Edward W. Cultura e Imperialismo. Traduzido por Denise Bottman. São


Paulo: Companhia das Letras, 1995.

SHAKESPEARE, William. Obra Completa, 3v. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1989.

TODOROV, Tzventa. Introducción a la literatura fantástica. Argentina: Editorial


Tiempo Contemporâneo, 1972.

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A representação do estrangeiro e do estranho em
“Fronteira Natural”, de Nélida Pinõn

Suely Leite

Resumo:

A literatura constitui-se em terreno fértil para a ficcionalização das experiências


humanas, entre elas a interação do indivíduo com o Outro e consigo mesmo. Essa
interação reflete semelhança e estranheza, facetas que compõem a totalidade
múltipla do ser. O conto “Fronteira Natural” de Nélida Piñon, publicado em 1973, na
coletânea intitulada Sala de Armas, é exemplar dessa arquitetura. O protagonista
da narrativa parte de sua aldeia rumo ao inferno, em busca de uma completude
nunca encontrada diante dos seus. Ao regressar, torna-se portador de um todo
indivisível com a natureza, identidade que passa a ser almejada por todos da
aldeia. O texto nos remete a tradição narrativa, pois estrutura-se em torno de
três pilares: o jovem herói, o inferno e a viagem. A figura do jovem carrega o
estereótipo de uma existência destinada a uma busca. O inferno é o espaço
estrangeiro, desconhecido, o reino mais rico, atraente, que oferece ao jovem da
aldeia a completude identitária tão desejada; nele estabelece-se a dicotomia
entre norma e diferença, estrangeiro e estranho. A análise do texto percorrerá
os estudos sobre o duplo exterior, tema recorrente na obra de Julia Kristeva.

Palavras-chave:

Conto maravilhoso; estrangeiro; estranho; Nélida Piñon.

A viagem não começa quando se percorrem distâncias, mas quando se


atravessam as nossas fronteiras interiores. A viagem acontece quando
acordamos fora do corpo, longe do último lugar onde podemos ter casa.
[…] A viagem termina quando encerramos as nossas fronteiras interiores.
Regressamos a nós, não a um lugar.
(Mia Couto, O Outro Pé da Sereia)

A literatura constitui-se em terreno fértil para a ficcionalização das experiências


humanas, entre elas, a interação do indivíduo com o Outro e consigo mesmo.
Não é de hoje que o tema duplo tem sido fonte de inspiração para a pena de
diversos escritores e objeto de deleite de inúmeros leitores. Nicole Fernandez
Bravo, uma das grandes estudiosas do assunto, diz que o conceito de “duplo”,
tal qual o conhecemos no âmbito dos estudos literários, passou a ser difundido
com mais destaque a partir do final do século XVIII. De acordo com a autora,

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 159
uma das primeiras denominações do duplo é o de alter ego. [...] O termo
consagrado pelo movimento do romantismo [alemão] é o de Doppelgänger,
cunhado por Jean-Paul Richter em 1796 e que se traduz por “duplo”, “segundo
eu”. Significa literalmente “aquele que caminha do lado”, “companheiro de
estrada”. Endossamos a definição dada pelo próprio Richter: “assim designamos
as pessoas que se vêem a si mesmas”. O que daí se deduz é que se trata,
em primeiro lugar, de uma experiência de subjetividade (2000, p. 261).

Ainda que sua eflorescência tenha ocorrido na Alemanha, durante a era


romântica, é sabido que o duplo remonta a épocas bem mais remotas. Suas
profundas raízes encontram-se presentes na consciência mitológica de povos
antigos. Em O homem e a morte, de Edgar Morin, e, mais especificamente,
em O duplo, de Otto Rank, é possível observar o trabalho dos estudiosos no
sentido de esquadrinhar a questão do duplo no imaginário desses povos, através
de fontes do tipo: folclore, histórias de magia, antigos costumes religiosos e
demais tradições.
Recorrendo a diversos folcloristas, Otto Rank constata que, nas línguas de
variados povos, uma mesma palavra pode significar “sombra”, “espírito”, “alma”,
“imagem”, “reflexo”, “eco” e “duplo”. De acordo com o estudioso, “variada série
de relatórios, apresentados em folclore, põe fora de dúvida o fato de que o
homem primitivo considera [ser, por exemplo,] a sombra seu misterioso duplo,
como um ser espiritual, porém real” (1939, p. 93). Como faz notar Edgar Morin,
não se trata de um elemento que se manifesta apenas depois da morte:

Esse duplo não é tanto a reprodução, a cópia conforme post mortem do


indivíduo falecido: acompanha o vivo durante toda a sua existência, duplica-o,
e este último sente-o, conhece-o, ouve-o e vê-o, por meio de uma experiência
quotidiana e quotinocturna, nos seus sonhos, na sua sombra, no seu reflexo,
no seu eco (1988, p. 126).

Todo esse material histórico cultural testemunha o eterno problema do homem


que, marcado por um profundo sentimento de incompletude, busca na figura
do Outro a possibilidade de se preencher. O conto “Fronteira Natural”, de Nélida
Piñon, publicado em 1973, na coletânea intitulada Sala de armas, é exemplar
dessa arquitetura. Nos contos ali reunidos, observa-se a poderosa onipresença
do universo mítico. A própria autora, em seu site oficial, define a obra como

um conjunto de relatos, uns mais irônicos, outros mais líricos, mas sempre
com esta atmosfera de estranheza, porque o mundo é um grande reino de
confusão. Temos que desconfiar de nossas estruturas emocionais, de nossas
estruturas verbais, pô-las em quarentena e continuar buscando (2012).

O conto é marcadamente curto, possui aproximadamente dez páginas, e é


narrado em terceira pessoa, afastando o leitor dos personagens, tirando-lhes a
voz. O enredo proposto pela autora tem como foco uma viagem. O protagonista
da narrativa parte de sua aldeia rumo ao inferno, em busca de uma completude

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nunca encontrada diante dos seus. Ao regressar, torna-se portador de um todo
indivisível com a natureza, identidade que passa a ser almejada por todos os
habitantes da aldeia. O que antes era sinônimo de medo, por ser desconhecido,
passa a ser assumido pelos aldeões como o caminho a ser percorrido para
alcançar o além da fronteira. O silêncio do jovem aldeão ao retornar é o código
indecifrável da magia advinda do inferno.
O texto nos remete à tradição narrativa, pois estrutura-se em torno de três pilares:
o jovem herói, o inferno e a viagem. A figura do jovem carrega o estereótipo
de uma existência destinada a uma busca. O inferno é o espaço estrangeiro,
desconhecido, o reino mais rico, atraente, que oferece ao jovem da aldeia a
completude identitária tão desejada. Nele, estabelece-se a dicotomia entre
norma e diferença, estrangeiro e estranho. A viagem representa a busca da
individuação, o legado que faz com que o jovem desperte a inveja dos outros
habitantes da aldeia. Sua presença, após o regresso, é vista como a de alguém
estranho à cultura que pertencera, estrangeiro no seu modo diferente de viver,
e, por isso, atrai o coletivo, que vê, na figura do estrangeiro, o espelho da
identidade que buscam ter.
O tema da viagem é bastante caro à literatura. Esteve presente nas grandes
epopeias e continua sendo o arquétipo para muitas narrativas. A viagem é um
deslocamento que pode alocar vários significados: pode ser deslocamento
geográfico, temporal, como pode também significar um ritual de passagem.
Enfim, nas suas diversas facetas, é possível encontrar viagens no tempo ou no
espaço, mas, em todas elas, encontra-se a descoberta de si mesmo através do
Outro. Pode-se dizer que a alteridade e a identidade surgem, de uma forma ou
de outra, como elementos indissociáveis em toda a obra literária que tematize
a viagem. Ela não é apenas uma translação no espaço, é também busca por
mudança ou recuperação de uma experiência vivida.
Em “Fronteira Natural”, o destino da viagem empreendida pelo protagonista
é o inferno, adjetivado como reino estranho, do qual emanava um perfume
harmonioso e para onde vários meninos haviam partido. Segundo consta,
nem todos regressavam desse espaço, uma vez que “a maioria lá ficou para
sempre” (Pinõn, 1988, p. 15)1. Os que de lá conseguiam retornar, eram tratados
como estrangeiros, estranhos, exóticos, principalmente porque “emitiam sons
de uma língua longínqua, terciária, sem dúvida, o esboço de uma linguagem
buscando expressão” (p. 16). Ao ter empreendido uma viagem de ruptura com
os vínculos da terra de origem, tais indivíduos tornam-se seres estigmatizados
pela impossibilidade de estabelecer comunicação com os demais habitantes.
Além da língua estranha, eles também não reconheciam seus pares e apresentavam
um modo diferente de olhar o mundo. Lê-se no conto que “haviam perdido a
razão, concluíram os da aldeia”. (p. 16). Assim dito, entre os habitantes daquele
1 As demais citações limitar-se-ão ao número de página desta edição.

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local, havia uma legião de estrangeiros que, embora fossem mostrados como
troféus por suas famílias, viviam num mundo à parte, exilados em sua própria
aldeia, “esquecidos da comunidade e nostálgicos de um mundo seguramente
mais rico” (p. 16).
Essa condição de estrangeiro em terra natal nos permite relacionar tais
representações às operações de (re)identificação e, principalmente, aos fatores
de transculturação, visto que os egressos perdem o centro ou o equilíbrio entre
as experiências vivenciadas. Embora a tentativa de interação com a cultura
local fosse interrompida, a travessia da fronteira natural dava aos egressos
um status. Tal como afirma o narrador, “nenhuma casa deixou de ostentar seu
tesouro. Exibiam seus egressos nas varandas construídas especialmente para
recebê-los” (p. 17).
A poética da alteridade privilegia a diferença cultural, a encenação da outridade.
Ao encenar a travessia das fronteiras culturais, o narrador acena para uma
subjetivização dessas fronteiras, aderindo, assim, à perspectiva psicanalítica que
considera a alteridade como parte integrante do mesmo. Freud, no seu célebre
artigo “O ‘estranho’” (1919), defende a tese da imanência do estranho no familiar,
o que leva Julia Kristeva, em Estrangeiros para nós mesmos, a afirmar, na sua
releitura do ensaio freudiano, que o “estrangeiro nos habita”. Em suas palavras,
“o estrangeiro não é nem uma raça nem uma nação. [...] Inquietante, o estranho
está em nós: somos nós próprios estrangeiros – somos divididos” (1994, p. 190).
A condição de estrangeiro, portanto de estranho – tal como proposto por Freud
e revisitado por Kristeva –, provoca nos integrantes da aldeia sentimentos
opostos. Se, por um lado, tais habitantes enalteciam os viajantes, exibindo-os
como troféus, por outro, eles “temiam aquela raça consagrada à divindade”
(p. 17-18). Por representarem o diferente e por terem conseguido dominar um
conhecimento não aprendido no seu local de origem, eram admirados. Segundo
o narrador, tais seres castravam os animais com ciência, alteravam o sistema de
certos rios com propriedade. Todavia, quando essas demonstrações de poder
cessavam, eram recolhidos, visto que sua inquietante estranheza incomodava.
Assim dito, pode-se afirmar que pseudoaceitação dos egressos reforça o
caráter de construção da identidade, pois envolve rejeição e aceitação. Em
outras palavras, poder-se-ia dizer que a rejeição fascinada despertada na
comunidade local pela figura do estrangeiro decorreria, pois, do fato desse
elemento estranho cristalizar, por meio de suas competências extraordinárias,
os anseios internos da coletividade.
O tempo marcado na construção da narrativa nos remete à Idade Média, tempo em
que a sociedade organizava-se em torno da terra e o mundo era essencialmente
agrário. Assim sendo, as pessoas fixavam-se à terra para seu cultivo e pouco
transitavam. Os deslocamentos existentes eram raros e limitados e, quando ocorriam,

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destinavam-se à participação nas guerras, à realização de trocas comerciais
e às peregrinações. Transitar e viajar, naquela época, constituía uma forma de
protesto, contra a servidão à gleba. E é essa a tônica do conto: “Ainda que todos
compreendessem aquela urgência, lamentavam em conjunto a insolvência mental
de um homem de vinte anos” (p. 18). A aldeia representa o espaço da tradição
que será quebrado pelo jovem rumo ao inferno. Estabelece-se a dicotomia
entre o velho e o novo. Nesse embate de gerações, a incomunicabilidade da
comunicação representa a incomunicabilidade entre as gerações. A diversidade
semântica que recobre a problemática da viagem na literatura é inegável, mas,
talvez, o mais significativo sentido que a viagem no tempo moderno adquire é o
de romper com o espaço e com o tempo convencionais.
É desse espaço convencional que o protagonista do conto manifesta, aos vinte
anos, o desejo de partir. Ele, “o mais amado da aldeia” (p. 17), empreenderá uma
trajetória, associada à ideia da viagem, por onde trilhará caminhos em busca de sua
própria identidade. Várias são as formas de apropriações do arquétipo da viagem
pela arte literária. Mas o que é básico e permanece e, por isso, denominamos de
mito, é o fato de que a viagem instaura para o viajante uma espécie de pausa em sua
vida, provocando a separação do mundo conhecido desse viajante e colocando-o
frente ao desconhecido, ao novo, à diversidade. Desse modo, o contato com a
cultura do Outro obriga o viajante a tornar-se Outro sem deixar, no entanto, de si
mesmo, oportunizando, assim, a descoberta da própria identidade. Conforme o
narrador, tal jovem, “mais que desvendar terras, buscava a consciência no casulo,
os meandros iniciais” (p. 17). As respostas aos seus muitos questionamentos não
poderiam ser obtidas no espaço da pequena aldeia, era, pois, necessário descerrar
as cortinas de um mistério de transfiguração.
A partida do jovem é cercada por um ritual: vestes partidas e choro da mãe, desfile
pela aldeia, esperança de que na volta dominasse “a riqueza linguística do inferno”
e, ainda assim, “seu verbo haveria de se fazer campesino para a aldeia” (p. 18).
O escritor e professor norte-americano Joseph Campbell, em seu livro O herói
de mil faces, constata que o personagem do herói tem características diferentes
e correspondentes a cada cultura, mas a sua peregrinação, a sua trajetória,
a sua jornada na trama é, basicamente, a mesma e se estruturaria em etapas
bem definidas, embora não necessariamente rígidas: a partida, a iniciação e
o retorno. Normalmente a jornada do herói se constitui de uma aventura que
pode ser tanto real como imaginária, obedecendo ao mesmo roteiro: o herói
vive num mundo estável e recebe um chamado para partir e trilhar outro mundo,
hostil e estranho. Desencadeia-se, então, uma série de ações na narrativa e,
nessa jornada ao extraordinário, o herói terá de enfrentar provas e desafios num
embate de vida e morte, morrer e ressuscitar, retornando ao mundo transformado,
trazendo algo novo, como se fosse um prêmio. O herói, por desejar algo, se
aventura e passa por sucessivas rupturas e deslocamentos. No que se refere

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ao conto, os habitantes da aldeia viviam essa expectativa, “um sacrifício a
pretexto da claridade” (p. 18), e “acompanhavam aquele corpo sofrendo talvez
o dilaceramento da carne, o rosto inocente prestes a decifrar verdades cruéis”
(p. 19). Em seu estudo, Campbell afirma que o retorno é a etapa em que,

terminada a busca do herói, por meio da penetração da fonte, ou por intermédio


da graça de alguma personificação masculina ou feminina, humana ou animal,
o aventureiro deve ainda retornar com o seu troféu transmutador da vida.
O círculo completo, a norma do monomito, requer que o herói inicie agora
o trabalho de trazer os símbolos da sabedoria, o Velocino de Ouro, ou a
princesa adormecida, de volta ao reino humano, onde a bênção alcançada
pode servir à renovação da comunidade, da nação, do planeta ou dos dez
mil mundos.
Mas essa responsabilidade tem sido objeto de frequente recusa. (2007, p. 195).

Entre as ideias mais próximas do modelo dos ritos de passagem, nas viagens
literárias, as mais relevantes são a aspiração ao aperfeiçoamento do conhecimento,
através do pensamento e da experiência, e o caminho para uma nova ordem social
e espiritual. No caso da aldeia, havia a esperança de que o mais amado trouxesse
“um raciocínio que só em milênios a aldeia haveria de conquistar” (p. 19).
Com o passar do tempo e a ausência do jovem, a aldeia põe-se de luto e a
expectativa da volta dá lugar ao medo. A ausência prolongada do jovem poderia
sinalizar a sua morte, a perda do elo entre a aldeia e o inferno, o que significava
uma ameaça à integridade daquele povo, pois o medo os transformou em seres
passivos que temiam sofrer ainda mais as consequências que tal ato poderia
desencadear: “Recordavam então os belos dias, quando o inferno vivia longe
e não se partia em sua descoberta” (p. 20).
A volta do protagonista se dá num dia de sol, dia no qual ele se mostra “disposto
a um amor de sufocação diferente” (p. 20). Volta, agora, um homem completo,
não mais o jovem inquieto de antes, o que reitera o mito da viagem como uma
caminhada para o autoconhecimento. Sérgio Paulo Rouanet, em seu texto “Viajar
é preciso”, afirma que “só os viajantes são inteiramente humanos” e que “os
viajantes exercem, em sua plenitude, a prerrogativa máxima da espécie; a de
cortar, consciente e voluntariamente, por algum tempo ou para sempre, os vínculos
com o país de origem” (1993, p. 7). A liberdade adquirida durante o tempo em
que passou por aquele reino estranho, é simbolizada pelo seu caminhar sem
esbarrar nas coisas do mundo, a facilidade intemporal dos pássaros, o jeito livre
de pisar, o conhecimento e o domínio da natureza. A viagem conferiu-lhe status
de adulto. Vale ressaltar que o herói inaugurou uma nova fase para aquela aldeia,
livre do medo e das crendices que faziam com que eles fossem escravizados
e subjugados pelo medo de atravessar a fronteira que os separava de um novo
mundo. O momento da narrativa no qual acontece a volta de um homem adulto
simboliza o fim da viagem de autoconhecimento que o herói empreendeu. A
inocência e a inquietude do jovem foram substituídas pela maturidade do adulto.

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Agora, como homem, “senhor do arado” (p. 22), ele assume o papel de líder
daquela aldeia. Sua passagem pelo inferno trouxe-lhe autonomia diante de seus
pares: “Alcançara ele o desembaraço de quem conviveu em excesso com o
milagre e, menos que sua virulência, nada mais devia aceitar” (p. 22). Segundo
Otávio Ianni, “no curso da viagem há sempre alguma transfiguração, de tal modo
que aquele que parte não é nunca o mesmo que regressa” (2000, p. 31).
Ao se tornar mais um egresso da fronteira natural, o protagonista rompe com o
que aldeia já estava acostumada: a linguagem estranha, a falta de comunicação
dos poucos que haviam conseguido retornar da fronteira. A interação do homem
com a terra, o domínio extraordinário que tem sobre a natureza, enfim, todas as
novas características que o emblemam como imortal, o escolhido dos reinos
soberanos, traz consigo o mistério maior: o silêncio: “E ainda que exigissem
do homem qualquer fala, diferente dos outros egressos, ele vivia no silêncio.
Desprezava signos, som, e a linguagem alheia” (p. 23).
O silêncio constitui-se no substrato ontológico do homem, essa tela de fundo,
jamais atingível a não ser pela alusão, instaurando a alteridade dentro dele mesmo.
É o silêncio primordial, aquele que determina as condições de possibilidade
da linguagem. Esse silêncio, inominável, indizível, por ser passível de contato e
de experiência, torna o sujeito seu protagonista. Comentando sobre o silêncio,
tema de seu livro As formas do silêncio, Eni Orlandi, estudiosa da Análise do
Discurso, faz a seguinte afirmação:

Trata-se do silêncio fundador, ou fundante, princípio de toda significação. [...]


É a própria condição de produção de sentido. [...] Não é o vazio, ou o sem
sentido; ao contrário, ele é o indicio de uma instância significativa [...] silêncio
como sentido, como história (silêncio humano), como matéria significante.
O silêncio de que falamos é o que se instala no limiar do sentido. [...] ele é
o que há entre as palavras, entre as notas de música, entre as linhas, entre
os astros, entre os seres [...]. (2007, p.68)

O silenciamento do protagonista provoca uma situação inusitada: o movimento do


texto leva da fala ao silêncio, de maneira que o discurso passa a ser construído
pela ausência, como se a palavra passasse por um esvaziamento. O silêncio
é, no contexto do retorno da viagem à fronteira, um lugar seguro, aquilo que
conserva o homem de forma mais completa e plena.
Quando se fala em viagem como tema de busca de autoconhecimento, o leitor, de
imediato, recorda a descida aos Infernos de Ulisses e Eneias, as peregrinações
dos cavaleiros medievais, o enfrentar de monstros por parte de Ulisses, Eneias,
Beowulf, a passagem de grutas e portões, pelos heróis épicos e pelos cavaleiros
dos romances medievais, conotadas com a viagem labiríntica de descida e subida,
de acesso a uma libertação, a segredos recônditos, a um conhecimento tido por
superior. Essa conotação também se faz presente no conto nelidiano, pois, agora,
dotado de capacidades sobre-humanas que o tornam especial e, sobretudo,

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 165
por sua agudeza de espírito, o protagonista passa a destoar inteiramente dos
demais que, até então, apenas lamentavam a inexorabilidade de seus destinos,
sem buscar os recursos para mudar tal situação.
Os habitantes da aldeia diferenciam o protagonista dos outros egressos. A
identidade, o conhecimento adquirido no inferno passa a ser o objeto de desejo
daquelas pessoas “e ainda que reconhecessem aquele homem por certo distante
da terra, não queriam senão segui-lo” (p. 23). Então, coletivamente, elas se
preparam para abandonar a aldeia rumo à fronteira natural: “Puseram-se em
marcha. A aldeia toda” (p. 24) e encontraram a porta daquele reino fechada com
uma pequena inscrição. O reino havia sido transferido para um local ignorado.
Assim termina o texto de Nélida Pinõn: revelando pouco, silenciando todo o
resto, tudo que pode ser. Suas frases curtas calam sentidos inalcançáveis,
despertam uma sensação profunda de incompletude. O silêncio que transpassa
o texto é inquieto revelando-se potencialmente polifônico.

THE REPRESENTATION OF THE FOREIGN AND THE


UNCANNY IN “FRONTEIRA NATURAL”, BY NÉLIDA PIÑON

Abstract:

The literature is on fertile land for the fictionalization of human experiences,


including the individual’s interaction with the Other and oneself. This interaction
reflects similarity and strangeness, facets that make up the totality of being
multiple. The short story “Fronteira Natural “ of Nelida Piñon, published in 1973
in the collection entitled Sala de Armas, is an example of this architecture.
The protagonist of the narrative leaves from his village to hell in search of a
completeness never found before her. Upon returning, becomes the bearer of
an indivisible whole with nature, identity becomes a goal for all of the village.
The text refers to the traditional narrative and it is structured around three pillars:
the young hero, hell and the journey. The figure of the young man carries the
stereotype of a life devoted to a search. Hell is the space alien, unknown, the
richest kingdom, attractive, offering the youth of the village completeness identity
so desired, it sets up the dichotomy between standard and difference, foreign
and strange. The analysis of the text will cover studies on the double exterior,
a recurring theme in the work of Julia Kristeva.

Key-words:

Marvellous short story; foreign; strange; Nelida Piñon

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 166
REFERÊNCIAS

CAMPBELL, Joseph. O herói de mil faces. São Paulo: Cultrix, 2007.

FREUD, Sigmund. O ‘estranho’. In: ______. História de uma neurose infantil e


outros trabalhos (1917-1919). Vol. XVII. Trad. Eudoro Augusto Macieira de Souza.
Rio de Janeiro: Imago, 2006. p. 235-273.

IANNI, Otávio. Enigmas da modernidade-mundo. Rio de Janeiro: Civilização


Brasileira, 2000

KRISTEVA, Julia. Estrangeiros para nós mesmos. Trad. Maria Carlota Carvalho
Gomes. Rio de Janeiro: Rocco, 1994.

MORIN, Edgar. O homem e a morte. Trad. João Guerreiro Boto e Adelino dos
Santos Rodrigues. Mira-Sintra: Publicações Europa-América, 1988.

ORLANDI, Eni Puccinelli. As Formas do Silêncio: no movimento dos sentidos.


Unicamp, 1992.

PIÑON, Nélida. Sala de armas. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1988.

______. Site oficial: biografia. Disponível em: http://www.nelidapinon.com.br/


autora/aut_biografia.php. Acesso em: 20 jun. 2012.

RANK, Otto. O duplo. Trad. Mary B. Lee. 2. ed. Rio de Janeiro: Coeditora
Brasílica, 1939.

ROUANET, Sérgio Paulo. Mal-estar na Modernidade. São Paulo: Companhia


das Letras, 1993.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 167
GENETTE E O FANTÁSTICO

Wandeir Araújo Silva


Liane Schneider

RESUMO

O texto a seguir pretende analisar como importantes tópicos discutidos pelo


teórico francês Gérard Genette em O discurso da narrativa se comportam
perante as teorias da narrativa fantástica, especialmente a apresentada por
Tzvetan Todorov em Introdução à literatura fantástica. De acordo com nosso
ponto de vista, podemos perceber que certos procedimentos apontados por
Genette são úteis na construção do fantástico, tais como a paralipse e demais
recursos relativos ao modo de narrar. Utilizaremos exemplos da literatura
fantástica brasileira a fins de confirmação de nossas especulações.

Palavras-chave:

Gérard Genette; Tzvetan Todorov; teoria do fantástico; conto; Literatura Fantástica.

Todorov e o Fantástico

Temas envolvendo o sobrenatural, o insólito, aquilo que não se pode explicar,


estão presentes em nossa história desde tempos imemoriais. Entretanto, o século
XVIII trouxe o Iluminismo, a era das luzes e do pensamento racional, criando
as principais tendências que mais tarde acabariam por atingir a forma de se
ver a literatura, culminando na escola realista. A predominância desta forma
de ver o mundo acabou por incomodar certa parte dos escritores e criou um
movimento no sentido contrário, fazendo com que o sobrenatural ganhasse
mais força dentro da literatura. O auge do movimento se deu com a força do
romance gótico de Horace Walpole e Ann Radcliffe. Novos escritores foram
surgindo, mas ainda era muito grande a dificuldade em se definir o que seria
o fantástico.
Entre confusões e diversas interpretações que perduram até nossos dias, o
fantástico conseguiu certa sistematização apenas no século XX, a partir dos
estudos de Todorov. O pensador búlgaro-francês trouxe uma rica análise da
narrativa fantástica feita nos séculos XVIII e XIX, formando uma base muito
difícil de ser ignorada, pois é ponto de partida de todo bom trabalho sobre este
gênero narrativo. Isso se deve ao fato de sua teoria do fantástico ser bastante
consistente, exibindo constantes inegáveis da construção do fantástico. Nisto,
Introdução à literatura fantástica apresenta interessantes pontos a se discutir.

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O primeiro deles diz respeito à necessidade de um evento insólito, isto é, algum
elemento ou acontecimento apresentado que fira a lógica interna da diegese,
algo que destoa e desafia a lógica vigente. Com a irrupção desse evento,
surgirá a situação de dúvida, que propiciará, tanto aos personagens quanto
ao leitor, a sensação de hesitação, perplexidade e – não raro – de medo. Essa
sensação perdurará por toda a narrativa, sem se desfazer ao final, o que faz
com que o desfecho seja também inexplicável. Segundo Todorov apresentar
uma explicação plausível nos afastaria do fantástico, nos levando a um de
seus gêneros vizinhos. Se a explicação for lógica, real, estaremos diante do
estranho, enquanto se, por outro lado, explicássemos o problema com uma
justificativa sobrenatural, adentraríamos o território do maravilhoso. Baseando-
se na percepção de seus vizinhos, o estudioso conclui que “O fantástico
ocorre nesta incerteza (...). O fantástico é a hesitação experimentada por um
ser que só conhece as leis naturais, face a um acontecimento aparentemente
sobrenatural” (TODOROV, 2010, p. 31). Tendo sido essa hesitação o segundo
ponto a considerar na construção do fantástico, chegamos ao terceiro, em que
Todorov sugere que haja um pacto entre o leitor e a obra, que o impossibilita
de vê-la como poesia ou alegoria. Isto significa que uma linguagem poética,
metafórica, é insuficiente na instauração do fantástico, pois ela está mais para
uma estilização da realidade, que para uma ruptura desta. Por outro lado, a
alegoria faria com que o leitor captasse algum sentido diante dos fatos narrados,
o que desfaria a sensação de perplexidade causada pela inexplicabilidade dos
eventos. Caso sejam conservadas estas três premissas, o fantástico estaria
garantido à narrativa.
Percebamos que alguns destes pontos são questionáveis, fato que faz com que
novos teóricos venham se dedicando a rever, contradizer ou complementar a
teoria todoroviana, mas não buscaremos este problema neste estudo. Foquemo-
nos então às correlações entre Todorov e Genette.

Genette e o modo de narrar

Os estudos de Gérard Genette trazem observações pertinentes acerca da


composição dos narradores, sendo expostas de maneira muito ampla e
detalhada. Vejamos então algumas importantes definições.
Observando as possíveis distâncias que aquele que narra pode assumir em
relação ao acontecimento narrado, o autor já estabelece dois tipos básicos de
narrativa. É posto então que a narrativa de acontecimentos é aquela em que
o narrador assume maior distância do ocorrido, o que fica claro ao leitor de
acordo com a condução da narração.

A “imitação” homérica de que Platão nos propõe uma tradução em “narrativa


pura” não comporta mais que um breve segmento dialogado. Ei-lo, primeiro

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na sua versão original: “diz ele, e o velho, à sua voz, ganha medo e obedece.
Vai-se embora em silêncio, ao longo do areal onde rola o mar, e, quando, fica
só instantaneamente o velho implora o senhor Apolo, filho de Leto dos belos
cabelos”. E agora na reescrita platônica: “O velho, ouvindo tais ameaças,
teve medo e foi-se embora sem dizer nada; mas, uma vez fora do campo,
dirigiu a Apolo instantes orações” (GENETTE, 1995, p.163).

A citação acima mostra a comparação que Genette faz entre dois trechos da
narrativa homérica, sendo o segundo uma tradução feita por Platão. O objetivo
é mostrar que, amparado ao que diz o filósofo sobre a mimese, uma narrativa
pode se tornar mais pura, isto é, mais próxima do real, a partir da exclusão de
termos redundantes da narrativa fazendo com que ela se mostre mais. O efeito
acaba criando um paradoxo: menos se detalha, porém mais se apreende com
relação à realidade, ou seja, que se constitui de cenas e, consequentemente,
é mais mimética (Cf. GENETTE, 1995, p. 165).
Assim, o autor destaca, sempre se baseando na mimese grega, a existência de
uma forma narrativa oposta, tida como a narrativa de falas. Elas se diferem das
narrativas de acontecimentos por serem construídas essencialmente das falas,
seja do narrador ou das personagens, evitando uma imitação. À primeira vista
sente-se certa confusão nessas observações, mas elas se tornam mais claras a
partir das tipologias empregadas por Genette ao ver os diferentes tipos de falas.
A primeira diz respeito ao discurso narrativizado ou contado, que equivale ao
que comumente temos como discurso indireto. Já a segunda forma de discurso,
a forma transposta, também é baseada no discurso indireto, mas se mostra
menos distante do acontecimento. Ao observamos os trechos de Em busca do
tempo perdido1 comentados por Genette, percebemos melhor a diferença entre
estas duas primeiras tipologias. Na primeira: “Informei a minha mãe da minha
decisão de desposar Albertine” (PROUST, apud. GENETTE, 1995, p. 169). Já
na forma transposta: Disse a minha mãe que era absolutamente necessário
para mim desposar Albertine” (PROUST, apud. GENETTE, 1995, p. 169). Por
fim, ainda temos o discurso relatado, ou seja aquele em que a palavra é cedida
literalmente ao personagem, o que o aproxima do modo dramático, facilmente
reconhecido como o discurso direto. Mediante estas classificações torna-se
mais fácil perceber como a distância pode ser variável. Umas “mostram” mais
do que “contam”, mas todas compõem um grande leque de opções ao escritor.

Focalização

Além da distância, Genette também discursa sobre a perspectiva, isto é, do


ponto de vista estabelecido pela narração. O autor sugere alguns tipos de divisão
entre as possíveis perspectivas a adotar. Comentemos um pouco sobre estas.

1 Título do clássico de Marcel Proust, que é usado como base para a apresentação das proposições de Ge-
nette quanto ao modo de narrar.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 170
A focalização-zero nos parece um tanto difícil de compreender, talvez por
Genette pouco se apegar a ela em seu estudo. A ideia que temos desse tipo de
focalização é de uma “omnisciência do romancista clássico” (GENETTE, 1995,
p. 206), ou seja, a forma de narrar comum do romance do século XIX, em que
o narrador sabe de tudo, porém pouco se aproxima dos fatos, fazendo com
que eles se apresentem da forma mais neutra possível2. Em seguida, somos
apresentados à focalização interna, que como o próprio nome propõe, visa expor
as características intrínsecas de um personagem. Esse tipo de focalização pode
ser fixa (quando apenas um personagem é o focalizado), variável (quando se
alterna o foco narrativo entre dois personagens) e múltipla (vários personagens
sendo focalizados). O terceiro tipo de focalização é a externa, que se difere da
interna por não permitir que se tenha acesso à consciência do personagem
em foco 3 . Entender como se comportam estas diferentes perspectivas se
torna mais fácil quando pensamos não somente na literatura, mas também no
cinema. Lembremo-nos de como a câmera consegue adotar diferentes pontos
de vista para causar o impacto desejado no espectador e não perceberemos
muita diferença com o que acontece nos textos literários.
Além do que vimos, é interessante ressaltar o que fala Genette (1995, p. 189-
190) ao concluir sua exposição sobre os tipos de focalização:

A fórmula de focalização nem sempre se aplica ao conjunto de uma obra,


portanto, mas antes a um segmento narrativo determinado, que pode ser
muitíssimo breve. Por outro lado, a distinção entre os diferentes pontos de
vista nem sempre é tão nítida quanto a simples consideração dos tipos puros
poderia fazer supor. Uma focalização externa em relação a uma personagem
pode, por vezes, igualmente bem deixar-se definir como uma focalização
interna sobre outro.

Acima, Genette chama a atenção, de forma bastante inteligente, para que


não tenhamos nenhuma das focalizações descritas por ele como absolutas,
determinantes ou estanques na narrativa, fato que atribui mais flexibilidade à
teoria e nos abre os olhos para que analisemos minuciosamente cada cena
apresentada por determinada obra.
A partir das mudanças de focalização ao longo da narrativa, é natural que
alguns elementos, antes pouco ou não visíveis, se tornem mais evidentes, bem
como o inverso, quando coisas que estavam em nossa vista são ocultadas.
Isso faz com que a quantidade de informação oferecida possa ser regulada,
geralmente para dar mais dinamismo à narração ou gerar expectativa em
2 Vale a pena ressaltar que a definição dada por Genette é bastante vaga ou ambígua. Quando este se refere
ao romancista clássico, por exemplo, não temos com exatidão o que ele quer dizer com esse termo. Sendo assim, a
definição apresentada neste artigo passa também pela nossa interpretação do termo, o que talvez difira da definição
de Genette. Outro questionamento interessante a se fazer sobre a focalização-zero diz respeito a sua posição de neu-
tralidade. Como acreditamos ser impossível que se adote uma perspectiva neutra, optamos por expor a focalização-
-zero como uma forma narrativa que busca a neutralidade, mas nunca a alcançando por completo.
3 Percebamos que a focalização-zero também pode ser confundida com a focalização externa. Acreditamos
que a principal diferença entre elas se dá no fato de a focalização-zero ser de caráter mais descritivo, enquanto a
externa, embora não nos permita conhecer o interior de um personagem, ainda pode ater-se a ele mais efetivamente.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 171
quem lê. Assim, o autor nos apresenta dois novos conceitos: o de paralipse
e o de paralepse. O primeiro trata de omissão lateral, isto é, uma subtração
ou escassez de informação 4 cedida ao leitor. Já a paralepse faz com que a
alteração de focalização ceda mais informação do que o possível. Novamente
é possível perceber melhor como essas mudanças se comportam quando
nos lembramos do cinema; em um filme de suspense, por exemplo, tende-se
sempre à paralipse, para que o espectador não tenha certeza do que ocorre,
mantendo a expectativa quanto ao desenrolar da trama.
Expostos os principais conceitos acerca do modo narrativo da teoria de Gérard
Genette, vejamos como estes se comportam diante da teoria do fantástico todoroviano.

O fantástico e a focalização

O conto “Lua crescente em Amsterdã”, de Lygia Fagundes Telles, tem como


protagonista um casal que discute sentado em um banco de jardim em Amsterdã.
Ambos estão fora do lugar onde vivem e, ao chegarem à capital holandesa,
sentem imenso desconforto. Essa angústia se faz mais evidente na moça, Ana,
que chora insistentemente, querendo voltar para casa. A cena inicial nos mostra
o casal sentado no banco, diante de uma criança que porta uma fatia de bolo.
Ana sente fome e pede um pedaço do bolo, mas a garotinha foge assustada:

— Vai me dar um pedaço desse bolo? – pediu a jovem estendendo a mão.


— Me dá um pedaço, hem, menininha?
— Ela não entende – ele disse.
A jovem levou a mão até a boca.
— Comer, comer! Estou com fome – insistiu na mímica que se acelerou,
exasperada. — Quero comer!
— Aqui é a Holanda, querida. Ninguém entende. (TELLES, 1981, p. 59).

Irritados com o local onde mal podem se comunicar com outras pessoas, o
casal começa uma longa discussão, que proporciona um longo devaneio. Nisto,
Ana pensa que seria menor o seu sofrimento caso pudesse, de alguma forma,
nascer ou tornar-se algum outro ser:

Ela levantou as mãos e passou as pontas dos dedos nos cabelos. Na boca.
— E agora? O que acontece quando não se tem mais nada com o amor?
Quase ele levou de novo a mão no bolso para pegar o cigarro, onde fumara
o último?
— Sopra o vento e a gente vira outra coisa.
— Que coisa?
— Sei lá. Não quero é voltar a ser gente, eu teria que conviver com as
pessoas e as pessoas – ele murmurou. – Queria ser um passarinho, vi um
dia um passarinho bem de perto e achei que devia ser simples a vida de
4 Não confundamos a paralipse com a elipse. Grosso modo, a elipse é uma figura de linguagem que permite
a extirpação de termos redundantes de uma sentença a fim de torna-la mais objetiva, sem que haja qualquer prejuízo
a sua compreensão. Por outro lado, a paralipse omite elementos que são essenciais à trama – o que faz com que o
leitor sinta imediatamente a ausência deles. Evidentemente, a paralipse pode usufruir de elipses (no discurso de um
personagem, por exemplo) para produzir o efeito desejado.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 172
um passarinho de penas azuis, os olhinhos lustrosos. Acho que queria ser
aquele passarinho.
— Nunca me teria como companheira, nunca. Gosto de mel, acho que quero
ser borboleta. É fácil a vida de borboleta?
— E curta. (TELLES, 1981, p. 64).

Ao término da narrativa, o evento fantástico acontece, mas de forma sugerida,


bastante sutil: ambos parecem ter sido transformados nos animais com que
devaneavam. A narrativa se apresenta como um bom exemplo para que
observemos uma a uma as nuances e premissas do fantástico sob a ótica de
Todorov. O acontecimento insólito está presente. Entretanto, não há hesitação
sequer por parte dos personagens; o questionamento e hesitação se projeta ao
leitor de uma outra forma, o que pode nos fazer declarar que “Lua crescente
em Amsterdã” “(...) É fantástico tão-somente pela incerteza do acontecimento
inusitado, possibilitado pelas interferências dos índices discursivos e pela sua
inexplicabilidade” (SAMPAIO, 2009, p. 82). Uma vez que não temos a participação
efetiva das personagens na construção do fantástico, seria possível perceber
o que as substituiu? Prestemos atenção à cena final do conto:

O vento soprou tão forte que a menina loura teve que parar porque o avental
lhe tapou a cara. Segurou o avental, arrumou a fatia de bolo dentro do
guardanapo e olhou em redor. Aproximou-se do banco vazio. Procurou por
entre as árvores, voltou até o banco e alongou o olhar meio desapontado
pela alameda também deserta. Ficou esfregando as solas dos sapatos na
areia fina. Guardou o bolo no bolso e agachou-se para ver o passarinho de
penas azuis bicando com disciplinada voracidade a borboleta que procurava
se esconder debaixo do banco de pedra. (TELLES, 1981, p. 64).

Ao longo da narrativa, temos uma focalização centrada apenas nos dois


protagonistas, podendo ser vista como uma focalização interna e variável (Cf.
GENETTE, 1995, p. 187) a maior parte do tempo, uma vez que temos acesso às
emoções e falas de ambos com certa alternância característica dos diálogos.
Usando nossa já familiar comparação com o cinema, a situação seria facilmente
visualizada como um shot/reaction-shot somado à câmera subjetiva. Conforme
explicita Xavier (2008, p. 34),

A câmera é dita subjetiva quando ela assume o ponto de vista de uma das
personagens, observando os acontecimentos de sua posição, e, digamos,
com os seus olhos. O shot/reaction-shot corresponde à situação em que
o novo plano explicita o efeito (em geral psicológico) dos acontecimentos
mostrados anteriormente no comportamento de alguma personagem.

A construção cinematográfica da narrativa não para por aí. Próximo ao desfecho,


a focalização sofre uma mudança drástica, pois é deslocada do casal para a
garotinha que aparecera com o bolo no início da história. Uma vez focando-se
nela, deixamos de ver o momento em que se realizaria a metamorfose do casal.
Toda essa situação nos é ocultada através da paralipse que se forma com o

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 173
deslocamento do foco, que, por sua vez, sustenta a hesitação necessária à
concepção do fantástico. Em outras palavras, a cena da metamorfose é cortada
da narrativa para que fiquemos apenas com a reação da menina. Contudo,
também a menina não apresenta nenhuma reação específica, pois também
ela teve sua visão obstruída em relação à metamorfose, por causa do vento
que lhe atira no rosto o avental. O resultado é uma situação de metamorfose
apenas sugerida, impedindo que o leitor assuma uma explicação (tanto natural
quanto sobrenatural) ao acontecido. Todo este artifício também serve para
que essa principal característica do fantástico, a de hesitação frente a um
acontecimento que desafia a lógica vigente, não precise ser feita a partir de
uma narração em primeira pessoa ou, nas palavras de Todorov (2010, p. 94),
de um narrador representado:

O narrador representado convém ao fantástico, pois facilita a necessária


identificação do leitor com as personagens. O discurso deste narrador
possui um estatuto ambíguo e os autores o tem explorado diferentemente
enfatizando um ou outro de seus aspectos: quando concerne ao narrador,
o discurso se acha aquém da prova de verdade; quando à personagem,
deve se submeter à prova.

Destarte, vemos que há outras possibilidades de realização do fantástico


além das expostas por Todorov, conforme observamos a partir dos artifícios
tangentes à teoria de Genette.
Não só Telles parece ter feito uso destes artifícios. Também é possível encontrar
uma estruturação de cena muito bem feita em “O terceiro reinado”, conto da
escritora contemporânea Georgette Silen. No texto supracitado, conhecemos a
cidade do Rio de Janeiro vista de uma forma bastante peculiar. Ambientando-se
no século XIX, o conto cria um cenário hipotético, em que a monarquia resiste
bravamente e conduz o Brasil a uma prosperidade invejada por muitas potências
europeias, graças aos investimentos tecnológicos do governo Imperatriz Isabel,
filha de D. Pedro II. A tecnologia à base do vapor cria aparatos que melhoram
a vida de toda a população – fato que irrita os republicanos, que perdem cada
vez mais força. Vejamos um exemplo:

Antigas leis, como a Ventre Livre e Sexagenária, foram revogadas. Escravos


idosos demais para se sustentarem em pé eram recondicionados nos
laboratórios do império, tendo partes dos corpos decrépitos substituídas
por próteses, tornando-se a primeira geração de bioescravos , com peças-
motores funcionando à base de combustíveis gasosos, numa pesquisa e
aplicação pioneira em todo o mundo (SILEN, 2011, p. 74).

Composto todo este ambiente bastante característico do gênero steampunk5,


chegamos ao principal evento do conto: a apresentação da Imperatriz Isabel,
5 Corresponde a uma das vertentes da ficção científica ou especulativa, em que se recria certo período
histórico (em geral o final do século XIX, que corresponde à Era Vitoriana na Inglaterra) amparando-se às tecnologias
da época como o vapor.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 174
locomotiva de luxo que é produto de um projeto ambicioso, visando a travessia
do Rio de Janeiro a Itabuna, Bahia, em duas horas. A própria Imperatriz do
Brasil de Santa Cruz estaria a bordo na viagem inaugural. Eis que, pouco
antes da partida, o maquinista do veículo, Francisco Zander, recebe a visita de
Moncorvo Filho, reitor de um importante instituto de pesquisa. O reitor especula
se não seria melhor se a viagem fosse feita com os quatro motores ligados,
em vez de dois, como se previa. Segundo nos é explicado, isso tornaria a
viagem surpreendentemente mais curta – com apenas uma hora. A persuasão
tem clara motivação política, tanto para expor o sucesso da Monarquia aos
republicanos quanto aos demais países na corrida pelo desenvolvimento. Depois
de muita conversa, Zander acaba aceitando a recomendação de Moncorvo,
o que conduzirá o leitor ao surpreendente desfecho. Chegando a Itabuna, o
trem surpreende ao abrir suas portas e mostrar quem não havia absolutamente
ninguém mais em seu interior.

Na cabine de comando, encontraram as xícaras e o café preto ainda quente


(...) Mas nenhum sinal de Francisco Zander, da tripulação ou passageiros. O
silêncio soprava mistérios que nunca seriam revelados. O chefe da estação
mirou o painel de comando (...) conferiu os contadores de velocidade. Os pelos
de sua nuca se arrepiaram. Os números não podiam ser reais! Bateu com
o polegar e o indicador sobre o mostrador, mas ele não se moveu. Conferiu
os demais instrumentos, os registros de rota, qualquer dado de navegação
da locomotiva. Todos se detinham na mesma marca, pontuada em vermelho.
Uma velocidade que nenhum homem jamais pensou em alcançar (SILEN,
2011, p. 82).

Após a constatação de que algo inexplicável acontecera, o chefe da estação


de Itabuna pouco demonstra perplexidade, traz apenas a coroa da Imperatriz,
então desaparecida, em suas mãos, apenas pensando na nova realidade que se
apresentaria dali em diante. De maneira similar ao que vimos no conto de Lygia
Fagundes Telles, aqui também pouco há de perplexidade por parte daqueles
que presenciaram a chegada da locomotiva. Talvez a maior demonstração de
susto seja quando o chefe da estação se depara com o velocímetro do trem. No
mais, o público do lado de fora não tem acesso a nada mais, ficando a mercê
apenas da volta do chefe da estação de posse da coroa real. Analisemos como
se comporta então a focalização na concepção desse desfecho.
Ao longo de “O terceiro reinado”, diferente do que acontece em “Lua crescente
em Amsterdã”, temos cenas bastante amplas, em sua maioria, que podem ser
vistas como uma focalização-zero, uma vez que se limitam a descrever o espaço
narrativo, sem muito se ater a eventos mais específicos, em que se poderia
adotar a focalização externa como fonte. A situação só muda às vésperas da
partida do trem, quando temos uma focalização interna e variável no diálogo
em que Moncorvo persuade Zander a ativar os quatro motores durante a
viagem. Percebamos que durante o desenrolar das ações o foco é o trem e

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 175
as pessoas que estão em seu interior. Curiosamente, tal como aconteceram
no conto de Telles, a focalização se afasta do local onde ocorrerá o evento
fantástico, fazendo com que tenhamos acesso apenas a seus resultados – ou
seja, novamente o fantástico é construído por meio de uma paralipse obtida
com a mudança brusca de focalização. Mesmo quando o chefe da estação
adentra a locomotiva, ainda não temos certeza do que ocorrera, fica apenas a
sugestão de que os tripulantes foram deslocados no espaço-tempo devido à
alta velocidade. Também nesta narrativa o fantástico não foi construído a partir
de um narrador representado, o que fica claro ao observarmos as diferentes
facetas da focalização ao alongo da narrativa. Outro questionamento que
podemos levantar diz respeito ao mundo onde ocorre a narrativa de “O terceiro
reinado”. Ao contrário do primeiro conto comentado, estamos diante de uma
versão hipotética do mundo real, não estamos exatamente no mundo real. Tudo
isso pode também nos fazer questionar as principais bases do fantástico, já
que aqui temos uma quebra da lógica vigente, mas não o mundo real como o
conhecemos; temos hesitação e inexplicabilidade projetadas ao leitor, mas o
mundo da narrativa já não é mais o nosso. Enfim, os dois contos acima servem
para mostrar que algumas assertivas sobre o fantástico não se portam como
absolutas, pois novos procedimentos criam novas constantes que não foram
previstas pela teoria de Todorov.

Conclusão

Mediante as exposições das teorias de Gérard Genette e Tzvetan Todorov, e


com a ajuda dos exemplos que analisamos, podemos notar que os principais
tópicos relacionados à teoria de Genette são bastante pertinentes quando
aplicados ao fantástico.
Em um primeiro momento, essas ponderações colaboram com os principais
postulados da teoria de Todorov. Chamamos atenção, inclusive, ao brilhante
papel da paralipse na construção do fantástico. Podemos observar que se,
segundo Todorov, devemos manter no leitor a incerteza e a incapacidade de
explicar os fatos que lê, seja de modo natural ou sobrenatural, a omissão de
dados essenciais para a compreensão total é quase imperativa – pensamento
que induziria o escritor a fazer uso de paralipses, conforme pudemos perceber
à leitura de “Lua crescente em Amsterdã” e “O terceiro reinado”. Resumindo:
convém ao fantástico o uso de um discurso paralíptico.
Por outro lado, a imensa variedade de distâncias que pode ser conseguida
dentro de uma mesma narrativa, conforme é explicitado ao estudarmos os
diversos tipos de focalização, ajuda a mostrar que certas afirmações da teoria
de Todorov não seriam tão importantes – como no caso da narração em primeira
pessoa. Ambas as narrativas usadas como exemplo são em terceira pessoa,
mas conseguem manter o caráter inverossímil do evento fantástico a partir de

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 176
outros recursos. Tais recursos ganham muito com a variação de focalização que
pode, além de chamar a percepção do leitor para a composição espacial da
narrativa, impedir-lhe ou permitir-lhe de ter acesso a determinadas informações
que seriam de suma importância. Evidente que a variação de distância e
focalização não é o único tipo de procedimento que pode proporcionar isso,
mas fica bem claro, a partir dos exemplos comentados, o forte auxílio que
este recurso pode prestar ao escritor que deseja criar novas possibilidades de
criação do fantástico. Destarte, temos em mãos uma excelente ferramenta para
subverter as principais tendências da narrativa fantástica, contribuindo para sua
originalidade e difusão, bem como fazendo com que os estudos teóricos sigam
desbravando novas vertentes do gênero ou novas possibilidades de escrita.

GENETTE AND THE FANTASTIC

ABSTRACT

The following text intends to analyze how important topics discussed by the French
theorist Gérard Genette in his Narrative discourse: an essay in method can be
used with the theories of the fantastic literature, especially the Tzvetan Todorov’s
theory, presented in The Fantastic: a structural approach to a literary genre.
According to our point of view, we can notice that some aesthetical procedures
appointed by Genette are very useful to create the fantastic, such as the paralipsis
and another procedures related to the narrative mood. We will present examples
found in Brazilian fantastic literature in order to confirm our speculations.

Key-words:

Gérard Genette, Tzvetan Todorov, Theory of the fantastic, short-story, fantastic


literature.

REFERÊNCIAS

GENETTE, Gérard. Discurso da Narrativa. 3ª ed. Lisboa: Veja, 1995 (coleção


Veja Universidade).

SAMPAIO, Aíla. Os fantásticos mistérios de Lygia. Fortaleza: Expressão Gráfica


Editora, 2009.

SILEN, Georgette. O terceiro reinado. In: RUIZ, Tatiana (org.). Steampink. Belo
Horizonte: Estronho, 2011, p. 72-83.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 177
TELLES, Lygia Fagundes. Lua crescente em Amsterdã. Mistérios. Rio de Janeiro:
Nova Fronteira, 1981, p. 57-64.

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. São Paulo, Perspectiva,


2010.

XAVIER, Ismail. A decupagem clássica. O discurso cinematográfico: a opacidade


e a transparência. 4ª ed. São Paulo: Paz e Terra, 2008.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 178
textos livres
Apresentação textos livres

Textos Livres

Este número do Caderno Seminal Digital – nº 17, referente a jan.-jun./2012 – contém,


em sua segunda e última seção – “Textos Livres” –, três artigos: “Letramento,
oralidade e escrita em contexto digital”, de Ana Maria Pires Novaes; “O design
de informação como instrumento de inclusão social”, de Maria João Palma,
Airton Castagna e Katia Avelar; “‘Mestres populares’ e a escola no Brasil”, de
Ricardo do Carmo, Katia Avelar e Maria Geralda de Miranda.
Esses três diferentes textos garantem, a este número, sua dimensão inter ou
multidisciplinar, fazendo dialogarem, entre si, diversas linguagens, constituindo
semioses múltiplas e promovendo o encontro de saberes oriundos de muitos
campos e áreas dos estudos contemporâneos, com ênfase, especial, na
concentração de pesquisas acerca do desenvolvimento local.
Ana Maria Pires Novaes discute as “formas de letramento ou letramentos” que,
na contemporaneidade, vêm trazendo “mudanças significativas às práticas
de leitura e escrita”. A estudiosa denuncia que “as instituições de ensino não
podem mais limitar o letramento aos chamados gêneros escolarizados, uma
vez que é preciso habilitar os alunos para a produção de outros gêneros
discursivos que circulam na vida social, inclusive aqueles que se constituem
no ambiente digital”. No artigo, ela se propõe-se a refletir sobre o papel da
formação escolar, em especial a universitária, no que tange às habilidades de
leitura e de escrita, apontando, ainda, para “um redirecionamento do ensino
que considere as novas tecnologias de informação e comunicação”.
Maria João Palma, Airton Castagna e Katia Avelar tratam da leitura e da
formação de leitores, focalizando “o design de informação como princípio
básico e facilitador para a aquisição de conhecimento por parte de indivíduos
que necessitam ser incluídos socialmente”. O artigo tem por fio condutor a
discussão acerca do “modo pelo qual o design da informação propicia maior
assimilação de conteúdos”. Assim, propõem que se reflita sobre as relações
da linguagem como forma e conteúdo.
Ricardo do Carmo, Katia Avelar e Maria Geralda de Miranda tentam iluminar a
“importância social dos chamados ‘mestres populares’”, discutindo e investigando
as razões “de sua marginalização histórica” e por que “os seus saberes não
encontram espaço no sistema educacional brasileiro”, mais especificamente
em seu espaço institucional, qual seja a escola. Eles atentam para outras inter-
relações da linguagem, estabelecendo laços com a cultura popular e a arte
em geral, nomeadamente, em suas manifestações “marginais”.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 180
Esses três artigos completam, exemplarmente, o número 17 de nosso Caderno
Seminal Digital, dando fechamento à sua segunda e última seção, conforme
estamos, no momento, experimentado, igualmente, essa nova forma(tação) de
linguagem.
Flavio García
UERJ

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 181
LETRAMENTO, ORALIDADE E ESCRITA EM CONTEXTO DIGITAL

Ana Maria Pires Novaes1

RESUMO:

A ampliação contínua de acesso às tecnologias de comunicação e da informação


pelos indivíduos na contemporaneidade tem trazido mudanças significativas
às práticas de leitura e escrita. Na busca de avaliar as implicações dessas
mudanças no ensino/aprendizagem de língua materna, pesquisadores da área
vêm estudando múltiplas formas de letramento ou letramentos, que envolvem,
entre outros tipos, a multimodalidade das mídias virtuais. Por sua vez, as
instituições de ensino não podem mais limitar o letramento aos chamados
gêneros escolarizados, uma vez que é preciso habilitar os alunos para a
produção de outros gêneros discursivos que circulam na vida social, inclusive
aqueles que se constituem no ambiente digital. Este estudo tem como objetivo
discutir as interações síncronas da internet, bem como a interface entre língua
falada e língua escrita no continuum dos gêneros textuais que se produzem
nesse contexto. Pretende, ainda, refletir sobre um redirecionamento do ensino
que considere as novas tecnologias de informação e comunicação.

PALAVRAS-CHAVE:

Gêneros virtuais, oralidade, escrita, letramento, ensino.

Introdução

O acelerado avanço tecnológico da atualidade, em especial a mídia eletrônica,


vem ampliando a noção de texto e favorecendo o surgimento de uma variedade
de novos gêneros. O domínio exclusivo do texto verbal escrito não é mais
suficiente, uma vez que os letramentos hoje exigem conhecimento e capacidades
relativas a diversas linguagens e variadas semioses.
A escrita eletrônica, ao romper com a estrutura convencional de texto, dá lugar
ao hipertexto, que se caracteriza como um processo de escritura/leitura não
sequencial e não linear, que permite ao leitor o acesso, em tempo real, a outros
textos, a partir de escolhas locais e sucessivas. É ele uma “forma híbrida,
dinâmica e flexível de linguagem que dialoga com outras interfaces semióticas,
adiciona e condiciona à sua superfície formas outras de textualidade” (XAVIER,
2004, p.171). Tais características obrigam os estudiosos da linguagem a rever
noções como linearidade, estrutura, coesão, coerência, entre outras, porque, o
1 Doutora em Letras pela UFF. Professora do curso de Mestrado Profissional Interdisciplinar em Desenvolvi-
mento Local e do curso de Letras da UNISUAM / Centro Universitário Augusto Motta.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 182
ambiente virtual permite ao leitor definir interativamente o fluxo de sua leitura a
partir do acesso a um número praticamente ilimitado de textos em tempo real.
Essencialmente interativo, o hipertexto é um processo de escritura/leitura
multilinearizado, multisequencial e indeterminado, realizado em um novo espaço
(MARCUSCHI, 2007, p.146). Além da interatividade, da não linearidade, da
acessibilidade ilimitada, caracteriza-se pela multimodalidade/multisemiose,
isto é, pela possibilidade de interconectar simultaneamente a linguagem verbal
com a não-verbal (musical, cinematográfica, visual, entre outras). No hipertexto,
também estão presentes características como a volatilidade, decorrente da
própria natureza virtual do suporte, a topografia, espaço de escrita e leitura sem
limites definidos, e a fragmentariedade, evidenciada na constante ligação de
porções breves, com possíveis retornos ou fugas, determinantes na definição
desse texto que se produz com outro formato e num outro ambiente.
É preciso considerar também que a Comunicação Mediada por Computador
(CMC) determina a existência de um conjunto de novos gêneros que emergem
nesse contexto - chats, e-mails, aulas virtuais, blogs, videoconferências interativas,
entre outros, e redefine os limites entre autor e leitor.
Outro ponto importante, quando se discute o ensino/aprendizagem da língua,
é a necessidade de a Escola, nas práticas de letramento, contemplar gêneros
virtuais e variados recursos tecnológicos, como forma de incentivar a produção
de textos e o desenvolvimento de habilidades de novas formas de ler e escrever.

1. Gêneros discursivos e mídia virtual

As esferas das atividades humanas, por mais variadas que sejam, estão sempre
relacionadas com a utilização da língua e a circulação dos discursos. Estes não
são atos isolados, uma vez que são sempre legitimados por alguma instância de
atividade humana socialmente organizada. Assim, todo falante, em função da
especificidade da esfera de comunicação, do modo de produção e recepção
do texto, mobiliza diferentes competências e elabora tipos relativamente estáveis
de enunciados, denominados gêneros do discurso (BAKHTIN, 2000).
Ao discutir a proposta bakhtiniana de gêneros do discurso, Faraco (2003,
p.112) comenta:

O pressuposto básico da elaboração de Bakhtin é que o agir humano não


se dá independente da interação; nem o dizer fora do agir. Numa síntese,
podemos afirmar que, nessa teoria, estipula-se que falamos por meio de
gêneros no interior de determinada esfera de atividade humana. Falar não
é, portanto, apenas atualizar um código gramatical num vazio, mas moldar
o nosso dizer às formas de um gênero no interior de uma atividade.

Os gêneros têm sempre um envolvimento social, ou melhor, um caráter


sócio-histórico determinado. “Não se pode tratar o gênero de discurso

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independentemente de sua realidade social e de sua relação com as atividades
humanas” (MARCUSCHI, 2008, p.155). Além disso, todas essas atividades estão
relacionadas ao uso da língua, que se efetiva por meio de enunciados orais e
escritos. Para Bakhtin (2000, p.302), “aprender a falar é aprender a estruturar
enunciados (porque falamos por enunciados e não por orações isoladas e,
menos ainda, é óbvio, por palavras isoladas)”.
Cada domínio discursivo, esfera da vida social ou institucional, desenvolve
práticas características e dá origem a vários gêneros, que nele circulam (discurso
jornalístico, jurídico, religioso, político, militar, pedagógico, entre outros). Ao
tratar dessa questão, Marchushi (2008, p. 194) explica:

[...] os domínios discursivos produzem modelos de ação comunicativa que


se estabilizam e se transmitem de geração a geração, com propósitos e
efeitos definidos e claros. Além disso, acarretam formas de ação, reflexão e
avaliação social que determinam formatos sociais que, em última instância,
desembocam na estabilização de gêneros textuais. E eles também organizam
as relações de poder.
É justamente pelas distintas práticas sociais desenvolvidas nos diversos domínios
discursivos que sabemos que [...] nossa produção textual na universidade
e numa revista de variedades não será a mesma. Consequentemente os
domínios discursivos operam como enquadres globais de superordenação
comunicativa, subordinando práticas sociodiscursivas orais e escritas que
resultam nos gêneros.

Há gêneros que circulam, apenas, num domínio específico, como a ordem do


dia, na área militar, as novenas e ladainhas no domínio religioso e a redação
escolar, na sala de aula. Outros se situam na interface entre a fala e a escrita
como os noticiários de TV, os contos populares – produzidos oralmente, mas
transmitidos pela escrita.
Pinheiro (2002, p.278-279), ao analisar os gêneros nos produtos midiáticos, comenta:

As frequentes mudanças provocadas pela velocidade e tecnologização


nos meios de comunicação de massa e o desmoronamento de gêneros já
consagrados nesses meios faz brotar uma variedade de gêneros híbridos,
construídos em decorrência da necessidade de gerar o “novo”: criar,
transformar, modificar, mesclar, inovar o que é, antes de tudo, o mesmo. [...]
Em função das especificidades que envolvem tanto forma como conteúdo,
um programa feminino na televisão, um telejornal ou um editorial em jornais
e em revistas femininas são percebidos pelos receptores como tipos de
textos diferentes em que cada um guarda suas características e constrói
efeitos distintos dentro do processo. Nesse caso, o meio torna-se também
uma variável.

Tais mudanças comprovam que os gêneros, mesmo sendo formas tipificadas,


são dinâmicos, permitem misturas, inter-relações para dar conta de necessidades
da vida social, que se manifestam em novas circunstâncias.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 184
Os suportes tecnológicos da realidade atual, principalmente a internet, favorecem
o surgimento de uma variedade de novos gêneros como videoconferências
interativas, bate-papos virtuais (chats) em todas as modalidades (chat em aberto,
chat reservado, chat agendado, chat privado), e-mails, aulas virtuais, diários
participativos (blogs), entre outros, com características típicas da oralidade e
da escrita. Esses novos gêneros, desenvolvidos na mídia virtual, possibilitam
uma nova forma de comunicação, com um novo modo discursivo denominado
“discurso eletrônico.”
Para Marcuschi (2008, p.200), a relevância de se tratar dos gêneros emergentes
reside em pelo menos quatro aspectos:

1. São gêneros em franco desenvolvimento e fase de fixação com uso cada


vez mais generalizado;
2. apresentam peculiaridades formais próprias, não obstante terem contrapartes
em gêneros prévios;
3. oferecem a possibilidade de se rever alguns conceitos tradicionais a
respeito da textualidade;
4. mudam sensivelmente nossa relação com a oralidade e a escrita o que
nos obriga a repensá-la.

Uma das características centrais dos gêneros digitais é a alta interatividade, em


muitos casos de forma síncrona, fato que lhes confere um caráter inovador na
relação fala e escrita. Os e-mails, por exemplo, substituíram as cartas pessoais,
comerciais e os bilhetes, seus antecessores. Neles, os interlocutores interagem,
construindo um texto “falado” por escrito. Ao discutir a questão de ser o e-mail
apenas um canal ou um gênero, Paiva (2004, p.77-78) esclarece:

Entendo que o meio de transmissão de mensagens eletrônicas e-mail


gerou um novo gênero textual também denominado e-mail que gera textos
diversos que se distinguem dos demais textos (anúncios, cartas etc) também
transmitidos eletronicamente. [...]
Vejo o e-mail como um gênero eletrônico escrito, com características típicas
de memorando, bilhete, carta, conversa face a face e telefônica, cuja
representação adquire ora a forma de monólogo ora de diálogo e que se
distingue de outros tipos de mensagens devido a características bastante
peculiares de seu meio de transmissão, em especial a velocidade e a
assincronia na comunicação entre usuários de computadores.

Para Violi (2009), o e-mail pode ser considerado como um subgênero do


gênero textual mais geral da troca epistolar. Apresenta características comuns
com o esquema geral que define o gênero, mas também apresenta diferenças
importantes e únicas. Ao comparar o e-mail com o gênero carta, essa autora
argumenta:

Se as cartas regulares são geralmente caracterizadas por uma dupla distância,


tanto em tempo como em espaço, no e-mail, apenas a distância espacial é
preservada, enquanto a distância temporal é reduzida a virtualmente tempo
zero. Apesar de este não ser sempre o caso, e as mensagens poderem

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 185
obviamente tornar-se mais longas, a troca de duas mensagens no ambiente
do correio eletrônico pode ser quase imediata, e esse é frequentemente o
caso, quando duas pessoas estão usando o sistema ao mesmo tempo. [...]
Desse ponto de vista, o ‘agora’ do remetente é assumido como sendo o
mesmo ‘agora’ do destinatário; em outros termos, os dois tempos da elocução
são tomados como coincidentes. Uma situação como essa está muito mais
próxima da conversação oral que das cartas escritas (VIOLI, 2009, p.50-51).

O blog, corruptela de weblog, funciona como uma agenda digital acessível a


qualquer um na rede. É um tipo de diário virtual público que contém informações
sobre determinada pessoa, lugar ou situação e que é usado para expressar
idéias, opiniões e posição em face de determinado assunto. Os blogs são
dinâmicos, interativos; têm uma abertura para receber comentários sobre o que
foi escrito ou recados. Permitem a convivência de textos escritos, de imagens
(fotos, desenhos, animações) e de som (músicas principalmente).
Como explica Komesu (2004, p.113), as condições típicas de enunciação, o
caráter público da atividade, a rápida atualização e manutenção dos escritos em
rede, a interatividade com o leitor das páginas pessoais, entre outros aspectos,
permitem considerar-se o blog um novo gênero, embora possam ser identificados
também, em sua constituição, traços dos diários tradicionalmente escritos.
Ainda que a multimodalidade não seja exclusiva dos gêneros virtuais, no espaço
do hipertexto, ela se acentua, visto que há maior integração entre as semioses
(linguagem verbal, som, imagem, ícones e a própria disposição gráfica do texto
na tela do computador).
Na verdade, os gêneros virtuais não são inovações absolutas, mas formas
discursivas que se ancoram em gêneros já existentes. Segundo Crystal (apud
MARCUSCHI e XAVIER, 2004, p.94), “do ponto de vista dos gêneros realizados, a
Internet transmuta de maneira bastante complexa gêneros existentes, desenvolve
alguns realmente novos e mescla vários outros.”
No chat, a relação dialógica apresenta-se na forma de uma conversação que se
dá por meio de enunciados construídos num texto falado por escrito. Tem muito
de uma conversa espontânea como alto grau de informalidade e descontração,
frequentemente uma escrita abreviada, recorrência de períodos curtos e de
marcadores conversacionais. Tem, ainda, auxiliando a compreensão pragmática
do texto, a presença de emoticons, ícones que traduzem sentimentos e emoções
dos interlocutores, além de outros recursos que suprem a ausência da voz, dos
gestos, da expressão fisionômica, característicos da interação face a face, como,
por exemplo, o uso excessivo dos sinais de pontuação, letras em tamanho maior ou
menor, alongamento de vogais e consoantes, quebra de fronteiras entre as palavras.
Nele, as conversas se estabelecem numa rede de ligações na qual se recebem
mensagens que podem ser respondidas numa alternância ininterrupta de
enunciados. Considerando que, na visão bakhtiniana, “compreender a

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 186
enunciação de outrem significa orientar-se em relação a ela, encontrar o seu
lugar adequado no contexto correspondente, opor à palavra do locutor uma
contrapalavra” (BAKHTIN,1986, p.131), no chat “concordando, discordando,
completando, opinando sobre um tema que ali se constituiu enquanto objeto
de interlocução discursiva, promove-se uma alternância desejada na qual o
ouvinte não é passivo, porque assume uma atitude responsiva ativa diante do
texto que lê” (BERNARDES; VIEIRA, 2006, p.58-59). Numa leitura que se torna
escritura, o leitor passa a ter um papel mais ativo, e a fronteira entre o escritor
e o leitor se fragiliza, visto que a produção do texto resulta de uma co-autoria.
Na verdade, a internet se constitui como espaço de interação e de produção de
linguagem. Todos os sites possuem links que buscam estabelecer contato com o
visitante, pedem a participação do usuário por meio de uma ação interativa que
se realiza quase sempre pela modalidade escrita da língua. Para Xavier (2006),
a própria idéia de hiperlink já carrega em si o traço interacional, dialógico, visto
que “conduz o leitor a outros sites indexados à net, colocando-o em contato
com uma verdadeira rede de relações interpessoais e interinstitucionais.”

2. Oralidade e escrita no contexto da internet

Entre as diferenças, mais frequentemente mencionadas nos estudos sobre fala e


escrita, apontam os autores a dicotomia contextualização x descontextualização.
Tal fato decorre de se limitar a noção de contexto à situação física em que o
enunciado é produzido. Nesse caso, a fala seria, por sua própria natureza,
contextualizada, e o contexto situacional poderia ser assumido na produção
textual como parte integrante do texto. Por outro lado, como o leitor não dispõe
do contexto de produção do autor, a escrita necessitaria ser plenamente explícita,
isto é, o autor precisaria dar conta linguisticamente dessas condições. O que
ocorre de fato é que, ao produzir um texto, um falante/escrevente não apenas
se situa em relação ao espaço e tempo, mas vai situando seu ouvinte/leitor
dentro de um quadro mais amplo que opera como contextualização, conduzida
por pistas prosódicas, lexicais, estilísticas, dialetais etc. Tais pistas, presentes
tanto nos textos orais como nos textos escritos, guiam os ouvintes/leitores na
interpretação das informações textuais e contextuais (conhecimento de mundo,
conhecimentos situacionais ou enciclopédicos e conhecimento da estrutura
da língua). Assim, contexto não é só a situação interlocutiva, o entorno sócio-
político-cultural em que os interlocutores se inserem ou o contexto linguístico,
mas também o contexto sociocognitivo.
Do mesmo modo, a explicitude deixa de ser vista como uma propriedade
exclusiva da escrita, como uma decorrência da descontextualização e da
verbalização. A implicitude, por sua vez, constituída por intenções, inferências e
subentendidos, não se relaciona dicotomicamente com a explicitude, porque, no

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 187
funcionamento discursivo do texto, os sentidos são gerados numa interação. O
que em um texto deve ser explicitado ou o que pode ficar implicitado, depende,
em grande parte, do uso que o produtor faz dos fatores contextuais.
Os estudos mais recentes, ao focalizarem as diferenças entre fala e escrita
no continuum das práticas sociais, comprovam, também, que a interatividade
não é exclusiva de uma modalidade, mas uma propriedade de todo e qualquer
uso da língua. Assim, tanto na fala quanto na escrita, há marcas interativas
que comprovam o princípio do “dialogismo”: ninguém fala/escreve sem ter em
mente um interlocutor. Da mesma forma, essas marcas, ao serem utilizadas
pelo ouvinte/leitor, funcionam como pistas contextualizadoras para a construção
do sentido do texto.
Marcuschi (2001, p.37-38), ao estabelecer as relações entre fala e escrita no
contexto efetivo dos usos linguísticos, defende a hipótese de que as diferenças
entre as duas modalidades da língua se dão dentro de um continuum tipológico
das práticas sociais, o que impediria se situar a oralidade e a escrita em pólos
opostos ou em sistemas linguísticos diversos. As duas modalidades podem ser
tidas como modos complementares de enunciação com interfaces amplas, o
que sugere maior número de semelhanças do que de diferenças. Consideradas
no interior das práticas sociais, fala e escrita identificam gêneros de textos,
concebidos como orais ou escritos em maior ou menor grau. Um discurso
acadêmico, por exemplo, embora seja um texto falado do ponto de vista de
sua realização fônica, está, na sua concepção, mais próximo de um texto
escrito. Embora se apresente oralmente, será sempre um gênero secundário
por pertencer a uma esfera complexa de comunicação, que é a científica. Já
as cartas íntimas e pessoais, ainda que se realizem por escrito, aproximam-
se, conceptualmente, de um texto falado. Desta forma, o que justifica o rótulo
primário ou secundário não é a modalidade da língua utilizada, mas a esfera
a que se vincula o gênero (ARAÚJO, 2004, p.93).
Os gêneros virtuais, objeto de estudo deste trabalho, ao se constituírem na
interface oralidade/escrita, tornam possível que uma propriedade, como a
simultaneidade temporal, por exemplo, até há pouco tempo, exclusiva da fala,
esteja presente na prática da escrita a distância. Outro aspecto da oralidade que
se faz presente na conversação on-line é que nesta a atividade conversacional,
mediada pela escrita, também se estabelece em turnos, em que os interlocutores
se alternam. A volatilidade do meio exige turnos predominantemente curtos,
constituídos basicamente de pares adjacentes.
Marcados por “certa informalidade, menor monitoração e cobrança pela fluidez
do meio e pela rapidez do tempo”, os “gêneros emergentes”, resultantes, muitas
vezes, de um certo hibridismo, redefinem os usos da linguagem na atualidade
e desafiam as fronteiras entre oralidade e escrita (MARCUSCHI, 2004, p.29).

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 188
Para esse autor (2004, p.63-64), escrever pelo computador no contexto da
produção discursiva dos bate-papos síncronos (on-line) não é uma nova forma
de escrita, mas uma nova relação com os processos de escrita, um novo
letramento. Cita Halliday (1996) para dizer que “sob o impacto das novas formas
de tecnologia”, presencia-se uma nova situação que “está desconstruindo toda
a oposição entre fala e escrita.”
Ao analisar os novos gêneros do ciberespaço, Costa (2006:26) chama a atenção
não só para a quebra das concepções tradicionais de oralidade e escrita, mas
também para a dissolução das fronteiras entre leitura e escrita e para novos conceitos
de autoria, escritor, leitor. Para esse autor, ao navegar na rede, o usuário não está
se apropriando apenas de “novos códigos sonoro-visuais ou gráfico-auditivos
comunicativos para ler e escrever, mas, sim, construindo um novo objeto conceitual
mediado por novos tipos de interação linguística, social e cultural.”
Com o hipertexto, a leitura se torna simultaneamente uma escritura e os limites
entre leitor e escritor também se alteram. Nesse tipo de leitura, o leitor passa a
ter um papel mais ativo, e a fronteira entre o escritor e o leitor se fragiliza, visto
que a produção do texto resulta de uma co-autoria.
Ao explicar a ruptura de limites entre autor e leitor no hipertexto, Marcuschi
(2007, p.155), comenta:

Ao se mover livremente, navegando por uma rede de textos, o leitor procede


a um descentramento do autor, fazendo de seus interesses de navegador o
fio organizador das escolhas e das ligações. Certamente, o leitor procede por
associações de ideias que o conduzem a sucessivas escolhas, produzindo
uma textualidade cuja coerência tem um toque pessoal. Pode-se até mesmo
dizer que não há, efetivamente, dois textos iguais na escritura hipertextual.

3. Gêneros digitais e ensino

Embora seja lugar comum afirmar que os adolescentes e jovens, em especial,


não têm o hábito da leitura e da escrita, a verdade é que eles passam horas
“navegando” no espaço virtual, lendo e escrevendo no Orkut, no Facebook e
outros sites de relacionamento. Por que, então, não utilizar os gêneros digitais
como ferramentas para novos letramentos, capacitando os estudantes a uma
interação mais participativa no meio social?
Ao afirmar que a geração atual tem adquirido o letramento digital antes mesmo
de ter-se apropriado completamente do letramento alfabético ensinado na
escola, Xavier (2006) assinala:

Defendo que o uso dos gêneros digitais da internet não prejudica a


aprendizagem da escrita pelos adolescentes. Antes deve servir de contraponto
para a escola alertar esses usuários sobre a necessidade de se comportar
diferentemente diante dos vários gêneros e suportes textuais e assim adequar

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 189
a escrita a cada um deles. [...] a internet surge mais como ferramenta de
auxílio à aquisição de habilidades de leitura e escrita do que como um novo
empecilho para o domínio dessas habilidades.

Na contemporaneidade, em função do avanço tecnológico e da expansão das


mídias eletrônica e digital, à prática do letramento da escrita, do signo verbal,
devem ser incorporadas outras práticas de letramento, centradas na imagem,
no signo visual, uma vez que a multimodalidade tornou-se traço constitutivo do
discurso oral e escrito (DIONÍSIO, 2006, p.132). Além disso, os novos formatos
de leitura e escrita e a mudança na concepção de leitor e autor determinados,
em especial, pelo uso do computador e pelos hipertextos, vêm definindo um
novo cenário educacional.
Assim como no final dos anos 90, os Parâmetros Curriculares Nacionais transformaram
os gêneros discursivos em objeto de ensino e possibilitaram uma revisão nas
relações entre oralidade e escrita, os gêneros digitais da atualidade também vão
determinar alterações curriculares e uma nova postura didático-pedagógica, abrindo
o espaço escolar às novas tecnologias de informação e comunicação. Para isso
é urgente capacitar professores e alunos na utilização de ferramentas midiáticas
de forma que essas sejam instrumentos de leitura e escrita.
Rojo, Barbora e Collins (2006, p.109-110), ao tratarem de letramento digital em
projeto de formação continuada de professores, esclarecem:

Quando mediados por computadores como ferramentas cognitivas, os


processos de planejamento e desenvolvimento tradicionais são substituídos
por processos de representação, criação e expressão que só as novas mídias
propiciam. Em vez de usar as tecnologias para limitar e regular os processos
de aprendizagem dos professores-alunos, por meio da utilização de estilos e
dinâmicas pré-concebidas de interação, trata-se de oportunizar um processo
de apropriação das mídias pelos participantes que dela passam a fazer
uso para analisar o mundo, acessar informação, interpretar e organizar seu
conhecimento pessoal e representar o que sabem para outros.

É necessário, portanto, que os sistemas de ensino, em todos os níveis, não


só capacitem os professores para o domínio das ferramentas oferecidas pelo
ambiente virtual, mas promovam, de fato, um redirecionamento das formas
de ensino/aprendizagem. No tocante aos alunos, deve a Escola aproveitar as
habilidades que os mais jovens têm em relação à mídia eletrônica e oportunizar
experiências que os preparem para lidar com novos gêneros discursivos,
novas formas de ler e escrever em sintonia com um mundo em permanente
transformação, onde não mais existem barreiras de tempo e espaço.
Importa salientar que o letramento digital propiciará aos estudantes postura mais
crítica frente ao universo informacional da rede que os auxilie na pesquisa e
avaliação do material coletado, bem como favorecerá o uso consciente das novas
tecnologias. Além disso, o trabalho com os gêneros da mídia virtual pode dinamizar

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 190
as atividades de produção textual para além dos limites estritamente linguísticos,
possibilitando uma análise que considere as formas de composição, circulação
e recepção dos textos bem como os recursos multissemióticos. Como nos alerta
Xavier (2006), a internet pode contribuir na formação intelectual e linguística dos
seus usuários, uma vez que “tende a fazer deles vorazes leitores e autores de
textos sejam verbais, visuais, sonoros ou hipertextuais, habilidades que a escola e
suas milenares ferramentas pedagógicas têm conseguido com muita dificuldade.”
Vale destacar que a apropriação das ferramentas digitais por professores e
alunos atenderá à necessidade de abertura do espaço escolar para a vida
extramuros, onde a tecnologia, já faz algum tempo, é realidade.

Conclusão

Ao longo deste trabalho, procurou-se demonstrar que, com a Internet, novas


formas de comunicação e gêneros em diversos formatos apresentam-se aos
indivíduos e exigem, de todos, competências e habilidades para circular e agir
num mundo dominado por novas tecnologias e diferentes modos de interação.
A partir dessa constatação, buscou-se refletir sobre o hipertexto e as mudanças
no ato de ler por ele provocadas, as especificidades de alguns gêneros digitais,
bem como sobre a possibilidade de considerá-los transmutações de gêneros
mais convencionais que circulam em outras esferas de atividade humana.
Avaliou-se também a interface entre oralidade e escrita nos textos produzidos
na mídia virtual, a existência de uma “escrita oralizada” nas práticas discursivas
mediadas por computador e a redefinição dos papéis de autor e leitor.
Por fim, as reflexões se centraram na necessidade de a Escola, além do
desenvolvimento de atividades com gêneros textuais veiculados no meio impresso,
trabalhar os gêneros digitais como ferramentas de ensino-aprendizagem, de modo
a permitir que os estudantes possam interagir de forma mais consciente, como
leitores e escritores, nas diversas práticas discursivas vivenciadas em seu cotidiano.

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Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 193
O DESIGN DE INFORMAÇÃO COMO INSTRUMENTO DE
INCLUSÃO SOCIAL

Maria João Palma1


Airton Castagna2
Katia Avelar3

RESUMO:

Trata-se de estudo no âmbito da leitura e formação de leitores. O foco da


pesquisa é o design de informação como princípio básico e facilitador para a
aquisição de conhecimento por parte de indivíduos que necessitam ser incluídos
socialmente. Será abordado o modo pelo qual o design da informação propicia
maior assimilação de conteúdos por parte dos leitores, de modo a garantir o prazer
da leitura e, assim, torná-la atrativa, favorecendo a absorção de conhecimentos
e a ressignificação e/ou interpretação de conteúdos. Entende-se por design de
informação toda a forma de aplicação e organização da informação, baseada
nos conceitos da diagramação e do planejamento visual. Neste sentido, é
que se torna importante a discussão e a troca de ideias e experiências nesta
área, pois sem o acesso de muitos grupos à leitura, a promoção da cidadania,
no mundo de hoje, torna-se inviável. A facilitação proporcionada pelo design
garante ampliar o volume de leitura das pessoas, na medida em que os meios,
ou recursos, de sua realização são oferecidos.

PALAVRAS-CHAVE:

Design social, leitura, informação, conhecimento, inclusão

ABSTRACT:

It is a study in the ambit of reading the formation and readers. The focus of
the research is the design of information as basic principle and facilitator for
the acquisition of knowledge by individuals that need to be socially included.
Will address the way in which information design provides greater assimilation
of the content from readers, to ensure the enjoyment of reading and thus
make it attractive, favoring the absorption and reframing of knowledge and /
or interpretation of content. It is understood by information design throughout
the application form and information organization based on the concepts of
layout and visual planning. In this sense, is that it is important to discuss and
1 Aluna do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.
2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.
3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 194
exchange ideas and experiences in this area, because without access to the
reading of many groups, the promotion of citizenship in today’s world, it is not
feasible. The design ensures facilitation provided by expanding the volume of
reading people, in that the means or resources of its realization are offered.

KEYWORDS:

Social design, reading, information, knowledge, inclusion

Introdução:

Em consonância com Abad, Braida e Ponte (2009, p. 2197), cada vez mais, os
designers têm congregado signos táteis, gustativos e olfativos aos seus projetos,
a fim de criar objetos mais complexos e mais acessíveis, que permitam aos
usuários tornarem-se mais interativos e experimentarem momentos de mais
profunda imersão. “Tais projetos tornam-se, portanto, mais sinestésicos, aguçam
uma maior quantidade de sentidos possíveis, ampliam as possibilidades de
representação e possibilitam um aumento da eficácia da comunicação”.
Ainda de acordo com as autoras, “nessas interrelações do sistema sígnico,
traduções intersemióticas são realizadas de matriz para matriz, de meio para
meio, em um processo constante de crescimento e criação.” (ABAD, BRAIDA&
PONTE, (2009, p. 2197). São os sistemas compostos pelos signos sonoros,
visuais, verbais, olfativos, gustativos e táteis, quase sempre misturados e
articulados entre si, materializados nos artefatos resultantes dos processos de
projeto, que se denominam sistemas híbridos do design.
Hierarquia, significado e pragmatismo são caminhos necessariamente percorridos
pelo design de informação, sem priorizar um em detrimento do outro, pois todos
têm a mesma importância, já que, metodologicamente, viabilizam as respostas
às perguntas: o quê, como, e para quê? A hierarquia, ou ordem de importância,
é que determina o assunto que tem mais interesse para um dado auditório,
(PERELMAN, 2005), ou para uma dada comunidade (com características
culturais, ambientais e políticas específicas). Dependendo do auditório, ou da
comunidade, o modo de aceitar ou reter a informação é completamente diferente,
Daí que o modo de comunicá-la também tem importância fundamental.
Neste ponto, chega-se à idéia de significado, pois do ponto de vista semiótico,
o modo como os intérpretes lêem os “signos interpretantes” (PIERCE, 1979),
ou o modo como os signos reunidos produzem sentidos para os intérpretes
depende também do modo como estão dispostos nos artefatos criados, ou
ressignificados. Como observa Walther-Bense (2000, p.85): “o homem não se
relaciona apenas com as coisas, mas também com os signos. Seu conhecimento
é muito mais um mundo de signos do que um mundo de objetos”.

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Sistemas intersemióticos a favor da comunicação

McLuhan (1969), nas décadas de cinquenta e sessenta, estudou e discutiu o


papel e o impacto dos novos meios de comunicação. Afirmava que o jornal
(aqui entendido como veículo propagador de informação) já, naquela época,
tendia para uma forma participante. O autor já chamava a atenção para a
imagem em mosaico. Dizia, contudo, que a relevância não estava tanto na
imagem, mas no recorte que era dado aos acontecimentos. “Como massa de
tópicos descontínuos e desconexos... que acolhe a inclusão de muitas tribos
e a diversidade das visões particulares”, (MCLUHAN, 1969, p. 242).
Significava uma participação efetiva da comunidade leitora ou decodificadora, uma
vez que intensificava a relação entre palavra e imagem, através da valorização
de elementos estéticos. “Na verdade, quando o autor se refere a esse mosaico
como “ícone estrutural do jornal”, forma e conteúdo se congraçam e aí já se
está, nos dizeres de McLuhan, no campo da” poética do jornal”.
Pensar em como interpretar esse processo de comunicação e de que maneira
isso pode representar a vida social, política e econômica da comunidade, bem
como o modo como comunicar um conteúdo - para que fique prazeroso na
leitura - deve ser um atrativo para os designs na composição gráfica. Trata-
se da manipulação de aglomerados de signos, no sentido de gerar unidades
significantes, converter necessidade em conceito e conceito em um objeto que
participará do cotidiano da comunidade.
Um design de informação deve-se considerar um tradutor, um materializador de
idéias, capaz de fazer um tipo de interface que torna uma embalagem num código,
que elabora um rótulo que indica o conteúdo daquele volume, sua procedência
e forma de abrir, sugerindo o uso. A ideologia desse diagramador que acaba de
ser chamado de “tradutor”, mas que está mais para um reeditor, é alimentada
pela apropriação de diversas linguagens que vão servir para comunicar algo
a outro. Essas linguagens utilizadas para estabelecer a comunicação são as
ferramentas de uma diagramação que se pode chamar de generosa.
É generosa porque vai estreitar a relação entre indivíduos. Vai facilitar e estabelecer
contato direto, sincero e saudável para um único fim: comunicar, transmitir
e instruir, tendo a generosidade como fio condutor. Até na forma subliminar
pode-se admitir o uso da generosidade para aproximar a mensagem ao leitor.
Quase como sussurrar ao ouvido de alguém a explicação do conteúdo escrito,
da história contada. Pode-se chamar e marcar a diagramação generosa como
uma atividade da comunicação que contribui para o crescimento das pessoas,
por propiciar o conhecimento e aliá-lo à satisfação que gera uma boa leitura.
Na passagem do movimento concreto para o neo-concretismo, artistas brasileiros
como Amilcar de Castro, escultor que marcou a história da diagramação da

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notícia, compartilhavam a compreensão comum da interferência da arte na vida
cotidiana, tentavam provar que a arte tinha que ser mais sensível e de maneira
indelével registraram uma época com a geometria sensível. (COUTINHO in
PUCU, 2008, p 225). Assim, esse marco na história da diagramação pode ser
explicado como uma entrada de ar novo, que veio arejar os textos, as notícias,
facilitando a leitura. Tanto entre as colunas de texto que compõem as colunas
ou até mesmo em grandes áreas abertas, os espaços em branco levam o leitor
ao prazer de ouvir o eco das palavras que passeiam na sua mente, enquanto
formam opinião e significado próprios.
Deste modo, podemos entender a generosidade como uma ação que mais
se confunde com um sentimento capaz de inspirar diversas manifestações da
arte. Estaria aqui a grande diferença entre aqueles que defendem que a arte
deveria seguir uma teoria, que posteriormente se aplicaria a situações com
fins utilitários, para o cumprimento de uma função, com aqueles que acreditam
numa fusão entre arte e vida. Sem a preocupação em dar utilidade à arte e sim
tornar o útil artístico. A pretensão é obedecer ao olhar, é alcançar a sensibilidade
estética, através da largueza de percepções e pensamento visual e utilizá-la
a favor da comunicação. É como converter num único ato a experimentação e
experimentar-se. Como se fosse impossível separar o ser do fazer.

A prática da diagramação como inclusão

Conforme Bocchini (2011, p. 4), “a leitura rápida e compreensiva deveria ser um


objetivo do ensino e deveria ser favorecida pelo projeto gráfico dos livros didáticos”.
A autora chama atenção para alguns aspectos que confirmam a relevância das
questões discutidas neste trabalho. Segundo ela, a programação visual do livro
exerce função determinante no processo de ensino/aprendizagem. “Não só a
composição do texto e a diagramação, mas também o formato do livro e a forma
de encadernação podem facilitar ou dificultar a leitura.” (BOCCHINI, 2011, p. 5).
Tendo em vista as palavras de Bocchini sobre a leitura e o conseqüente
aprendizado do que se lê, pode-se afirmar que a diagramação é importante
para a clareza e eficiência da leitura que conduz ao aprendizado, pois existem
elementos sobre os quais é preciso decidir quando se pretende garantir a leitura
confortável para crianças e leitores em desenvolvimento. Entre os elementos
listados pela autora, figuram: o tipo das letras e suas variações (tipologia), a
entrelinha, o comprimento da linha, a regularidade da composição, a relação de
contraste entre o texto e o fundo. Ainda pode-se incluir, como fator importante,
o tipo de alinhamento, adequado ao conteúdo e à quantidade de texto.
Para manter o objetivo principal que é criar interesse visual, o cuidado deve
começar quando se ajustam as proporções das margens, ou quando uma
estrutura assimétrica cria mais espaço em branco, onde os olhos podem

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descansar. Ou ainda, quando tratamos a importância do conteúdo. É possível
afirmar que existe mesmo uma espécie de hierarquia geral dentro de uma
página diagramada. Tal hierarquia poder ser notada em pequenas alterações
no peso dos elementos, na ênfase ou no alinhamento que podem criar enormes
diferenças e, assim, fazer com que o menos seja mais. Isto é, que a conjugação
entre os elementos visuais favoreça o maior aproveitamento da leitura enquanto
forma de apreensão de conteúdos no momento da leitura.
É também necessário analisar os aspectos do livro e as regras básicas da
legibilidade, entre as várias características capazes de tornar um livro mais
ou menos adequado ao que se propõe, podemos listar: curvatura da página,
que pode dificultar a leitura causando desconforto ao aluno; incidência de luz,
o que, a depender do arranjo visual, pode afetar a compreensão; opacidade
e gramatura do papel, o que pode, por exemplo, evitar sombras de textos e
figuras do verso ou da página seguinte; tamanho do livro, para o manuseio,
por exemplo, ou a colocação na mesa, carteira e demais suportes escolares;
peso, que torna o transporte mais ou menos penoso, lembrando que no caso
brasileiro, os estudantes têm que levar e trazer os livros de casa para a escola.
Voltando a McLean (1997, p 44-45), há três regras básicas a serem observadas
quando se pretende uma boa legibilidade. São elas:

o tipo sem serifa (pequenos prolongamentos nas extremidades das letras)


é intrinsecamente menos legível do que o serifado; um tipo romano bem
desenhado em maiúsculas e minúsculas é mais fácil de ler do que suas
variações (itálico, negrito, só maiúsculas, versões condensadas ou expandidas);
as palavras devem estar próximas umas das outras (separadas tanto quanto
a largura da letra “i”) e deve haver mais espaço entre as linhas do que entre
as palavras. Mas acima de tudo garantir que o projeto gráfico antecipe e
complemente o que está representado no conteúdo.

Conforme Jan Tschichold (2007, p. 31), um diagramador de livro deve ser um servidor
leal e fiel da palavra impressa. É sua tarefa é criar um modo de apresentação, cuja
forma não ofusque o conteúdo e nem seja indulgente com ele. O autor faz uma
série de recomendações, tais como: escolher uma fonte bem ajustada ao texto;
projetar uma página primorosa, idealmente legível, com margens harmonicamente
perfeitas, impecável espacejamento de palavras e letras; escolher corpos de tipo
ritmicamente corretos para folhas de rostos e títulos, e compor as páginas em que
há títulos de seção e de capítulos genuinamente belas e graciosas, no mesmo tom
da página de texto. Por esses meios um diagramador de livro pode, segundo o
autor, contribuir muito para a fruição de uma valiosa obra da literatura.
Do mesmo modo, o livro didático precisa ser dinamizado por recursos hipertextuais,
por exemplo, se não quiser perder a atenção do estudante. Hipertexto aqui se
refere à utilização interativa de elementos visuais constantemente associados
a conceitos, tabelas, ilustrações, dados históricos e exemplos.

Caderno Seminal Digital Ano 18, nº 17, V. 17 (Jan - Jun/2012) – ISSN 1806 - 9142 198
Visto como mero recurso facilitador da apreensão da informação, o design da
informação pode ir além, a fim de produzir conhecimento e descodificar ou
traduzir conteúdo específico que antes atendia exclusivamente a especialistas de
determinada área de entendimento e pensamento. O design da informação situa-se
na fronteira ou entroncamento dos saberes, pois pode esmiuçar uma informação
complexa e torná-la simples para, assim, gerar um entendimento geral ou que, de
certa forma, atinja uma grande maioria de leitores ou prováveis leitores.
Ora, quando a leitura forma pessoas capazes de pensar, criar e desenvolver,
é imprescindível que a percepção de mundo do leitor esteja coerente com a
realidade em que ele vive. Assim, para formar um leitor através da linguagem
gráfica é necessário e fundamental verificar a capacidade que este tem de
interpretar e compreender signos. Para então se chegar ao pragmatismo, que
é a finalidade última, o momento em que se destina os sistemas de informação
ao seu público leitor.
Além de perguntar e responder a estas perguntas, o quê, como e para quê,
a intenção desta reflexão é também identificar as principais dificuldades da
leitura que podem estar relacionadas com a diagramação e, ainda, indicar
algumas premissas básicas para um manual de avaliação de material didático
e livros instrutivos. Construir parâmetros e regras que irão conduzir os manuais
de construção da forma desse material.

A leitura entre a educação e a escola

Parte-se do pressuposto de que o hábito da leitura se adquire na escola, através


de sistemas educacionais que, de forma estratégica, hão de ser determinantes
no aprendizado e na formação dos indivíduos, de modo que estes se tornem
socialmente incluídos. A educação, sobretudo em uma sociedade como a
brasileira que ainda possui contingentes fora da escola, ou que, grande parte
se evade antes mesmo de completar os estudos fundamentais, precisa de
estratégias variadas de inclusão e de viabilização do acesso à cidadania e
acesso ao livro é uma delas.
A tão sonhada mobilidade social, no sistema capitalista, depende sobremaneira
da escolarização. Pelo menos a inclusão mais consistente, regular e duradoura. O
aprendizado que se oferece com a escolarização é transmitido em grande parte
através de livros didáticos e paradidáticos. A leitura e consequente absorção
ou apreensão do saber que está nos livros pode ser facilitada ou dificultada
pela forma como se apresentam os textos, ou seja, pela diagramação, pelo
projeto gráfico, arranjo ou programação visual.
Quando se pensa em usar a leitura para promover o saber é necessário estreitar
os laços entre o design de informação e o design instrucional ou educativo.
Há de se usar este novo elemento transformador como aliado na educação

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de cidadãos que, através do conhecimento e da consciência de seus direitos,
compactuem para construir uma igualdade. Como sabiamente pontua De Masi
(2010, p. 119-120), “não vale invocar o retorno ao ‘direito natural’. É preciso
um ‘direito racional’ e uma nova pedagogia que eduque os jovens para se
transformarem em cidadãos, não em súditos.”
Há, todavia, educação sem haver escola, conforme ensina Carlos Brandão (1983,
p. 28). O educador defende o não abandono da educação na sua forma livre por
ser a rede de trocas de saberes mais universal e mais persistente na sociedade
humana. Ele afirma que o aprendizado é adquirido em espaços diversos, onde
pessoas se reúnem e interagem em variadas atividades, ocorrendo assim a
relação entre teoria e prática.
Um canal possível para essa educação livre é a leitura. Pensar em formas de
facilitá-la é garantir a emancipação intelectual das pessoas para levá-las a uma
autonomia prática. Numa visão macro, ainda segundo Brandão (1983, p. 28),
a desigualdade da educação aparece quando surgem e se caracterizam os
diversos tipos e graus de saber - já que com o capitalismo surge a possibilidade
de mobilidade social por meio da educação de massa - isto é, uma situação
provocada pela necessidade e interesse político de controle da sociedade, a
partir do qual verifica-se a dicotomia entre o saber e poder.
Pensar a visão micro da educação que antes produzia a igualdade, e que hoje
promove a desigualdade social como consequência da utilização da escola
e dos sistemas pedagógicos para servir ao poder, é pensar num recomeço
com a criação de novos padrões de organização. “Incorporar as visões e as
razões da sociedade nos assuntos antes reservados aos governos, significa
aumentar a possibilidade e a capacidade de as populações influírem nas
decisões públicas – em poderar as comunidades, distribuir e democratizar o
poder”. (SILVEIRA, ano, p. 46)
É possível sugerir que pessoas se organizem para exigir que lhes chegue às
mãos e aos olhos a informação, inclusive de forma organizada e adequada
às suas realidades? Pode-se caracterizar esta prática como exemplo de uma
nova dinâmica democrática? A perspectiva de ativar as consciências através
de ações como o design de informação é como refutar a importância do
desenvolvimento local, no momento presente.

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Referências

ABAD, BRAIDA & PONTES. Os sistemas híbridos do Design: despertando os


sentidos. Anais do 5º Congresso Internacional em Pesquisas em Design. Bauru,
2009. Disponível em < http://www.raquelponte.com/publicacoes/sistemas_
hibridos_design.pdf>, acesso em 05 de setembro de 2011.

BOCCHINI, Maria Otília. Legibilidade Visual e Projeto Gráfico na Avaliação de


Livros Didáticos pelo PNLD. Disponível em <http://www.abrale.com.br/wp-content/
uploads/legibilidade-visual-grafico-pnld.pdf>, acesso em 9 de outubro de 2011 .

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O que é Educação. São Paulo: Brasiliense, 1981.

DE MASI, Domenico. O Futuro Do Trabalho. Rio de Janeiro: José Olímpio, 2010.

MCLEAN, Ruari. The Thames and Hudson Manual of Typography. Londres:


Thames and Hudson, 1997

MCLUHAN, Marshall. Os meios de comunicação como extensões do homem.


Traduzido por Décio Pignatari. São Paulo: Cultrix, 1969.

PEIRCE, C S. Semiótica. São Paulo: Perspectiva, 1977.

PERELMAN & OLBRECHTS-TYTECA. Tratado da argumentação: A nova retórica.


Rio de Janeiro: Martins Fontes, 2005.

SILVEIRA Caio. “Desenvolvimento local e novos arranjos socioinstitucionais:


Algumas referências para a questão da governança.” In DOWBOR & POCHMANN
(orgs). Políticas para o Desenvolvimento Local. São Paulo: Perseu Abramo, 2010.

TSCHICHOLD, Jan. A forma do livro, ensaios sobre tipografia e estética do livro,


Ateliê Editorial, 2007.

WALTHER-BENSE, E. A teoria geral dos signos: introdução aos fundamentos da


semiótica. São Paulo: Perspectiva, 2000.

Reconhecimentos:

Trabalho desenvolvido no Programa de Pós- Graduação em Desenvolvimento


Local do Centro Universitário Augusto Motta UNISUAM, Rio de Janeiro, Brasil

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“MESTRES POPULARES” E A ESCOLA NO BRASIL

Ricardo do Carmo1
Katia Avelar2
Maria Geralda de Miranda3

RESUMO:

Pretende-se com o presente trabalho refletir acerca da importância social


dos chamados “mestres populares”, buscando demonstrar as razões de sua
marginalização histórica, bem como investigar as razões pelas quais os seus
saberes não encontram espaço no sistema educacional brasileiro, isto é, na
escola. Por que isso acontece e em que medida a escola se tornaria mais
enriquecida e enriquecedora com o aproveitamento desses mestres é também
uma das questões debatidas neste estudo.

PALAVRAS-CHAVE:

Escola, mestres populares, educação, cultura popular.

ABSTRACT:

This work aims at studying the social importance of the so-called “popular
masters”, by showing the reasons for their historical discrimination as well as
an investigation about why their know-how is not inserted within the Brazilian
educational system, that is, the school. Why this happens and to what extent the
school could be enriched and enriching with the proper use of these masters
are also questions discussed in the present work.

KEYWORDS:

School, popular masters, education, popular culture.

1 - Introdução

Luís Rodolfo Vilhena (1997, p. 284), estudioso da cultura popular, identifica na


dificuldade de se compreender o lugar do popular na sociedade brasileira
o ponto reflexivo crítico para se esclarecer determinados processos de
marginalização que envolvem tudo o que é criado pelos estratos mais humildes
e mais conspícuos do Povo.
1 Aluno do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.
2 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.
3 Professor do Programa de Pós-Graduação em Desenvolvimento Local da UNISUAM.

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O pesquisador alerta que mesmo em um período de sucesso como o chamado
Movimento Folclórico, fase que vai de 1947 a 1964, essa cultura, que representa
os saberes do povo, esteve sistematicamente fora das universidades. Revela
que as pesquisas referentes a esses saberes foram “frequentemente vistas
como uma disciplina ‘menor’ e que o estudioso desse campo de estudo se
tornou o paradigma de um intelectual não acadêmico” (VILHENA, 1997, p.11).
Tendência recorrente também nas observações de Renato Ortiz (VILHENA,
1997 b, p. 51) ao indicar que “os pesquisadores e as disciplinas dedicadas a
esse estudo, historicamente, costumam ocupar uma posição marginal”.
A posição marginal imposta à cultura popular e o seu não aproveitamento dentro
da escola formal é fruto de preconceito e/ou da discriminação. A sociedade
brasileira e os responsáveis por pensar e elaborar leis relativas à educação
precisam reconhecer e corrigir esse erro, pois os personagens que compõem
o universo do conhecimento não-formal, no mínimo, atualizam o discurso da
cultura em função do desprendimento em relação às leis de mercado e a
mesmice da sociedade de consumo, apenas para citar uma contribuição no
processo de liberdade de criação.
Neste percurso, para além das discriminações e preconceitos, é notório a
riqueza da diversidade cultural do Brasil e a necessidade de interação entre a
cultura erudita e a cultura popular no interior das escolas – local que idealmente
elegemos para aprender – pois uma escola que não interage com o espaço
em que está localizada, ou que não promove o entrelaçamento de saberes, ou
o conhecimento oriundo da prática, está deixando de cumprir a sua função de
formar cidadãos. A escola que temos é centralizadora e sua pedagogia (que
se estiola em métodos muitas vezes obsoletos) não interage com os saberes
dos “mestres populares”, nem valoriza os conhecimentos empíricos.
O antropólogo Carlos Rodrigues Brandão (1985, p. 9) ensina que existe educação
sem haver a escola e que “não há uma forma única nem um único modelo de
educação; a escola não é o único lugar onde ela acontece e talvez nem seja
o melhor; o ensino escolar não é a sua única prática e o professor profissional
não é o único praticante”. A educação existe também, portanto, segundo
Brandão, onde não há escola, longe do modelo de ensino clássico. Isso quer
dizer que sempre haverá espaço para o pensamento fora da academia e que
os saberes dos “mestres populares” são legítimos.

2 – A velha educação e as novas perspectivas

Das primeiras missões doutrinárias dos padres da Companhia de Jesus à


alfabetização dos cortadores de cana de Pernambuco, segundo o método
transformador de Paulo Freire, quantos avanços e rupturas ocorreram no processo
de formação da educação e da escola no Brasil! Da primeira escola elementar

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brasileira, em Salvador, passando pelo primeiro professor nos moldes europeus,
Vicente Rodrigues, que se dedicava ao ensino e à propagação da fé religiosa,
o processo de ensinar e aprender não mudou tanto como se poderia supor. Os
versos de Anchieta o mar apagou, mas é fácil constatar entre nós, ainda hoje,
a influência daqueles padres e o velho método da repetição, memorização e
provas periódicas.
Com a expulsão dos jesuítas pelo Marquês de Pombal, em 1759, saem de
cena nossos primeiros “mestes” e a educação brasileira, pela primeira vez, é
organizada pelo Estado, que paga aos professores, proíbe certos livros, cobra
impostos e faz leis. Como não há escolas superiores no país, aqueles que
podiam saiam para estudar na universidade de Coimbra, enquanto o restante
permanecia aqui se dedicando à agricultura e ao funcionalismo público.
O panorama começa a mudar a partir da chegada da Família Real Portuguesa,
em 1808, e durante o Império, com algumas inovações técnicas e institucionais.
Em 1827, o método de aprendizagem é o ensino mútuo: professores orientam os
melhores alunos que repassam aos outros alunos. É criada a primeira Lei Geral de
Ensino que, entre outras coisas, abre as portas da sala de aula para as meninas.
Com a Lei Geral teve início um grande processo de reestruturação da escola e
da formação de professores. “Com a criação das escolas normais, pelo mesmo
Ato, houve uma transformação sociológica. Os professores se obrigavam a se
reestruturar e se preparar profissionalmente para exercer as atividades de um
verdadeiro mestre” (JORDÃO, 2002, p.3). Ainda em 1827, são criadas as duas
primeiras faculdades brasileiras: a de Direito de Olinda e a de São Paulo. A
primeira turma de bacharéis em ciências jurídicas formou-se em 1832.
Entre 1868 e 1876, “profundas mudanças ocorreram dentro das instituições
de ensino, entre elas, a elimininação dos castigos corporais impostos pelos
professores aos alunos. O castigo foi substituido pela “lição de coisas” (JORDÃO,
2002, p. 4 ). A Proclamação da República trouxe nova alteração na grade
curricular e, em 1893, foi introduzido, entre outras disciplinas: “português e
literatura portuguesa e nacional, caligrafia, música, ginástica, trabalho de agulha
e economia doméstica para o sexo feminino” (JORDÃO, 2002, p.4).
Nos anos 30, surge a figura de Anísio Teixeira, pioneiro na implantação de
escolas públicas de todos os níveis. Na sequência, são inauguradas escolas
importantes: Colégio Pedro II (1937), como colégio-modelo, e o SENAI (1942),
instituindo o ensino profissionalizante para formar mão-de-obra para a indústria
crescente no país.
Em 1963, após alfabetizar, em tempo recorde, cortadores de cana no interior do
Rio Grande do Norte, Paulo Freire recebe convite do governo para reformular a
alfabetização de adultos no país. Porém, pouco tempo depois, estaria exilado. Pela
sua importância merece um capítulo a parte na história da educação brasileira.

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Com o Golpe Militar foram retiradas do currículo as disciplinas de História e
Geografia e substituídas por Estudos Sociais e Educação Moral e Cívica. A
explicação é que eram consideradas reflexivas. Ainda na onda da ditadura
militar criaram o vestibular, como uma forma de limitar o acesso à universidade.
A alegação foi a falta de vagas; criar novas universidades, ninguém pensou. Até
porque para muitos militares as universidades eram um antro de comunistas.
A LDB (Lei de Diretrizes e Bases da Educação), uma das mais importantes
para a educação no Brasil, foi citada pela primeira vez na Constituição de
1934, mas só foi criada em 1961, seguida por um versão em 1971, que vigorou
até a promulgação da mais recente em 1996. Baseada no princípio do direito
universal, a LDB de 1996 trouxe diversas mudanças em relação às leis anteriores:
a inclusão da educação infantil (creches e pré-escolas), o ensino fundamental
obrigatório e gratuito, a formação dos especialistas da educação em curso
superior de pedagogia ou pós-graduação. A lei também obriga a União a gastar
no mínimo 18% e os estados e municípios no mínimo 25% de seus respectivos
orçamentos, na manutenção e desenvolvimento do ensino público.
Em 1998, com o ENEM é criada uma cultura de avaliação no Brasil. Em 2004, o
PROUNI (Programa Universitário Para Todos) vincula a concessão de bolsas em
faculdades e universidades brasileiras ao desempenho do ENEM, popularizando
o exame. Em 2007, o governo cria o IDEB (Índice de Desenvolvimento da
Educação Básica) que atribui notas de 0 a 10 às escolas do País.
Esta rápida trajetória da educação traçada até aqui demonstra que as oportunidades de
acesso à aquisição de conhecimentos oferecidas pela escola formal indubitavelmente
tende a ser acessível a todos. Por outro lado, o movimento da educação não-formal,
embora acontecendo através de diferentes práticas que jamais foram consideradas
como educação – por não obedecerem a uma série de requisitos formais –na
prática, também, construiu e continua construindo diferentes modos de vivências
e saberes que jamais foram aplicados na escola formal.
No entanto, a prática educativa que ocorre nas escolas começa timidamente
a incorporar conhecimentos elaborados fora de sua pedagogia clássica em
função de novas leis, projetos de leis, decretos e ações governamentais que,
embora aparentemente voltadas apenas para a área cultural, se mostram de
grande valor para a educação escolar.
Em 2000, é instituído por meio do Decreto nº 3.551, o Programa Nacional do
Patrimônio Imaterial – PNPI, que viabiliza projetos de inventário, registro e ações
de salvaguarda de proteção aos bens culturais imateriais, ou seja, aquele
que não é feito de matéria, ou intangível, que não pode ser tocado. Segundo
a lei, após identificação através de inventário, os bens culturais de natureza
imaterial deverão ser classificados em Livro de Registro do IPHAN, segundo
os temas: SABERES – para os conhecimentos e modos de fazer enraizados

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no cotidiano das comunidades. CELEBRAÇÕES – para os rituais e festas que
marcam vivência coletiva, religiosidade entretenimento e outras práticas da vida
social. FORMAS DE EXPRESSÃO – para as manifestações artísticas em geral; e
LUGARES – para mercados, feiras, santuários, praças onde são concentradas
ou reproduzidas práticas culturais coletivas.
Com a criação do PNPI, o governo brasileiro sinaliza finalmente que começa
perceber a importância do patrimônio imaterial, ao qual se inclui os saberes
oriundos de mestres populares. Mas não para por aí, a promulgação da lei
10.639 de 2003 que prevê o ensino da história e da cultura africanas e afro-
brasileira nos variados níveis de ensino do Brasil é mais uma prova. Com a
intenção clara de reduzir as dívidas históricas do Brasil consigo próprio e
especialmente para com os africanos e afro descendentes, o governo ao criar
a lei demonstra comprometimento com essa parcela fundamental da nossa
história e da nossa cultura que nunca teve espaço dentro das escolas.
Outra iniciativa muito importante é o projeto de lei nº 1176, que institui o
programa de proteção e promoção dos “mestres dos saberes e fazeres das
culturas populares”. De acordo com a medida, aqueles que forem reconhecidos
como mestres receberiam suporte financeiro e técnico para a manutenção das
atividades culturais das quais são portadores. Receberiam também preparação
técnica para que sejam ministradas oficinas e cursos sobre “gerenciamento”
das expressões de que são portadores, entre outros benefícios.
Ações assim, se instituídas, viriam ao encontro daquilo que imaginou Paulo
Freire: a escola como local de diálogo de diferentes formas de expressão
cultural, mas principalmente um lugar conectado com a realidade.

3 – A formação dos mestres populares

Segundo a filosofia popular “um Mestre já nasce feito”. A frase parece partir
de um conceito fechado que inviabiliza o ato de ensinar-e-aprender que
representa a essência da Educação, pois se o mestre já nasce feito é sinal de
que já nasce sabendo e não precisa aprender. A questão parece ser outra. O
pertencimento a uma tradição não quer dizer que o conhecimento de mestres
populares seja algo de nascença, são saberes construídos. Tanto mestres
populares como mestres acadêmicos precisam construir seus saberes para
chegar a ser considerados mestres.
Fazendo as contas, o tempo para a formação de um mestre acadêmico leva em
média uns dezoito anos. Sendo nove no ensino fundamental, três no ensino médio,
mais ou menos quatro na graduação e dois no mestrado. Quanto aos mestres
populares, a história não é diferente. Cáscia Frade, conhecida pesquisadora
de cultura popular, relata a experiência recolhida junto a um Mestre de Folia
de Reis, em palestra proferida na UFRJ, em 25/11/2010.

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Frade expõe os ensinamentos e estudos que criaram as condições para que João
Guedes alcançasse o status de Mestre de Folia de Reis. Relata a pesquisadora
que João Guedes vivia no Catumbi, na cidade do Rio de Janeiro, mas que agora
está em Jacarepaguá. O grupo dele se chama Folia de Reis Estrela do Oriente.
“Ele desde pequenininho acompanhava o avô. O pai também participava do grupo
desse avô. E ele pequenininho saia atrás brincando de ser folião de reis: arranjava
umas latas velhas para fazer os instrumentos de percussão, arranjava papelão
desenhava uma cara para fazer a máscara do palhaço”, (FRADE, 2010, p. 155).

A avó fazia umas roupas de pano velho pra ele e ele saia brincando de folia.
Depois, já maiorzinho, com dez para onze anos, o pai disse você agora já
pode entrar para participar com a gente, mas você vai tocar um instrumento
musical que não interfere muito, como um reco-reco, por exemplo: um
triângulo, que não vai trazer uma interferência musical muito grande. Ele
então já vestido de folião de reis entrou no grupo tocando. Aí a história vai,
até que aos quinze anos, o pai disse para ele tocar viola e disse: você agora
vai começar a estudar. Então ele estudava. Assim como a gente estuda os
textos que a gente tem que apresentar nas nossas aulas, nos nossos trabalhos
acadêmicos, ele estudava. E o pai tomava a lição: Ah, me deixa ver se você
já sabe. Ih, você errou... Então ele estudou. Aí, já com os seus vinte e tantos
anos, o pai o colocou para cantar como contramestre e ele foi acompanhando
o pai. Até que o pai ficou idoso e um dia o pai disse: Você já tem condições
de levar esta folia. Aí ele assumiu essa folia. (FRADE, 210, p. 155).

A formação do mestre João Guedes, segundo depoimento, revela um aprendizado que


vem desde a mais tenra infância, no núcleo familiar consangüíneo. Esse aprendizado
vai se dando de uma forma viva, participativa, ouvindo, fazendo, tocando, cantando,
embora com o aspecto teórico de estudar as profecias e os cânticos.
Vale observar que o precioso na formação informal é o desprendimento e a falsa
impressão de descompromisso que, durante a aprendizagem, gera prazer. Ao
contrário do que acontece na educação clássica, ou seja, na escola, onde tudo
é obrigação, parece penoso e acaba por produzir enfado e falta de vontade
nos alunos, que terminam taxados de preguiçosos e desinteressados. Brandão
(1985, p. 18-9) nos mostra que nas aldeias tribais,

as pessoas convivem umas com as outras e o saber flui, pelos atos de


quem sabe-e-faz, para quem não-sabe-e-aprende. (...) São raros os tempos
especialmente reservados apenas para o ato de ensinar. (...) Todos os
agentes desta educação de aldeia criam de parte a parte as situações que,
direta ou indiretamente, forçam iniciativas de aprendizagem e treinamento.
Elas existem misturadas com a vida em momentos de trabalho, de lazer, de
camaradagem ou de amor. Quase sempre não são impostas e não é raro
que sejam os aprendizes o que tomam a seu cargo procurar pessoas e
situações de troca que lhes possam trazer algum aprendizado.

As dúvidas quanto à importância desses mestres do povo, pessoas normalmente


muito simples, que acabam sendo obrigadas a restringir sua atuação à comunidade,
vizinhos ou parentes, são recorrentes, mas questionamentos duros que parecem

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restritos à cultura popular e a seus mestres, por vezes, também atingem a
academia e seus mestres e doutores. Com um texto bastante contundente, o
indiano Osho, professor de filosofia que acabou se transformando em guru,
põe em cheque a formação acadêmica vigente, dizendo o seguinte:

É só visitar universidades e ver que tipo de trabalho criativo é feito lá. Milhares de
tratados estão sendo feitos; as pessoas obtêm diplomas de doutor, de mestre,
diplomas importantes. Mas ninguém chega a saber o que acontece com suas
teses; elas não param de aumentar a pilha de lixo das bibliotecas. Ninguém
jamais as lê, ninguém jamais se sente inspirado por elas – sim, algumas pessoas
as lêem; essas são o mesmo tipo de pessoas que farão outra tese. Logicamente,
os pretendentes a títulos de doutor as lerão (OSHO, 1999, p. 92).

Segundo ainda o professor indiano o que ocorre nas universidades é atividade


intelectual. Mas “o intelecto é apenas um jogo mental. Ele não pode ser criativo”.
Criatividade, segundo ele, significa “trazer à existência aquilo que é novo; abrir
caminho para que o desconhecido penetre o conhecido”.
Mas afinal quem são os mestres populares, estes que aprendem tudo fora da
escola? Quais são seus saberes e por que não são aproveitados nas escolas
tradicionais? Por que será que, de outra maneira, mas da mesma forma, os
saberes de mestres acadêmicos também não chegam ou não servem ao povo? Os
saberes dos mestres populares ou acadêmicos se aplicam indiscriminadamente
a qualquer tipo de sociedade?

4 - Os saberes dos mestres populares

Mestres populares são aqueles que detêm o saber fazer, a memória social da
comunidade e das suas tradições. São pessoas dotadas de saber notório, reconhecidas
entre seus pares e por especialistas. Como já dissemos, esses mestres atualizam o
discurso da cultura à medida que suas invenções não estão presas à homogeneização
do mercado. Não que eles não sofram a influência do consumo, sofrem, mas não
produzem tendo o lucro como a principal intenção. O conhecimento desses mestres
normalmente faz parte de um “patrimônio de tradições que se transmite oralmente e é
defendido e conservado pelo costume. Esse patrimônio é milenar e contemporâneo.
Cresce com os conhecimentos diários desde que se integrem nos hábitos grupais,
domésticos ou nacionais”, (CASCUDO, 1972, p. 11).
Um exemplo de saber ancestral e de importância notória tem como portadora a
quilombola Maria Joaquina da Silva, conhecida como Dona Fiota. Conhecimento
este que acabou gerando um fato inusitado que vale a pena registrar neste artigo,
não só pelo conteúdo, mas por suas nuanças culturais e seu desdobramento
fatal. Aconteceu num seminário organizado pelo IPHAN.
Dona Fiota, na ocasião, discursou em gira da Tabatinga, uma língua afro-
brasileira, de origem predominantemente banto, falada em parte do município

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de Bom Despacho (MG). Foi a primeira vez que uma língua minoritária de base
africana ocupou espaço público de dimensão nacional, tendo reconhecidas
sua riqueza, sua função histórica e sua legitimidade. (BESSA, 2008, p.85).
Em seu discurso, dona Fiota contou que os moradores da comunidade quilombola
tinham percebido que a língua que os libertara estava ameada de extinção, porque
não era mais usada por crianças e jovens. Por isso, a comunidade, aproveitando
lei sancionada em 2003 que torna obrigatório o ensino de história e culturas
afro-brasileiras nas escolas de ensino fundamental e médio, decidiu fortalecer
em sala de aula a língua denominada gira da Tabatinga”. (BESSA, 2008, p. 86).
Aprovando o pedido feito pela comunidade, a Secretaria Municipal de Educação
se dispos a pagar uma professora de gira da Tabatinga. A escolhida foi a Dona
Fiota. Mas o fato curioso senão lamentável aconteceu após o primeiro mês de
trabalho, quando a Dona Fiota ao tentar receber seu pagamento, “ouviu do
funcionário público encarregado do pagamento: “Ah, a professora é a senhora?
Então, não vou pagar. Como justifico o pagamento a uma professora que é
analfabeta?”. Dona Fiota deu uma resposta que só os sábios podem dar: “Eu
não tenho a letra. Eu tenho a palavra”.

Dessa maneira, derrubou a postura quase racista que discrimina os que


vivem no mundo da oralidade. Ensinou que existe saber sem escrita; que na
situação em que se encontra, ela não precisa da letra, porque usa a palavra
para transmitir seus saberes, trocar experiências e desenvolver práticas
sociais. (BESSA, 2008, p. 86).

Em relação ao aproveitamento desses saberes pela sociedade, é fundamental


perceber que o conhecimento é algo sempre contextualizado, ou seja, o que a
escola produz pode ser essencial a uma realidade e não ter nenhum valor em
outra. “Na prática, a mesma educação que ensina pode deseducar, e pode
correr o risco de fazer o contrário do que pensa que faz, ou do que inventa
que pode fazer” (BRANDÃO, 1985, p. 12).
Um exemplo interessante de que a educação não serve a todos de uma mesma
maneira ocorreu ao longo do tratado de paz que alguns estados americanos
assinaram com os índios das Seis Nações. Quando os governantes mandaram
cartas aos índios oferecendo suas escolas de branco, os chefes responderam
recusando, com o seguinte argumento:

Nós estamos convencidos, portanto, que os senhores desejam o bem


para nós e agradecemos de todo o coração. Mas aqueles que são sábios
reconhecem que diferentes nações têm concepções diferentes das coisas e,
sendo assim, os senhores não ficarão ofendidos ao saber que a vossa idéia
de educação não é a mesma que a nossa. [...] Muitos dos nossos bravos
guerreiros foram formados nas escolas do Norte e aprenderam toda a vossa
ciência. Mas, quando eles voltavam para nós, eles eram maus corredores,
ignorantes da ida da floresta e incapazes de suportarem o frio e a fome.
Não sabiam como caçar o veado, matar o inimigo e construir uma cabana,

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e falavam a nossa língua muito mal. Eles eram, portanto, totalmente inúteis.
Não serviam como guerreiros, como caçadores ou como conselheiros.[...]
Ficamos extremamente agradecidos pela vossa oferta e, embora não possamos
aceitá-la, para mostrar a nossa gratidão oferecemos aos nobres senhores
de Virgínia que nos enviem alguns dos seus jovens que lhes ensinaremos
tudo o que sabemos e faremos deles homens.” (BRANDÃO, 1985, p. 9).

A carta dos índios aponta para as muitas formas de educação e as múltiplas


visões de mundo. Demonstra como a educação existe de maneira diferente em
mundos diversos. Os índios das Seis Nações disseram que a idéia de educação
americana não é a mais apropriada para o modo de vida deles.
Chegamos então ao ponto em que parece bastante oportuno colocar a questão
já levantada pela professora Cáscia Frade, em artigo intitulado ‘Universidade e
Cultura Popular’: “Se o conhecimento popular floresce à margem das instituições
acadêmicas e se estas atuam a partir de projetos e programas políticos mais
amplos, que importância teria, para ambos, uma possível aproximação?” Ela
própria responde:

A abertura dos vetustos portais das organizações acadêmicas às expressões


populares é interpretada pelos artistas populares como valorização, aceitação,
legitimação de seu saber, conferindo status. (...) “Para a universidade acolher
o conhecimento que se instaura distante dela soa como uma oportunidade
de repensar suas práticas, de assumir uma postura crítica em face da busca
do tão propalado ‘conhecimento científico’ e das ‘seqüelas’ que costumam
dele decorrer” (FRADE, 2007, p. 162).

5 - Considerações finais

Ao final de nosso percurso é possível perceber que a distância entre mestres


populares e a escola formal no Brasil começa a se estreitar à medida que
projetos de lei, decretos, atos e ações governamentais demonstram preocupação
com a preservação e o aproveitamento do conhecimento informal; mas não só
isso, apontam para o reconhecimento, a promoção e a proteção dos mestres
da cultura popular. Por essas razões, parece possível dizer que o suporte para
que esses saberes cheguem às escolas está sendo criado e em breve uma
simbiose envolvendo a escola formal e a escola informal, mestres populares e
mestres acadêmicos resultará num grande ganho para a educação brasileira.
O que não pode é a escola no lugar de somar, dividir, no lugar de produzir
o pensamento crítico, produzir exclusões e preconceitos e continuar fechada
dentro dos seus muros. É preciso reconhecer que a produção do conhecimento
é regida por motivações diversas, que outros saberes são permanentemente
reinventados e que a sociedade e as suas multifacetadas formas culturais,
bem como as suas forças produtivas “andam” e podem “atropelar a escola”,
se esta se mantiver como instituição fechada, conservadora.

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Por isso, junto com Paulo Freire, imaginamos para o futuro uma escola sem os
muros, onde a prática educativa formal e a informal se abasteçam mutuamente numa
troca; onde o encontro de gerações, a mistura de idades, a não obrigatoriedade
de freqüência, a ocorrência de ações e experiências em espaços e tempos mais
flexíveis da prática informal vão ao encontro da escola tradicional, de suas salas
de aula, laboratórios, quadras de esportes, biblioteca, pátio, cantina, refeitório,
reinventando a escola próxima do ideal: de portas abertas à comunidade, com
atividades que possibilitem o funcionamento, inclusive, nos finais de semana,
aproximando a família da escola e trazendo para dentro do ambiente escolar a
comunidade e seus mestres de saberes ancestrais.

7. REFERÊNCIAS

BESSA, José Ribamar. Patrimônio, Língua e Narrativa Oral. In: DODEBEI, Vera e
ABREU, Regina (org.). E o Patrimônio? Rio de Janeiro: Contra Capa, 2008. p.73-86

BRANDÃO, Carlos Rodrigues. O Que é Educação. 14ª ed. Rio de Janeiro:


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CASCUDO, Câmara. Seleta. Rio de Janeiro: Editora José Olympio, 1972.

FRADE, Cáscia. Universidade e Cultura Popular. In: CAMPOS, Cleise. LEMOS,


Guilherme e CALABRE, Lia (org.). Políticas Públicas de Cultura do Estado do Rio
de Janeiro. Rio de Janeiro: UERJ / Rede Sirius, 2007. p. 157-165

______. Anais do 3º Encontro com Mestres Populares. Rio de Janeiro, UFRJ, 2010.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da indignação: cartas pedagógicas e outros escritos.


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JORDÃO, Gilberto. O mestre e a escola no período colonial brasileiro. Disponível


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MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO. Pluralidade Cultural/ Orientação


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PORTAL DO MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO. Disponível em <http://portal.mec.gov.


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VILHENA, Luís Rodolfo. Projeto e Missão: O Movimento Folclórico Brasileiro 1947-


1964. Rio de Janeiro: FUNART, 1997.

______. Ensaios de Antropologia. Rio de Janeiro: EdUERJ, 1997 b.

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