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ENSAIO
SOBRE A
2.' EDIÇÃO
1 963
106 COLECÇÃO CULTURA JUR(OICA
TRADUZIDO
POR
MANUEL A. D. DE ANDRADE
PROFESSOR DA FACULDADE Dê DIREITO DE COIMBRA
2: EDIÇÃO
Mas fora ou independentemente disto pode a autoridade Pelo contrário, a solução tem de ser outra quando se trata
judiciária, ao fazer aplicação da lei, rectificar o texto publicado de mudanças ou adjunções de palavras ou frases que importam
em modo diverso do original aprovado pelas Câmaras? 1. uma substancial divergência de pensamento, ou determinam
É preciso distinguir. equívoco sobre o sentido da lei, tornando possíveis diferentes
Quando se trata de simples erros materiais que à primeira significados da vontade legislativa.
vista aparecem como incorrecções tipográficas, ou porque a Em tal caso o juiz não pode escolher a dição que lhe pareça
palavra inserida no texto não faz sentido ou tem um signi- mais racional e correcta, mas está vinculado ao texto da Colecção
ficado absolutamente estranho ao pensamento que o texto Oficial. Incumbirá à parte litigante que invoca o erro, e daí
exprime, enquanto a palavra que foneticamente se lhe asse- quer tirar consequências a seu favor, provar a inexactidão do
melha se encastra exactamente na conexão lógica do discurso, texto impresso - e pode fazer esta demonstração produzindo
ou porque estamos em face de omissões ou transposições que cópia autêntica do original da lei ou decreto, passada pelo
é fácil integrar ou corrigir pelo contexto da proposição - deve Arquivo Geral do Reino (regulamento de 5 de Setembro
admitir-se que o juiz pode exercer a sua crítica, chegando, na de 1902, art. 74-3) 1.
aplicação da lei, até a emendar-lhe o texto 2. Toda a vez que assim resulte discordância entre o texto
impresso e o original da lei, o juiz não pode proceder a qual-
da Justiça (Ministro Guardasigílli), quer mediante inserção na Gazeta Oficial, quer emenda, mas deve entender-se, relativamente ao ponto
quer mediante uma errata (errata-corrige) no fim do volume da Colecção•• em que a disconformidade se verifi~a, que nenhuma lei chegou
Nem se julgue que estas incorrecções são raridades, porque, ao contrário,
a ter existência jurídica: nem o texto sancionado a que falta
são por demais assás;frequentes. Assim, só no decreto de 24 de Novembro
de 1919 acerca do imposto extraordinário sobre o património, foi ordenada publicação adequada 2, nem o texto publicado que não corres-
a rectificação de nada menos de dez erros e mudanças de cifras (Gazeta Oficial,
17 de Janeiro de 1920, n.o 13). e de conformidade com o original e constitui texto legal das leis e decretos
1 Sobre a questão veja REGELSBERGER, Pandektet1, pág. 138; UNGER a respectiva edição (stampa) oficial, seja em folhas separadas, seja na Colecção
- System des osterreichischen allgemeinem Privatrechts «Sistema do direito pri- em volumes, seja na Gazeta Oficial.
vado geral austríaco., I, pág. 73; BINDING - Handbuch des Strafrechts «Manual Mas é evidente que a prova pode resultar ex se, do próprio texto impresso,
de direito penal», § 98.°, II; PFAFF - HOFMANN - Kommentar zum osterrei- que prima faeie, se patenteia como incorrecto e incongruente, e para tanto
chischen biirgerlichen Gesetzbuch. «Comentário ao Código Civil austríaco., I, não é necessário o confronto do texto com o original depositado no Arquivo
pág. 174; BIERMANN - Biirgerliches Recht «Direito Civil., pág. 29; DERNBURG geral do Reino, demais sendo certo que se não trata de prova de factos, mas
- Das biirgerliches Recht des deutschen Reichs «O direito civil no império alemão., de crítica do texto, para que é competente em primeira linha e pela sua mesma
§ 22.°, nota 4; e uma decisão do Reichsgericht «Tribunal do Império., 27, 4II, função o juiz.
onde se diz: «o legislador só pode falar uma língua - a da publicação da lei. 1 Note-se, porém, que não se trata de verdadeira prova, mas duma
Aquilo que da lei se não pode deduzir não é direito legal». forma de cooperação das partes na actividade judicial, semelhante à que tem lugar
Consulte ainda LUKAS - Fehler im Gesetzgebungysverfahren, 1907 «Vícios na prova do costume. Não é de excluir que a Cassação possa, de ofício, requi-
no processo legislativo»; LINDEMANN, no Archiv fiir offentlichen Recht «Arquivo sitar cópia do texto original depositado no Arquivo do Reino.
para o direito público., 14, 145; e ZANOBINI - La publicazione delle leggi, • Não pode aceitar-se a opinião de BINDING - HaIldbuch, pág. 460,
págs. 267 e sego segundo a qual a ordem de publicação é destinada a tomar conhecido o con-
, O art. 16.° do Regulamento de 1919 sobre a publicação das leis teúdo do documento original, e portanto mesmo por falsa publicação se
diz: «Enquanto se não provar a sua inexactidão, tem carácter de autenticidade torna lei o texto genuino. O A. explica (n. 6) que em tal caso o real princípio
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ponde à vontade do poder legislativo. Cai-se, portanto, na Outras vezes a investigação do juiz, sem se engolfar na
nulidade da norma. diplomática, não é menos difícil e subtil; assim acontece quando
A esta situação só pode trazer remédio uma nova publi- se trata de aplicar princípios de direito comum, vigentes ainda
cação do texto genuíno, ou uma rectificação oficial que, em para certas relações. Em tal caso a determinação da norma
substância, outra coisa não é senão uma nova publicação 1, aplicável não pode fazer-se simplesmente com remontar ao
parcial, que tem eficácia retroactiva. código de JUSTINIANO; é preciso, além disso, ter em conta
todas as modificações e adaptamentos que o princípio romano
b) Erros conceituais de redacção ou coordenação: sofreu na elaboração doutrinal e na jurisprudência. Trata-se,
portanto, de uma crítica conjectural, de uma selecção avisada
Dos erros materiais de texto devem separar-se bem os das opiniões dos doutores, o que requer visão segura e profundo
erros conceituais de redacção ou coordenação - erros na mani- conhecimento das fontes, para se determinar o verdadeiro e
festação de vontade, cometidos na elaboração das leis, e que genuino princípio dominante e regulador naquele tempo.
por inadvertência passaram através das discussões parlamen-
tares até ao texto definitivo. Estes deslises podem ser positivos 3. - Controlo substancial da existência da lei
ou negativos, segundo introduzem no texto palavras ou
frases que não correspondem à vontade reconhecível do Mais importante é hoje o controlo substancial da exis-
legislador ou omitem outras que, inversamente, lá deviam tência das leis. Uma norma jurídica existe desde que surgiu
estar contidas. e não se extinguiu ainda. Por isso o poder judicial deve recusar
Tais erros fazem parte da lei e têm força vinculante. a aplicação a todas as regras que não têm carácter jurídico, ou
O juiz não pode remediá-los, excepto no caso único de a recti- por falta das condições e formas constitucionais para o seu
ficação poder deduzir-se por interpretação do próprio conteúdo nascimento, ou por falta de competência e poder na autoridade
do texto ou da sua conexão com outras normas. Em qualquer que as emanou, ou enfim porque essas normas perderam a
outro caso a correcção só é possível por via legislativa. sua eficácia em virtude de abrogação.
A actividade crítica do poder judicial tem mais vasto Compreende-se como nestas investigações se produzem
campo para se exercitar quando se trata de aplicar leis antigas contactos entre o poder judicial e o legislativo, e se torna
- hipótese em que é necessário proceder a investigações histó- necessário marcar limites a tais investigações, que poderiam
ricas ou paleográficas, podendo o juiz, nesta tarefa, reclamar transformar-se numa ilegítima intrusão de um dos poderes na
o auxílio de peritos. esfera do outro.
Faz-se mister distinguir entre o controlo da existência
formal das leis e o controlo substancial do seu conteúdo.
jurídico não está na lei, mas pertence ao direito lião escrito. A verdade é que
O nosso direito público não admite uma fiscalização sobre
o texto genuíno, não tendo tido publicação conforme, não se tomou lei.
Sobre a questão, veja SONNTAG - RedaktiollSversehell des Gesetzgebers «Lapsos
o conteúdo substancial das leis por inconstitucionalidade, como
de redacção do legislado1'>, no Archiv !ür Strafrecht -Arquivo para o direito sucede nos Estados Unidos da América, pois o nosso Estatuto
penal., 19,291; SCHUHE - ibi., 20, 351; ZANOBINI - La publicaziolle, pág. 282. não representa uma lei inviolável acima das outras leis, mas
1 ZANOBINl - La publicaziolle, pág. 287. é apenas uma lei como todas as outras, uma lei que pode ser
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modificada e abrogada pelas fonuas ordinárias: o poder cons- Opõe-se que o acto de promulgação é uma atestação
tituinte é imanente no poder legislativo. Por consequência, solene do chefe do estado sobre a constitucionalidade formal
o verificar-se que uma lei derogou ao Estatuto não é motivo da lei, que tem o valor duma sentença ou dum acto público,
para lhe infmnar a eficácia, mas só faz constatar um desenvol- cuja fé não pode ser impugnada perante os tribunais; que a
vimento ou modificação da lei constitucional. promulgação é o único meio formal para constatar a existência
Inversamente, cabe ao poder judicial um controlo sobre f da lei; e que emanando do poder legislativo é insindicável
a exisdncia formal das leis. Pois que, de facto, lhe cumpre julgar pelo poder judicial. E demais, acrescenta-se, deve em.
secundum legem, o poder judicial tem não só o direito como qualquer caso ser vedado aos juizes o investigarem sobre
até o dever de verificar se uma lei existe formalmente, quer o período de formação interna da lei, para se não criarem
dizer, se estão integradas as condições e formas constitucionais conflitos e fiscalizações que diminuem a autonomia do poder
para que haja uma lei válida. legislativo.
Se, portanto, há discordância entre os textos aprovados Estes argumentos não são decisivos. Ou se considere a
pelas duas Câmaras, ou entre o texto aprovado pelo Parlamento promulgação um acto que o Rei pratica como chefe do poder
e o sancionado e promulgado, não há uma lei, mas uma apa- legislativo, ou um acto em que o Rei funciona como chefe do
rência de lei, a que não pode infundir força nem a sanção régia, Governo, de toda a maneira a promulgação não tem de per si
que deve juntar-se à vontade das Câmaras e não substitui-la, a qualidade de acto legislativo subtraído ao controlo judiciário.
nem o acto da promulgação, que anuncia a existência da lei Inautorizada é a comparação que se quer instituir entre
e ordena a sua execução, mas cuja eficácia é subordinada à promulgação e sentença, porque o Rei ao promulgar a lei
integração efecti~a dos elementos da existência da lei, e prin- não decide processo algum, nem se pronuncia causa cognita,
cipalmente à aprovação do Parlamento. depois de ter examinado a observância das formas constitu-
Todavia este ponto é objecto de controvérsia na doutrina 1. cionais da lei, como ex adverso se pretende.
E menos se pode induzir a insindicabilidade da promul-
gação do considerar-se esta um acto público, porque a publici-
1 A questão foi debatida em Itália, a propósito da lei pautal de 30 de dade dos actos estaduais tem carácter diverso do da publicidade
Janeiro de 1878, que no seu art. 96.• estabelecia sobre os tecidos de algodão
lavados (imbiam:hiti) um direito superior em 20% ao que recaía sobre os
tecidos brutos ou virgens (greggi) , o que correspondia ao projecto aprovado giudiziario, (Florença, 1900). Opostamente, negam à autoridade judiciária o
pelo Senado, enquanto que a Câmara dos Deputados tinha votado só 15%. direito de contestar a constitucionalidade formal da lei, em contradição com
Veja Cassação de Roma, 20 de Junho de 1886, (Foro Italiano, 1886, I, 705). o acto de promulgação: ARMANNI, no Foro Italiano, 1890,1, 1I06; SCHANZER,
A doutrina dividiu-se: alguns sustentaram a ineficácia da disposíção na Legge, 1894, II, 610. ROMANO, no Archivio giuridico, 1905, 48; CRISCUOLI
legislativa e a admissibilidade do sindicato ou controlo da autoridade judi. - La promulgazione, pág. 76 e seg., (Nápoles, 191I); ZANOB1NI - La publi-
ciária, outros, às avessas, a impossibilidade de todo o controlo judici:ú:io. cazione, pág. 276. Ao mesmo resultado de negar todo o controlo judiciário
Pela primeira opinião veja: ORLANDO - Teoria generale delle guarantigie della chega MORTARA - Comentário dei Códice e delle leggi de procedura civile, 1,
libertà, pág. 966; CAMMEO- Legge e ordinanza, n.· 25. FADDA e BENSA, ad n.· 112, argumentando, porém, com a sanção, que no seu entender é o acto
WINDSCHEID -- Diritto delle pandette, I, pág. 107; RANELLETTI - Principi di aperfeiçoador da lei, que lhe confere a patente (brevetto) de constitucionali-
diritto amministrativo, n, pág. 342; UGO - Le leggi incostituzionali, pág. 106; dade externa. No mesmo sentido veja ainda VENZ1, ad PAClFICl MAZZONI
GABBA, no Foro italiano, 1886, 705; LESSONA - La legalità della norma e ii potere - Istituzioni di diritto civile italiano, 1, 60 e sego
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dos negoclOs privados r, e, em particular, a circunstância de regras de processo das Câmaras, na discussão e votação, sobre
tal acto emanar do Rei como chefe do poder legislativo o número legal, a capacidade dos representantes para votar,
não o torna imune de vícios e de impugnativas. A promul- e outras análogas. Estas normas dizem respeito ao funciona-
gação, com efeito, não serve para completar a lei, não é o último mento interno das assembleias, são iura interna corporis de carácter
estádio do seu processo de formação, mas _pres_sl1P-ª~ lei já autonómico, que fogem às indagações do poder judiciário.
formada. É um documento que atesta solenemente ;;- exis- Por conseguinte, o poder de investigação do juiz não vai além
tência da lei, mas esta atestação deve corresponder à verdade, do resultado da aprovação, além do voto fmal que põe termo
deve ter o seu fundamento num acto legislativo real; de outro ao processo legislativo interno, sem indagar da forma e do
modo a lei não deveria o seu nascimento ao poder legislativo, processo por que se chegou a este resultado.
mas ao acto régio de promulgação.
E assim volta a questão: o juiz quando aplica as leis deve A fiscalização jurisdicional exercita-se ainda nos casos de
conhecer da sua existência só através da promulgação, ou pode delegação legislativa, tendo por objecto então o examinar se
levar mais longe o seu exame, constatando que a promulgação as disposições emanadas pelo Governo entram na esfera de
se apoia num erro 1 poder que lhe foi assinada pela lei de delegação. É natural,
Assevera-se que a promulgação é o único meio para cons- de facto, que as normas emanadas pelo poder executivo, quando
tatar a existência das leis, mas este o thema probandum! exorbitam da delegação, sejam privadas de força jurídica 1.
Em conclusão, pode observar-se que, na falta de uma Mais duvidosa se apresenta a questão da sindicabilidade
disposição explícita, também esta acto solene é susceptível de dos decretos-leis.
crítica e revisão, 'c e quando se constata que ele repousa sobre Uma forte corrente doutrinal contesta a legitimidade
um equívoco a autoridade judiciária negará reconhecimento deste processo de que o Governo se serve em circunstâncias
a esta larva de lei que não veio à existência nas formas consti- extraordinárias ou de urgência, e por isso nega que tais decretos
tucionais. possam achar aplicação nos tribunais. Outros, pelo contrário,
Todavia o seu controlo cifra-se em averiguar da existência subordinam a sua validade à verificação concreta, por parte
exterior dos elementos da lei: aprovação dos órgãos legislativos, da autoridade judiciária, das condições excepcionais em que
promulgação, publicação; e não pode penetrar no vestíbulo esses diplomas foram emanados.
interno da formação da lei, para inquirir da observância das Deve regeitar-se esta última opinião que levaria a intro-
meter-se o poder judicial em indagações de carácter político
1 É de consentir a CRISCUOLI - La promulgaziol1e, pág. 81, que acto para as quais não tem competência; mas tão pouco é de seguir
público em direito constitucional tem significado diverso do que tem no afoitamente a tese rigorosa da ineficácia dos decretos-leis.
direito privado. Sucede todavia que os Autores contrários procuram jogar
com o equívoco, deduzindo do princípio privatístico de que o acto notarial.
faz fé sobre aquilo que nele se atesta a irrevogabilidade da promulgação. 1 Como decisão mais recente, veja Cassação de Roma, 2r de Agosto
Mas, pondo-se neste terreno, replica justo COVIELLO - Manuale di diritto de 1907, (Foro italiano, r907, r, 1304). O poder de sindicato judiciário foi
civile italiano, pág. 62, que o oficial público atesta de modo inopugnável admitido até no caso de concessão de plenos poderes, durante a guerra actual
aquilo que se passa na sua presença, enquanto que o Rei não pode fazer fé para controlar se o Governo excedeu ou não os limites desta delegação. Veja
plena da aprovação das Câmaras, que tem lugar sem o seu concurso. Apelação de Génova, 13 de Junho de 1919 (Foro italiano, 1919, r, IlrS).
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Na verdade, sendo certo que do ponto de vista político autónomos novos que não derivem das prescrições da lei c,
não se pode negar ao Governo o direito de em condições de muito menos, que as contradigam. A autoridade judiciária
urgência se antecipar ao poder legislativo, fazendo-se uma em tais circunstâncias não infirma por nulidade o regulamento;
espécie de gestor de negócios deste, resulta que os decretos-leis apenas no caso concreto se nega aplicar a nornla ou as normas
hão-de considerar-se como leis potenciais, dependentes de apro- que resultam inconstitucionais.
vação, e que tal aprovação opera com eficácia retroactiva.
E pois que deve partir-se do princípio de que a actuação Mas não basta estabelecer que uma norma jurídica nasceu
governativa tem carácter legítimo, e portanto deve presmnir-se em forma regular; ocorre igualmente saber se ela está cm vigor,
que será. ratificada pelo poder legislativo, à autoridade judi- se, isto é, não foi mudada ou suprimida por uma norma pos-
ciária cumpre, em vista deste normal pressuposto, dar apli- terior. A tal propósito deve ter-se em conta a teoria da abro-
cação ao decreto-lei, salvo ficando o recusar-lhe eficácia se gação das leis «veja infra, n.O 16».
vier a ter lugar a desaprovação do poder legislativo. O que se disse para as normas legislativas, vale também
para os costumes, onde forem reconhecidos. O juiz não pode
Mais rigoroso se exercita o controlo sobre os regulamentos aplicá-los sem primeiro veriftcar a sua existência, apurando os
administrativos, a que a autoridade judiciária dará aplicação elementos de que resultam, e a sua não cessação por efeito de
só enquanto forem conformes as leis. (Lei sobre o contencioso desuso ou de usos contrários, ou mediante abrogação por via
administrativo, art. 5.°). legal.
A actividade regulamentar deve mover-se dentro de
limites precisos, ~ não só não pode pôr-se em contradição com
a lei, mas não pode também formular princípios novos, que
apenas ao legislador compete pronunciar. Um regulamento
pode ser contra ou praeter legem. Mais interessante é o segundo
caso.
O regulamento não pode sair da esfera discricionária que
lhe é assinada pelo direito vigente (leis gerais ou lei de autori-
zação) e não pode ditar normas estranhas ou exorbitantes daquela
faculdade discricionária. Independentemente disto, transcende o
poder discricionário toda a norma que limita direitos de liber-
dade ou impõe encargos financeiros ou inflige penas, salvo
se houver uma delegação conferida por lei. E quando se trate
de regulamentos de execução, além destas restrições um limite
imediato se encontra na lei mesma para cuja execução o regula-
mento foi expedido. De facto o regulamento poderá desen-
volver, concretizar, dar regras de detalhe sobre as formas e
modos de actuação da lei, mas não pode introduzir princípios
II
DETERMINAÇÃO DO SENTIDO
DAS NORMAS JURÍDICAS. INTERPRETAÇÃO 1
4. - Ideias gerais
Mas a actividade central que se desenvolve na aplicação
da norma de direito é a que tem por objecto a interpretação.
O texto da lei não é mais do que um complexo de palavras
escritas 2 que servem para uma manifestação de vontade, a casca
«Anuários de Iherillg para a dogmátic<l» 25, 270; BüLOw - Gesetz und Rich-
teramt «A lei e a fWlção do juiz», Leipzig, 1885; KRAus-Die leitende Grandsiitze
der Gesetzinterpretation «Os princípios directivos da interpretação das leis», na
Grüuhut's Zeitschrift, 32; GÉNY - Méthode d'interpretatioll ft sourees ell droit
prifJé positif, Paris, 1899; BRÜTT - Die Kunst der ReclttsallUJendullg «A arte
da aplicação do direito», Berlim, 1907; SCIALOJA - SuIla teoria deIla illter-
pretaziolle deIle leggi, nos sttldi per Scltupfer, III; DEGNI, L' interpretazione deIle
leggi, 2.' ed., Nápoles, 1909; ALFREDO Rocco - L'iuterpretazi01Je deIle leggi
processuali, no Arcltivio Giuridico, 1906, pág. 91 e seg.; SCIALOJA (ANTÓNIO)
- Le fonti e l'interpretazione deI diritto commerciale, 1907; CARNELUTTI - Criteri
d'interpretazione deIla legge sugli Ítlfortuni nel lavora, nos Sttldi sllgli infortllni,
voI. I; ROMANO - L'interpretazione deIle leggi di diritto publico, no Filangieri,
99, 242 e segs.; FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Palldette, I, rr8 e segs.;
SALEILLES - Ifattori d'illterpretazione giuridica, Corte Napoli, 1903.
• Em forma paradoxal SCHLOSSMANN - Der Irrttlln über UJesentlichen
Eigmschaften. «Erros sobre qualidades essenciais», pág. 27, chama à lei lima
folha de papel impresso, uma combinação de papel com sinais negros! Mas
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exterior que encerra um pensamento, o corpo de um conteúdo regulados pela lei. Na analogia o trabalho do jurista move-se
espiritual. numa esfera mais alta, mas não se transforma em criação do
A lei, porém, não se identifica com a letra da lei. Esta direito, porque fica sempre vinculado à lei.
é apenas um meio de comunicação: as palavras são símbolos
e portadores de pensamento, mas podem ser defeituosas. Só A actividade interpretativa é a operação mais difícil e
nos sistemas jurídicos primitivos a letra da lei era decisiva, delicada a que o jurista pode dedicar-se, e reclama fino tacto,
tendo um valor místico e sacramental. Pelo contrário, com senso apurado, intuição feliz, muita experiência e domínio
o desenvolvimento da civilização, esta concepção é aban- perfeito não só do material positivo, como também do espí-
donada e procura-se a intenção legislativa. Relevante é o rito de uma certa legislação.
elemento espiritual, a voluntas legis, embora deduzida através Cumpre evitar os excessos: duma parte o daqueles que
das palavras do legislador. por timidez ou inexperiência estão estrictamente agarrados ao
Entender uma lei, portanto, não é somente aferrar de texto da lei, para não perderem o caminho (e muitas vezes
modo mecânico o sentido aparente e imediato que resulta toda uma era doutrinal é marcada por esta tendência, assim
da conexão verbal; é indagar com profundeza o pensamento acontecendo com a época dos comentadores que se segue ime-
legislativo, descer da superfície verbal ao conceito íntimo que diatamente à publicação dum código); por outro lado, o perigo
o texto encerra e desenvolvê-lo em todas as suas direcções ainda mais grave de que o intérprete, deixando-se apaixonar
possíveis: Scire leges 11011 !toe est verba earum tenere, sed vim ac por uma tese, trabalhe de fantasia e julgue encontrar no direito
potestatem (17,Dig. 1, 3). positivo ideias e princípios que são antes o fruto das suas locubra-
A missão do intérprete é justamente descobrir o conteúdo ções teóricas ou das suas preferências sentimentais.
real da norma jurídica, determinar em toda a plenitude o .seu A interpretação deve ser objectiva, equilibrada, sem paixão,
valor, penetrar o mais que é possível (como diz WINDSCHEID) 1 arrojada por vezes, mas não revolucionária, aguda, mas sempre
na alma do legislador, reconstruir o pensamento legislativo. respeitadora da lei.
Só assim a lei realiza toda a sua força de expansão e repre-
senta na vida social uma verdadeira força normativa. Aplica-se a interpretação a todas as leis, sejam claras ou
sejam obscuras " pois não se deve confundir a interpretação
De interpretação fala-se em sentido amplo e em sentido com a dificúldade da interpretação.
estricto. No sentido estricto, a interpretação consiste em deter- A inteligência dum texto pode sair mais ou menos fácil,
minar a significação da lei e desenvolver o seu conteúdo em e de resto a facilidade depende da pessoa que interpreta, mas
todas as direcções; no sentido amplo, a interpretação com- isto não tira que a lei se apresente sempre como um texto
preende também a analogia, isto é, a elaboração de normas rígido que deve ser reavivado e iluminado no seu sentido
novas para casos não contemplados, induzidos de casos afms
1 Sobre a insidiosidade da máxima: ln claris non fit interpretatio, veja-se:
não se adverte que estes sinais de escrita são a expressão dum pensamento MORTARA - Comentaria, I, 72; FADDA e BENSA, ad WINDSCHElD - Pandette, 1,
e duma vontade. 167; FERRINI, ad GLUCK, Pandette, l, 167, nota (a). O mérito da dilucidação
1 Pandekten, 324, pág. 99· deste ponto cabe a SAVIGNY - Systell1, 1, 207 e segs.
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interior pela actividade interpretativa. Pelo contrano, as leis consiga num dado momento o aplauso mais ou menos incon-
claras oferecem o perigo de serem entendidas apenas no sentido trastado da doutrina e da magistratura. A interpretação pode
imediato que transluz dos seus dizeres, enquanto que tais normas sempre mudar quando se reconheça errónea ou incompleta.
podem ter um valor mais amplo e proflmdo que não resulta Como toda a obra científica, a interpretação progride, afina-se.
das suas palavras.
A interpretação é uma actividade única complexa, de
A interpretação juridica não é semelhante à interpretação natureza lógica e prática, pois consiste em induzir de certas
hist6rica ou jilo16gica, que se aplica aos documentos e que esgota circunstâncias a vontade legislativa, Com respeito a tais cir-
a sua missão quando acha um dado sentido histórico, sem cunstâncias é uso distinguir a interpretação em literal ou lógica,
curar depois se é exacto ou não, harmónico ou contraditório, conforme se procura determinar o sentido da lei através da sua
completo ou dificiente. Mirando à aplicação prática do direito, formulação verbal ou do seu escopo, mas a interpretação gra-
a interpretação jurídica é de sua natureza essencialmente teleo- matical também é lógica, uma vez que pretende inferir logi-
16gica 1. camente das palavras o valor da norma juridica.
O jurista há-de ter sempre diante dos olhos o fim da lei, Não há várias espécies de interpretação. A interpretação
o resultado que quer alcançar na sua actuação prática; a lei é única: os diversos meios empregados ajudam-se uns aos
é um ordenamento de protecção que entende satisfazer certas -outros, combinam-se e controlam-se reciprocamente, e assim
necessidades, e deve interpretar-se no sentido que melhor res- todos contribuem para a averigua~ão do sentido legislativo.
ponda a esta fmalidade, e portanto em toda a plenitude que
assegure tal tutela.
5. - A chamada interpretação autêntica 1
A interpretação é actividade cientljica livre, indagação
Além da interpretação científica, os escritores falam duma
racional do sentido da lei, que compete aos juristas teóricos
interpretação usual ou legal, quando a determinação do sentido
e práticos 2.
duma norma ocorre por via de costume ou por força de outra
Devendo aplicar-se a lei, todos os cultores do direito cola-
lei. Esta última chama-se precisamente interpretação autêntica.
boram para a sua inteligência, e os resultados a que chegam
É de negar, porém, que se trate aqui de verdadeira inter-
podem ser vários e diversos. Não se pode afirmar a priori
pretação.
como absolutamente certa uma dada interpretação, embora
A prescindir da interpretação consuetudinária, que no A interpretação autêntica tem, por certo, de comum com
nosso sistema positivo carece de força vinculante, porque os a interpretação doutrinal o seu fim, a saber, a determinação
usos têm uma posição subordinada à lei e valem só nos casos do sentido duma norma jurídica; mas ao passo que a inter-
em que são reconhecidos, também a interpretação autêntica pretação doutrinal o procura livremente, deduzindo-o da
vale menos como interpretação, tirando eficácia da lei antiga, letra e das razões, e vale só na medida em que corresponde à
do que como lei nova com força própria, mesmo que seja vontade legislativa real, a interpretação autêntica, pelo contrário,
uma lei meramente reprodutiva da anterior. Análogas, se declara formal e obrigatàriamente o sentido de uma lei anterior,
bem que distintas, são as leis confirmativas e as rectificativas. prescindindo de que este se ache efectivamente contido na 1ei
Em outros tempos a interpretação da lei era considerada interpretada 1.
como função exclusiva do legislador, o qual curava de escla- É frequente acontecer que sob a forma de interpretação
recer as dúvidas e as obscuridades que se descobriam na aplicação. autêntica, em vez de reproduzir em termos mais claros e pre-
Em certo país até chegou a instituir-se uma comissão legislativa cisos a lei antiga, o legislador se desvia conscientemente dela,
permanente, a que os Tribunais deviam enviar as suas dúvidas, modificando-a, ou que nem sequer toma em conta o seu sen-
sobre as quais ela se pronunciava com eficácia vinculante. tido originário - especialmente se este já se não pode descobrir,
Este sistema foi abandonado; mas de quando em quando, por como tem lugar quando se interpretam leis velhas de muitos
razões de oportunidade, publicam-se leis destinadas a aclarar séculos - e introduz um princípio novo, que injecta e transfunde
e especificar o sentido de outra lei. na lei antiga, fingindo que tal foi ~ sentido originário 2.
É interpretativa toda a lei que, ou por declaração expressa Daqui deriva a característica das leis interpretativas, isto é,
ou pela sua intenção de outro modo exteriorizada, se propõe a sua eficácia retroactiva. Desde que o princípio contido na
determinar o sentido de uma lei precedente, para esta ser lei interpretativa deve considerar-se como Ínsito na lei inter-
aplicada em conformidade. Observe-se que tal escopo da lei pretada, conclui-se que todas as relações jurídicas anteriores,
interpretativa é essencial, porque nem toda a decisão legal de mesmo que sejam objecto dum litígio pendente, deverão ser
uma controvérsia preexistente, nem toda a dilucidação de outra julgadas consoante a nova lei declarativa, e por isso a sentença
lei há-de considerar-se como interpretação autêntica, bem de primeira instância ou a proferida em grau de apelação, ainda
podendo suceder que o legislador tenha querido sàmente que esteja conforme ao significado exacto da lei antiga, deverá
afastar dúvidas para o futuro, sem pretender que a nova lei ser reformada ou cassada, quando se mostre em oposição com a
se considere como conteúdo· duma lei passada. O conceito lei interpretativa. Só não são atingidas por esta lei as contro-
de interpretação autêntica está expresso no preâmbulo da vérsias já encerradas por uma sentença passada em julgado ou
Novela 143: «Quam interpretationem non in futuris tantummodo por transacção 3.
casibus VERUM lN PRAETERlTIS etiam valere sancimus, tamquam
si nostra lex ab initio cum interpretatione tali a nobis promulgata
fuisset». 1 SELIGMANN - Der Begríff des Gezetzes «O conceito da lei». págs. 151
e segs.
Não estamos em face duma interpretação autêntica, quando
2 COVIELLO - Manuale, pág. 68.
se regula só para o futuro ou se completa qualquer lacuna duma
2 ENNECCERUS - Lehrbuch des bürgerlíche11 Rechts «Tratado de Direito
lei precedente. Civil", I, pág. 145; CAMMEO - op. cit., pág. 309 e segs.
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Disto resulta que a chamada interpretação autêntica 1 não Por outro lado, o comando legal tem um valor autónomo
é verdadeira interpretação, mas funda a sua eflcácia de modo que pode não coincidir com a vontade dos artíftces e redactores
autónomo na declaração de vontade do legislador: é uma lei da lei, e pode levar a consequências inesperadas e imprevistas
com efeito retroactivo 2. (Veja o Estatuto, art. 73.°). E por para os legisladores. Como diz THOL 1, pela sua aplicação a
isso deve emanar de um órgão que possa derogar à norma lei desprende-se do legislador e contrapõe-se a ele como um
interpretada: assim uma lei não pode ser interpretada senão produto novo, e por isso a lei pode ser mais previdente do que
por outra lei, um regulamento por outro regulamento ou por o legislador.
uma lei, etc.; mas o costume não pode ter força de interpre- A vida jurídica todos os dias oferece ocasião para' se
tação autêntica. tirarem novos princípios das palavras da lei que subsistem de
modo autónomo como vontade objectivada do poder legis-
lativo. Especialmente à medida que a lei se vai afastando da
6. - Objecto da interpretação: «voluntas Legis, non
legislatoris» sua origem, a importância da intenção do legislador vai afrou-
xando até se dissolver: o intérprete tardio acha-se imbuído de
A fmalidade da interpretação é determinar o sentido objec- mudadas concepções jurídicas, e com isto a lei recebe um signi-
tivo da lei, a vis ac potestas legis. A lei é expressão da vontade ficado e um alcance diverso do que originàriamente foi querido
do Estado, e tal vontade persiste de modo autónomo, desta- pelo legislador. Mas com isto não se veriftca, como pensa
cada do complexo dos pensamentos e das tendências que ani- REGELSBERGER 2, um desvirtuamento ou uma adulteração incons-
maram as pess9as que contribuíram para a sua emanação. ciente da lei, devida à acção do tempo; há somente uma diversa
O intérprete deve apurar o conteúdo de vontade que alcançou apreciação e projecção do princípio no meio social.
expressão em forma constitucional, e não já as volições alhures O ponto directivo nesta indagação é, por consequência,
manifestadas ou que não chegaram a sair do campo intencional. que o intérprete deve buscar não aquilo que o legislador quis,
Pois que a lei não é o que o legislador quis ou quís exprimir, mas aquilo que na lei aparece objectivamente querido: a mens legis
mas tão somente aquilo que ele exprimiu em forma de lei 3. e não a mens legislatoris.
se possa penetrar ou cuja vontade se possa indagar: na formação rica - vontade da lei. Esta fórmula não pretende significar que
da lei cooperam multíplices factores, uma pluralidade de pessoas, a lei tem um querer no sentido psicológico, mas apenas que
vàriamente ordenada, pelo que a rigor a lei é o resultado duma encerra uma vontade objectivada, um querido (voluto) inde-
vontade colectiva, a síntese da vontade de órgãos estaduais diversos. pendente do pensar dos seus autores, e que recebe um sentido
E precisamente em virtude desta colaboração, e porque próprio, seja em conexão com as outras normas, seja com
entre os que participam na elaboração da lei subsistem correntes referência ao escopo que a lei visa alcançar.
espirituais várias, opiniões e motivos não coincidentes, e por O jurista há-de ter sempre diante dos olhos o escopo da
vezes mesmo têm lugar transacções ele teúdências para se chegar lei, quer dizer, o resultado prático que ela se propõe consegulr.
a um acordo, não é possivel falar duma intenção real do legis- A lei é um ordenamento de relações que mira a satisfazer certas
lador. necessidades e deve interpretar-se no sentido que melhor res-
O legislador é uma abstracção 1. A lei, diz KOHLER, deve ponda a esta finalidade, c portanto em toda a plenitude que
conceber-se como um organismo corpóreo penetrado por um assegure tal tutela.
impulso espiritual. q elemento corpóreo é a palavra da lei, Ora isto pressupõe que o intérprete não deve limitar-se
pois que a palavra não--é simplesmente o meio de próva, mas a simples operações lógicas, mas tem de efectuar complexas
o veiculo necessário, o substracto do conteúdo espiritual, não apreciações de interesses, embora dentro do âmbito legal!
é só revelação, mas realização do pensamento legislátivo. E daqui a dificuldade da interpretação, que não é simples arte
A obra legislativa é como uma obraârtística em qué a linguistica ou palestra de exercitações lógicas, mas ciência da
obra de arte e a concepção do criador não coincidem. Também vida e metódica do direito.
o conteúdo espiiitual da lei não coincide com aquilo que dela Visto o carácter objectivo do sentido da lei, conclui-se
pensam os seus artífices :naleCesiisempre um fundo, de insco~~::: que esta pode ter um valor diferente do que foi pensado pelos
ciente e apenas suspeitada vida espiritual, em que repousa o seus autores, - que pode produzir consequências e resultados
trabalho mental de séculos. imprevisíveis ou, pelo menos, inesperados no momento em
E assim _chegamos à objectivação da lei. A lei deve inter- que foi feita, e por último que com o andar dos tempos o prin-
pretar-se em si mesma, como incorporando um pensamento cípio gaúha mais amplo horisonte de aplicação, estendendo-se
e uma vontade própria. A interpretação consiste em declarar a relações diversas das originàriamente contempladas, mas que,
não o sentido histórico que o legislador materialmente ligou ao por serem de estrutura igual, se subordinam ao seu domínio
piincípio,(mas o sentid0'l~e ali está imanente e vivo., Eis o (fenómeno de projecção) 1.
que, precisamenfê~ se quer exprimir com a fórmula metafó-
1 Sobre isto veja-se WÜRZEL - Das juristische Denken, pág. 43: «Muitas
1 WÜRZEL - Das Juristische Denken «O pensamento jurídico., págs. 46 vezes acontece que uma norma é ditada tendo-se presente um certo estado de
e segs.: A vontade do legislador é uma grandeza variável, um reservatório facto, mas essa norma será também aplicável a relações que, embora origi-
em que estão sepultadas as contradições. Mas quem é o legislador 1 Será nàriamente não previstas, têm, no entretanto, a mesma estrutura que as pri-
o Parlamento 1 Se assim fosse teria de admitir-se que o Parlamento era um meiras: o antigo conceito projecta-se sobre novos fenómenos».
jurista de profissão, capaz de conhecer o título e o imenso conteúdo das leis O A. recorda o caso duma disposição penal contra os falsificadores
emanadas. O legislador é entidade que em parte alguma se descobre - é uma de dinheiro, emanada num tempo em que no país não havia outra moeda
figura mística, indeterminada. senão a metálica: se depois se introduz o papel moeda, será aplicável a mesma
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direito romano e depois, através da elaboração medieval, onde Questiona-se em doutrina acerca do valor a atribuir a
confluem correntes de direito germânico e canónico, prossegue estes Trabalhos preparatórios.
no direito comum e daí, pelo trâmite do direito francês, entra Está hoje refutada a obsoleta concepção que, identifIcando
no nosso código. Uma grande parte dos princípios contidos o legislador com o redactor da lei, dava a tais discussões e opi-
nos códigos são a reprodução de princípios análogos vigentes niões quase a autoridade duma interpretação autêntica.
no passado, têm cada um a sua história própria. Parte-se agora da observação exacta de que semelhantes
Compreende-se que precioso auxílio para a plena inteli- escritos e discursos são coisa interna dos órgãos legislativos e
gência dum texto resulta de se descobrir a ~ua ori[e~1li~~~ca,
e seguir o seu desenvolvimento e as suas transformações, até
ao arranjo defInitivo do assunto no presente) Fórmulas e
princípios que considerados só pelo lado racional parecem
verdadeiros enigmas, encontram a chave de solução numa
razão histórica, no rememorar de condições e concepções dum
I não se transfundem na lei publicada: trata-se de debates internós,
de modos de ver dos diversos relatores ou preopinantes (disse-
renti), de tendências individuais, e não de pensamentos do
legislador. O silêncio dos outros elaboradores da lei não vale
por aquiescência ou apropriação dos conceitos emitidos pelos
vários proponentes, porque o texto da lei pode ser aprovado
tempo longínquo que lhes deram uma fIsionomia especial l . por outros motivos e até, frequentemente, discordando-se das
A história dogmática dos institutos do direito civil ainda razões invocadas. O conceito da lei projecta-se diversamente
não é para nós mais do que um pio desejo, porque a outros no espírito dos votantes, e não é legítimo supor que haja neles
assuntos se volvem as investigações dos historiadores do direito um intento único. Desta divergên~ia aparece rasto nos tra-
(afora excepções isoladas), e por isso convém que todo o estu- balhos legislativos, onde vemos sustentar opiniões contrárias,
dioso solícito dlim problema jurídico tenteie por si os pre- surgir antagonismos e transacções de tendências, acordarem-se
cedentes históricos, para adquirir uma visão plena e nítida da novas fórmulas de texto, e maior se patentearia a discordância
disposição. se nos fosse dado colher ao vivo o trabalho legislativo mais
do que resulta das atestações ofIciais contidas nos actos e nos
8. - Os trabalhos preparatórios documentos das Câmaras. E de toda a maneira não pode
falar-se dum intento único.
A história do preceito positivo compreende não somente COSACK 1 comparou os trabalhos preparatórios duma lei
a indagação da sua origem remota, como também a do seu aos debates preliminares dum contrato, e como estes, em prin-
nascimento recente, e portanto dos trabalhos legislativos que cípio, não têm influência sobre o contrato defInitivo, que é
prepararam a sua introdução num código. Trata-se dos pro- fruto de transacções de interesses, assim também àqueles falta
jectos de lei, das discussões de comissões, dos motivos, relatórios autoridade sobre o texto defInitivo da lei, que deriva do cruza-
e discursos que constituem os materiais de elaboração das leis. mento de opiniões e tendências opostas dos vários órgãos
legislativos.
1 Assim só historicamente se explicam o princípio da natureza decla-
ra'iva da divisão, do efeito da posse dos móveis em relação a terceiros, da
Saisina iuris na herança, da subrogação por pagamento, das contra-decla- 1 Lehrbuch des biirgerlichen Rechts «Tratado de direito eivil», I, § 12.°,
rações no matrimónio, etc. pág. 40.
lO
146 147
entre os significados possíveis da palavra se elege aquele que o pensamento deve triunfar da forma, a vontade da escama
parece mais adapatado à mens legis 1. verbal: prior atque pote11tior est quam vox, mens dicentis (7, § 2,
E para esta escolha valem os meios usuais de interprtação Dig. 33, 10).
lógica. Em particular, observaremos que na interpretação O confronto da interpretação lógica com a literal há-de
de expressões de sentido duplo, ou indeterminadas, cabe ter por efeito operar uma rectijicação do sentido verbal na con-
escolher, na dúvida, o significado pelo qual o princípio formidade e na medida do sentido lógico. Tratar-se-á de
jurídico menos se desvia do direito regular, ou pelo qual corrigir a expressão imprecisa, adaptando-a e entendendo-a no
se chega a um resultado mais benigno, de preferência a um signiftcado real que a lei quis atribuir-lhe. A modiftcaçâo
mais rigoroso 2. refere-se às palavras, que não ao pensamento da lei.
A imperfeição linguística pode manifestar-se de duas
b) DISCORDÂNCIA ENTRE O RESULTADO DA INTERPRETAÇÃO
formas: ou o legislador disse mais do que queria dizer, ou disse
LÓGICA E O DA GRAMATICAL.
menos, quando queria dizer mais. A sua linguagem pode ser
demasiado genérica, e compreender aparentemente relações
o sentido literal não coincide com a vontade da lei, que conceitualmente dela estão excluídas, ou demasiado
tal como se deduz da interpretação lógica: há desconfor- restricta, e não abraçar em toda a sua amplitude o pensa-
midade entre a letra e o pensamento da lei. Analisando a mento visado. Em suma, o legislador pode pecar por excesso
disposição do ponto de vista lógico, vê-se que resulta outro ou por defeito. .
sentido que nãq, é aquele que das palavras transparece ime- A interpretação, para fazer corresponder o que está dito
diatamente. ao que foi querido, procede acolá restringindo e aqui alargando
Ora as palavras são um meio para tomar reconhecível a letra da lei: num caso há interpretação restritiva, e no outro
a vontade, e se é certo que sem alcançar expressão nas formas há interpretação extensiva.
constitucionais uma vontade legislativa não tem existência
jurídica, certo é outrossim que basta uma manifestação defei- I) Interpretação restritiva.
tuosa ou errónea, através da qual se possa reconstruir e vislum-
brar essa vontade 3. Pois que o meio deve sacriftcar-se ao fim, A interpretação restritiva aplica-se quando se reconhece
que o legislador, posto se tenha exprimido em forma genérica
e ampla, todavia quis referir-se a uma classe especial de rela-
1 W ABeRTER - Handbuch des württembergischen Privatrechts «Manual do ções. É falso, portanto, na sua absoluteza, o provérbio: Ubi
direito privado de WililTEMBERG», n, pág. 143, nota 36. lex 110n distinguit, nec nobis distinguere licet.
, UNGER - System, l, pág. 91. A interpretação restritiva tem lugar particularmente nos
3 Exagera SCHLOSSMANN - Der rrrtum, pág. 26, quando nega a legi-
seguintes casos: 1. o se o texto, entendido no modo tão geral
tinúdade da interpretação lógica, observando que embora estivéssemos con-
vencidos de que o legislador adoptara uma expressão demasiado larga, ou
como está redigido, viria a contradizer outro texto de lei;
restrita, nem por isso poderíamos dar validade como lei a uma vontade que 2. o se a lei contém em si uma contradição intima (é o chamado
não alcançou expressão nas formas constitucionais. E exagera, porque também argumento ad absurdum); 3. 0 se o princípio, aplicado sem res-
uma manifestação defeituosa basta para exprimir a vontade. trições, ultrapassa o fun para que foi ordenado.
150 151
Além disto é de observar que se um prinClpIO foi esta- E como a interpretação extensiva não é mais do que reinte-
belecido a favor de certas pessoas, não pode retorcer-se em gração do pensamento legislativo, aplica-se a todas as normas,
prejuizo delas, por interpretação restritiva das suas expressões sejam embora de carácter excepcional ou penal 1. O princípio
demasiado gerais 1. do art. 4. o das disposições preliminares, que veda a extensão
das leis penais ou restritivas além dos casos expressos, refere-se
II) Interpretação extensiva. à aplicação por analogia. Portanto não é verdade que as excep-
ções tenham de interpretar-se estrictamente, mas, pelo contrário,
A interpretação extensiva, pelo contrário, destina-se a que as excepções não se podem ampliar por analogia.
corrigir uma formulação estreita de mais. O legislador, expri- Sobre a interpretação extensiva baseia-se a proibição dos
mindo o seu pensamento, introduz um elemento que designa actos in fraudem legis.
espécie, quando queria aludir ao género, ou formula para um Com efeito, o mecanismo da fraude consiste na obser-
caso singular um conceito que deve valer para toda uma cate- vância formal do ditame da lei, e na violação substancial do
goria. Assim: fala-se de homens, quando é certo que devem seu espírito: tantum sententiam offendít et verba reservat. O frau-
reputar-se abrangidas também as mulheres; fala-se de doação, dante, pela combinação de meios indirectos, procura atingir
e devem julgar-se compreendidas todas as aquisições gratuitas, o mesmo resultado ou pelo menos um. resultado equivalente
ainda que mortis causaj diz-se alienação, e quer-se contemplar ao proibido; todavia, como a lei deve entender-se não segundo
igualmente a concessão de direitos reais de gozo ou de lúpo- o seu teor literal, mas no seu conteúdo espiritual, porque a
tecas; enuncia-se um princípio em tema de contratos, e pre- disposição quer realizar um fim e não a forma em que ele pode
tende-se que valha também para os testamentos, etc. manifestar-se, já se vê que, racionalmente interpretada, a proi-
A interpretação extensiva, despojando o conceito das parti- bição deve negar eficácia também àqueles outros meios que
cularidades e circunstâncias especializantes em que se encontra em outra forma tendem a conseguir aquele efeito 2.
excepcionalmente encerrado, eleva-o a um princípio que abarca
toda a generalidade das relações, dando-lhe um âmbito e uma III) A chamada interpretação abrogante.
compreensão que, perante a simples formulação terminológica,
parecia insuspeitada. Por último, a interpretação pode levar a um resultado
Falso é, pois, o brocardo: Ubi lex voluit dixit, ubi noluit, extremo - a negar sentido e valor a uma disposição de lei,
tacuit. As omissões no texto legal, com efeito, nem sempre quando se verifIca a sua absoluta contraditoriedade e incompa-
significam exclúsão deliberada, mas pode tratar-se de silêncio tibilidade com outra norma supra-ordenada e principal.
involuntário, por imprecisão de linguagem.
A interpretação extensiva é um dos meios mais fecundos 1 Assim o art. 365.°, n.O 3 do Código Penal agrava a pena de homi-
cídio quando este seja cometido por meio de substdncias Ve1lenosas. O prin-
para o desenvolvimento dos princípios juridicos e para o seu
cípio, porém, deve entender-se referido não exclusivamente aos venenos
reagrupamento em sistema.
verdadeiros e próprios, mas a toda a substância capaz de produzir a morte
imediata e imprevistamente: Veja DEGN1, L'interpretazione della legge, pág. 269.
2 fERRARA - Della Si111ulazione, pág. 71; ROTONDI- cli atti Í11 frode
1 UNGER - Systelll, 1, pág. 88. alla legge, pág. 22.
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um caso determinado ou a título de exemplo, se pode formular Se por lacunas se entendem vazios incolmáveis do orde-
para os outros casos não compreendidos a regra inversa, antes namento jurídico, deficiências que não se podem integrar
é certo que nisto mesmo se funda a interpretação extensiva, ao com meios jurídicos, então deve partir-se do princípio que o
elevar-se dos casos particulares a um princípio geral. direito não tem lacunas e que para todo o caso não previsto
Para nos servirmos dum argumento a contrario havemos de ocorre sempre uma norma jurídica desenvolvida e elaborada
estar seguros de que a norma em que nos baseamos deve valer no sistema. Isto vale, pelo menos quanto ao direito privado.
só para os casos enunciados pela lei; há-de mostrar-se que a dispo- A plenitude ou completeza (completezza) da ordem jurídica
sição é estabelecida exclusivamente em vista daquelas relações, resulta de os casos não previstos recaírem por sua vez sob outras
coisas ou pessoas que exigem especial disciplina. Só então normas de remissão (rinvio) predispostas para a sua regulamen-
será justificado induzir-se uma regra oposta válida para os tação, ou de que, por não estarem sujeitos às limitações que deri-
outros casos em geral. vam de normas particulares, saiem para fora do campo jurídico '.
O argumento a contrario não é uma forma de interpretação
1 Por parte de vários escritores (ZITELMANN, ANSCHÜTZ. DONATI)
extensiva, mas sim um meio de desenvolvimento das leis: ao
e com diversa amplitude e entoação, fala-se aqui duma aorllla gemI aeg<1tiva
passo que aquela tem lugar quando o legislador quis dizer
que vem a regular os casos não considerados.
mais do que disse, e o intérprete mira a restituir (rendere) em DONATI, a pág. 35 e segs., escreve que do complexo das disposições
toda a sua integridade o pensamento legislativo deficientemente particulares deriva uma norma geral complementar que tem este conteúdo:
expresso, o argumento a contrario propõe-se, ao invés, extrair que elll todos os mais casos não deve haver' aen/1tI11la limitação. Simplesmente
um pensamento novo não expresso, em antítese com o esta- o A., longe de atribuir a essa norma um carácter aegativo e concluir que não
é uma norma juridica, pois se re:olve na 11egação de normas jurídicas para os
belecido para o" caso regulado, uma segunda norma com con-
casos não contemplados, e uma norma de tal conteúdo seria inútil, intuitivo
te{do oposto ao formulado na lei.
como é que para além da órbita do comando cessa de haver obrigação,
procura esquivãr este resultado, inflectindo e transformando o conteúdo da
11. - Integração das lacunas das leis: Analogia norma do sentido de que nos casos não contemplados a lei não declara só que
não há outras limitações, mas Hão quer que as haja, e portanto exprime um
É probleluaassaz discutido nos últimos tempos o saber comando positivo destinado a excluir outras limitações, afora as estabelecidas.
A mim parece-me que um comando deste género não tem nenhuma
se o ordenamento jurídico apresenta lacunas 1. E a diversi-
base real na ordem jurídica, porque, se a função do direito objectivo é impor
dade dos pontos de vista sustentados depende não só do modo
deveres, e só aqueles deveres que resultam das normas, é implicito que os casos
vário de conceber as lacunas, mas também de a questão não não regulados estão fora do círculo do dever, sem que haja precisão duma
comportar, porventura, a mesma solução para o direito público ulterior vontade do ordenamento jurídico destinada a esse fim, quer dizer,
e para o direito privado. a excluir ou negar toda a limitação para os casos não regulados. Tal vontade
é uma superfectação. E por isso a teoria de DONATI, apesar da sua meditada
formulação diversa, resolve-se numa variedade das teorias precedentes, que
1 ZITELMANN - Lücken im Recht «As lacunas do direito;>, Leipzig, 1903. com a norma geral complementar querem abraçar a esfera da liberdade.
DONATO DONATI - II problema delle lacuae deli'ordinamento juridico, Milão, 1910, Ora um caso que entre no domínio deste princípio de liberdade não é um
onde vem indicada a copiosa literatura sobre o assunto (pág. 3, nota). BRU- caso jurídico, pois é Ulll caso para que lIão valem aormas de direito. Se a lei penal
NETTI - II delitto civile, pág. 104 e segs., e uma série de escritos polémicos não pune certo facto que segundo a consciência social merece ser plmido,
(Scriti giuridici, 1, pág. 34 e segs.) àcerca do valor do problema das lacunas. não se pode falar duma lacuna, mas sim duma imperfeição da lei.
156 157
Não pode tratar-se então de lacW1as, mas sim de defeitos da lei, Por isso, embora o direito positivo não apresente dispo-
a apreciar segW1do critérios intrínsecos de justiça ou de prática sição especial para certa matéria ou caso, há nele, porém, capa-
oportunidade. cidade e força latente para a elaborar, e contém os germes
Pode todavia falar-se de lacW1as noutro sentido, como ! de uma série indeterminada de normas não expressas, mas
de falta duma disposição que regule especialmente certa matéria ínsitas e viventes no sistema. Com efeito, se duma só disposição
ou caso, se bem que a tal deficiência se possa suprir mediante ou dum grupo de normas se deduz um princípio jurídico mais
outra norma tirada por analogia, ou, onde o procedimento amplo, é de concluir, na dúvida, que, visto ter aplicado seme-
analógico não é admitido, o facto caia numa esfera de liber- lhante princípio no caso particular, a ordem jurídica o apro'Va
dade extra-jurídica ou juridicamente indiferente, por mais na sua generalidade, e portanto todas as consequências que do
que este resultado possa surtir impróprio e inadaptado à índole Rrincípio derivam 1.
da relação. Aqui trata-se de lacunas aparentes que se preenchem E precisamente esta indagação delicada que à força de
por via de interpretação e desenvolvimento do conteúdo legis- abstracções e de induções extrai do sistema um conteúdo de
lativo e que desaparecem na aplicação. pensamento jurídico irrevelado é o instrumento técnico para
Por muito previsora e vigilante que seja a obra legislativa, colmar as lacunas da lei.
é impossível que todas as relações encontrem regulamentação As lacunas podem ser de vária espécie. São intencionais
jurídica especial, e que a plenitude da vida prática se deixe ou involuntárias, segW1do é o mesmo legislador que delibe-
prender nas apertadas malhas dos artigos dum Código. Por radamente omite regular certas situações, que não julga
outro lado as relações sociais mudam continuamente, surgem ainda maduras para uma disciplina própria, abandonando
novas situações, mercê de descobertas e invenções em que o a sua decisão à ciência e à jurisprudência, ou o insuftciente
legislador do tempo não pensou nem podia pensar, e uma da regulamentação jurídica provém de omissão involwl-
multidão de relações e conflitos novos irrompem na vida jurí- tária ou de não se ter tido uma visão completa do assW1to
dica exigindo disciplina e tutela. a regular.
A esta necessidade satisfaz em regra a ordem jurídica, por Acresce que a lacuna se pode referir a toda uma matéria
virtude da sua tendência para contentar a aspiração das várias ou instituto, ou já existente (por ex. a sucessão das pessoas jurí-
relações a tornarem-se objecto de regulamentação adequada. dicas, o direito de sepulcro) ou novo (por ex. a navegação aérea)
Pressupõe-se, isto é, que a insuficiência da disposição se filia ou antes a um caso ou modalidade singular duma relação. Assim
não já na vontade por parte da lei de negar tutela a certas a lei impõe a obrigação de pagar juros, mas não diz em que
classes de relações, mas em que a lei omitiu regulá-las, enten- medida; estabelece a protecção da propriedade industrial, mas
dendo-se que se o legislador tivesse tido conhecimento de tais não determina as respectivas condições e formas.
relações as teria regulado convenientemente. Além disso a lacuna pode nascer ou de falta de regula-
A ordem jurídica é uma atmosfera que cirCW1da a vida mentação, ou por antinomia entre duas disposições contraditórias
social em toda a sua completeza, que lhe domina todos os de igual força que se elidem redprocamente.
movimentos, que 'não tolera espaço algum vazio de direito
(horror vacui). Ordem jurídica e vida social coincidem: aquela
é uma superstrutura desta. 1 KOHLER - Lehrbllch, pág. 13 8.
158 159
Em face das lacunas da lei, o JUlZ não pode furtar-se a principios coexistentes, mas um corpo orgal1lCO de normas
julgar, alegando que não existe norma para aplicar ao caso intimamente conexas, e os princípios que lhe estão na base
concreto: a sua recusa equivaleria a uma denegação de justiça. levam o germe de indeterminados desenvolvimentos '.
Deve decidir sempre qualquer controvérsia que lhe seja subme- A analogia é, pois, uma aplicação correspondente dum prin-
tida, e decidi-la com base no direito. O cumprimento desta cipio ou dum complexo de principios a casos juridicamellte
obrigação é possível só porque o sistema positivo é capaz de semelhantes.
fornecer norma para qualquer caso. E de facto o art. 3. 0 das Base de analogia pode ser: ou uma só disposição (analogia
Disposições prelinúnares aponta o caminho a seguir na inte- legis) ou um complexo de princípios jurídicos, a sintese delés,
gração das lacunas da lei, isto é, o método anal6gico 1. e mesmo o espírito de todo o sistema (analogia iuris).
A analogia consiste na aplicação dum princípio juridico A primeira forma é a mais fácil. Decide-se um caso não
que a lei põe para certo facto a outro facto não regulado, mas regulado, segundo a norma que preside a um caso afIm já
semelhante, sob o aspecto jurídico, ao primeiro. decidido: ubi eadem legis ratio, ihi eadem legis dispositio. Trata-se
Perante casos de que o legislador não cogitou, o intér- duma aplicação por semelhança.
prete busca regulá-los no sentido em que o legislador os teria Outras vezes não aparece disposição para um caso afim,
decidido se neles tivesse pensado. E como procurando bem e então é preciso reconstruir a norma pela combinação de
no sistema se podem descobrir casos análogos já regulados, vários casos regulados, que se mostram aplicações dum pri-
extrai-se por um processo de abstracção a disciplina juridica cípio geral não expresso.
que vale para esses, alargando-se até compreender os casos Ou então, por último, a lei omitiu completamente a dis-
não previstos m~s cuja essência jurídica é a mesma. ciplina juridica de todo um instituto, e é necessário construí-la
O procedimento por analogia radica no conceito de que segundo os princípios de todo o sistema. Aqui a analogia
os factos de igual' natureza devem ter igual regulamentação, torna-se uma operação extremamente delicada, devendo basear-se
e se um de tais factos encontra já no sistema a sua disciplina, numa profunda e plena apreciação dos elementos e da função
esta forma o tipo do qual se deve inferir a disciplina juridica do instituto a regular, confrontando-o com as tendências ideais
geral que há-de governar os casos afms. e as directivas do direito positivo.
Analogia é harmónica igualdade, proporção e parale- A nossa lei diz que em tal caso cumpre recorrer aos prin-
lismo (paragone) entre relações semelhantes. cípios gerais do direito. Ora o recurso a estes principios gerais
Esta essência do método analógico faz com que a ele não é senão uma forma de analogia iuris.
se possa recorrer independentemente de autorização do legis-
lador 2. A ordem jurídica, de facto, não é massa inerte de Discutiu-se no passado qual a significação a atribuir aos
princípios gerais do direito: para alguns tais princípios equi-
valiam aos do direito racional ou natural 2; para outros aos
1 Veja FADDA e BENSA, ad WINDSCHFJD - Pandette, 1, págs. 128 e segs.
• Em sentido contrário se pronuncia DONATI - II problema delle lacuna, 1 Veja-se Motive zum bürgerlichen Gesetzbuch (Motivos para o código
pág. 41. Para este A. o procedimento analógico não se poderia admitir sem civil), 1, pág. 16.
uma disposição legislativa expressa. Mas tal opinião depende da falsa crença , Como diz O Código Austríaco (art. 7. que sem dúvida foi a fonte
0
,
numa norma geral de exclusão para os casos não contemplados. do art. 16. do nosso cód. civil).
0
160 161
ensinamentos do direito romano; e para outros ainda aos prin- Este reqUIsIto é o mais difícil de apurar, e põe à prova
cípios da moral ou às exigências da justiça e da equidade. o senso jurídico e a [mura do intérprete. Todo o facto jurídico
Actualmente, porém, estes conceitos estão abandonados, e a tem certos elementos essenciais que o caracterizam e formam
doutrina reconhece que se deve tratar de princípios de direito, a ratio iuris da norma, e outros elementos acidentais e contin-
e portanto de direito positivo, de normas da legislação vigente 1. gentes que acompanham aqueles. Ora no confrontar o facto
Não se trata, pois, de vaguear por abstracções ou ideali- já regulado com o facto a regular é mister isolar dos outros
dades imprecisas ou de recorrer a exigências indeterminadas, o elemento essencial, colhendo de tais factos apenas as notas
mas de estabelece! os princípios cardeais do sistema positivo. decisivas, os traços juridicamente relevantes, e só assim est";-
Todo o edificio jurídico se alicerça em princípios supremos belecer se entre eles há ou falta uma relação de semelhança.
que formam as suas ideias directivas e o seu espírito, e não estão Pois pode acontecer que dois factos que na aparência se afiguram
expressos, mas são pressupostos pela ordem jurídica. Estes desconformes, porque diversificados por caracteres particulares,
princípios obtêm-se por induçãO, remontando de princípios na sua essência sejam semelhantes, e por isso capazes de ser
particulares a conceitos mais gerais, e por generalizações suces- sotopostos por analogia ao mesmo tratamento jurídico, e que
sivas aos mais elevados cumes do sistema jurídico. E é claro viceversa dois factos que exteriormente parecem semelhantes
que quanto mais alto se leva esta indução, tanto mais amplo sejam no íntimo diferentes. É preciso, portanto, escrutar a
é o horizonte que se abrange. semelhança jurídica dos factos, a coincidência dos elementos
Na aplicação dos princípios gerais do direito passa-se com relevância jurídica que informam a disposição.
sucessivamente dos mais particulares aos de mais vasto e supe- Vejamos alguns exemplos.
rior conteúdo," e deve fazer-se o confronto da relação a Assim, dizendo o art. 1151.°: «Qualquer facto do homem
regular com os princípios jurídicos a que tal relação há-de que causa dano a outrem, obriga aquele por cuja culpa teve
subordinar-se. lugar a ressarcir o dano» - o mesmo princípio deve estender-se
por analogia às pessoas jurídicas. Porque o princípio da respon-
Para que possa recorrer-se à analogia é necessário: sabilidade depende e pressupõe necessàriamente mais a actuação
1. ° Que falte uma precisa disposição de lei para o caso dum sujeito jurídico do que um facto humano dum indivíduo,
a decidir, que portanto a questão não se encontre já regulada e por isso, despindo-o do carácter específico, mas sem influência,
por uma norma de direito - e isto não apenas segundo a letra, de acto humano, o facto posto na base da responsabilidade
mas também segundo o sentido l6gico dessa/norma. Por isso, generaliza-se como acto duma pessoa 1.
se uma questão se pode resolver com base na interpretação Estabelecendo o art. 1482.° a garantia por evicção no caso
extensiva não tem lugar a analogia, pois se trata dum caso de venda (como caso mais frequente), a ratio iuris que informa
já contemplado segundo o conceito da lei, embora fuja aparen- a disposição prescinde da natureza especial deste contracto,
temente à formulação do texto. e por isso tem aplicação e valor para todos os contratos trans-
2. ° Que haja igualdade jurídica, na essência, entre o caso lativos a título oneroso. E assim também, enunciando a lei
a regular e o caso regulado.
1 Ao contrário, para se dizer que o art. II 5r. o que fala de facto do
1 FADDA e BENSA, ad WINDSCHEID - Pandette, I, pág. 28. homem compreende também as mulheres, basta a interpretação extensiva.
11
I
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o princípio da influência do dolo nos contractos (art. 1115.°) não A interpretação extensiva revela o sentido daquilo que o legis-
pode duvidar-se de que o dolo exercerá influência análoga fora lador realmente queria e pensava; a analogia, pelo contrário,
deste campo, em todos os negócios jurídicos: em que medida e . tem de haver-se com casos em que o legislador não pensou,
com que efeitos - é problema; mas certamente tem influência. e vai descobrir uma norma nova inspirando-se na regulamenta-
Desta maneira se põe a questão do dolo nos testamentos. ção de casos análogos: a primeira completa a letra e a outra
Estes casos são simples. Porém, se afrontarmos outras o pensamento da lei.
questões, a solução nem sempre é tão intuitiva. Esta distinção não tem só valor teórico, senão também
Dada uma promessa de recompensa a quem achar um importância prática, porque o princípio que veda estender as
objecto ou descobrir um réu, se o achado ou a descoberta é normas penais e excepcionais além dos casos expressos refere-se
feita ao mesmo tempo por várias pessoas, para quem há-de Unicamente à aplicação por analogia, e não à interpretação
ser o prémio 1 Terá de dividir-se entre todos 1 Análogo é o extensiva.
caso duma quota de reserva a que concorrem pelo mesmo O procedimento analógico, com efeito, não pode desen-
título duas pessoas (dois cônjuges, um legítimo e outro putativo). volver-se no domínio do ius singulare, porque este, tendo sido
A lei estabelece a responsabilidade pelo facto de animais introduzido exclusivamente para determinadas categorias de
(art. 1154.°). Qual a razão ou o fundamento desta responsa- pessoas, coisas ou relações, constitui um campo fichado que não
bilidade 1 Será rigorosamente necessário que se trate de animais, pode ser alargado pelo intérprete, mas só pelo legislador 1.
ou pode a mesma disposição aplicar-se a quem se serve de Aqui há razão para se fazer valer '0 argumento a contrario, pois
máquinas, aut0!lióveis, etc. 1 Mas (questão prejudicial) ditará se o legislador, por considerações especiais de utilidade, dispôs
o art. 1154.° uma disposição de direito singular< limitadamente a certos factos ou pessoas, nos outros casos entendeu
Há matérias kda que estão isoladas de quaisquer normas que o mesmo tratamento não tivesse lugar. Sendo assim, logo
jurídicas: por ex., o direito de sepulcro, o exercício de poderes se vê que a analogia não pode funcionar porque, consistindo
sobre a própria pessoa, a sucessão das pessoas jurídicas. Quais ela na correspondente aplicação do pensamento jurídico a casos
serão os princípios análogos a aplicar 1 não contemplados, em regulamentar casos novos pela forma
como presumivelmente os teria regulado o legislador, aqui esbarra
A analogia distingue-se da interpretação extensiva. com a vontade precisa do legislador, que disse: fora destes
De fàcto, uma aplica-se quando um caso não é contem- casos quero o contrário.
plado por uma disposição de lei, enquanto a outra pressupõe
que o caso já está compreendido n~ulamentação jurídica, 1 REGELSBERGER - Pandekten, pág. 160, quer limitar o prmClplO de
entrando no sentido duma disposição, se bem que fuja à sua letra. que o direito singular é incapaz de aplicação analógica, dizendo que o pensa-
A interpretação extensiva não faz mais do que reconstruir mento fundamental do ius singulare pode alargar-se; e cita o exemplo da
a vonade legislativa já existente, para uma relação que só por sucessiva extensão do Senatus-Consulto Vel1eiano, que na origem se referia
só às alienações, às constituições de penhor, assunções de dívidas e (actos)
inexacta formulação dessa vontade parece excluída; a ana-
semelhantes.
logia, pelo contrário, está em presença duma lacuna, dum Mas é de objectar que a extensão analógica em direito romano tem
caso não prevenido, para o qual não existe uma vontade carácter produtivo de direito, visto o sistema da participação do magistrado
legislativa, e procura tirá-la de casos afins correspondentes. pretório na evolução do material jurídico.
164 165
A analogia não é criação de direito novo mas descoberta O movimento novador delineia-se com AmcKEs 1 que
e direito existente. impugna a teoria das fontes, dizendo que a lei e o costume
O juiz, quando aplica normas por analogia, não forja não produzem direito, mas que todo o direito tem a sua raiz
om livre actividade regras jurídicas, mas desenvolve normas na convicção de cada um, e que o juiz se deve remeter à Sua
~tentes que se encontram já no sistema. Pois direito não é consciência para descobrir livremente o direito. O direito
ó o conteúdo imediato das disposições expressas; é também positivo é limite à convicção do juiz, mas para além desta barreira
) conteúdo virtual de disposições não expressas, mas ínsitas ele pode formar direito livremente.
odavia no sistema onde o juiz as vai descobrir. Seguem-se os escritos de BÜLOW 2 que, exaltando a função
As normas encontradas por analogia não são corpos estranhos judicial, lhe atribui uma força criativa de direito, pelo que, ao
ntrometidos no organismo jurídico; são rebentos e desenvolvi- lado do direito legal e consuetudinário, deve reconhecer-~e um
nentos do direito que lá está. Porque, é de notar, as normas direito judiciário: a lei não passa de ser um plano de ordena-
leduzidas por analogia não são criadas pelo intérprete segundo mento jurídico que é realizado só pelo juiz; de KOHLER 3, que
lma livre estimação de interesses, não se trata duma regula- estuda a teoria da interpretação, pondo à luz a força criadora
nentação nova excogitada pelo juiz quase legislador, mas da da jurisprudência; de GENY 4, em França, o qual critica o método
:eprodução duma disciplina já posta no direito positivo para de interpretação tradicional que a poder de lógica e deduções
;asos semelhantes e harmónicos com o espírito do sistema; abstractas restringe o direito e lhe tapa os horizontes, e quer
Ião é criação voluntarística do direito, mas elaboração vinculada que o juiz produza o direito fazendo-se guiar pela observação
i lei. A obra do jurista é como a dum poeta que componha da natureza das coisas, dos princípios da justiça, da sociologia,
1 rimas obrigadas. '
da filosofia, etc.; de SCHLOSSMANN 5, que reduz a lei a uma
folha de papel impresso, não se podendo, portanto, descobrir-
-lhe uma vonçade; e, por último, de KANTOROWICKZ, que no
12. - A escola do direito livre e os novos métodos
seu conhecido opúsculo - A luta pela cí~l1cía jurídica 6, publicado
de interpretação
da primeira vez sob o pseudónimo de Gnaeus Flavius, depois
de ter renovado as críticas mordazes contra a função do juiz
A defrontar a orientação clássica, que defme em estreitos no sentido tradicional, proclama o verbo novo da liberdade
limites os poderes do intérprete na aplicação e desenvolvi- absoluta e do arbítrio mais inconfmado: o juiz deve decidir
mento do direito positivo, sempre obedecendo à lei, fez-se a seu arbítrio; a sentença não deve ser motivada; liberdade
valer, recentemente, ,e em diversos países, uma nova orientação
doutrinal, umas vezes arrojada e outras, mesmo, revolucionária, 1 Zur Lehere von den Rechtsquelletl. «Para a doutrina das fontes de
com a qual se vai .sustentando que, visto ser a ilei defeituosa direito., Casse!, I872.
e insuficiente, toca 40 juiz corrigi-la e completá-la, e que nesta 2 Gesetz und Richteramt.
função integradora ele pode guiar-se por momentos subjectivos, 3 Ueber die Interpretation der Gesetze, na GrÜl1hut's Zeitschrift, I896;
Die schiipferische Kraft der ]urisprudenz, nos ]hering's ]arbücher, 25, 270 e segs.
por apreciações de interesses, pelo seu próprio sentimento,
• Methode d'interpretation et sources, págs. 6, 457 e segs.
criando no posto e' ao lado do direito positivo um direito , Der Irrtum, págs. 25 e segs.
livre judiciário. • Der Kampf um die Rechtswissenschaji.
\
166 167
em toda a linha; numa palavra, o direito entra na sua fase U NGER " DERNBURG 2 e HELLWIG 3 acusam este método
voluntarística! de querer substituir à firmeza dos comandos legais o subjecti-
A questão do direito livre acende uma polémica vivaz vismo dos juízes, criando um estado perigoso de anarquia
que se debate pelas Revistas, nos Congressos, e até nos jornais e de insegurança jurídica. Nenhuma autoridade pode ser
políticos. obrigada a mais estricta obediência à lei do que a autoridade
A favor do movimento enfileiram EHRLICH 1, que reco- dos tribunais, que foram estabelecidos justamente para a sua
nhece ao juiz, se as regras postas o abandonam, o poder de defesa e realização. O juiz que por uma suposta equidade
mediante descoberta livre adaptar o direito às necessidades da e oportunidade intenta mudar a lei, comete uma violàÇão
sua época; STAMPE 2, que vê na apreciação dos interesses o jurídica.
caminho para esta descoberta do direito; MÜLLER ERZBACH 3, O direito, exclama LABAND 4, necessita firmeza; a juris-
que defende da acusação de revolucionário o método realista prudência não se pode deixar mover pelas correntes do dia
da ponderação dos interesses, afirmando que a teoria e a prática e pelas tendências das classes e dos partidos, como a cana ao
embora inconscientemente, sempre fIzeram assim, ~tc. Outros vento. E LANDSBERG 5: Porventura nos tornámos, com o nosso
recorrem a fontes diversas, como, por exemplo, MAYER 4 às sentimento de equidade, tão neurasténicos que não sejamos
normas de civilização, STAMMLER 5 ao direito justo, etc. capazes de suportar o rigor indispensável que é a submissão
Os escritores, porém, não estão de acordo sobre a ampli- do caso particular à regra jurídica? Será preciso repetir a antiga
tude desta livre criação do direito: pois alguns reconhecem verdade que o direito foi criado contra o arbítrio subjectivo,
tal poder ao jui~ .s6 quando a lei é silenciosa, ou seja quando chame-se este direito natural ou direito recto, imperativo
está em presenç~ de lacunas; outros, pelo contrárlo, também racional ou estimação de interesses? E MICHAELIS 6: A tendência
lho reconhecem no âmbito da interpretação l6gica; e por para emancipar da lei o juiz não se pode apreciar senão como
último há mesmo algum autor que defende a criação do direito uma tendência de revolta contra o legislador.
em todos os casos. A questão foi deb~tida também na Itália, onde o movi-
Mas contra esta orientação apontam-se críticas e censuras mento do direito livre encontrou prevalentemente opositores,
severas. como POLACCO, L. COVIELLO, DONATI e outros 7.
1 Freie Rechtsfindung und freie Rechtswissenschaft. .Livre descoberta do 1 Der Kamp! um die Rechtswissenschaft «A luta pela ciência jurídica.,
direito e ciência jurídica livre», Leipzig, 1903. no Deutsche ]uristen-Zeitung, 1905, pág. 781.
• Rechtsfindung durch Interssenwiigung. «Descoberta do direito por meio • Das bürgerliches Recht, 3.' ed., p. v.
da ponderação dos interesses., no Deutsche ]uristen-Zeitung (Jornal alemão 3 Zivilprozessrecht, 1, § 93-", pág. 163.
dos juristas), 1905, pág. 717. • Rechtspj/ege und volkstümliches Rechtsbewusstsein «A jurisprudência e a
3 Rechtsfindung au! realer Crundlage «Descoberta do direito sobre funda- consciência jurídica popular., no Deutsche ]uristen-Zeitung, 1905, pág. IS.
mentos reais», no Deutsche ]uristen-Zeitung, 1906, pág. 1235. o Deutsche ]uristen-Zeitung, 1905, pág. 92 1.
• Rechtsnormen und Kulturnormen «Normas de Direito e normas de « Die Emancipation des Richters von Gesetzgeber .A emancipação do
cultura., Breslau, 1903. juiz do legislador., no Deutsche ]uristen-Zeitung, 1906, pág. 394.
o Die Lehre vom dem richtigem Rechte «A doutrina do direito recto', 7 POLACCO, Le cabale del mondo legale, nos Atti deU'Istituto Veneto, 1908 .
Berlim, 1903. L. COVIELLO - Dei modemi metodi d'interpretazione delle leggi, Palermo,
168 169
A plataforma desta orientação é uma crítica ao método E assim a chamada interpretação lógica é criação do direito,
tradicional de interpretação, ao método chamado lógico ou criação mascarada, travestida, mediante a qual às vezes negamos
construtivo, que inculpam de estreiteza de vistas e de incoerência, aplicação à letra da lei, só porque o seu sentido não corresponde
e sobretudo de não ter na mínima conta as necessidades novas à justiça e à oportunidade. Simplesmente, esta modificação e
da vida moderna, pelo que se faz mister inaugurar um novo produção do direito para o caso concreto pretende cohonestar-se
método de interpretação baseado na livre apreciayão do juiz. sob a aparência da voluntas legis.
O método tradicional, observa-se, pretende chegar ao E que dizer então da hipótese das lacunas 1
conhecimento do direito por meio de deduções lógicas e de O direito é uma congérie de decisões singulares, mas,
silogismos, por meio, isto é, de pura força dialética: silogismos e para as questões não decididas, o juiz está livre, e falar duma
construções são as suas armas, com que ambiciona resolver todas poss{vel vontade do legislador é uma ficção.
as questões que surjam, mesmo aquelas em que o legislador Por isso o método tradicional, àparte o não ser científico,
não pensou. Ora este método é exageradamente sistemático, também não é sincero, porque o juiz faz sempre isto, e nunca
geométrico, formal; transcura o momento da fmalidade do fez outra coisa: satisfaz as necessidades da vida, consoante o
direito, a natureza real das relações, os interesses em jogo; impulso dos seus sentimentos; e esconde o seu agir com o véu
reduz o juiz a simples máquina lógica. Por este caminho não da ratio legis e da analogia. A melhor prova é que a jurispru-
se podem colmar lacunas, e nem ao menos se pode penetrar dência muda; que de há um século para cá foi voltado do avesso
o sentido\da lei. o conteúdo e o sentido de muitas disposições legais.
Que coisa é, de facto, a lei? A lei é um texto impresso, Portanto, a doutrina da livre descoberta do direito não
rígido e mudo. 'Não se pode falar nllsticamente de uma vontade exige nada de novo; só aspira a esclarecer o método e a disci-
da lei, porque a lei não quer nem pensa, e somos nós que pensa- pliná-lo abertamente, indicando o caminho a seguir na desco-
mos e queremos atribuir-lhe um conteúdo intelectual. Tanto berta do direito de conformidade com a apreciação dos interesses.
menos se pode falar duma vontade do legislador, que nos modernos
estados constitucionais, com a pluralidade dos factores que parti- Este raciocínio está viciado por alguns equívocos.
cipam na legislação, é puramente fantástico. Antes de tudo, parte-se dum falso conceito da lei, já
que esta não é apenas uma folha de papel impresso, mas um
documento que incorpora um conteúdo de pensamento e
1908. DONATI - II problema delle lacune, pág. 175 e segs. F. FERRARA - Potere
dei legislatore e funzio~e dei giudice, na Rivista di diritto civile, 191 I. de vontade.
Sobre a questão veja ainda: CALDARA - Per una missione della magis- Certo, a lei não tem uma vontade no sentido psicológico;
tratura, na Scienza dei diritto privato, 1895, pág. 373; DEGNI - L'interpretazione mas inegàvelmente encerra um querido (voluto), o resultado
delle leggi, págs. 205 e segs.; CRlSOSTOMI - Di alcune recenti íeorie sulle fonti da vontade dos órgãos estaduais - a vontade do Estado. E então
e sull'interpretazione, Frascati, 19°1; GALDI - La tendenza della moderna giuris- não se pode negar à lei um conteúdo espiritual que ao intér-
prudenza, Nápoles, 1911; PACmONI - I poteri creativi della giurisprude';za,
prete cabe trazer a lume e desenvolver, antes é verdade que,
na Rivista di diritto commerciale, 1912; CESARINI SFORZA - II modernismo giuri-
dico, no Filangieri, 1912; BARTOLOMEI - Le ragioni della giurisprudenza pura, por se destacar do legislador no momento da publicação, a lei
Nápoles, 1912; BRUGI - L' Analogia dei diritto e ii cosidetto giudice legislatore, existe de modo objectivo, e pode ter consequências e reper-
em II diritto commerciale, 1916. cussões não previstas pelos seus autores.
170 171
Erróneo, portanto, é o pensamento de SCHLOSSMANN alcança nãó é uma invenção do intérprete, mas a descoberta
le quer reduzir a lei à letra pura e simples e restringir a função do direito que existe já em estado latente no sistema positivo.
) intérprete a conhecer o sentido verbal. Pois se a lei é a De outra parte, não devemos equivocar-nos sobre o fenó-
(pressão dum comando, nada mais legitimo do que remontar meno da evolução da jurisprudência através dos tempos, que
razões desse comando, ao fim que levou a ditar aquelas é uma lei histórica de desenvolvimento que não legitima a
.sposições. suspeita duma adulteração (travisamento) consciente dos textos
Este tão alto ofício do intérprete exclui outra acusação por obra da jurisprudência.
.le tem sido feita ao método tradicional- a de abuso de Temos de distinguir entre desvio intencional e desvio incons-"·
,gica. ciente do sentido da lei. Ora é inegável que, ainda com o mais
Não é verdade que o jurista opere só com corolários e escrupuloso sentido do dever de respeito à lei, o juiz pode
mstruções e seja um mero autómato de decisões. O método enganar-se acerca do valor da disposição, e é induzido a con-
mstrutivo não obsta a que se ponderem interesses e apreciem cebê-la no sentido que lhe parece mais conforme. Para isto
ágências sociais, perscrutando-se a natureza das relações; influem as ideias do tempo, as condições do arnbiente, etc.
mplesmente, o intérprete induz aquelas apreciações que a lei Mas se isto é inevitável, não é justificado, porém, que se vá
:z e não as que a ele lhe apraz fazer, tirando-as do sentimento passar ao juiz um salvo-conduto teórico para a violação da lei.
róprio ou das suas pessoais convicções. Por último, é falso conceber o direito como um amontoado
A interpretação da lei é, de facto, essencialmente teleólo- de decisões desligadas e dispersas, enquanto que, pelo contrário, as
Lca; mira ao resultado prático; quer realizar um ordenamento disposições jurídicas são intimamente conexas entre si, e por isso
e protecção. Por ISso se explica a eficácia prática da jurispru- todas se revelam como deduções e aplicações de princípios gerais
ência que plasmou e plasma continuamente o material jurí- que miram a dar uma ordenação completa às relações da vida.
ico e portanto, longe de situar-se no ambiente vazio da dialética, Com estas. decisões reconstruir o sistema do direito que
)"e num ambiente cheio de realidade. tem a potencialidade de resolver mesmo os casos não previstos
" Opõe-se que a interpretação lógica é máscara apenas, com - aqui está o nobile o.fficium do intérprete. É a razão por que
ue aos profanos se esconde o labor criativo, o qual apresenta se fala da força sempre moça da lei, e nesta medida (in tanto)
s mesmos perigos de arbítrio do direito livre. é legitima a função da jurisprudência que reaviva ao contacto
Mas deve observar-se, pelo contrário, que o perigo de fresco das correntes da vida os textos positivos.
rbítrio não é tamanho na interpretação lógica e analógica
omo na criação voluntarística do direito, pois no primeiro Mas a questão do direito livre deve ser discutida sobre
aso a estimação de interesses e o desenvolvimento do conteúdo a base do nosso sistema de direito público.
a norma está vinculado pela lei: o intérprete poderá dar satis- Pois a priori não é de modo nenhum ilógico e impossível
lção às necessidades sociais, porém só enquanto para tal efeito flar do juiz uma cooperação activa na produção do direito,
char gérmens e meios no direito positivo; em outros termos: como nos mostram os exemplos do pretor romano e dos tri-
desenvolvimento é sempre legal, e não extra-legal, como aquele bunais de equidade ingleses; e também na actualidade o Código
ue se funda sobre apreciações empíricas de interesses ou sobre Civil Suíço estabelece que no caso de lacunas o juiz deve decidir
llovimentos incônscios do sentimento. O princípio que se segundo as regras que adoptaria se fosse legislador. Pelo que
172 173
oca, porém, ao problema de saber se no nosso ordenamento Este método é certamente verdadeiro, e para nós não
1
onstitucional o juiz goza de tal poder, não é duvidoso que } constitui um desvio, antes nos parece uma exacta inteligência
I
, nosso sistema atribui a órgãos diferentes a produção do direito I do método tradicional, do qual se tem exagerado os defeitos,
a sua aplicação: os poderes da autoridade judiciária são limi- ,
I
que, todavia, são dos autores e nunca da orientação em si.
~
ldos à aplicação da lei. A chamada interpretação evolutiva é sempre mera apli-
cação do direito, e repousa em dois cânones: a ratio legis é
No entanto, a escola do direito livre trouxe uma renova- objectiva (não a ratio subjectiva do criador da lei) e é actual (não
ão benéfica à doutrina da interpretação, um novo sopro vital, a ratio histórica do tempo em que a lei foi feita). Assim pode'
ois ao mesmo tempo que lançava a mãos cheias o descrédito acontecer que uma norma ditada para certa ordem de relações
obre o abuso dos teoremas e das construções, isto é, sobre o adquira mais tarde um destino e função diversa.
Ilétodo lógico, apontou que a decisão deve ser inspirada na É um fenómeno biológico que tem correspondência no
.atureza real das relações e nas exigências sociais. campo do direito.
Por isso, como reacção e transacção de tendências opostas, De sorte que uma disposição jurídica pode ganhar, com
lrgiram outras escolas, entre as quais a do método histórico- o tempo, um sentido novo que os intérpretes nunca lhe tinham
~volutivo, propugnado em França por SALEILLES, que, conside- atribuído e que também não estava nas previsões do legislador,
ando a lei uma entidade distinta e autónoma, busca inter- ressalvado, já se entende, que daí não venha contradição com
retá-Ia, não já segundo o pensamento do seu autor, mas no outras disposições ou desarmonia com' o sistema. A interpre-
~ntido que melhor a habilita para realizar os fms da justiça tação evoluciona e satisfaz novas necessidades, sem todavia
da utilidade sociá!, e sustenta que, assim como as condições, mudar a lei. A lei lá está; mas porque a sua ratio, como força
feias e necessidades mudam, assim também devemos adaptar vivente móvel, adquire com o tempo coloração diversa, o intér-
lei às condições históricas do ambiente, fazendo-a evolver-se prete sagaz colhe daí novas aplicações.
e harmonia com o movimento social. A lei tem de ser respei- Isto, porém, não é possível sempre, e até o mais das vezes esta
lda quando o seu sentido é indúbio, mas se há incerteza no actividade resulta impedida; mas não faltam disposições obscuras,
~u conteúdo, se o significado originário se mostra já em desa- dúbias e indeterminadas, e às vezes palavras elásticas que prestam
ordo com o rumo (indirizzo) da nova legislação, ou se trata auxílio inesperado para regular toda uma nova série de relações.
,e colmar lacunas, o intérprete, além de se inspirar nos elementos
Iltemos da lei, deve inspirar-se também nos factores sociais que Resumindo, pois, o juiz pode aplicar princípios da lei
ircundam a vida do direito em todas as suas manifestações a casos novos, dar a princípios da lei um sentido novo, desde
demonstram a sua fmalidade 1. que não vá de encontro a outras normas.
Até aqui pode chegar a obra do intérprete. Mas desviar-se
conscientemente da lei, querer reformá-la ou inová-la por pre-
1 Para esta direcção, veja: DEGNI - L'ínterpretqzíone, pág. 160 e segs.;
tendidas exigências de interesses, é atraiçoar a função do magis_
SMEIN - La jurísprudenee et la doetrine, na Revue trjmestriel/e de droit civil,
902, 5; SALEILLES - Éeole historique et droít naturel, na Revue trimestrel/e, 1902,
trado. O juiz deve ficar pago com a sua nobre missão, e não
J; ALVAREZ - Une nouvel/e eoneeption des études juridiques, Paris, 1904; QUARTA ir mais longe, passando a usurpar os domínios do legislador.
lf'
- Per il eentenario dei Codiee civile franeese, na Rivísta d'Italia, 1905, I, 5. Os dois poderes estão divididos, e assim devem estar.
174 175
Decerto o JUlZ nem sempre pode dar satisfação às neces- O direito é também uma ciência, e, como toda a ciência,
sidades práticas, limitando-se a aplicar a lei; alguma vez se pressupõe que a sua matéria seja transformada em conceitos
encontrará em momentos trágicos de ter de sentenciar em e que estes conceitos sejam compostos em unidade sistemática.
oposição ao seu sentimento pessoal de justiça e de equidade, O direito deve ser organizado para se simplificar o seu conteúdo,
e de aplicar leis más. Tal é, porém, o seu dever de ofício. Na dando-lhe expressão mais adequada e precisa. Assim se torna
reforma das leis, na produção do direito novo pensam outros mais fácil compreender e senhorear o material e se chega a
órgãos do Estado: ele não tem competência para isso. entender o pensamento juridico.
Só com esta condição se pode alcançar aquela objectiva Ora o conjunto dos meios e processos que servem para
segurança juridica que é o bem mais alto da vida moderna, tal objectivo constitue o método jurfdico 1.
bem que deve preferir-se a uma hipotética protecção de exi- O método juridico, por consequência, propõe-se dois fins:
gências sociais que mudam ao sabor do ponto de vista, ou do a simplificação quantitativa e a simplificação qualitativa do
carácter, ou das paixões do individuo. Esta é a força da justiça, direito, que é apresentado numa smtese concentrada, ordenada
a qual não é licito perder, se não deve vacilar o fundamento e rigorosa, a qual torna possível dominar intelectualmente
do Estado; mas esta é também a sua fraqueza, a qual nós devemos todo o material positivo. Com isto o direito resulta mais Hcil
pagar, se queremos obter a inestimável vantagem de o povo de ser compreendido, mais acessivel, e aumenta-se a segurança
nutrir confIança em que o direito permaneça direito 1. da sua realização, pois um direito exageradamente complicado
é direito que fica sempre meio inóbservado.
13. - Elabo~ação científica. O direito como ciência: 2 A simplificação quantitativa tende a contrair a massa dos
materiais (lei de economia), classificando-os e reduzindo-os a
A missão do jurista não se exaure na interpretação e no categorias gerais, reagrupando sob forma abstracta as apli-
desenvolvimento da vontade legislativa. cações dispersas e concretas. A simplificação qualitativa, ao
Isto é, de certo, matéria da actividade da jurisprudência, invés, tende a purifIcar a qualidade do material, apresentando-o
mas é a operação inicial que se realiza sobre o material legis- numa forma interiormente ordenada, em que as partes singula-
lativo bruto, é a forma mais baixa e primitiva do conhecimento res se reunem harmànicamente numa só unidade.
do direito. Alguns povos e algumas épocas históricas queda-
ram-se neste estádio de cultura, na exegese e no comentárío, As operações fundamentais desta elaboração cientifica são
na investigação de textos paralelos e na conciliação de anti- três: a análise jurfdica, a concentração 16gica e a construção jurídica.
nomias. Tal foi a obra dos glosadores, e tal se demonstra a
dos comentadores a toda a nova codifIcação que surge. 1 Sobre o método jurídico continua a ser clássica a tratação (trataziolle)
O progresso intelectual, porém, e o afinamento dos meios de lHERlNG - Geist des romischen Rechts «Espírito do direito romano», II,
§ 41.° e 42.°, que aqui é particularmente utilizada.
de estudo levam a outra fase de desenvolvimento, isto é, à elabo-
Veja ainda, além de KOHLER, já citado: LEONHARD - Der aligemeiller
ração cientifIca do material juridico.
Teil des bürgerliches Gesetzbuch «A parte geral do código civiL), pág. 59;
SCHLOSSMANN - Der Vertrag «O contrato», págs. 235 e segs.; WINDSCHEID
1 HELLWIG, Lehrbuch, I, pág. 155. - Pandette, I, § 24.°; e DEMOGUE - Les notions fondamentales du drait privé,
• KOHLER, Lehrbuch, r, § 42.°, pág. 135. pág. 225 e segs.
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?ara se ver em que termos se comporta e a que resultados tituto, resumindo sob uma ideia unitária de carácter técnico
:onduz. Como em toda a investigação científica, deverá pro- o seu complexo ordenamento positivo.
:eder-se à experimentação. Trata-se de encontrar casos decisivos A actividade construtiva é vária pelo conteúdo e pela
típicos, onde o princípio é posto de modo talhante (tagliente) , intensidade.
a fim de se averiguar se é exacto ou não 1. Se o princípio leva Todo o trabalho de organização sobre a matéria jurídica
ao absurdo, quer isto dizer que é errado e tem de modificar-se. é construção. Analisado um instituto, diferenciados os seus
Esta redução dos materiais positivos a regras abstractas, elementos segundo os respectivos caracteres internos, extraídos
enquanto por um lado simplifica a estrutura do direito, reagru- os princípios que estão na base das várias disposições, o jurista
pando à volta de certos pontos, que são quase os centrosnervosos, procede mais alto na sua obra de concentração e de síntese,
todas as decisões jurídicas particulares', também faz aparecer, determinando as notas essenciais que individuam tal instituto,
e põe à luz, as anomalias da lei, as singularidades sem funda- e reconduzindo-o a uma categoria mais geral, de onde recebe
mento, os resíduos históricos que permanecem isolados e desti- luz e desenvolvimentos.
nados a desaparecer; e por outra parte a descoberta dum prin- Deste modo as figuras jurídicas se subordinam umas às
cípio manifestado casualmente numa só aplicação, que constitui outras, agrupando-se em tipos próprios; outros tipos, com
o seu ponto de irrupção na vida jurídica, pode determinar a numerosas variedades, se contrapõem; e todos se recolhem
sua expansão luxuriante. e conjuntam num organismo jurídico único - o sistema 1.
Note-se, porém, que os princípios jurídicos mudam com Mas também há construção jurídica quando se concentra
a transformação ,do material positivo, e por consequência em forma unitária uma regulamentação positiva, quando, isto é,
devem experimen:tar-se em todo o sistema legislativo, num se chega a obter uma ideia única superior da qual as soluções
dado momento histórico, pois pode acontecer que um prin- da lei se demonstram aplicações.
cípio excepcional em certo tempo se torne dominante mais Ao passo que a regulamentação positiva aparece exterior-
tarde, e vice-versa. Estas ideias-forças que são os princípios mente como simples ajuntamento de decisões separadas, a mesma
de direito devem sempre manter contacto com a vida, sob questão recebe, por vezes, soluções opostas, e a matéria jurídica
pena de se converterem em dogmas estéreis. está envolvida em particularidades e detalhes, a construção
jurídica, operando com conceitos abstractos, intenta abraçá-la
3. o Construção juddica. sistemàticamente numa forma unitária, refunde e plasma o
A fase mais alta da elaboração teórica do material de material jurídico num esquema técnico que constitui - pode
direito é a construção dos institutos jurídicos.
Entende-se por construção jurídica o procedimento pelo. 1 Pense-se, v. g., nos vários tipos de direitos reais: propriedade, usufruto,
qual se procura colher as qualidades essenciáis características servidões, a que se contrapõem os direitos de obrigação, para formarem todos
os direitos patrimoniais.
dum instituto, reconduzindo-as a conceitos mais amplos e
Assim também quando se discute se os direitos de autor são uma forma
conhecidos, ou então se apresenta a concepção geral dum ins- de propriedade, trata-se dum problema de construção, pelo qual, cotejadas
as duas figuras, e eliminados os caracteres contingentes, se chega às notas que
1 KOHLER - Lehrbuch, I, pág. 136. formam a sua essência jurídica e se examina se é possível a subordinação dum
• DEMOGUE, Les notions fondamentales, págs. 235. conceito ao outro.
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izer-se - a armadura teórica em torno da qual se reúne e enquanto a construção é a síntese real dos efeitos, a ficção é
ispõe natural e espontâneamente o material positivo. uma síntese figurativa, simbólica. A ficção doutrinal não é
A dificuldade da construção está em achar a ideia domi- senão uma forma infantil e imaginosa, tecnicamente imperfeita,
ante que preside à regulamentação jurídica, e tal coisa não de construção jurídica. Também ela abraça e aperta à volta
fruto apenas de reflexão, mas de intuição e golpe. de vista. dum núcleo central uma regulamentação jurídica, mas este
ó o jurisconsulto experimentado pode sair-se bem na construção centro, em lugar de ser uma ideia inspiradora da regulamentação,
lrídica que, na simplicidade das suas linhas, dá a impressão é feito duma metáfora, duma comparação, duma imagem.
uma obra de arte. 2. o A construção juddica deve ter unidade sistemática. - Signi-
De certo, há hoje nos autores um abuso de construções; fica isto que há-de estar isenta de contradições, ou seja que a
!las é necessário distinguir as tentativas artificiosas das cons- concepção. teórica não se pode pôr em conflito com outros
ruções perfeitas. princípios e teoremas científicos. Um conceito não pode sofrer
As condições a que tem de satisfazer uma boa construção excepções sem se negar a si mesmo.
.lrídica são as seguintes 1 : Por isso é preciso submeter à prova a construção jurídica,
1. o A construção juddica há-de coincidir exacta e inteiramente pondo-a em todas as situações imagináveis, combinando-a de
om o direitõpósitfvo. - Os principios positivos são os pontos todas as maneiras possíveis, e confrontando-a com os princí-
lados, as pilastras sobre que deve levantar-se a construção pios fundamentais. Uma construção que não resiste à expe-
Ilrídica. Esta deve respeitar o conteúdo das regras legais, e todo rimentação é ilegítima.
~ conteúdo: não pode prescindir duma parte e considerar como 3. 0 A construção deve ter beleza artística (elegantia iuris).
xcepções arbitrárias algumas normas, para organizar o restante da - A concepção obtida há-de revelar-se uma configuração
natéria. O jurista que por tal modo quisesse formular .reorias, só artística da matéria, como forma simples, natural, transparente,
lavia de fazer obra de destruição, que nunca de construção jurídica. da realidade jurídica. A extrema simplicidade é a manifestação
A actividade construtiva é portanto organização formal suprema do belo. Se se chega a conceber as relações mais com-
la matéria de direito na sua totalidade. plexas na mais simples das formas, atinge-se as culminâncias
Mas não basta: poisa construção jurídica. também deve da arte.
:orresponder à realidade jurídica; deve dar uma reprodução
'eal e verdadeira do material positivo, em vez de a apoiar sobre O valor das construções é grande, quer do ponto de vista
;oncepções artificiosas e falsas. teórico, quer do prático.
Por isso a construção se distingue da ficção doutrinal. A matéria jurídica é reproduzida numa forma sintética e
l\ ficção procura satisfazer a mesma necessidade prática de luminosa que permite abraçar numa só mirada todo o conteúdo
lar uma configuração simples e unitária às realções; só que, positivo, em toda a sua inteireza e generalidade. Com o auxilio
das construções jurídicas consegue-se reunir e compor num
1 Veja, além de !HERING: EXSELE, no Archiv für civilistische Praxis
sistema jurídico as várias partes do direito. Um resultado do
(Arquivo para a prática civil., 69, 317; RÜMELIN (Gustav) - Iuristiche Begriffs- sistema jurídico é a criação duma Parte Geral do direito, onde
\ildung «A formação dos conceitos jurídicos», Leipzig, 1878, pág, 20; STAMMLER, se coligem todas as teorias que valem para todo o campo
Wirtschaft und Redu «Ecónomia e Direito., pág. II2. jurídico.
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Mas este trabalho de sistematização pode também acarretar apanha, de súbito, os lados que são juridicamente importantes,
prejuízos, pois, como o direito está sempre em movimento e extraindo-os de outros que são irrelevantes, para desde logo
desenvolvimento, os dogmas teóricos, imobilizando-se, acabam colher o princípio a aplicar. Em contraposição o leigo não é
por já não ter correspondência na realidade. Se as correntes capaz de tal força de abstracção; não sabe separar o importante
da vida jurídica - diz DEMOGUE 1 ~ estão assim coaguladas por do não importante; fica embrulhado no meio duma quantidade
uma doutrina demasiadamente precisa, as transformações sociais de pormenores que o impedem de conseguir uma exacta apli-
já não se podem realizar dentro dos limites que se acham esta- cação dos princípios.
belecidos, e os factos acumulam-se como atrás dum dique. A diflculdade para o leigo de resolver casos complicados'de
É necessário, portanto, que a doutrina reveja e retempere direito está precisamente em que ele fica enredado nos detalhes sem
contlnuamente as suas teorias ao contacto das novas leis que importância, e não sabe que a decisão depende sempre dum ponto
se sucedem e dos fenómenos reais da vida prática. essencial jurídico e tudo o mais não passa de bagagem inútil l .
Tudo isto nos faz ver quanto é alta e árdua a missão do Por outra parte, o jurista faz uma aplicação consciente
jurista, e como ele se distingue do empírico e do leigo. Oconhe- do direito, sabe a norma que deve aplicar; e se a não encontra
cimento científlco do direito pede um conjunto de vistas e numa disposição precisa, elabora-a, tirando-a de casos seme-
uma educação muito particular. Porque não basta aprender lhantes, especifica a matéria jurídica servindo-se do procedi-
de cor a massa do material legislativo: ocorre saber assimilá-lo mento analógico. Mas o leigo dificilmente alcançará extrair
e servir-se dele. a norma adequada, se esta não se' lhe oferece já pronta no
O jurisconsulto necessita de um poder de concepção e de material legislativo, e mesmo se um instinto jurídico o adverte
abstracção, da faculdade de transformar o concreto em abstracto, de que segue rota falsa, mingua-lhe a capacidade para acertar
do golpe de vista seguro e da percepção nítida dos princípios com o caminho exacto.
de direito a aplicar, numa palavra, da arte juddica. A mais O jurista precisa também de fantasia, quer de abstracção
disto deve ter o senso juddico, que é como o ouvido musical quer de combinação, pois só desta maneira pode contribuir
para o músico, ou seja uma pronta intuição espontânea que o para a descoberta de verdades novas. Como na ciência, assim
guia para a solução justa. na jurisprudência à intuição feliz dum autor se devem tantas
As duas qualidades reunidas formam a educação juddica, descobertas, que depois a experimentação controlou e reafirmou.
que não se adquire senão depois de longo habito de estudo.
Ela, e não a massa dos conhecimentos, é o que estrema o jurista Muitas vezes, e até demais, se falou na Itália do método
do leigo: com um saber moderado pode-se ser um jurista de estudo 2: havia quem exigisse um estudo do direito civil
distinto, e nunca se chegar a sê~lo, tendo-se embora um conhe-
cimento vastíssimo 2. 1 KOHLER - Lelzrbuclz, 1, pág. 14I.
O modo diverso como se comportam o jurista e o leigo • A literatura sobre este tema, que esteve em modo algum tempo,
observa-se quando um e outro tratam um caso jurídico. Ojurista é assoberbante e agora, com razão, está caída no esquecimento. A discussão
que se agitava emrolvia, porém, diversos problemas, pois não só se ocupava
do método de estudo do direito civil, mas também do método do ensino,
1 Les Notions fondamentales, pág. 236. e até mesmo do conteúdo substancial do Código Civil em confronto com
• !HEIuNG-Geist, § 37.°, pág. 313· as ciências políticas e sociais, exigindo a renovação dele.
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15. - Relações entre a teoria e a prática é errada ou unilateral, e por isso desmorona ao contacto dos
factos o edifício fadigosamente levantado pelas abstracções dos
Teoria e prática não estão em antítese, não são lUlmigas teóricos.
ou estranhas que mutuamente se ignoram ou desprezam: pelo Entre a teoria e a prática deve existir um enlaçanlento,
contrário, entre elas existe uma colaboração recíproca 1. Tendo um intercâmbio de produtos espirituais, um fluxo e refluxo
objectos de actividade distintos, cada uma tem sempre que de ideias. A prática deve erguer-se do empirismo e da intuição
aprender da outra. instintiva do direito até uma aplicação consciente dos prin-
A teoria, operando com conceitos abstractos, com a força cípios; mas a teoria deve retemperar os seus teoremas" no
lógica, é capaz de extrair os princípios gerais da lei e de lhes banho da vida real, dos fenómenos económicos, das situações
dar o máximo desenvolviménto de expansão. Este trabalho, que se suscitam e são apreciadas pela jurisprudência quotidiana.
porém, fá-lo para a prática, para que surta mais completa e Uma e outra devem juntar e fundir as suas vistas, as suas críticas,
perfeita a aplicação do direito. A jurisprudência deve, pois, os seus desejos, para cooperarem na actividade legislativa.
olhar à doutrina, ter em conta os resultados dos seus estudos,
e pô-los à prova na aplicação. 16. - Extinção das normas jurídicas
Mas a teoria recebe quotidianamente da prática ensina-
mentos e sugestões. As normas jurídicas não são imortais, mas sujeitas a modi-
A prática, posta em face de hipóteses reais e das necessi- ficarem-se e a extinguirem-se. Como na natureza, assim no
dades da vida, sente primeiro a solução jurídica, ao passo que mundo jurídico não há imobilidade, mas transformação: o direito
a doutrina, trabalhando com hipóteses teóricas, não tem esta renova-se com os tempos. Um direito imóvel não pode existir;
percepção pronta da realidade. É à jurisprudência,. portanto, pelo contrário, se o legislador declarasse não querer de futuro
que a teoria deve ir colher a expressão das necessidades sociais abrogar ou mudar uma certa lei, o seu comando resultaria
que se fazem sentir e batem à porta dos Tribunais. Além disso, inútil e invinculante.
a variedade inexaurível das questões práticas frequentemente Todavia as leis, normalmente, têm um carácter de estabí-
revela problemas novos, ou novos lados de problemas jurí- lídade, e são destinadas a uma duração indefmida. Valem
dicos e abre novos campos de estudo à dogmática 2. Às vezes enquanto o Estado não declarar suprimi-las no todo ou em
llill caso jurídico mostra experimentalmente que uma teoria parte (abrogação ou derogação) 1.
Uma norma jurídica não pode considerar-se extinta pelo
1 V. SCIALOJA, Dírítto prátíco e dírítto teoríco, na Rivísta dí dírítto commer- conseguimento do fim que se propôs, ou por virem a faltar as
,íale, 19II, I, 941,
2 Daqui a importância da actividade doutrinal que se desenvolve na
motação de decisões íurisprudenciais. Por vezes uma destas anotações é o 1 ULPIANO, frag. 3, De legíbus: lex abrogatur, ídest prior lex tollitur.
ponto de partida duma nova elaboração dum instituto. Lex derogatur, ídest pars príorís legís tolítur. PFAFF e HOFMANN - Kommentar, I,
Em França foi um esplêndido exemplo deste método um jurisconsulto págs. 214 e segs. REGELSBERGER - Pandekten, I, § 26.'. EISELE, no Archiv
::j.ue se dedicou a tal género de trabalhos - LABBÉ. Veja: Livre d~entenaíre für díe Cívilístische Praxis, 66, 283. SAREDO - Abrogazíone della legge, no
>lu Code Napolion, I, pág. 173 e segs.; e MEYNIAL - Les recueils d'arr2ts et les Dígesto ítalíauo. DONATI - Abrogazíone della legge, no Dízionario di dírítto
lrr2tístes. publíco.
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circunstâncias ou os motivos que a determinaram, ou pela sua costumam ter a sua vigência fixada até um período de tempo
contraditoriedade com as exigências sociais. Isso pode ser depois da conclusão do tratado da paz. Uma lei sanitária pro-
motivo para a sua abrogação, e nunca uma causa de extinção vocada por uma epidemia é aplicável até que um acto admi-
da norma. É portanto erróneo, neste sentido, o. brocardo nistrativo declare cessado no país o estado de infecção.
Cessante ratione legis, cessat et lex ipsa. A vontade do Estado É preciso, todavia, que a lei subordine e delimite a sua
existe de modo autónomo, independente e destacada dos factores eficácia àquele dado evento, pois nem toda a lei emanada por
psicológicos que a fizeram nascer, assim como prescinde dos ocasião dum estado de facto transitório (v. g., um desastre,
resultados bons ou maus a que conduz na sua realização. uma sedição, uma crise) cai necessàriamente quando este cessa '.
A lei conserva-se não obstante as modificações da consti- A não se verificar a indicada subordinação, a lei mantém-se
tuição política dum Estado, e mesmo se o Estado acaba, porque em plena validade, só que a sua aplicação pode tornar-se gra-
o seu território é incorporado em outro Estado, este sucede dualmente mais rara, e por último desvanecer-se. Mas deve
no ordenamento jurídico do Estado anterior, nos limites do distinguir-se entre a não aplicação duma lei por falta de relações
território do ex-Estado. Assim, vigoram ainda hoje leis anti- a regular e a sua inexistência jurídica: no primeiro caso a norma
quíssimas, como as leis sobre a transmissão dos títulos nobi- existe e é sempre capaz de desenvolver eftcácia se uma nova
liários, sobre o direito de padroado nas Igrejas, e leis sobre relação se apresenta, como um arco retesado, pronto a despedir
a caça, visto que, em parte, não foram modificadas. a [recha; ao passo que no outro não há norma.
Para que se verifique, portanto, a extinção é necessário: Isto vale também para as disposições transitórias, chamadas
ou que a própria lei contenha em si um limite à sua eficácia a disciplinar as relações existentes no passado, quando entra
(leis ad tempus) j '. ou que a lei seja mudada ou abrogada por em vigor uma lei nova. Formalmente, essas disposições valem
outr~ posterior '. sempre. É certo que com o andar do tempo a sua aplicação
se vai tornando sempre mais rara, ou até se anula, pois as rela-
Não infrequente é o caso de leis que no seu conteúdo ções anteriores vão desaparecendo gradualmente. Mas nem
determinam a duração da sua validade, pelo que, transcorrido por isso se pode dizer que tais disposições estão abolidas. E pelo
o prazo, elas deixam de ter valor, a menos que intervenha uma contrário algumas disposições transitórias têm duração indeter-
prorrogação da sua eficácia. Assim a lei de 15 de Agosto de 1863 minada (por ex. o art. 48.°, primeira parte, das Disposições
para a repressão do banditismo, a lei de 19 de Julho de 1894 transitórias para a aplicação do Código Civil).
contra as manifestações anarquistas, etc.
Este termo pode resultar também mediatamente, em Todavia a forma ordinária de abrogação ou mutação
relação a um certo evento. Assim as leis especiais de guerra duma lei tem lugar por força duma lei posterior (art. 5. ° das
Disposições preliminares ao Código Civil).
1 Aqui não são tomadas em consideração as leis formais, que são É preciso que se trate duma verdadeira lei, e não dum acto
simples actos administrativos em veste de lei, os quais, naturalmente, estão
administrativo. Assim um regulamento não pode abrogar uma lei.
subordinados a outros princípios, pelo que toca a sua eficácia. Assim uma
lei formal constitutiva dum direito subjectivo extingue-se por renúncia,
prescrição, etc., mas em substância trata-se aqui dum negócio jurídico e não 1 Assim COVIELLO - Manuale, pág. 97; DE RUGGIElw - Istituzioni
duma norma juridica. di díritto cíl'ile «4.' ed., l, pág. 163'"
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Diverso é o caso de se tratar dum acto que a autoridade A abrogação pode ser total ou parcial, conforme é supri-
administrativa emana por delegação do poder legislativo. mido todo o conteúdo duma lei ou só uma parte ou algumas
A lei, de facto, pode pronunciar a supressão dum princípio disposições singulares.
jurídico ou directamente ou delegando no Governo tal facul- A abrogação pode resultar ou duma declaração expressa
dade: nesta hipótese é a lei de autorização que tira a força do legislador que proclama abolida uma certa lei, pura e sim-
formal à lei modificada 1. Em termos análogos se resolve a plesmente sem outra estatuição (assim aconteceu com a lei
questão de saber se um tratado internacional pode mudar uma que aboliu a prisão por dívidas), ou é conexa com uma nova
lei: não é o tratado como tal, senão a lei interna que o aprova regulamentação jurídica que substitui a revogada.
o que modifica o direito anterior; e quando um tratado deroga Neste caso, aliás, a abrogação expressa é supérflua, pois
leis, para a sua eficácia há sempre mister da aprovação do poder basta que a lei nova estabeleça uma regulamentação diversa
legislativo. incompatível com a lei antiga, para que a lei nova prevaleça
A lei abrogativa ou modificativa deve ser posterior à lei e destitua de efeito a lei precedente. Então é uso falar-se de
a mudar; e a posterioridade determina-se pela data da promul- abrogação tácita: a vontade abrogativa resulta da nova disciplina
gação, e não já pela entrada em vigor. jurídica que se vem substituir à anterior, pela incompatibilidade
Por isso, de duas leis, uma das quais foi promulgada do novo ordenamento com o antigo.
primeiro, se bem que entre em vigor depois, e a outra foi Mas isto aponta o limite de tal forma de supressão. A abro-
promulgada depois, se bem que entre em vigor primeiro, gação tácita verifica-se na medida da contraditoriedade: a lei pre-
é a segunda que em caso de contradição prevalece, abrogando cedente é abrogada até onde for incompatível com a lei nova;
ou modificando" a primeira. De facto, a entrada em vigor onde, porém, esta contraditoriedade não tenha lugar, é possível
não respeita à eficácia formal duma lei, mas à sua aplicação a coexistência e compenetração da lei anterior parcialmente
prática. revogada com a lei nova modificadora. Amiudadas vezes, de
E por outro lado o efeito da abrogação só tem lugar com facto, as leis limitam-se a simples retoques e inovações, e estes
a entrada em vigor da lei abrogatória, pelo que pode haver um sucessivos remendos em certos casos dão origem_ a complicações
estádio em que uma lei formalmente abolida não perdeu e dificuldades. Precisamente para obtemperar a este estado de
ainda a sua eficácia. Na verdade, durante a vacatio subsiste incerteza, o Governo é, de ora em quando, autorizado a prover
em vigor a lei precedente 2. à publicação de textos únicos que recolhem pràticamente num
só corpo as disposições vigentes supérstites de leis parcialmente
modificadas.
1 CAMMEO - Giustizia Amministrativa, n.O 29, pág. 59. Mas não basta Todavia a questão da existência da abrogação continua
que o Governo tenha emitido uma norma por delegação legishtiva, para a impor-se, mau grado os textos únicos. Nem sempre a incom-
que possa depois abrogá-la por sua iniciativa: é preciso que a mesma abro- patibilidade entre duas leis é seguramente determinável.
gação tenha sido autorizada. (FIORE - Dispozizioni gmerali aI Godice Givile,
Se a uma lei geral se sucede uma especial, normalmente
II, 598).
• Assim aconteceu com a lei sobre a justiça administrativa e a lei aquela fica de pé, visto que pode coexistir com a outra. Mas
relativa a obras pias, no referente à questão das despesas de hospitalização se a uma lei especial se segue uma lei geral, é duvidoso se a
(spedalità). Veja CAMMEO - Giustizia Amministrativa, pág. 56. nova regra não tolera mais os desvios e excepções da mprieira,
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lU quer mantê-las coordenando-as com o novo princípio. tias, etc. Enfim, todas as disposições que são consequências
~ solução dependerá, caso por caso, da indagação do nexo ou aplicações do princípio abolido 1.
[ue existe entre as duas ordens de normas e do fundamento Há aqui uma incompatibilidade conceituaI ou virtual.
la nova disposição '. Isto acontece de modo eminente quando uma lei introduz
Pode tratar-se de relações distintas, e por isso a norma novos prirzcípios cardeais informadores da regulamentação jurídica,
:special não influenciar a geral, ou vice-versa pode a norma o que arrasta consigo a anulação de todas as leis e disposições
:special não ser mais do que um rebento e uma aplicação da que, embora não haja manifesta contraditoriedade, são demitidas
lorma-regra, c'-Ya abolição importa naturalmente a queda da da sua base racional. Há um conflito Íntimo nas ideias impi-
mtra, por conflito virtual entre as duas. radoras, no fundamento do edifício jurídico.
A abrogação tácita não resulta só de incompatibilidade:
)pera-se também quando uma lei nova regula toda a matéria As leis abolidas não ressurgem com a extinção da lei aboli-
á disciplinada pela lei anterior. Aqui deduz-se, com efeito, tiva. Assim, se uma lei abrogou expressa ou tàcitamente outra
, vontade por parte do legislador de liquidar o passado, lei, e em seguida esta lei abrogativa é por sua vez abrogada,
:stabelecendo um novo sistema de princípios completo e autó- não revive por isso a lei antiga, sendo necessária uma expressa
lOmo. Temos então um novo reordenamento jurídico com declaração legislativa que a reponha em vigor (lei repristinatória) 2.
lirectivas originais, que não tolera desvios ou enxertos de leis
)recedentes. É discutido se uma lei pode perder valor pela for111.ação
É fácil compreender que a abrogação se limita aquilo dum costume contrário, isto é, pelo seu não uso prolongado.
lue consitui a matéria da nova regulamentação jurídica, não Segundo o nosso sistema positivo, o costume, tendo uma
Lbr2.ugendo institutos que, embora pertinentes e conexos com posição subordinada, não pode entrar em contradição com a
lqude, não foram nem directa nem indirectamente contem- lei. A não aplicação ou o não uso dum preceito legislativo
,lados. não pode considerar-se como abandono ou renúncia dos interes-
sados que faça tornar-se inútil a lei, porque não se deixa à vontade
Mas, por outro lado, a abrogação não faz cair só a dos individuos a força coactiva das normas 3.
ei directamente atingida; afecta ainda todas as disposições
iependentes ou acess6rias que a ela se prendem, conquanto Regras de direito nascem também pelo exercício da facul-
resultem de leis diversas. Assim as normas interpretativas, dade regulamentar.
~specificativas, limitativas, ou que tendem a regular a exe- Ora os regulamentos, sejam de execução, ou indepen-
cução 2 ou a reforçá-la, infligindo pena, estabelecendo garan- dentes, ou autorizados, podem ser modificados ou abrogados
1 REGELSBERGER, Pandekten, pág. IIO. OERTMANN, Uber den Satz lex 1 ENNECCERUS - Lehrbuch, I, pág. 91 (edição de 1924). REGELSBERGER
?osteríor generalís non derogat príori speâalí (Archív für offentlichen Recht (Arquivo - Pandektet1, pág. III.
para o direito público). 2 COVIELLO - Malluale, pág. 98. DE RUGGIERO - IstítuzíOllí "4.' ed., I,
• Assim, abolida a pena de morte, caíram as disposições dos arts. 394.° pág. 165".
e 395.° do Cód. Civ. 3 CAPlTANT - Illtrodutíoll á l'étade du droít irattçaís, 2.' edição, pág. 62.
196
CAPITULO II
Determinação do sentido das normas jurídicas. Interpretação
4- Ideias gerais . . . . . . . . . . . . 12 7