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Etnografia e Consumo Midiatico Novas Ten
Etnografia e Consumo Midiatico Novas Ten
consumo midiático
novas tendências e desafios metodológicos
Bruno Campanella
Carla Barros
organizadores
ISBN 978-85-7650-525-9
Revisão
Helô Castro
Projeto gráfico e diagramação
Rodrigo R. Carmo
Imagem de capa
Danil Melekhin / iStockphoto
E84
Etnografia e consumo midiático: novas tendências e desafios metodológi-
cos / organização Bruno Campanella, Carla Barros. - 1. ed. - Rio de Janeiro:
E-papers, 2016.
204 p. : il. ; 23 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-525-9
1. Etnologia - Recursos de rede de computador. 2. Etnologia - Pesquisa. I.
Campanella, Bruno. II. Barros, Carla.
16-33944 CDD: 305.80072
CDU: 316
Sumário
5 Introdução
Bruno Campanella e Carla Barros
11 Capítulo 1
Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia
Christine Hine
29 Capítulo 2
Etnografia e digitalização
Jair de Souza Ramos
47 Capítulo 3
A globalização como desafio para o trabalho de campo
e a produção etnográfica
Sandra Rúbia da Silva
69 Capítulo 4
Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos
de consumo midiático
Laura Graziela Gomes
97 Capítulo 5
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos
das mídias digitais e sociais
Annette N. Markham
117 Capítulo 6
Métodos mistos: combinando etnografia
e análise de redes sociais em estudos de mídia social
Raquel Recuero
133 Capítulo 7
Carne e alma: ensaio sobre feminilidade,
capital simbólico e melodrama
Veneza V. Mayora Ronsini
157 Capítulo 8
Jovens brasileiros e convergência midiática:
espiando o cenário nacional
Nilda Jacks e Daniela Schmitz
179 Capítulo 9
Términos de relacionamentos e Facebook:
desafios da pesquisa etnográfica em sites de redes sociais
Beatriz Polivanov e Deborah Santos
199 Os autores
Introdução
5
A importância de um olhar atento na direção do consumo de mídia
deve-se à sua centralidade na vida contemporânea, envolvendo um conjun-
to de atitudes, experiências, práticas e processos sociais que merecem um
maior aprofundamento analítico. O fenômeno do consumo expresso em
diversas plataformas midiáticas pode ser compreendido como um sistema
revelador de gostos e estilos de vida (Campbell, 2006; Raisborough, 2011;
Binkley, 2014), o que mostra a ênfase moderna nas emoções e no individua-
lismo enquanto um sistema de valores (Dumont, 1972; Freire Filho, 2010).
Outros aspectos importantes também podem ser analisados nesse campo,
como a utilização do consumo para definir situações relacionadas à posição
dos agentes na sociedade, revelando assim seu forte caráter político no que
tange à manutenção de hierarquias sociais (Bourdieu, 1979).
Os desafios, possibilidades e limites dos usos do método etnográfico
na pesquisa de consumo de mídia contemporânea, por sua vez, são de várias
ordens e indicaremos aqui apenas alguns pontos que nos parecem produti-
vos para servir de abertura para as questões que serão apresentadas ao longo
deste livro.
Inicialmente, é importante destacar um aspecto relacionado à contri-
buição da pesquisa etnográfica no campo da comunicação de um modo ge-
ral. A etnografia se constituiu na disciplina antropológica como algo muito
maior do que um “método”, o que não significa, obviamente, atribuir um ca-
ráter de trivialidade às questões metodológicas. Embora não exista consenso
acerca da concepção sobre o que seja uma pesquisa etnográfica, pode-se di-
zer que a tradicional visão de Evans-Pritchard (1962) é bastante pervasiva, ao
enfatizar que todo “fato etnográfico” é em si mesmo “teórico”, graças à sua ca-
pacidade de questionar pressupostos até então vigentes. Tal posicionamento
revela uma ênfase na “empiria”, não como um contraponto à “teoria”, mas
sim enquanto possibilidade de construir conhecimento a partir de contextos
culturais cuidadosamente especificados. Essa “vocação para a empiria” que
carrega a pesquisa etnográfica vai de encontro às análises generalizantes e
abstratas que pressupõem – nem sempre de um modo explícito – condições
de caráter universalizantes a questões como processos de subjetivação e so-
ciabilidade na sociedade hipermediatizada.
A realização de etnografias no contexto das “novas mídias” acabou por
revelar diferentes perspectivas sobre o que seja a relação entre os mundos
6 Introdução
on-line e off-line. Uma série de denominações surgiram nesse campo de
estudos para dar conta das novas configurações midiáticas, entre as quais
virtual ethnography (Hine, 2000), ethnography for the internet (Hine, 2015);
ethnography on the internet (Beaulieu, 2004), digital ethnography (Murthy,
2008), internet ethnography (Sade-Beck, 2004, Boyd, 2008); netnography
(Kozinets, 2010), cyberethnography (Robinson e Schulz, 2009), ethnography
of virtual spaces (Burrel, 2009) e internet-related ethnography (Postill e
Pink, 2012).
Conforme observou Androutsopoulos (2008), em uma “primeira
onda” dos estudos de comunicação mediada por novas tecnologias, o foco
residia nos aspectos que se supunham específicos de uma realidade emer-
gente. Nessa abordagem inicial, os dados apresentados não eram relaciona-
dos a contextos socioculturais particulares, partindo-se do pressuposto de
que o universo on-line seria apartado do off-line (Rheingold, 1994; Turkle,
1997). Propunha-se, assim, a criação de um termo específico para a etnogra-
fia realizada nesse “novo mundo”, frequentemente percebido como carente
de “autenticidade”.
Vale ressaltar que a própria história das práticas na internet deve ser
observada como um dos elementos que contribuíram para a constituição
dessa dicotomia entre o on-line e o off-line. Em um primeiro momento, o
imaginário da internet estava bastante voltado para a possibilidade de se
criar um “novo eu” virtual desvinculado do “verdadeiro” self cotidiano, per-
cepção que foi perdendo força, relativamente, com a expansão das redes so-
ciais e a ênfase na exposição de si.
Um posicionamento importante contra essa perspectiva dicotômica
surgiu no estudo de Miller e Slater (2000) realizado em cibercafés de Trinidad
e Tobago, onde os autores argumentaram que a separação entre o on-line e
o off-line não deveria ser tomada como um ponto de partida de pesquisa,
nem analítico nem metodológico. Em vez de tomar essa divisão como dada,
a realização de estudos etnográficos permitiria observar o forte aspecto con-
tingencial das práticas sociais relacionadas à internet, em seus diversos mo-
dos de articulação com o contexto off-line. Assim, Miller e Slater assinalam a
necessidade de se manter as características do conhecimento antropológico
no estudo das novas mídias, ou seja, de se conceber a etnografia como uma
possibilidade de imersão profunda em contextos culturais específicos, em
Introdução 7
busca da lógica interna dos agentes. Na abordagem etnográfica, o fato social
não é percebido como isolado, mas sim articulado com outras esferas da vida
que se relacionam e ganham sentido dentro de um todo que as precede. A
internet abarca práticas sociais tão múltiplas e diversas que torna problemá-
tica qualquer enunciação acerca do que a internet “seja”, como um meio que
leve a determinados comportamentos. As “novas mídias”, portanto, entram
na vida de sujeitos específicos, que se orientam a partir de códigos culturais
particulares que criam práticas diversas a serem analisadas.
Um outro aspecto a ser destacado no confronto entre essas diferentes
perspectivas é que não se compartilha a mesma concepção do que seja a
pesquisa realizada no âmbito da internet. Enquanto que para alguns auto-
res a etnografia aparece como uma conjunção de técnicas específicas – pri-
mordialmente, a observação participante com a entrevista em profundida-
de – para outros ela não pode ser reduzida a um conjunto de técnicas, pois
sua importância reside no fato de ela ser propriamente uma abordagem. A
proposição de polissemia nas mensagens midiáticas encontrada nos estu-
dos de recepção, especificamente, facilitou uma maior adesão às pesquisas
de abordagem etnográfica. No entanto, nem todas as pesquisas autointitu-
ladas como de “recepção” atendiam aos princípios da etnografia, como a
imersão prolongada em campo e a compreensão do contexto sociocultural
mais amplo no qual as práticas midiáticas estavam inseridas. Em um pri-
meiro momento, os estudos de recepção televisiva, por exemplo, utilizavam
grupos focais com o intuito de estabelecer uma relação entre a interpretação
da audiência e o seu contexto socioeconômico (Morley, 1992). Com o passar
dos anos, contudo, estudos qualitativos de consumo de TV também começa-
ram a incorporar abordagens etnográficas (Silverstone et al., 1991), com o
objetivo de articular “o sempre-em-mutação caleidoscópio da vida cotidiana
e como as mídias estão integradas e implicadas dentro dele” (Radway, 1988,
p. 366). Mesmo assim, a imersão prolongada em campo permanece como
questão, uma vez que o consumo de televisão, assim como de outras mídias,
ocorre em espaços cada vez mais multissituados (Marcus, 1995).
Os textos apresentados na presente coletânea são atravessados por
reflexões acerca dessa crescente complexificação das práticas de consumo
midiático, assim como das formas de estudá-lo que tomam como ponto de
partida as abordagens etnográficas. Alguns autores tratam dessas questões
8 Introdução
por meio de discussões teóricas sobre os desafios apresentados por mídias
específicas, como a internet ou a televisão, enquanto outros trazem análises
de estudos particulares de caso. Com o objetivo de enriquecer ainda mais
o debate, a coletânea também traz propostas de abordagens metodológicas
alternativas capazes de complementar a etnografia. Em suma, o livro bus-
ca lançar luz sobre os desafios, oportunidades e dificuldades da abordagem
etnográfica na pesquisa dos meios de comunicação, em especial a internet.
Por fim, gostaríamos de agradecer àqueles que participaram decisiva-
mente no desenvolvimento do Seminário e na concretização deste livro. De
imediato, agradecemos ao professor Marco Roxo, coordenador do PPGCOM/
UFF, pelo apoio institucional. Aos alunos Carlos Coelho Filho, Erica Ribeiro,
Joana D´arc de Nantes, Melissa Ribeiro, Milena Pereira, e Vinícius Azevedo
pelo apoio na realização do seminário. A Melina Santos e Patrícia Matos, res-
pectivamente, pela disponibilidade para a elaboração da versão em portu-
guês e revisão do texto da professora Christine Hine.
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Introdução 9
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10 Introdução
1
Capítulo
Estratégias para etnografia
da internet em estudos de
mídia
Christine Hine1
Introdução
As tecnologias digitais transformaram a paisagem midiática de variadas ma-
neiras. Na medida em que a internet se tornou uma tecnologia mainstream
em muitas partes do mundo, as pessoas se tornaram capazes de influenciar
umas às outras de novas maneiras, formando grupos sociais que se diferem
significativamente daqueles criados através da interação face a face e das in-
terações sociais distanciadas mediadas pela mídia de massa.
As instituições de mídia de massa se transformaram, desenvolvendo
novos produtos e alcançando audiências através de novos formatos e, uma
vez que as tecnologias digitais se popularizaram, novos modelos de negócios
visando o lucro emergiram. As tecnologias móveis, por sua vez, modifica-
ram as formas como nós experimentamos os espaços públicos e privados,
permitindo incorporar as comunicações pela internet a novos domínios de
interação social.
As mídias sociais proporcionam desafios e oportunidades para as con-
venções estabelecidas, transformando nossas experiências de identidade,
interação e fronteiras sociais. O aumento massivo das formas de sociabili-
dade que são refletidas on-line e, por sua vez, permeadas em espaços mais
amplos da vida social ofusca as fronteiras entre on-line e off-line.
11
As tecnologias digitais se tornam cada vez mais uma parte intrínse-
ca das vidas cotidianas em vez de uma esfera separada de existência social.
Todas essas mudanças motivam os estudos etnográficos: nós precisamos sa-
ber em detalhes que tipos de mudanças estão ocorrendo nas instituições e
organizações, no engajamento das pessoas com a mídia nesta era digital, e
quais efeitos em termos de nossas culturas e nossas comunidades, quer seja
on-line, off-line ou, como é o caso mais frequente, complexos híbridos do
on-line com o off-line. Por mais que demandem atenção etnográfica, essas
transformações radicais também criam alguns desafios para a prática etno-
gráfica nos estudos de mídia, inspirando o desenvolvimento de novas estra-
tégias que permitem nosso engajamento com a paisagem midiática alterada.
Este capítulo explora algumas estratégias frutíferas para conduzir estudos
etnográficos da mídia na era digital.
Nos estudos de mídia, a etnografia tem se posicionado na linha de
frente dos esforços para compreender o impacto da mídia na vida das pes-
soas. A força da etnografia para os estudos de mídia reside em seu foco no
que acontece no campo, no contexto, no momento em que a mídia é produ-
zida e consumida. A etnografia da mídia pode nos ajudar a evitar uma abor-
dagem demasiadamente centrada na mídia em si (Pink e Leder Mackley,
2013; Krajina et al., 2014), observando o contexto mais amplo de como essa
mídia ganha significado.
O etnógrafo age, não julgando a priori o significado inerente da mídia
ou como as pessoas deveriam usá-la. Em vez disso, procura alcançar um pro-
fundo engajamento com os detalhes confusos contidos naquilo que as pes-
soas realmente fazem com a mídia na prática. A etnografia, portanto, pode
nos proporcionar um insight em um sentido mais profundo do significado
da mídia, explorando não somente o que um texto específico significa, mas,
qual o significado da mídia como um componente da vida cotidiana em um
sentido mais amplo, uma vez que ela é socialmente, culturalmente e tecno-
logicamente permeada.
Os interesses do etnógrafo frequentemente vão além de momentos de
engajamento entre pessoas pré-selecionadas individualmente e textos mi-
diáticos específicos, visto que o consumo da mídia é inerentemente social
e que o contexto pode tomar muitas formas: para o etnógrafo, o significado
reside não no texto propriamente dito, mas em uma gama de relações sociais
12 Christine Hine
que antecedem e, ao mesmo tempo, resultam daqueles momentos de en-
gajamento com o texto. Um estudo etnográfico frequentemente tem longa
duração e é de caráter exploratório, onde somente através da realização da
pesquisa o etnógrafo será capaz de identificar os temas e questões centrais
para a investigação mais profunda.
Nas pesquisas de mídia, algumas contribuições significativas têm sido
feitas para nossa compreensão das audiências através da pesquisa etno-
gráfica no espaço on-line. Um dos primeiros estudos de comunidades on-
-line focava em um grupo de fãs de uma novela: o estudo pioneiro de Nancy
Baym (1995, 2000) explorou um espaço on-line como uma comunidade de
audiência, uma comunidade on-line e uma comunidade de práticas. Com
sua imersão nesse espaço on-line, Baym foi capaz de explorar a produção de
sentido coletiva em torno das novelas e ver como, através das práticas dos
participantes, os fãs constituíram o fórum on-line como um espaço social
muito distinto.
Fandom e fórum podem ser ditos como mutuamente essenciais. Es-
tudos sobre as dimensões on-line do fandom, como os trabalhos influentes
realizados por Jenkins (2006), posteriormente nos ensinaram muito sobre as
práticas da audiência,2 explorando o engajamento ativo da audiência com as
mídias de massa e com o conjunto de atividades criativas e produtivas que
são estimuladas pelos objetos do fandom.
O Twitter também emergiu recentemente como um espaço para for-
mas criativas de fandom (Highfield et al. 2013). Cada plataforma, seja ela
fórum de discussão, Twitter, blog ou Facebook, traz diferentes modos e as-
pectos de fandom e é ao mesmo tempo formada e moldada pelas práticas do
consumo midiático.
Para além do foco nas formas intensivas de engajamento midiático que
constituem o fandom, os estudos de mídia têm sido amplamente estimula-
dos pela proliferação de rastros do consumo midiático nos espaços on-line.
2 No texto original, Hine utiliza o termo audiencehood. Para fins de interpretação, utilizamos
o termo audiência. Contudo, nos estudos de Comunicação, audiencehood seria a atenção – es-
pecial – dada pelo público a determinado evento veiculado pelos meios de comunicação, como
concertos ao vivo, resultados eleitorais, crises mundiais etc. Essa versão de audiencehood envol-
ve um cruzamento com a internet, a qual serve para construir uma rede de contatos em resposta
ao conteúdo da mídia de massa. Ver mais em McQuail, 1983.
14 Christine Hine
É importante executar outras formas de estudo além daquelas realizadas so-
mente on-line, a fim de considerar as conexões on-line/off-line e a circulação
de conteúdos de formas imprevisíveis.
Quando realizamos pesquisa etnográfica focada em um único espaço
on-line, muitas das convenções etnográficas existentes para um estudo ba-
seado em pesquisa de campo são transferidas de forma relativamente fácil.
De fato, encontramos alguns desafios em relação a identidade e autentici-
dade e alguns dilemas éticos singulares (como discutido, entre outros, por
Garcia et al., 2009; Steinmetz, 2012), mas os princípios etnográficos de en-
gajamento próximo com os participantes dentro de um campo específico
continuam bastante identificáveis. Se, no entanto, queremos explorar esse
campo maior de conexões, algumas estratégias diferentes estão disponíveis.
Em um livro recente (Hine, 2014), descrevo alguns traços da internet contem-
porânea que são particularmente desafiadores para o etnógrafo e destaco
algumas estratégias produtivas para engajamento com essa internet.
Na próxima seção, descreverei as qualidades pertinentes da internet
nos dias atuais para, então, prosseguir com a discussão sobre três tipos de
estratégias que ajudam um etnógrafo a lidar com essas qualidades: aborda-
gens móveis, multilocalizadas e conectivas ao campo; mapeamento, visuali-
zação e associação; e uso dos insights autoetnográficos a fim de maximizar a
compreensão da internet como um fenômeno sensorial. A conclusão, então,
olha adiante para alguns dos desafios no horizonte, já que a internet conti-
nua a se desenvolver e se diversificar.
16 Christine Hine
uma compreensão corporificada dessa forma de existência, através da refle-
xão dos prazeres e das frustrações das experiências on-line.
Um terceiro aspecto fundamental da internet nos dias de hoje é sua
cotidianidade. A internet e as variadas plataformas que a compõem têm sido
tratadas como algo dado, aspectos comuns da vida cotidiana em contextos
diversos. Para um etnógrafo interessado em explorar certos aspectos dos
usos da internet, isso pode criar um desafio metodológico significativo, na
medida em que as pessoas simplesmente não falam sobre a internet, mas
somente a usam nas atividades diárias em que estão engajadas.
Podemos ser capazes de observar as atividades on-line daquelas pes-
soas que ativamente contribuem em um fórum, mas temos um desafio mui-
to maior em nossas mãos se desejarmos trabalhar com o que essa atividade
on-line significaria em suas vidas diárias, ou daqueles que leem esses fóruns
sem contribuir ativamente com eles. Para um etnógrafo, essas práticas inter-
pretativas diárias podem ser evasivas. Assim que pedimos para as pessoas
falarem sobre uma dessas infraestruturas diárias, nós as colocamos artificial-
mente em primeiro plano e introduzimos uma nova gama de dinâmicas a
essa situação. O “silêncio do social” (Hirschauer, 2006) é um problema per-
manente para o etnógrafo, o qual sempre tenta colocar em palavras o que as
outras pessoas sabem, mas não falam. Novamente, a participação do etnó-
grafo é central aqui. Ser ativo no ambiente permite que o etnógrafo apren-
da com a imersão e o questionamento criterioso que encoraja as pessoas a
refletirem, em voz alta, sobre suas experiências. Isso sem esperar que eles
estejam aptos a construir respostas completas sobre a importância dessas
infraestruturas em suas vidas.
A internet, na atualidade, é um fenômeno incorporado, corporifica-
do e cotidiano. Isso apresenta desafios metodológicos significativos para um
etnógrafo que deseja descobrir o significado de determinado aspecto da in-
ternet para um grupo específico de pessoas. Podemos começar com um foco
particular ou uma questão intrigante em mente, mas a imprevisibilidade e
caráter escorregadio dessa internet incorporada, corporificada e cotidiana
torna muito difícil resolver onde ir para encontrar as respostas e como tra-
zer questões interessantes à luz. Nas seções seguintes, explorarei algumas
estratégias etnográficas que respondem aos desafios da internet contempo-
rânea e que, particularmente, se distanciam do estudo de espaços on-line
18 Christine Hine
a internet não seja o foco central do estudo. Modelos multimodais e espa-
cialmente complexos de pesquisa etnográfica estão consequentemente na
moda.
Baseado nesse modelo, o campo em si será sempre uma construção
arbitrária (Candea, 2007). Quando aceitamos que o campo não é algo pre
existente, mas é construído a partir de uma rede complexa e contingente de
interconexões possíveis entre diferentes localidades, e estendida em diversas
mídias e formas de interação, estamos problematizando a noção de um estu-
do etnográfico holístico (Cook et al., 2009).
Se o campo é compreendido como uma construção do processo etno
gráfico, podemos esperar que o etnógrafo aceite a responsabilidade por
construir um estudo que se encaixe em um conjunto particular de interesses
estratégicos. Respondendo a esse desafio, um corpus excitante de estudos
etnográficos, multilocalizados e multimodais, de aspectos da internet está
se construindo, incluindo focos diversos como movimentos sociais (Farino-
si e Treré, 2011; Postil e Pink, 2012), pôquer (Farnsworth e Austrin, 2010),
cibercafés em Gana (Burrel, 2009) e tricô (Orton-Johnson, 2012). Modelos
de pesquisa semelhantes têm muito a oferecer aos estudos de mídia, nos
permitindo perseguir algumas das questões mais desafiadoras sobre em que
medida as formas variadas de resposta do público e as interações que estão
acontecendo on-line modificam fundamentalmente noções de audiência e
afetam o papel da mídia na experiência da vida diária.
20 Christine Hine
priorizam seletivamente a atenção para sites que o algoritmo considera mais
dignos de nossa atenção. Algoritmos patenteados indicam que não sabere-
mos como a ferramenta de busca elenca as prioridades. E a lista prévia de
resultados de nossos interesses, via cookies, significa que diferentes usuários
podem ver listas diferentes de resultados.
Todos esses fatores parecem descartar o mecanismo de busca para
o uso de um pesquisador sério. Porém, um etnógrafo pode querer conti-
nuar a usá-lo, baseando-se na ideia de que a ferramenta de busca é quase
um aspecto inevitável do uso da internet e ao usá-la podemos ser capazes
de refletir sobre as experiências que um usuário comum da internet poderá
ter. Podemos estar aptos a refletir criticamente sobre o papel da ferramenta
de busca na construção da experiência do usuário de internet, se olharmos
mais de perto para as formas como ela orienta nossa atenção para direções
particulares.
Para além das ferramentas de busca, existem também ferramentas
acessíveis de visualização como o Touchgraph,3 que mostra as geografias da
internet resultantes de padrões de links entre websites. Tal ferramenta pode
ser útil no âmbito de uma etnografia conectiva como um meio de exploração
de um espaço on-line do ponto de vista dos desenvolvedores, conectando
seus sites a outros de forma seletiva (Hine, 2007). Tais associações e visuali-
zações podem ser ferramentas muito poderosas para o etnógrafo. Mas elas
precisam ser observadas criticamente, até porque são baseadas geralmente
em um só tipo de dados, em contraste com as perspectivas multifacetadas
procuradas pelos etnógrafos.
22 Christine Hine
fornecem insights sobre conexões e respostas emocionais sutis e permitem
pensar sobre as escolhas contingentes que moldam nossas experiências da
internet como um fenômeno cotidiano e incorporado. Qualquer pesquisa
realizada on-line é de alguma forma uma pesquisa “insider”, já que devemos
utilizar as mesmas ferramentas utilizadas pelos participantes para interagir
com eles on-line.4 Trazer a dimensão autoetnográfica à tona, nos permite ti-
rar vantagem do status de insider sem simplesmente tomar a ferramenta on-
-line como dada.
Conclusão
A internet, nos dias atuais, oferece uma gama de oportunidades e desafios
para o etnógrafo. A fim de compreender a paisagem midiática que abarca o
on-line e o off-line, é muito importante que os etnógrafos de mídia se mo-
vam nesses espaços e explorem como estão conectados pelas práticas diárias
comuns de seus usuários. A etnografia da mídia está experimentando algo
como um renascimento, ocasionado pela proliferação do uso de espaços
on-line pela audiência para fins de registrar suas respostas à mídia de mas-
sa, que antes eram consumidas em espaços privados da casa e, geralmente,
inacessíveis.
Existem, entretanto, novos desafios no horizonte. Pode ser que a proli-
feração de atividades on-line disponíveis publicamente associadas ao consu-
mo de mídia seja um fenômeno efêmero. Como Lievrouw (2012) aponta, dos
primeiros dias de internet até os dias atuais, houve uma mudança na direção
de espaços privados protegidos por senhas e de domínio exclusivo. Aqui, o
etnógrafo precisa pisar com cuidado, já que os participantes que dão os de-
poimentos podem não possuir de fato seus direitos autorais e podem haver
múltiplos guardiões para se negociar a fim de garantir um acesso legítimo do
etnógrafo ao espaço.
Preocupações com privacidade têm levado os usuários para espaços
menos públicos e mais efêmeros, onde eles são menos propensos a aparecer
nas pesquisas casuais dos etnógrafos. Se nós continuarmos a contar somente
Referências
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24 Christine Hine
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Etnografia e digitalização 1
1 Agradeço o convite dos professores Carla Barros e Bruno Campanella, do PPGCOM/UFF, para
participar do seminário que deu origem a este texto.
2 Departamento de Sociologia da UFF.
3 A internet como produto de relações sociais e como espaço de produção de relações. Existem
algumas imagens anteriormente construídas para lidar como essa dupla condição de estruturado
e estruturante: as narrativas, desde a Grécia, sobre a colônia como embrião de uma nova socie
dade e a colônia como expansão da velha sociedade sobre novos espaços. A colônia como lócus da
utopia ou como ferramenta do colonialismo. Podemos enxergar aí a colônia pensada tanto como
produção de novos mundos quanto como extensão de um mundo previamente existente.
29
de modos de subjetivação e socialidade quanto é produtora de ambos. Ela é
estruturada social e culturalmente, mas também é um princípio estruturante
de sociedade e cultura. Temos aqui uma relação entre o estruturado e o es-
truturante que atravessa a internet e a relação da antropologia com ela, tanto
se olharmos do ponto de vista da cultura quanto do ponto de vista da socie-
dade. Vamos, aqui, desenvolver algumas ideias acerca de ambos os olhares,
com uma pequena ênfase sobre o segundo ponto de vista.
Para isso, comecemos pela proposição de Horst e Miller de que uma
antropologia da internet tem de começar pela constatação de que estamos
diante de uma nova materialidade, que é fruto da tradução do analógico ao
digital (Horst e Miller, 2012). Digital aqui identifica tudo o que é convertido
ao código binário e depois retraduzido em imagens, sons e palavras que cir-
culam em computadores, tablets, telefones, televisores e consoles de vídeo.
Assim, uma antropologia do digital compreende, em parte, o conjunto de
possibilidades que emergem dessa conversão ao digital e da sua retradução.
A digitalização realiza o projeto milenar de uma língua geral que per-
mita traduções e convergências entre mundos sociais, agentes e objetos.
Mas o processo de digitalização passa desapercebido porque ele é uma caixa
preta maquínica. Se pensamos em um grupo de jovens fotografando com
um smartphone um encontro em um bar, podemos observar a convergência
de diferentes agências: a) a escolha da pose, do ângulo e do momento; b)
a captura da imagem; c) a imediata transformação da imagem em bytes no
celular; d) talvez o tratamento da imagem em algum aplicativo do celular; e)
talvez o envio da imagem para um serviço de armazenamento em nuvem; f)
provavelmente a postagem da foto em uma ou mais redes sociais; g) a difu-
são da imagem segundo os princípios de organização das plataformas e da
personalização que os usuários fazem delas; h) a recepção das imagens em
timelines também segundo os princípios de organização das plataformas e
da personalização que os usuários fazem delas; e, por fim, i) a apropriação
dessa imagem em narrativas que envolvem a ação de outros agentes.
Mas o que o exame da curta trajetória social desse objeto, uma fotogra-
fia, pode nos mostrar? Em primeiro lugar, que se os momentos a e b são fruto
da agência humana, o momento c, a digitalização, é pura agência da máqui-
na. Ambas acontecem sem conexão imediata com a internet, mas são ope-
radas tendo a internet em vista. As demais ações acontecem já na internet
Etnografia e digitalização 31
palavras-chave são observação continuada, interpretação e reflexividade.
Cabe aqui, ainda, espaço para por em ação o velho e bom método compa-
rativo, desde dentro, como parte do esforço reflexivo. Em segundo lugar, re-
corro à análise situacional (Velsen, 1987) e seu esforço por escapar de uma
definição abstrata e normativa de cultura e se concentrar no modo como, em
situações sociais concretas, os agentes lidam estrategicamente com normas
e valores, frequentemente contraditórios entre si. Além disso, como o foco é
posto nas situações e não nos agentes, estes são concebidos como tendo de
se adaptar às múltiplas situações onde se encontram e o entendimento da
ação repousa sobre os imperativos da situação e não sobre qualquer subs-
tância do agente. Nesse sentido, o foco é colocado nos significados envol-
vidos na ação, nas convergências e conflitos, e não pensados como deriva-
dos de uma cultura integrada, estática e abstrata ou de um agente definido
substantivamente. Por colocar o foco na ação, a análise situacional constrói
um ponto de partida, tanto para pensarmos em termos de redes, e não de so-
ciedades tomadas igualmente como estáticas, integradas e abstratas, quanto
para vislumbrarmos o modo como as ações estão entrelaçadas em processos.
Então, acrescentamos à nossa fórmula etnográfica estes outros termos: re-
des, situação e processos. A análise situacional nos oferece ainda uma outra
orientação fortemente etnográfica, qual seja a de construir uma parcela das
peguntas analíticas no próprio processo de observação. A observação conti-
nuada nos permite enxergar progressivamente os problemas que os agentes
buscam enfrentar com suas ações. Em palavras simples, as perguntas “o que
os agentes fazem” e “por que o fazem?” são abordadas, em parte, com base
em modelos analíticos obtidos em leituras, em parte a partir das narrativas e
significados partilhados que observamos em campo.
Em resumo, as ferramentas etnográficas que dirigem o modo como
faço observação e análise na internet são: observação continuada, interpre-
tação, reflexividade, ações, redes, situações e processos. Ora, seria possível
objetar a essas ferramentas clássicas o fato de que a observação e a análise na
internet implicam o que podemos chamar de “passagem de nível”, posto que
a matéria do que é observado é nova e/ou, ao menos, bastante específica.
Contudo, como bem lembra Hine, há nessa maleta uma ferramenta preciosa,
a reflexividade, que defino provisoriamente de forma bem restrita, como a
capacidade e exigência de que o pesquisador examine seus pressupostos e
Etnografia e digitalização 33
anteriores. Elas dependem de um antes e depois e se prestam a uma leitura
diacrônica. A observação inclui conversas e, talvez, algumas entrevistas. Pa-
ralelamente, ela reconstitui o contexto da feira, seus condicionantes históri-
cos, a rede de conexões que torna a feira possível e necessária. Também, em
paralelo com a observação, surgem pistas analíticas que exigem leituras e
comparações com outras situações etnográficas. Ao cabo de algum tempo, a
fertilização cruzada de observação, contexto, comparação e teoria permite à
antropóloga enxergar padrões que, mais tarde, vão virar um texto etnográfico.
É possível um empreendimento desse tipo na internet? Vejamos algu-
mas pesquisas com que eu tive um contato de primeira mão, fazendo, diri-
gindo ou colaborando. Um etnógrafo se dedica a estudar uma comunidade
no Orkut cujo tema são brasileiros que moram em Londres. Outro estuda
algumas comunidades, também no Orkut, formadas por leitores da revis-
ta Men’s Health. Um outro, ainda, pesquisa um fórum de consumidores de
serviços sexuais. Nossos antropólogos agem de forma mais ou menos seme-
lhante. Acessam diária ou semanalmente esses espaços on-line e observam
ações. Mas aqui já temos uma diferença em relação à situação da feira, pois
todas as ações observadas são atos comunicacionais. Não é possível obser-
var esquemas corporais presentes no modo como os feirantes carregam seus
caixotes, ou como pescadores lançam e puxam suas redes. Todas as ações
observadas na internet envolvem a interlocução visada com um outro co-
nhecido ou imaginado. Essa é uma das razões pelas quais os etnógrafos que
trabalham na internet são atraídos pela riqueza das abordagens de Goff-
man sobre a apresentação do “eu” na vida cotidiana (Goffman, 1975). Pois
se deparam com ações que se desenvolvem em um contexto de interação
microssociológica que parece organizado quase que exclusivamente para a
apresentação de si ao outro. Contudo, em que pese a riqueza da abordagem
de Goffman, me parece que essa é uma perspectiva limitada. Em primeiro lu-
gar, esses atos comunicacionais se aproximam bastante da definição webe-
riana das ações sociais, isto é, ações orientadas pelo objetivo de influenciar
as ações de outros indivíduos. E sabemos que Weber concebia as ações so-
ciais como a matéria por excelência da sociologia. Assim, de uma perspectiva
weberiana, os esquemas corporais do feirante, mesmo que inconscientes, só
interessam ao sociólogo como portadores de um significado que pode ser
reconhecido publicamente. Em outras palavras, a lição que Geertz aprende
Etnografia e digitalização 35
ideologia, devo confessar, mas como o meu objetivo aqui é pensar como dis-
cussões conceituais viram princípios concretos de observação e análise, vou
deixar de lado a discussão propriamente teórica e me concentrar em mostrar
o uso dessa ideia na pesquisa.
Uma das manifestações fundamentais da agência maquínica na inter-
net repousa na organização dos sites e do modo como eles constroem um ho-
rizonte de possibilidades de ação. Nesse sentido, um perfil é uma categoria
prática e um mecanismo que oferece uma moldura às ações dos agentes. Isso
é feito por intermédio de diversas ferramentas, como os campos de inserção
de dados e os recursos de apresentação de si e de interação com outros, por
exemplo. Nesse sentido, é na articulação da agência maquínica com a agên-
cia humana que se constrói o perfil como persona goffmaniana. Cabem aqui
duas observações: a primeira tem a ver a especificidade material da internet,
isto é, aquela “passagem de nível” realizada pelo processo de digitalização.
Basicamente, ela revela que o agente que observamos on-line não é uma pes-
soa, mas sim um perfil, um avatar ou uma outra categoria prática que mate-
rializa uma persona digital e que o pesquisador deve construir por meio da
observação on-line. Essa distinção entre pessoa e persona on-line é que exige
do pesquisador construir, por meio da observação continuada, empírica e
analiticamente as relações entre a persona digital e os marcadores da pro-
dução social dos agentes off-line, como classe, gênero, raça, filiação política,
religiosa, estilo de vida, cultura nacional etc.
Contudo, para além da identificação dessas categorias práticas, é
possível discernir, também, esquemas de percepção e ação das máquinas.
Assim, o exame de comunidades do Orkut, por exemplo, nos revela que a
organização maquínica dos perfis é feita em torno das categorias conexas
de indivíduo e identidade. Tudo se passa como se essas categorias operas-
sem de forma descritiva, oferecendo mecanismos de tradução digital des-
ses atributos do humano, que são o ser indivíduo e ter identidade. Contudo,
como aprendemos com Bourdieu, por sob o descritivo se oculta o prescritivo
(Bourdieu, 2008). De modo que, de fato, a agência maquínica envolvida na
produção de perfis se inscreve num sem número de mecanismos por meio
dos quais as sociedades ocidentais se esforçam por fabricar indivíduos em
meio a uma realidade bem mais complexa. Nesses termos, o indivíduo é uma
“ilusão real”. Real por ser um mecanismo operativo no mundo social, e ilusão
4 Um exemplo desse mecanismo pode ser encontrado no trabalho de Carla Barros sobre as lan
houses. Ali, a autora testemunhou momentos em que a produção de perfis no Orkut era feita por
grupos de amigos e familiares diante de um mesmo computador (Barros, 2008).
Etnografia e digitalização 37
Antropologia na e da internet: reflexões a partir de etnografias
on-line
Em geral, esse jogo de palavras entre uma “antropologia de” e uma “antro-
pologia em” é usado para fazer o elogio da segunda abordagem, concebida
como relacional e comparativa, em detrimento da primeira, concebida como
substantiva e reificadora. Ocorre que para aqueles pesquisadores que lidam
com a internet, essa oposição é problemática, pois a internet não é apenas
um lugar onde acontecem ações. Ela mesma é parte fundamental das agên-
cias que tornam possíveis tais ações. Como dissemos no início do texto, ela
é um princípio estruturante de subjetivações e socialidades. Já vimos isso
quando falamos na agência maquínica. Daí deriva o fato de que, para além
de um enunciado geral sobre a agência dos objetos, que podemos remeter à
teoria do Ator-Rede, essa rede de computadores incorpora uma parcela da
inteligência humana e da intencionalidade dos agentes humanos em algo-
ritmos e programas de computador. Para usar termos descritivos à guisa de
metáforas, podemos dizer que, até o advento dos computadores, o modelo
suposto de agência dos objetos dizia respeito exclusivamente ao hardware;
agora, com a rede de computadores, temos que lidar com o software, isto é,
com o rudimento de inteligência em ação orientada por intencionalidade
que organiza as ações maquínicas. Nesse sentido, à já conhecida reflexivida-
de entre conhecer e agir dos seres humanos, a observação na internet acres-
centa um novo elemento: a capacidade de conhecer e agir das máquinas, o
que resulta na mudança constante dos sites e plataformas, o que, por sua
vez, significa a mudança da própria moldura das ações humanas, uma vez
que a arquitetura por meio da qual se dá a interação é construída e modifica-
da rápida e frequentemente de forma consciente pelos programadores e de
automática pelos algoritmos que selecionam o que vai aparecer na timeline
de acordo com as ações anteriores dos agentes humanos. Parece-me que a
exigência de reflexividade que o método etnográfico nos impõe, associada
a essa especificidade dos computadores como agentes maquínicos é a cha-
ve para entendermos porque quando nos propomos a fazer etnografias na
internet, somos instados também a fazer, ou ao menos a dialogar, com uma
antropologia da internet. E, como procurei mostrar, o meu trabalho etnográ-
fico se organiza em torno do esforço de articular essas duas dimensões. Mas
Etnografia e digitalização 39
interlocução política: a chamada blogosfera. Ali se procedeu ao que de mais
próximo tivemos de um debate público em torno dos temas de campanha. E
a blogosfera se desenvolveu tendo como contraponto os jornais físicos, pu-
blicados off-line. Estabeleceu-se entre esses dois media relações de oposi-
ção, complementaridade e ressonância que tiveram um papel importante na
construção e na desconstrução da reputação dos candidatos.
Ora, o fato dessa politização ter por alvo a campanha eleitoral já nos
exige observar as conexões entre o on e o off-line. No mesmo sentido, o fato
de que os blogs políticos tomavam os jornais publicados off-line como seus
interlocutores fundamentais, ainda que o contrário não fosse verdadeiro,
também exigiu do etnógrafo transitar do on ao off-line.
Tendo sido inicialmente constituídos como diários on-line, os blogs
assumiram as mais diferentes formas e finalidades com o tempo mantendo,
talvez, como seu único traço comum o de permitir a exposição de percep-
ções, ideias e tomadas de posição individuais em contraposição a discursos
que são veiculados por instituições5. Os blogs se difundiram rapidamente e se
tornaram, em termos do investimento em produzir conteúdos e em termos
de acesso e visualização por internautas, um dos fenômenos mais importan-
tes do ciberespaço. Nesse sentido, os blogs são expressão da horizontalidade
que caracteriza a organização em rede da internet e permitem a descentrali-
zação da produção de informação e opinião, alargando a esfera pública.
Em termos abstratos, seria possível opor a proliferação anárquica e
horizontal dos blogs à centralização hierárquica da imprensa de massa. De
fato, existem blogueiros sem nenhuma inserção em empresas jornalísticas
e jornalistas que não constituem blogs, assinando tão somente matérias em
jornais. Contudo, essa distinção é limitada, uma vez que os jornais off-line
foram as primeiras grandes empresas a se instalarem de forma continuada
no ciberespaço. Praticamente todos os grandes jornais e revistas possuem
versões on-line de sua produção off-line, e seus principais colunistas pos-
suem também blogs ou, ao menos, colunas eletrônicas que se aproximam
bastante do formato do blog, na medida em que possuem periodicidade
diária ou semanal e uma seção de comentários. Por isso, não é de estranhar
5 Alguns autores definem os blogs como selfmedia, indicando com essa expressão tanto o as-
pecto de uma produção que é feita a partir de esforços individuais quanto o fato do blog ser um
espaço de exposição do “eu”.
Etnografia e digitalização 41
a narrativa do kit gay na campanha à prefeitura de São Paulo, em outubro e
novembro de 2012.
O objetivo da pesquisa foi localizar, identificar e observar no campo
do ciberespaço as disputas politizadas que giram em torno da sexualidade
entre 2011 e 2013. Para tal, acompanhei a circulação de informação através
de redes sociais, blogs, Twitter, Facebook e sites do governo, de representan-
tes políticos dos setores analisados e de organizações tanto da militância
progressista, LGBT, feminista, quanto da militância religiosa e conservado-
ra, analisando sobretudo as dimensões do Estado e da sociedade civil acerca
dessas disputas.
Observei os embates simbólicos que são produto e produzem os gru-
pos que se enfrentam em torno do reconhecimento estatal de direitos se-
xuais. Assim, há um conjunto de atores organizados na sociedade civil: desde
movimentos sociais até igrejas, que realizam essa disputa no parlamento e
no Executivo. Ao mesmo tempo, é essa luta, as vitórias e derrotas das dife-
rentes agendas e o reconhecimento público dos agentes que constitui e/ou
reforça os grupos em luta. Nesse sentido, a internet é um campo social mul-
tifacetado que serve à visualização e à repercussão desses embates, além de
ser também um espaço onde tais embates se realizam por meio da dissemi-
nação das posições em luta.
O pressuposto mais geral que orientou essa pesquisa deriva do que o
Miller e Slater definem como uma abordagem propriamente antropológica
da internet, e supõe: 1) que o observador não deve definir a priori a separa-
ção ou continuidade entre on-line e off-line; 2) que o observador deve se es-
forçar por seguir as ações dos observados e descrever o modo concreto pelo
qual eles relacionam ou não os diversos espaços sociais on e off-line. Mas,
além disso, é fundamental seguir também a circulação das mensagens, daí
a importância de observar os compartilhamentos e retweets, por exemplo.
Isso foi feito a partir da observação flutuante de alguns pontos da
rede na forma de agentes e sites e, sobretudo, a partir do exame das ações de
compartilhamento.
A pesquisa teve dois objetivos que foram perseguidos simultaneamen-
te: o primeiro consistiu em examinar propriamente o modo como se dá a rela
ção de circularidade e retroalimentação entre práticas sociais desenvolvidas
em espaços sociais dentro e fora da rede. Já o segundo objetivo consistiu em
Conclusão
Para concluir de forma rápida este texto, quero chamar atenção para o fato
de a internet, como mecanismo estruturante, implicar em dois mecanismos
que impactam fortemente a etnografia. O primeiro deles é a agência maquí-
nica baseada em software, isto é, em inteligência artificial. Ela implica na
necessidade de descrever e analisar tanto as ações humanas quanto as não
Etnografia e digitalização 43
humanas em rede. Mais além, ela implica também na observação e análise
das molduras de ação e interação que são continuamente reconstruídas pela
agência maquínica. Disso resulta a necessidade de entrelaçar antropologia
na internet e antropologia da internet. O segundo elemento é o processo de
digitalização. Ele está implicado diretamente na organização das molduras
de ação e interação. Ele também oferece um mecanismo universal de con-
versão de objetos, ações e pessoas à linguagem binária e, assim, produz a
materialidade da internet, mas uma materialidade moldada por algoritmos
que são fruto da inteligência e da intencionalidade humanas e, como tal, em
constante mutação a partir de interesses econômicos, políticos e jurídicos.
Por fim, o processo de conversão que a digitalização realiza faz da internet
um imenso arquivo, no qual o pesquisador pode estudar o registro de ações
e interações, como demonstrei acerca dos julgamentos do STF. Assim, a digi-
talização articula essas três dimensões que se oferecem como possibilidade
ao pesquisador: como etnografia da, na e através da internet.
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Etnografia e digitalização 45
3
Capítulo
A globalização como desafio
para o trabalho de campo e a
produção etnográfica
47
delineando como resposta aos desafios que a globalização enseja para a prá-
tica antropológica. Gostaria de argumentar que tal reflexão pode se revelar
pertinente aos estudos que se localizam na interface dos campos da antro-
pologia e da comunicação, em especial àqueles relacionados ao consumo e à
mídia. Exemplifico essa proposta em relação às características do objeto de
estudo proposto em minha tese de doutorado e de meu problema de pesqui-
sa – o qual se preocupou em articular as dimensões do global e do local na
análise das dimensões culturais do consumo de uma tecnologia global, no
caso os telefones celulares, em um grupo de camadas populares (Silva, 2010).
O texto a seguir, nesse sentido, reflete as inquietações ocorridas na formula-
ção das estratégias metodológicas da pesquisa realizada para meu doutora-
mento. Vale ressaltar, como veremos adiante, que com a crescente circulação
transnacional dos fluxos midiáticos, decorrente da globalização cultural, o
campo dos media studies teve importante papel no sentido de trazer para
a antropologia pertinentes discussões que buscavam relativizar concepções
mais clássicas de campo. Dentre os objetos de estudo que ensejaram tais in-
quietações, Marcus (1998) cita o estudo antropológico das, na época, “novas”
formas de interação mediada por computador na comunicação eletrônica,
como a internet.
Uma reflexão sobre tais mudanças e desafios pressupõe, portanto,
apontar diferenças surgidas no trabalho de campo e na etnografia tanto em
termos de práticas metodológicas quanto de posições teóricas. Assim, na pri-
meira metade do capítulo, apoio-me primordialmente em Evans-Pritchard
(1978) e suas considerações sobre a tradição empírica do trabalho de campo
em antropologia para situar o estatuto da etnografia dita clássica, cujo maior
expoente foi Malinowski, de quem Evans-Pritchard foi aluno. Acompanho as
implicações para a etnografia do crescente desaparecimento de seu primevo
objeto de estudo: as sociedades “primitivas”, e pontuo o movimento que leva
a pesquisa antropológica para o contexto das sociedades complexas, com
atenção às dimensões metodológicas da pesquisa em antropologia urbana
no Brasil. Ao final da primeira parte do ensaio, apresento em linhas gerais os
argumentos dos antropólogos pós-modernos em torno da chamada “crise
de representação” na etnografia, bem como algumas das críticas às posições
por eles assumidas, as quais têm atualizado o debate até o presente: tanto
contra mas, principalmente, a favor da etnografia – corrente de pensamento
4 Evans-Pritchard fornece como exemplos de obras escritas com base nas respostas de ques-
tionários: Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1871), de Morgan; e
Questions on the Manners, Customs, Religion, Superstitions, etc., of the Semi-Civilized People,
de Frazer, incluído em The Golden Bough. Esse primeiro momento da produção antropológica
também é discutido por DaMatta (1984).
5 Frazer, por exemplo, quando questionado se já tinha visto algum “selvagem” de perto, costu-
mava dizer: “Deus me livre!” (Evans-Pritchard, 1978).
6 Embora seja inegável, como sabemos, o valor de Malinowski para o estabelecimento do pa-
radigma do trabalho de campo e da observação participante, através de suas pesquisas con-
duzidas em Trobriand entre 1914 e 1918, ele não foi o primeiro a buscar coletar pessoalmente
seus dados: Rivers e Hocart fizeram visitas curtas às ilhas Salomão (Rivers, 1991, original 1910) –
algumas de apenas três dias (Giobellina Brumana, 2003); Radcliffe-Brown, discípulo de Rivers,
realizou pesquisas em Andaman entre 1906 e 1908, sendo este um primeiro trabalho de campo
propriamente dito considerado precursor ao de Malinowski (Evans-Pritchard, 1978). Igualmen-
te paradigmática é a expedição ao estreito de Torres, realizada em 1898 e da qual tomaram parte
Rivers, Seligman e Haddon e a expedição de Boas ao Ártico em 1883. Para uma avaliação crítica
dessas duas últimas experiências, ver Stocking Jr. (1982). Para uma discussão específica sobre
trabalho de campo e a relação observador-observado, ver Stocking Jr. (1983).
7 Em Obras e Vidas – o antropólogo como autor, Geertz (2005), além de realizar uma reflexão so-
bre o estatuto da etnografia, examina os estilos e estratégias de construção de texto não somente
de Malinowski, mas também de Lévi-Strauss, Evans-Pritchard e Ruth Benedict. Para uma crítica
a algumas das posições assumidas por Geertz nessa obra, ver Peirano (1992).
8 Recorrer a fontes de segunda mão frequentemente resultava em incorreções: caso de McLen-
nan, que supôs, a partir de suas fontes, que, entre os povos primitivos, as instituições da família
e do casamento não existiam – erro no qual não incorreria se soubesse a língua nativa (Evans-
Pritchard, 1978). Entretanto, vale lembrar que a ausência de trabalho de campo não é sinônimo
de má teoria. Durkheim e Mauss (que escreveu seu Ensaio sobre a Dádiva a partir da etnografia
do kula feita por Malinowski), nesse sentido, são exemplos de excelentes teóricos que trabalha-
ram a partir de dados obtidos por outros pesquisadores.
9 Para uma visão mais aprofundada de Malinowski a respeito de sua própria experiência de
campo nas ilhas Trobriand, assim como do objeto e do método da antropologia, veja-se a intro-
dução, plena de discussões de ordem metodológica, de Argonautas do Pacífico Ocidental (1976).
Para uma reflexão sobre as relações entre antropologia e trabalho de campo a partir de uma
releitura do capítulo de abertura de Argonautas..., ver Giumbelli (2002).
10 Para Evans-Pritchard, o antropólogo podia considerar seu empreendimento fracassado se,
ao despedir-se do grupo estudado, “não existisse em ambas as partes uma profunda pena na
partida” (1978, p. 128). Entretanto, a premissa da simpatia pelo grupo estudado, embora regra
geral até hoje, possui exceções. Ver Peirano (1992) para a discussão de uma delas – o estudo de
Vincent Crapanzano (Waiting. The Whites of South Africa, 1985) sobre os brancos da África do Sul
na era pré-apartheid.
11 Cardoso de Oliveira (2000) problematiza a medida em que o “olhar” e o “ouvir” do antro-
pólogo são conformados pela teoria enquanto um sistema de ideias e valores. O autor, assim
como Peirano (1995), chama atenção para a necessidade de o antropólogo exercer uma contínua
reflexão sobre seu olhar e seu ouvir para que a última etapa da etnografia, o “escrever”, possa
buscar entender a outra cultura a partir de sua verdadeira interioridade. Peirano (1995) enumera
argumentos a favor da etnografia, mas contra os manuais: a etnografia deve sempre ser pensada
de maneira relacional.
12 Consciente dos problemas metodológicos por resolver na antropologia, Evans-Pritchard não
se iludia quanto à controvérsia que sua descrição do trabalho de um antropólogo poderia pro-
vocar. Aliás, ao assumir que a antropologia é mais “arte do que ciência”, causou seu rompimento
definitivo com Radcliffe-Brown, para quem a antropologia social era “uma ciência natural da
humanidade” (1975 [1940]) regida pelos métodos das ciências naturais e cujo objetivo era “des-
cobrir o caráter universal, essencial, que pertence a todas as sociedades humanas, do passado,
presente e futuro” (p. xi).
13 Para uma discussão crítica das ideias de Geertz (em especial as expostas no clássico ensaio
“Deep Play: Notes on Balinese Cockfight”, que permanece o exemplo mais citado de aplicação
do conceito de descrição densa) à luz do conceito geertziano de rapport e da importância dos
relacionamentos entre pesquisador e pesquisado para o conhecimento antropológico, veja-se
Marcus (1999). Para uma discussão sobre as dinâmicas do “ponto de vista nativo” a partir da
perspectiva de uma etnografia histórica, ver Sahlins (2006).
14 Nos Estados Unidos, a Escola de Chicago, inspirada fortemente pela obra de Georg Simmel,
é representativa dos primeiros estudos em antropologia urbana, os quais envolviam princi-
palmente imigrantes e populações pobres e marginalizadas, caso de Street Corner Society, de
William Foote-Whyte, obra seminal do campo e fruto de etnografia conduzida entre 1937 e 1940
(Foote-Whyte, 2005). No Brasil, como nos mostra Eunice Durham (1986), a tradição da antro-
pologia de estudar os grupos marginalizados urbanos inicia com Nina Rodrigues e seu interesse
pelo negro e pelo mestiço, avançando pelos chamados estudos de comunidade e das religiões
afro-brasileiras. Entretanto, a antropologia permanece, até a década de 1950, definida, em li-
nhas gerais, como uma disciplina que estuda as sociedades “primitivas”. É somente a partir dos
anos 1960 que tem início o processo de inclusão das chamadas “sociedades complexas” como
objeto de estudo legítimo da antropologia (Peirano, 1992).
16 É o estudo de Leach, Sistemas Políticos da Alta Birmânia, de 1954, sobre os kachin da Birmâ-
nia, que irá mostrar que as sociedades têm características dinâmicas – tanto em termos tem-
porais quanto, principalmente, espaciais – e que a política, desse modo, deve ser tomada como
“processo”: no caso dos kachin, a sociedade oscila entre um modelo democrático e um modelo
hierárquico.
17 Tuhami – Portrait of a Moroccan, de Crapanzano, com suas imbricações entre psicanálise e
antropologia, é um bom exemplo de escrita pós-moderna. Ver, também, a discussão de Clifford
(1986) a respeito da escrita experimental na obra de Michel Leiris, L´Afrique Fântome, original-
mente publicada em 1934, e de Giobellina Brumana (2005) a respeito do diário de campo de
Leiris e da participação deste e de Marcel Griaule na missão Dacar-Djibouti.
18 Explorar mais a fundo o debate pós-moderno e as críticas a ele dirigidas exigiria, a meu ver,
todo um outro ensaio. Para uma visão mais abrangente da polêmica, ver, entre outros críticos
e comentaristas, Geertz (2001, 2005); Eckert e Rocha (2005); Giumbelli (2002); Peirano (1995);
Sahlins (1997a; 1997b; 2006); e a introdução de Dirks, Eley e Sherry Ortner (1994) em Culture/
Power/History – a reader in contemporary social theory.
19 Embora simpático à perspectiva de uma antropologia polifônica, que aposte na polifonia e
na multivocalidade, incluindo as vozes dos atores do cenário etnográfico (Clifford, 1986), Car-
doso de Oliveira ressalva que tal proposta remete, sobretudo, “para a responsabilidade específi-
ca da voz do antropólogo, autor do discurso próprio da disciplina, que não pode ficar obscure-
cido ou substituído pelas transcrições das falas dos entrevistados” (2000, p. 30). Para Cardoso de
Oliveira, o trabalho do antropólogo envolve uma transformação na relação entre pesquisadores
e pesquisados, na qual o “informante” passa a ser um “interlocutor”. Trata-se, na proposta do
autor, de passar de um “discurso sobre” para o “diálogo com”. Em uma crítica mais irônica a
Clifford, Sahlins acredita que a “autoridade etnográfica” foi censurada de maneira prematura e
tem de ser trazida “de volta da Sibéria epistemológica para a qual foi banida” (2006, p. 12).
20 Como exemplos, Geertz aponta o que, na sua opinião, são excelentes trabalhos antropológi-
cos que têm como objeto, por exemplo, o comércio mundial de sushi, os negócios publicitários
no Sri Lanka, a televisão na Índia e estudos sobre migração e identidades transnacionais, dos
quais os dois últimos estiveram, desde o início, no centro do que tem sido chamado “antropo-
logia transnacional” ou “antropologia da ecumene global” (Hannerz, 2003), cuja preocupação
antropológica gira em torno de conceitos teóricos como os de fluxos, fronteiras e híbridos (Han-
nerz, 1997).
21 Para Gupta e Ferguson, não surpreende que haja tão pouco trabalho etnográfico sobre a mí-
dia, porque esta desafia as concepções de local. Nesse sentido, as práticas sociais e culturais
ligadas à mídia estão apenas começando a ser mapeadas na medida em que o estudo da mídia
foi, por muito tempo, tabu na antropologia (Ginsburg; Abu-Lughod e Larkin, 2002). Para os
autores, a centralidade da mídia de massa na contemporaneidade expressa uma oportunida-
de e um compromisso da antropologia em explorar sua significância analítica e prática. Nesse
sentido, vale registrar aqui o recente estudo de caráter etnográfico sobre as práticas sociais e
culturais envolvendo o uso de telefones celulares entre classes populares na Jamaica, realizado
pelos antropólogos Horst e Miller (2006).
22 Para uma problematização da naturalização do “local” na etnografia, das transformações nas
práticas espaciais e seu impacto na etnografia e no trabalho de campo, veja-se Clifford (1997).
23 Nesse sentido, vale mencionar a discussão que ocorre nos estudos de cibercultura sobre a
possibilidade de “etnografias virtuais” – na qual o pesquisador pode, por exemplo, interagir com
seus “nativos” em uma sala de bato-papo ou em uma comunidade virtual. Para uma discussão
das dimensões metodológicas da etnografia virtual, ver Hine (2000). Clifford (1997), entretanto,
assinala a ainda existente dificuldade da antropologia em aceitar como legítima essa estratégia
metodológica.
24 Vale lembrar que, embora a etnografia multissituada esteja ganhando corpo como méto-
do etnográfico na atualidade – principalmente devido à intensificação dos fluxos de circulação
da mídia e de pessoas ao redor do globo – a etnografia do kula trobriandês de Malinowski, na
medida em que seguia os indivíduos através dos circuitos de circulação de objetos, já poderia
ser considerada, também, uma etnografia multissituada (Marcus, 1998 [1995]); Hannerz, 2003).
25 Assim, pergunta-se a autora: “Seria conveniente, em nome da sacralidade das fronteiras do
campo, fechar os olhos aos títulos de jornais que anunciavam a abertura de um fast-food em
Moscou ou em outras cidades situadas fora dos limites geográficos de meu campo? [...] E o que
dizer das cascatas de anedotas que os amigos me traziam de visitas a fast-foods localizados em
outros países?” (2003, p. 73). Rial utilizou procedimentos clássicos da etnografia, como entrevis-
tas e observação participante. Utilizou também fontes documentais como jornais, literatura e
cinema, além de spots publicitários – que lhe permitiram elaborar hipóteses sobre o imaginário
social relativo aos fast-foods no Brasil e na França. Além do trabalho nesses dois países – seu
campo preferencial –, a autora realizou entrevistas com clientes e trabalhadores de fast-food em
outras cidades de países da Europa, América do Norte e América do Sul. Em termos de técnica
predominante, tanto Hannerz quanto Rial reconhecem a centralidade das entrevistas em suas
etnografias. A observação pura e simples, ou mesmo a observação participante, possuem um
papel mais limitado nas etnografias multissituadas, assinala Hannerz (2003). Para uma posição
atualizada do próprio Marcus, 10 anos após suas primeiras teorizações sobre a etnografia mul-
tissituada, ver Marcus (2005).
26 O inglês também foi utilizado largamente por Hannerz (2003) no contato com seus infor-
mantes; Rial utilizou-se do francês e também do inglês.
27 No original em inglês: “This strategic situated ethnography might be thought of as a fore-
shortened multi-sited project and should be distinguished from the single-site ethnography that
examines its local subjects´ articulations primarily as subalterns to a dominating capitalist or co-
lonial system. The strategically situated ethnography attempts to understand something broadly
about the system in ethnographic terms as much as it does its local subjects. It is only local cir-
cumstantially, thus situating itself in a context or field quite differently than does other single-site
ethnography” (Marcus, 1998, p. 95).
Introdução
No presente artigo, apresento uma reflexão acerca do consumo de bens cul-
turais e midiáticos no Brasil, a partir de pesquisas realizadas por mim desde a
década de 1980. Nele destaco as mudanças ocorridas quanto às posições e re-
lações entre produtores e consumidores, partindo do paradigma televisual da
televisão aberta estabelecido a partir de 1965 e vigente até a segunda metade
da última década do século XX, no qual as posições de produtores e consu-
midores eram estabelecidas, fixas e estáveis. A partir de 1995, com o advento
das mídias digitais, as posições fixas deixam de existir, tornando-se relativas,
híbridas e, por conseguinte, instáveis. Isso não apenas dá origem a inúmeras
controvérsias e disputas no que se refere ao entendimento das novas lógicas
de produção dos bens culturais, mas, sobretudo, no que se refere à sua cir-
culação e que acabam por alterar completamente as representações sobre a
realidade social até então vigentes e construídas pelo paradigma anterior.
1 Uma versão muito preliminar deste artigo foi apresentada no Seminário Internacional Etno
grafia e Consumo Digital: Novas Tendências e Desafios Metodológicos, organizado pelos pro-
fessores Bruno Campanella e Carla Barros do PPGCOM/UFF, no dia 3 de setembro de 2015, no
auditório de Economia do campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense. Meus sin-
ceros agradecimentos aos organizadores pelo convite para participar do seminário e, posterior-
mente, para publicar o presente artigo.
2 PPGA/UFF.
69
Se para Mary Douglas o consumo moderno nas sociedades capitalis-
tas é “o que acontece aos objetos materiais (e imateriais) quando deixam o
posto varejista e passam para as mãos dos consumidores finais” (Douglas,
2004, p. 102), podemos imaginar, junto com Igor Kopytoff (2008), que os bens
possuem biografias sociais e que, conforme os casos, elas podem ser mais ou
menos acidentadas. Isso significa dizer ainda que, de qualquer modo, o in-
tervalo destacado por Douglas pode incluir muitas variações de valor. Como
se sabe, a própria condição de “autoridade dos consumidores” teve início na
década de 1970, por ocasião dos movimentos pelos direitos civis nos EUA,
que incluiu os direitos dos consumidores como parte dos direitos de cidada-
nia. Mas seu crescimento dependeu também de outros fatores sociotécnicos
e econômicos, como a globalização e o advento das tecnologias digitais, por
meio das quais os consumidores finalmente tornaram-se também protago-
nistas no processo criativo da indústria cultural, passando a participar ati-
vamente da construção dos novos mercados: inicialmente, na condição de
usuários e consumidores das (novas) mídias sociais (digitais); em seguida,
levando para elas suas respectivas experiências como consumidores e fãs de
determinados objetos e bens culturais e midiáticos.
Diante do exposto, passo a situar brevemente as três situações de pes-
quisa que realizei, nas quais pude observar modos de produção e hábitos
relacionados ao consumo de bens culturais, midiáticos na sociedade brasi-
leira: o primeiro momento pesquisado referiu-se ao período que coincidiu
com o auge do sistema midiático liderado pela televisão, diga-se Rede Globo
de Televisão, especialmente em relação a um determinado gênero teledra-
matúrgico, a telenovela, o que equivale dizer que, nesse momento, os funda-
mentos e pressupostos desse sistema midiático encontravam-se fortemente
estabelecidos, além de pressuporem uma fronteira bem definida entre pro-
dutores e consumidores – público e telespectadores (Gomes, 1998).
O segundo momento cobre o período em que esse modelo ou para-
digma midiático entra em declínio e passa a ser substituído por outro, no
final do século XX e início do XXI, por conta do processo de fragmentação da
mídia, iniciado com o acirramento da disputa pela audiência televisual no
Brasil (TV Manchete, SBT e MTV) devido ao maior acesso à televisão pelas
classes populares, a chegada das tevês por assinatura (TVA) e, finalmente,
3 Até 1995, o acesso à internet no Brasil era praticamente restrito às universidades e empre-
sas. Em 1995 ela passa a ser de domínio público, como serviço a ser explorado por provedores
comerciais. O Alternex, rede do Ibase, pode ser considerado o primeiro provedor público do
Brasil, aquele que primeiro disponibilizou a internet no Rio de Janeiro, seguido do UOL. A esse
respeito, consultar o site https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_Internet_no_Brasil.
Último acesso em: 13 abr. 2016.
Naturalidade
Um dos fatores mais importantes relacionados à transmissão e recepção de
Roque Santeiro foi o tom ao mesmo tempo de naturalidade e realismo cons-
truído a partir do compromisso com as “estruturas de plausabilidade” e com
as “redes conversacionais” (Berger e Luckmann, 1979) legitimadas na socie-
dade brasileira, impresso do princípio ao fim, para lidar com os ingredientes
farsescos, fantásticos e sobrenaturais da narrativa. Em nenhum momento de
Roque Santeiro pareceu estranho aos telespectadores que um “fato” pudesse
ser ao mesmo tempo percebido como uma “farsa” (uma mentira) e um “mi-
lagre” (um fato verdadeiro) mesmo depois do conhecimento de todos de que
tudo, de fato, havia sido uma farsa. Essa representação da realidade como
“farsa” e “milagre” ao mesmo tempo é bastante familiar ao brasileiro e faz
parte do sistema cultural não formalizado. Está presente nos mitos, nos con-
tos populares e mesmo na literatura. Personagens como Pedro Malasartes
e Macunaíma transitam nesse espectro. Roberto DaMatta, em seus estudos
sobre o malandro (farsa) e o renunciador (sobrenatural), também destacou
ambas as possibilidades e de como uma personagem pode transitar de uma
posição para a outra.
Mas, ainda em Roque Santeiro, tivemos uma cidadezinha do interior
brasileiro – Asa Branca – catapultada à condição de “metáfora do Brasil”, tan-
to pelos produtores quanto pelos consumidores. Essa perspectiva metoní-
mica e de síntese da realidade, onde se toma a parte pelo todo é também
familiar ao brasileiro por ser uma qualidade das narrativas orais e míticas.
O mesmo ocorre em inúmeras circunstâncias com relação ao futebol e ao
carnaval, quando são tomados para representarem o Brasil, os brasileiros e
as inúmeras situações da vida social brasileira. Embora em 1985 a sociedade
brasileira já fosse, em sua maior parte, urbana e industrializada, algo que po-
deria pôr em risco a associação do Brasil (o plano nacional) com uma cidade-
zinha do interior (local) nordestino, no entanto, ela foi perfeitamente aceita
9 Referência e nome popularizado pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, autor do blog Con-
versa Afiada e do livro O quarto poder (2015).
Referências
Berger, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis:
Vozes, 1973.
Campbell, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Ja-
neiro: Rocco, 2001.
Annette N. Markham
1 Uma versão semelhante deste artigo apareceu no livro Global Dimensions of Qualitative In-
quiry (Dimensões Globais da Pesquisa Qualitativa), editado por Norman Denzin e Michael Giar-
dina (Left Coast Press, 2013).
97
Comecei a vivenciar uma compreensão polarizada e individualizada
do que estava acontecendo no mundo. “Homofilia”, um conceito que des-
creve o modo pelo qual as pessoas tendem a se congregar a indivíduos se-
melhantes, é um modo de descrever como nossas compreensões do mundo
são idiossincráticas, limitadamente canalizadas por nossas redes sociais, e,
portanto, polarizadas. Como Deuze, Banks e Speers (2012) escreveram:
98 Annette N. Markham
enfim, mas ela facilitou uma aceleração notável com relação ao desprivilégio
do conhecimento especializado, descentralizando a produção de cultura e
afastando as unidades culturais de informação de suas origens. Um modo de
pensar sobre essa produção de conhecimento é através das lentes do remix.
Apesar de o remix ter sido há muito tempo associado com os formatos musi-
cais de hip hop, agora é um termo geral relacionado aos processos e produtos
que retiram partes de materiais culturais e, por meio do processo de copiar
e colar, produzem novos significados para compartilhar com outras pessoas.
Conforme vivencio realidades sociais que foram remixadas pelas interações
que tenho com minhas redes sociais de mídia, adquiro um conhecimento
específico do mundo, remixo novamente e o distribuo para outras pessoas.
Inspirada pela minha experiência de me saturar com o modo como a
nossa compreensão do mundo é modificada em função de nosso compro-
misso com a mídia social4, tenho pensado sobre as maneiras em que o remix
é uma ferramenta poderosa para refletir sobre a prática investigativa quali-
tativa e interpretativa. A forma e a prática cultural do remix fornecem uma
lente através da qual podemos lutar corpo-a-corpo com a complexidade dos
contextos sociais caracterizados pela internet onipresente, pelos celulares
sempre conectados, pelas redes de comunicação globais, pelos fragmentos
do fluxo de informação e pelas formações da comunidade temporais e ad hoc.
Uma abordagem de remix oferece um modo diferente de pensar sobre
o que nós fazemos quando nos ocupamos com métodos específicos para dar
sentido aos fenômenos. Assumir uma abordagem de remix se inicia com as
premissas da abordagem de bricolagem (Kincheloe, 2001, 2005), e então se
transforma em um nível que podemos chamar de ‘método inferior’, no qual
nos dedicamos às práticas diárias de criação de sentido. O conceito de remix
destaca atividades que não são normalmente abordadas como parte de um
método e podem não ser notadas, tais como utilizar a boa sorte, criar inter-
pretações parciais, brincar com diferentes perspectivas, pegar emprestado
conceitos discrepantes e talvez disjuntivos, movimentar-se por múltiplas
variações, e assim por diante. Embora textos sobre métodos ofereçam des-
crições extensas de como alguém pode estruturar perguntas de investigação,
4 Também inspirado pelo trabalho de Lashua e Fox (2007), utilizando o remix como um método
de pesquisa de ação.
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 101
Gergen aborda isso como um reconhecimento inevitável, mas tardio,
do self relacional (1991). Turkle descreve-o mais em termos de fragmentação
ou uma visão de várias personalidades virtuais, cada uma com conjuntos de
atributos para se adaptar a algumas situações particulares (2011). Estudio-
sos, como Bruno Latour (2005, 2012), vão mais longe para enfatizar que, na
cultura contemporânea, precisamos ir além da noção e privilégio do indiví-
duo para melhor entender as múltiplas agências que influenciam qualquer
situação social. Na teoria Ator-Rede, o ator não está apenas inserido em re-
des, mas é “definido por sua rede...inteiramente definido pelas listas sem fim
nos bancos de dados” (Latour, Jensen, Venturini, Grauwin e Boullier, p. 3).
Dessa perspectiva, qualquer coisa que possamos chamar de indivíduo é sim-
plesmente uma constituição temporária de atributos.
Para pesquisadores sociais, isso significa que muitas técnicas que não
são levadas em conta para identificar limites situacionais discretos, indiví-
duos ou outros objetos ou para análise são muito menos úteis do que podem
ter parecido. Como notei em outro trabalho (Markham, 2013), pelo menos
quatro complicações surgem ao considerarmos os envolvimentos dos con-
textos sociais com os humanos, as tecnologias da rede 2.0 e os dispositivos
móveis inteligentes.
1. Limites das situações e identificação de contextos não são normal-
mente claros a respeito dos dramas representados em cenários e que
estão muitas vezes removidos da origem da interação.
2. Limites entre si mesmo e outros não são normalmente claros, princi-
palmente quando as informações desenvolvem uma vida social pró-
pria, além das circunstâncias imediatas de uma pessoa.
3. Agência não é uma propriedade única de entidades individuais, mas
um elemento performático temporal que surge na interação dinâmica
das pessoas com suas tecnologias de comunicação.
4. A performatividade pode ser associada não apenas aos sujeitos, mas
às ações dos dispositivos, às interfaces e às redes de informação pelas
quais dramas ocorrem e o significado é negociado.
Para lidar com os desafios de conduzir uma pesquisa qualitativa em
ambientes móveis, globais e fragmentados mediatizados e mediados, de-
vemos nos prender à tradição, com a esperança de termos uma fundamen-
tação firme? Ou continuamos tentando? Essas questões são complicadas
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 103
nós interrompêssemos mais radicalmente – ou revisitássemos interrupções
prévias de – parâmetros que ainda não são considerados para a pesquisa
qualitativa.
5 Produser e prosumer são termos que passaram a representar o colapso da distinção entre os
papéis de produtores e usuários e produtores e consumidores.
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 105
diferentes resultados. Nossas próprias ações produzem esses remixes em um
nível, mas esses remixes são influenciados por outros fatores.
De fato, o remix reforça as infraestruturas de tudo que entendemos
como parte da internet. Como Navas aponta (2010), o Google é um excelente
exemplo de um tipo bem diferente de remix, um que seletivamente nos apre-
senta com resultados baseados em um complexo (e normalmente escondi-
do) conjunto de algoritmos. As recomendações da Amazon.com, o “conteú-
do relacionado” do YouTube e os feeds do Facebook são do mesmo modo
remixados para nós, baseando-se em algoritmos registrados que funcionam
debaixo da superfície de atividade. O remix pode não ser a única lente para
se pensar sobre isso, mas ele destaca os modos que significado, contextos e
estruturas podem ser vistos como resultados temporários de interação, sur-
gindo e desaparecendo, transformando-se em algo ligeiramente novo a cada
vez que nos engajamos.
Pensar sobre a cultura digital pela lente do remix oferece significados
poderosos de resistir ao foco em sujeitos e objetos para se aproximar dos
fluxos e pontos de conexão entre diversos elementos do sistema de ecologia
da mídia, no qual significado, grupamentos e imaginários são negociados em
relação e (inter)ação (Markham e Lindgren, 2014). No nível meta, pensar so-
bre a prática das pesquisas qualitativas pela estrutura do remix oferece um
significado de reconfiguração de algumas das práticas associadas à pesqui-
sa qualitativa. Permite nos envolvermos e combatermos de modo complexo
(mais do que tentar apenas simplificar), focando-nos menos nos métodos
(como moldes para aplicar a experiências e organizá-las em categorias e es-
truturas específicas) e mais no significado derivado de um processo criativo
de investigação.
Meu uso de remix como um conceito envolve a essência da bricola-
gem, como descrito por Kincheloe (2001, 2005). Ao ampliar o conceito de bri-
colagem, o remix se foca nas práticas diárias do método estabelecido, bem
como no modo como a investigação está – ou pode estar – situada na rede
2.0, cultura de remix saturada de mídias sociais. O remix foca a nossa atenção
no modo como argumentos situados temporalmente são desenvolvidos e
desenvolvidos novamente conforme passam por vários públicos. Cada uma
dessas interpretações tem um significado e é avaliada pelo leitor/espectador/
ouvinte, mas a qualidade e credibilidade de cada uma não é predeterminada
6 Esse tipo de trabalho há muito tempo tem sido o projeto de Yvonna Lincoln e Norm Denzin
(por exemplo, 1994, 2003), Art Bochner e Carolyn Ellis (por exemplo, 2003), Laurel Richardson
(por exemplo, 1994) e muitos outros que compõem o movimento interpretativista do final do
século XX nos Estados Unidos.
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 107
Cinco elementos do método de remix
Uma porcentagem significativa de estudiosos que investigam a cultura digi-
tal, os contextos mediados pela internet ou as mídias sociais nunca haviam
utilizado a pesquisa qualitativa. Essa é uma consideração importante quan-
do nos colocamos a imaginar os modelos comuns que informam os parâ-
metros de definição de como a pesquisa qualitativa é feita. Mesmo quando
definidos como um processo não positivista, os procedimentos ainda man-
têm fundações lineares e compartimentalizadas. Inicia-se um fenômeno que
informa as questões investigativas de alguém, que, por outra vez, informa
estratégias específicas para coleta, análise e interpretação de dados. Várias
fases são descritas como momentos separados, e os achados são escritos até
o fim. Embora o processo possa ser mostrado como iterativo, as metáforas
fundamentais do trabalho não são nem um pouco inovadoras como nós,
com extenso histórico ou experiência com pesquisa qualitativa inovadora,
imaginaríamos.
Do ponto de vista de investigadores consolidados em formas positi-
vistas de investigação, entender a força da pesquisa qualitativa interpretativa
requer que voltemos à pergunta básica: o que fazemos quando nos engaja-
mos na pesquisa qualitativa?
Criar
Brincar
Mover
Tomar emprestado
Interrogar
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 109
um objetivo específico pode levar a resultados inesperados, mas também a
novas perguntas. Por exemplo, posso brincar com a análise de uma metáfora
para refletir a razão de um entrevistado descrever o Facebook como um par-
ceiro abusivo. Ou posso usar a teoria da narrativa nessa mesma transcrição
da entrevista para contar a história de como o Facebook e o entrevistado es-
tão presos em uma batalha para dominar o território do self. Posso utilizar
os reais documentos de ajuda do Facebook e as transcrições do entrevistado
para construir um diálogo, no qual o Facebook e o entrevistado discutem so-
bre o seu relacionamento e o Facebook o prende numa gaiola, ou vice-versa.
Nessa situação, a brincadeira é mais importante do que os resultados, já que
a meta aqui é tentar explorar sem limites.
A brincadeira pode, na verdade, tornar-se um ponto de virada funda-
mental para o desenho de uma pesquisa que soa melhor com contextos das
análises de fluxo ou construção que se movem com ou nesses fluxos, mais do
que abstraindo e isolando objetos arbitrariamente e artificialmente. Como
Marantz Henig (2008) aponta: “em função de sua variedade...tem algo co-
mum em brincar de todas as formas naturais: a própria variedade. A essência
de brincar é que a sequência de ações está fluida e dispersa”. Bekoff descreve
a brincadeira como um “treinamento para o inesperado... A flexibilidade e
a variabilidade comportamentais são adaptativas; nos animais, é muito im-
portante conseguir mudar o seu comportamento em um ambiente transfor-
mador” (Henig, 2008). A brincadeira também pode ser útil para encontrar
formas de representação com integridade contextual, ou para encontrar,
mais do que simplesmente aplicar, modelos conceituais que auxiliam esses
fenômenos a terem sentido.
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 111
é essencial, desse e de outros modos. Para que qualquer fenômeno tenha
sentido, tomamos empréstimos toda hora, reconhecendo ou não isso. Pega-
mos emprestadas ideias sobre estratégias de amostragem, gêneros de escrita,
ferramentas para analisar dados e assim por diante.
Como eu assumo compromissos a curto prazo em várias universida-
des, normalmente acabo sentada durante dias, semanas ou meses nos es-
critórios de outros estudiosos. Enquanto penso ou escrevo, perambulo nas
salas de cientistas de computador, tecnocientistas feministas, linguistas,
teóricos pós-fenomenológicos ou autores da teoria Ator-Rede, vejo os cargos
em suas estantes. Ao dar uma olhada em livros, vendo as artes nas paredes
e lendo artigos deixados em suas mesas, não é surpresa alguma me deparar
com conceitos, teorias e frases úteis que, de outro modo, nunca encontraria.
Por meio da sorte, faço novas conexões e encontro perspectivas alternativas.
Tudo isso amplia as minhas perspectivas, sem importar o assunto.
É claro que é meio confuso quando saio da minha disciplina de confor-
to para me dedicar a novos conceitos. Mas tudo faz bastante sentido quando
considero o alvo da minha pesquisa. A maioria dos aspectos dos fenôme-
nos relacionados à internet acontece através de várias plataformas, mídias e
dispositivos. Interações que parecem coesivas ou completas são apenas tra-
ços parciais de interações, abstraídas de experiências vividas, deslocadas no
tempo e espaço. Quando levamos em conta o modo como as pessoas usam
e se relacionam com as tecnologias de comunicação, a variação é interminá-
vel. Apropriar-se de abordagens, perspectivas e técnicas não apenas de fora
da disciplina de alguém, mas fora do meio acadêmico, parece não só natural
como também fundamental para encontrar modos criativos de enfrentar es-
ses contextos.
Mover. Tudo o que foi discutido acima, seja aplicado às atividades de remix
ou às atividades da pesquisa qualitativa, trata-se de se mover e ser movido.
A pesquisa está sempre situada, mas nunca estática. Isso é algo importante
de se lembrar, especialmente em redes globais de fluxos culturais que com-
preendem terrenos de significado em constante mudança. George Marcus
(1998) usa o termo “seguir” para descrever modos criativos de se envolver na
etnografia multissituada: siga a história, siga as pessoas, siga as metáforas.
Podemos acrescentar a isso outros modos de pensar, tais como: transformar
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 113
Ressonância como uma medida de rigor
Esses cinco elementos – brincar, criar, tomar emprestado, mover e interrogar
– resistem de forma útil ao ato de disciplinar e podem instigar mais liberdade
para inovar ao explorar contextos que desafiam a encapsulação fácil. Como
ocorre com a bricolagem ou a narrativa em camadas (Rambo Ronai, 1995), o
remix supõe que o pastiche final nunca constituirá uma figura completa ou
inteira. Mais propriamente, cada resultado é uma versão iterativa. Cada um
é um trabalho em desenvolvimento. Todos eles são possibilidades. Cada um
se constrói nos outros, informa os outros e influencia a perspectiva geral que
alguém acaba tendo no final. Esse é um processo sem fim, um processo que
convida à conversa, à colaboração e à posterior remixagem. Remixes podem
mostrar conexões entre os elementos ou apresentarem uma peça lindamen-
te coesa, como vemos nos corais virtuais de Eric Whitacre7. Ou ainda, remixes
podem ilustrar uma justaposição, disjunção ou descontinuidade. Ao invés de
tentar resolver a complexidade no projeto de pesquisa, um remix pode ilus-
trar bem claramente a complexidade irresoluta do fenômeno.
É claro que surgem questões sobre qualidade e credibilidade. Há mui-
tos modos de pensar sobre os critérios para qualidade8, mas aqui menciono
apenas um: os remixes mais bem-sucedidos são aqueles que têm longevida-
de e podem ser vistos por muitas pessoas como se possuíssem uma marca de
qualidade. Seja essa qualidade analisada de perto por estudiosos ou simples-
mente feita por membros de uma cultura, ou esteja no modo como algo é
feito ou na história contada, provavelmente tem alguma relação com quanto
o produto repercute. Um remix bem-sucedido vai além do que é considerado
apenas suficiente para algo monumental. A pesquisa criativa, ética e sensível
ao contexto faz o mesmo, se, no final, captura a atenção do leitor, faz com
que ele pense diferente ou com que ele queira se comprometer, contribuir
mais para a conversação e continuar o processo lúdico do remix.
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 115
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Raquel Recuero1
Introdução
A análise de redes sociais (ARS) tem despontado, em alguns grupos no cam-
po dos estudos de cibercultura no Brasil, como uma das abordagens úteis
para compreender insights gerados por dados empíricos, relacionais, de gru-
pos e fenômenos sociais on-line. Dentre esses trabalhos, sua popularidade
tem aumentado principalmente dentro dos estudos de mídia social (ver Re-
cuero, Bastos e Zago, 2015; Coelho, Ramos e Malini, 2015; Regattieri et al.,
2015). Apesar disso, a ARS ainda é pouco discutida em suas aplicações gerais,
bem como, em seu uso combinado com perspectivas metodológicas varia-
das e de modo particular, com perspectivas mais qualitativas (dado o caráter
primário mais quantitativo da ARS). Desse modo, neste artigo, discutimos
a combinação da análise de redes com a etnografia virtual para o estudo de
objetos decorrentes da mídia social. Nossa proposta parte de elementos da
abordagem dos métodos mistos e discutirá vantagens, desvantagens e obje-
tos, bem como as aproximações dos dois focos.
A mídia social, compreendida como aquela que é construída a partir
da apropriação das ferramentas de comunicação mediada por computador e
117
de modo especial, dos chamados sites de rede social (Boyd e Ellison, 2006), é
prolífica na geração de dados de relacionamento, conversação e conexão en-
tre os atores. Ferramentas desse tipo permitiram a publicização das redes dos
atores e suas transformações (como por exemplo, com a inclusão de diferen-
tes tipos de atores, como empresas e personagens) e também impactaram
com força o tecido social, tornando os modos de comunicação mais com-
plexos. Estudos novos, focando esses processos começaram a surgir, vários
deles abordando análise de dados e análise de redes sociais. Um dos objetos
que surgiu com maior proeminência nesse contexto é o da interseção entre
o papel da mídia social e o ativismo político (Bastos, Mercea e Charpentier,
2015; Coelho, Ramos e Malini; 2015; Regattieri et al., 2015; Recuero et. al,
2015; Bastos, Recuero e Zago, 2014, entre outros), notadamente nos eventos
de protestos ao redor do mundo e, principalmente, entre os pesquisadores
do Brasil. Mas estudos em outras áreas também podem ser encontrados, tais
como na visualização de dados (Malini et al., 2014), nos estudos de jorna-
lismo (Recuero, Bastos e Zago, 2015) e mesmo no debate metodológico de
sua combinação de métodos diferentes para atingir os objetivos da pesquisa
(Lycarlão e Santos, 2016).
O crescimento dos trabalhos que focam a análise de redes para mídia
social dá-se, primeiro, pela proeminência do objeto, cuja adoção e impacto
têm crescido nos últimos anos mas, também, pela facilidade de acesso aos
dados. O uso de crawlers (ferramentas de coletas automatizadas) para as di-
ferentes APIs2, também criou um contexto altamente favorável para esse tipo
de estudo. Ferramentas como o Facebook e o Twitter, por exemplo, geraram
milhões de trabalhos focados em seus dados a partir de diferentes perspecti-
vas (ver Adamic e Adar, 2005; Java et al., 2007 etc.), justamente por isso. Esses
mesmos motivos também apoiaram o foco qualitativo dos estudos sobre a
mídia social, em muito maior número e seu forte foco empírico nas ciências
sociais e humanas.
Ao mesmo tempo, a abordagem da etnografia virtual (Hine, 2000, 2008)
já é tradicional no Brasil entre os estudos de cibercultura, principalmente
por conta da flexibilidade do método e do seu foco subjetivo, que permitem
O argumento aqui reside no fato de que boa parte das interações hu-
manas precisa ser compreendida de um ponto de vista interpretativo, e que
a construção dessas conexões é bastante qualitativa, no sentido de que é
preciso extrair algum sentido desses dados relacionais. Assim, muitos desses
estudos “qualitativos” sejam, na verdade, mistos, ou seja, misturam as métri-
cas quantitativas, modelos propostos por algoritmos de grafos e métricas de
centralidade, eles também focam na interpretação qualitativa e contextual
das mesmas. As redes sociais (e de modo especial, aquelas on-line) são obje-
tos dinâmicos, cuja constante apropriação e reapropriação transformam seu
sentido. Por conta disso, uma abordagem qualitativa pode oferecer insights
importantes sobre o quadro que é observado a partir das métricas originadas
pela abordagem quantitativa.
3 Tradução da autora para: “Quantitative approaches map and measure networks by simplify-
ing social relations into numerical data, where ties are either absent or present. (...) Qualitative
approaches, on the other hand, enable analysts to consider issues relating to the construction, re-
production, variability and dynamics of complex social ties.”
4 Para este trabalho, optamos por nominar a abordagem como “etnografia virtual”, mesmo
diante de suas várias denominações, como “netnografia”, por compreender que se trata da mes-
ma abordagem. Mais detalhes sobre essa discussão podem ser observados em Fragoso, Recuero
e Amaral (2012).
5 Embora a ideia por trás da perspectiva trabalhe diretamente com a combinação de vários
métodos diferentes, trabalharemos aqui com a combinação de abordagens diferentes.
4.1 Objetos
Quais objetos, assim, prestam-se para uma análise que prescinda da combi-
nação entre ARS e etnografia virtual? Primeiramente, é preciso focar objetos
cujas questões de pesquisa sejam relacionais, ou seja, onde a análise da es-
trutura das conexões da rede seja relevante e onde exista um componente
cultural a ser analisado diante dessa estrutura. Essa circunstância permiti-
ria compreender, assim, aquele grupo, naquele momento, naquele espaço,
como produtor de artefatos culturais que serão explicitados pela etnografia
6 Tradução da autora para: “an approach to inquiry involving both quantitative and qualita-
tive data, integrating the two forms of data, and using philosophical assumptions and theoretical
frameworks”.
Apontamentos finais
O desenho metodológico escolhido, bem como a opção pela combinação
das abordagens precisa ser claramente explicada nos capítulos metodológi-
cos dos trabalhos. Além disso, o reconhecimento de suas forças e limitações,
diante do problema de pesquisa, também podem ser levantadas e debatidas.
De modo geral, dentre as vantagens de uso dessa perspectiva de dese-
nho de métodos mistos está primeiramente a complementariedade dos da-
dos e das análises e a possibilidade de explorar fenômenos mais complexos
do que com apenas um dos métodos. Por conta disso, a análise é enrique-
cida, uma vez que os dados qualitativos podem ser utilizados para validar
o quantitativos e vice-versa. A validação é um modo interessante de traba-
lhar essa combinação, uma vez que os dados quantitativos obtidos pela ARS
podem ser explorados em maior profundidade pela etnografia e vice-versa.
Conforme Hine (2000), o método da etnografia é bastante flexível e por isso,
bastante adaptável. Ou seja, onde a análise de redes pode ser cega, trazen-
do apenas métricas e medidas da posição dos nós na estrutura (Degenne e
Forsé, 1999), a etnografia pode trazer uma visão mais sistêmica e dinâmica
da composição desses dados (Recuero, 2009). Em termos de mídia social,
onde os dados são bastante distanciados dos grupos sociais, a combinação
desses métodos pode ser extremamente vantajosa, justamente por permitir
compreender o fenômeno em sua abordagem mais ampla.
Apesar das vantagens, entretanto, é preciso um certo cuidado para ex-
plorar essa combinação. A ARS dá à etnografia uma possibilidade de mais
abrangência e maior fundamentação em dados, ao mesmo tempo que lhe
rouba parte da subjetividade que lhe é característica. Já a etnografia, por
sua vez, complementa a ARS com uma visão contextual, mas pode tam-
bém lhe conferir um caráter subjetivo e interpretativo que pode trazer uma
certa instabilidade ao estudo quantitativo. É preciso, assim, construir esse
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133
incluir a economia, a organização política e o parentesco como dimensões
da sua constituição, porém destacando a centralidade da cultura: as repre-
sentações simbólicas constitutivas do binarismo homem-mulher, os concei-
tos normativos que permitem a interpretação de tais representações pelas
doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e, ainda, as
formas subjetivas das identidades de gênero.
Articulando esse ponto de vista com a sociologia da reprodução de
Bourdieu, entendemos a identidade feminina (pessoal e coletiva) como pro-
duto da dominação simbólica e dos lugares que a mulher ocupa nas relações
de produção, incluindo o trabalho doméstico não remunerado. Em outras
palavras, ela é produto do habitus de classe e de gênero e dos esquemas clas-
sificatórios baseados no valor moral das pessoas.
O capital simbólico2 ou o valor moral dos agentes não é legitimado so-
mente pela lógica do interesse, nem o habitus é moldado pela estrita coerên-
cia com as condições de existência (Lamont, 1994, p. 187). Por isso, é possível
que o prestígio social possa ser moldado para além do interesse econômico
e que a identidade, resultado do habitus, se constitua por empréstimos hete-
róclitos extraídos da relação com outros modelos culturais. E nossa tese é de
que a mídia é um campo para a negociação do capital simbólico e do habitus
das classes trabalhadoras.
A exploração da temática dos usos sociais das telenovelas brasileiras
do horário nobre tem uma finalidade acadêmica e política. A primeira será
explicitada ao longo dessa fala, e seu cunho político é o de compreender as
relações de poder que dão origem às desigualdades e de classe de gênero,
com vistas à sua transformação. O fato de nos basearmos em pesquisa em-
pírica3 com mulheres heterossexuais, de diferentes classes, grupos étnicos e
gerações, não significa pretensão de teorizar sobre todas as dimensões dos
2 Seguimos a discussão de Robert Moore (2008), segundo a qual habitus e capital simbólico
são conceitos equivalentes porque a formação do habitus se confunde com a aquisição de um
capital simbólico.
3 O texto é um excerto da pesquisa Aprendendo a ser mulher “de classe” com a mídia, que foi
contemplada no Edital Universal 14/2012 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq). Agradeço a contribuição dos membros do grupo de pesquisa Usos Sociais
da Mídia na categorização dos dados no software NVIVO9, especialmente à professora doutora
Sandra Depexe (vice-coordenadora), ao doutorando Gustavo Dhein e aos mestrandos Hellen
Barbiero e Otávio Chagas pela descrição dos dados empíricos.
4 Sobre as distinções entre estudos feministas e estudos de gênero, a linha demarcatória pa-
rece ser, como aponta Meirelles (2009), o alinhamento declarado à perspectiva do movimento
feminista, seja por conta própria, seja em termos de uma filiação às publicações feministas. Os
estudos de gênero, por seu turno, discutem a desigualdade entre homens e mulheres sem expli-
citar o compromisso com a luta política pela transformação das relações de gênero. No campo
da comunicação, a criação do Núcleo de Estudos da Telenovela na USP é considerada um marco
para a legitimação da telenovela como objeto de estudo (Meirelles, 2009). No campo das ciên-
cias sociais brasileiras, o reconhecimento é institucionalizado graças a espaços consolidados
de veiculação da pesquisa sobre mulher e gênero, como é o caso da Revista Estudos Feministas
e Cadernos Pagu (Grossi, 2004), que investem nos estudos de mídia somente a partir dos anos
2000. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, foram as pesquisadoras feministas que inauguraram
a subárea dos estudos culturais e de mídia, denominada television studies, para discutir a cons-
trução da feminilidade e das identidades de gênero na mídia (Meirelles, 2009).
5 Midiatização, segundo a concepção de Krotz (2014), é a modificação dos padrões de comuni-
cação humana pelo uso da mídia.
6 De acordo com Yvana Fechine (2009, p. 143), a noção de dispositivo remete aos modos de
funcionamento de um suporte técnico midiático e às suas modalidades de produção de sentido.
[...] sempre tem um vizinho que ajuda os outros, meu marido ajuda
com ferramentas quando os outros não têm, e atualmente se reuniram
todos para o asfaltamento da rua (Jiani).
Ah, recebi uma boa educação, eles eram tudo direito. Assim... sabe? Nós
era de família mesmo, de gente distinta, era pobre, mas era distinta. [...]
a minha família, meu pai e minha mãe, eram muito direitos (Zulmira,
sobre a educação que recebeu dos pais).
7 A separação ideológica entre mente e corpo, que remonta à Antiguidade clássica e ao cristia-
nismo e é retomada no sentimentalismo burguês, segundo a discussão sobre a moral do espe-
táculo, seria invertida pela cultura somática, baseada na centralidade do corpo e na moral das
sensações (Costa, 2004).
8 Muitos países desenvolvidos utilizam como referência para definir “idoso” a marca de 65
anos, ainda que a ONU considere como tal a pessoa com 60 anos ou mais.
9 Não tratamos de questões étnicas no texto, e os dados são baseados em características feno-
típicas detectadas durante a pesquisa de campo. Cinco informantes são pardas e uma é negra.
Dentre as formas de discriminação por classe, aparência física ou origem étnica relatadas, a
única que menciona caso de racismo é a informante negra.
10 Baseamo-nos na obra História da vida privada, v. 5 (2009 [1987]), escrita a partir da realidade
francesa. Apesar das diferenças entre Europa e Brasil quanto à intensidade e duração do modelo
patriarcal, os relatos das entrevistas podem ser lidos à luz da reflexão de Antoine Prost sobre as
fronteiras entre o público e privado na França (2009, p. 13-136).
Ah, não sei como vou te responder isso: casa, carro, curso. Fica tudo
difícil sem ter dinheiro (Zulmira).
Uma mulher que não tem dinheiro depende do marido, ou dos pais
(Jiani).
Ah, se ela não tem dinheiro ela não se realiza nunca, né? [pausa] O di-
nheiro não é tão importante, importante porque ela pode se realizar no
amor, na família. O dinheiro ajuda, mas também não é só ele que vai te
deixá ser feliz, né? [...] (Sara).
[...] a mulher, assim como todo ser humano, deve ser leal, honesta
(Jiani).
Mas ela tem que ser digna, tem que ter moral, ser honesta. Não ser va-
gabunda, né? Vulgar. Ela pode ter a vida dela, se ela tá gostando de um
homem, eu acho que ela queira, que faça [sexo] com amor, não por fa-
zer. Entende? Só por vulgaridade. Usam os homens, só por usar. Mas
acho que a mulher tem que ter, se ela gosta daquela pessoa, e ela quer
transar, com amor, sem problemas (Zulmira).
Se for dona de casa, ser bela igual. Digo assim, depois que fizer todo
o serviço da casa e quando o marido chegar estar pronta, com a casa
11 Série norte-americana exibida no canal HBO, cuja primeira temporada estreou em 2011.
Ah! com essa mesma do lixão. Aquela do lixão, aquela sim, aquela chega
ser do tempo antigo. Vai à batalha, abraça aquela filharada, dá amor às
crianças, ensina e tudo (Hilda).
Ah, sim! Tem aquela Rainha da Sucata! É a mesma coisa que eu! Deus o
livre, me perdoe, nunca juntei lixo, graças a Deus, né? Mas ela tem uma
força interior, dentro dela assim, que tem vontade de fazer as coisa e
de consegui as coisa e ela começo lá embaixo, né? Aquilo que eu acho
bonito, a pessoa começa lá embaixo, né? (Sara).
Ah! A Suélen é liberal. Eu achava que é, né? É a que faz o que quer. Eu
nunca achei feio assim, andar [...]. Eu não tenho corpo bonito, mas
eu acho bem legal, eu também posaria nua se tivesse um corpo, pra
ganhar dinheiro (Zulmira).
Ah! Ajuda, ajuda muito, pra nós que são humilde. Acham que as mu-
lher porque são humilde precisa andar rastejando atrás dos outros, não
precisa não! Aquelas mulher da novela, elas vê que ela era pobre, ela era
encanadora, era tudo [pausa]. Ela fazia tudo pelo direito, no fim todo
mundo dobro para o lado dela né, ela era pobre, mas trabalhava direi-
tinho né, honestamente, com a família com tudo. Eu acho que isso aí é
um ensinamento pra todo mundo né, pras pessoas (Sara).
[...] é bom para as pessoas terem uma ideia das coisas, o que vão passar,
o que é que estão passando, o sacrifício [pausa], essa questão de ser
humilhada, às vezes, para ter uma iniciativa para mudar, para se orien-
tar mais e se espelhar ali [pausa], para ver o que está certo, o que está
errado. Porque tem muita coisa que acontece na novela, mas acontece
aqui com a gente também, esse mau exemplo das mães abandonando
as crianças. Mas também tem aquela mãe lá, aquela mãezona, a Lucin-
da. Aquela sim, baita mãezona, apoia as crianças, dá lar, tudo, ajuda
as crianças, trata bem com carinho. Agora aquela outra malvada lá, eu
dispenso (Hilda).
12 Parte das conclusões aqui relatadas foi também publicada na Revista Matrizes (2016).
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1 Além de prover informações para embasar a análise e a interpretação dos dados, foi uma
maneira tanto de proporcionar uma imersão de cada equipe na realidade que seria estudada
quanto de dá-la a conhecer às demais equipes.
2 Orozco, em palestra ao PPGCOM/UFRGS (Porto Alegre, 17 set. 2009), defendeu que não se
constitui um problema metodológico e, ao contrário, expande o âmbito de análise.
157
compartilhados, além do consumo midiático e cultural revelado pelos perfis
selecionados.
A última etapa foi executada através de um questionário on-line dis-
ponibilizado para jovens de todo o país, cujas questões foram fruto dos resul-
tados obtidos nas etapas anteriores3.
Essas estratégias foram concebidas para responder ao problema que
está relacionado com a posse e/ou acesso às tecnologias digitais por parte
de jovens das cinco regiões do país. A finalidade foi saber se diferenças con-
dicionadas por acessos distintos, em contextos diversos, podem definir prá-
ticas divergentes no uso das plataformas midiáticas ou não. O objetivo geral
foi conhecer as realidades regionais brasileiras no que diz respeito ao uso e
apropriação dos recursos multimidiáticos em processo de convergência, por
parte de jovens.
3 O questionário foi discutido com as equipes estaduais durante encontro realizado em Brasília
para debater as duas primeiras etapas e planejar a terceira. Uma das decisões foi que a única
delimitação seria a faixa etária, 18 a 24 anos, critério definido pelo IBGE, embora a pesquisa
tenha trabalhado com um conceito mais amplo e complexo de juventude (Toaldo e Jacks, 2014).
4 As seis teorias, que o autor também designa como modelos, são resumidas por ele com as se-
guintes assertivas: “o consumo como o lugar de reprodução da força de trabalho e de expansão
de capital”; “como o lugar onde as classes e os grupos competem pela apropriação do produto
social”; “como lugar de diferenciação social e distinção simbólica entre os grupos”; “como siste-
ma de integração e comunicação”; “como cenário de objetivação dos desejos”; “como processo
ritual” (Canclini, 1993).
5 As perguntas fechadas foram tratadas no software SPSS (Statistical Package for the Social
Sciences), que facilitou a organização, sistematização e análise do material de cunho quantita-
tivo. As abertas foram trabalhadas no NVivo, software CAQDAS (Computer Assisted Qualitative
Data Analysis Software) que permitiu explorar a base da dados com a produção de nuvens de
palavras e árvores de significados que serão apresentadas mais adiante.
8 Apenas 8,6% declaram morar sozinhos, dos quais 6,7% em imóvel alugado. Um número me-
nor divide moradia com amigos (6,4%), maior parte pagando aluguel (5,9%). A terceira situação
é a coabitação com companheira(o), 5,6%, sendo que 2,7% vivem de aluguel. Ainda há 2,9% que
declaram morar em casa estudantil. Dos 23,5% que não residem com os pais, mais da metade
(15,3%) mora em imóvel alugado.
9 O cálculo foi feito com base no salário-mínimo de novembro de 2014 (R$ 724,00): 24% têm
rendimento mensal entre 3,5 e sete salários, seguido de 17,4% com renda entre 2,5 e 3,5. Renda
familiar entre um e 1,5 salário foi indicada por 15,3%, e entre sete e 12 salários, por 15,1% da
amostra. As rendas menos presentes estão nos dois extremos: 9,3% declaram que a família rece-
be mais de 12 e 4,4%, menos de um salário-mínimo ao mês.
10 Existe a possibilidade de os jovens terem interpretado a opção “TV on-line” com assistência
via computador, pois o número que indica uso de TV on-line é pouco expressivo em outras per-
guntas do questionário.
11 A soma excede 100% porque a questão permitia respostas múltiplas.
12 No momento em que o questionário foi aplicado, não havia a possibilidade de utilizar o
WhatsApp via web, por exemplo.
14 Os demais meios são: revista impressa (20%), jornal impresso (17,5%), televisão (11%), rádio
(4,5%) e tablet (2%).
15 Como estratégia metodológica, o questionário foi construído para explorar aspectos impor-
tantes da pesquisa de formas distintas e em mais de uma questão. Em função disso, a pergunta
que explorava uso exclusivo de meios incluía a opção de uso concomitante como resposta, da
mesma forma que o uso simultâneo também explorava a concentração.
16 Música (33%), jogos (19%) e download de aplicativos (9%) vêm na sequência.
17 No grupo sulista, os meios que recebem atenção exclusiva são distintos do panorama na-
cional: o livro também figure em primeiro, mas o segundo e terceiro são ocupados por jornal
impresso e revista impressa; o computador vem em quarto e o celular, na quinta posição.
8 Interlocução23
Contingência22
3 Performance
5 Conteúdo21
do meio20
Tipos de
1 Perfil19
tarefa24
Celular 31% 19,1% 12,0% 6,6% 8,3% 22,6%
Computador 25,6% 22,3% 14,9% 7,2% 5,1% 24,7%
Jornal impresso 31,3% 27,1% 18,2% 2,2% 1,2% 19,8%
Livros 32,5% 25,8% 18,5% 2% 0,8% 20,3%
Rádio 27% 28% 13,8% 9,1% 3,1% 18,7%
Revista impressa 31,5% 25% 19,9% 1,9% 0,4% 21,1%
Sempre uso mais de um meio 0% 0% 0% 0% 0% 0%
ao mesmo tempo
Tablet 28,1% 29,8% 19,3% 0% 6,3% 16,3%
TV 22,8% 21,7% 26,6% 7,4% 2,5% 18,7%
18 Nessa ferramenta foram criadas as nuvens de palavras com as respostas constantes no cruza-
mento do meio com a categoria indutiva para identificar termos e destaques que auxiliaram na
interpretação das questões abertas. Depois, foram eleitos alguns termos-chave dessas nuvens
para criação das árvores de significado. Essa operação permitiu explorar um banco extenso com
mais de seis mil respostas sem que fosse preciso ler, interpretar e categorizar cada uma delas.
19 Identificação das preferências, gostos ou hábitos individuais que são definidores da atenção
exclusiva a determinados meios.
20 Congregou respostas em que as características, exigências e/ou desempenho do meio deter-
minam o grau de atenção.
21 Fator que requer maior atenção, devido ao volume, interesse e/ou dificuldade.
22 Agrupa respostas cujas circunstâncias de uso/acesso são determinantes para atenção exclu-
siva; é o único meio disponível no local (trabalho, casa etc.).
23 A necessidade e/ou desejo de comunicação interpessoal demandam maior atenção e exclu-
sividade na tarefa.
24 A complexidade da tarefa condiciona o grau de atenção (a leitura, seja de livros, jornais, re-
vistas, sites ou atividades referentes a estudos é a principal tarefa a receber atenção exclusiva).
44 Tais respostas também podem figurar na categoria “performance do meio”, porque as res-
postas poderiam figurar em mais de uma categoria.
45 Ou seja, nuvem de palavras com as categorias perfil e performance do meio e árvores de
significados com os termos concentração e atenção, que se destacaram nas nuvens geradas.
Tabela 3. Meios de que não sentem a falta e motivos indicados – região Sul
Não usa/ Prefere
Meios/ categorias Substituído48 Não possui51
não gosta49 outro50
Rádio 33,40% 34,30% 21,20% 10,90%
Tablet 32,90% 26,50% 20,10% 20,30%
Jornal impresso 43,70% 22,30% 23,30% 10,60%
46 Na sequência, revista on-line (18%), televisão (14%) e jornal on-line (6%) tiveram menos
indicações. E, pelos dados, smartphone (6%), celular (3,5%), livros (2%) e internet (1%) são os
meios mais importantes no cotidiano juvenil, visto que um número muito reduzido de jovens
indicou que eles não fazem falta. Já 15% admitem precisar de todos os meios.
47 Esse material foi tratado da mesma forma que a outra questão aberta, com a produção de
nuvens de palavras e árvores de significados cruzando os dados do meio com cada categoria.
48 Nessa categoria, o meio foi abandonado em função de sua substituição. A troca é geralmente
marcada por alguma evolução em relação ao meio anterior: performance, custos, conectivida-
de, interatividade, velocidade de acesso, disponibilidade de conteúdo, redundância com outra
mídia, entre outros.
49 Casos em que o jovem possui e/ou tem acesso ao meio, mas prefere não utilizá-lo.
50 Os hábitos, rituais, práticas e preferências pessoais do jovem são determinantes para seu
consumo midiático e não a evolução/performance do meio em questão.
51 O uso/consumo do meio está condicionado à posse e/ou ao acesso.
53 A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD 2014 (2016) indica o aumento da
posse de celulares em todas as faixas investigadas (população acima de 10 anos), sendo que
nacionalmente o grupo de 20 a 24 anos é o que está à frente na posse desse dispositivo.
54 Outros dados não apresentados aqui também indicam uma baixa produção de conteúdos
na internet nesse grupo: questionados sobre a manutenção de blogs, tumblrs, sites pessoais e
canais do YouTube, 32% dizem que não possuem e, quando têm, 16% não os atualizam.
55 O grupo entre 20 e 24 anos é o que registrou maior crescimento no uso da internet (PNAD,
2016).
Introdução
Os sites de redes sociais estão hoje entranhados no cotidiano de milhares
de sujeitos, mediando processos comunicativos e afetos através de diferen-
tes suportes materiais, como smartphones, tablets e computadores. Se Hine
(2015) propõe que a internet atualmente pode ser entendida a partir de três
E’s – embodied, embedded e everyday –, isto é, que ela estaria incorporada e
inserida em nossas vidas diariamente – não raras vezes de modo síncrono
com outras formas de interação –, os sites de redes sociais podem ser um dos
melhores exemplos de ambientes que encarnam tais características.
É nesse contexto que uma série de pesquisadores têm se dedicado
a investigar os usos e apropriações que são feitos dessas plataformas pe-
los usuários, focando em aspectos tão diversos que podem envolver desde
179
a linguagem utilizada por marcas para se comunicar com seu público-alvo
(Saad Corrêa, 2009; Coutinho e Pereira, 2011), os comportamentos discur-
sivos violentos de sujeitos (Recuero, 2015), a disseminação de memes (Cha-
gas, 2015), práticas de ciberativismo (Malini e Antoun, 2013), vigilância e
privacidade (Bruno, 2013) dentre uma quase infinidade de outras questões e
temáticas3. A nós interessa pensar como os sujeitos se apropriam de tais sites
para se autoapresentarem on-line, isto é, para performatizarem discursiva-
mente seus selves através dessas plataformas.
Mais especificamente nosso recorte recai sobre sujeitos que passaram
por um final de relacionamento amoroso e como essa sua performance de si se
dá no Facebook em um momento pós-término. Após observação inicial, per-
cebemos que alguns atores sociais mudam sobremaneira os tipos de conteú-
dos que postam no Facebook, buscando, em muitos casos, demonstrar para
a figura do outro – que pode ser o(a) ex-parceiro(a) amoroso(a), seus amigos
e familiares, dentre outros – que estavam bem após o término, ou melhor,
que estavam demasiado bem, em condições ainda mais favoráveis e positivas
do que anteriormente, durante o relacionamento. Assim, discutimos em tra-
balho anterior sobre narrativas de superação em término de relacionamento
enquanto performance de si no Facebook (Polivanov e Santos, 2015).
Com isso, estamos interessadas em discutir questões relacionadas a de
que modos suas performances são alteradas (se é que o são) e de que tipos de
narrativas – ligadas ou não a um discurso de superação e/ou certo imperati-
vo da felicidade – e conteúdos irão se apropriar nesse momento, entendendo
tais conteúdos como mediadores que comunicam determinados sentimen-
tos e impressões de si que se deseja criar no outro.
Mais importante para este trabalho, contudo, do que uma discussão
sobre dados empíricos, é nossa proposta de refletir sobre como, em termos
metodológicos, podemos operacionalizar tal pesquisa4 a partir do que alguns
autores denominam de “etnografia virtual”. Nosso objetivo aqui, portanto,
3 Apontamos aqui apenas alguns dos pesquisadores brasileiros que têm trabalhado com tais
temáticas.
4 Vale destacar que discutimos neste trabalho principalmente os desafios e questões enfren-
tados na pesquisa de mestrado de Deborah Santos, que deverá ser finalizada e defendida até
março de 2017. Ou seja, trata-se de um “trabalho em progresso” (work in progress), ainda a ser
concluído.
5 Entendemos, em consonância com Amaral (2010), que, assim como outros métodos de pes-
quisa, a etnografia tem, claro, suas próprias limitações. Contudo, não iremos nos deter aqui tan-
to na ideia dos limites etnográficos, mas principalmente em seus desafios.
6 Fragoso, Recuero e Amaral (2011) elencam alguns desses termos e buscam diferenciá-los a
partir de sua contextualização histórica e apropriações por diferentes sujeitos.
7 Sá (2005) nos lembra ainda que mesmo pesquisas realizadas presencialmente são também
quase sempre mediadas por artefatos tecnológicos (tais como gravadores de áudio, câmeras de
fotografia e filmagem, entre outros), além de eventuais mediadores humanos como intérpretes.
Ou seja, o caráter de mediação estaria presente tanto na pesquisa realizada on quanto off-line.
8 Concordamos plenamente com Miller e Horst quando criticam o tom lamentoso dessa obra
de Turkle, na qual a autora defende, a nosso ver ingenuamente, que “formas primárias de socia-
bilidade eram de algum modo mais naturais ou autênticas pela virtude de serem menos media-
das” (Miller e Horst, 2013, Kindle edition).
11 Em trabalho anterior, discutimos que por vezes não importa tanto se de fato os sujeitos con-
somem os produtos, serviços, marcas que mencionam, sendo mais relevantes os valores simbó-
licos aos quais buscam se afiliar através deles, configurando uma ideia de “consumo por afilia-
ção” (Polivanov, 2015). Não obstante, há momentos em que os sujeitos são “cobrados” por outros
quanto à “veracidade” de tal consumo, ou sentem que é relevante materializá-lo para manter
sua identidade almejada. Nesses casos, importa, por exemplo, para alguns jovens mostrar que as
fotos que tiram para postar em certo site foram feitas com um aparelho da marca Apple.
12 Caso excepcional são os estudos sobre perfis de celebridades, que têm se avolumado.
13 Ainda que entendamos, como apontamos anteriormente, que tais marcadores podem não
ser tão relevantes para os sujeitos quanto outros ligados à esfera midiática e de consumo, o que
pretendemos discutir na realização da pesquisa.
14 Sucintamente, está relacionada ao processo de pesquisa no qual seus participantes indi-
cam outros potenciais participantes.
15 Resulta por vezes complicado conseguir a colaboração de ambas as partes do relaciona-
mento, tendo em conta que os casos até agora analisados constituem exemplos de ruptura
nas quais pelo menos uma das partes decidiu cortar qualquer tipo de comunicação com o(a)
ex-parceiro(a).
16 Não obstante, não é necessário que pesquisas virtualmente situadas sigam recortes geográ-
ficos, pela mesma razão. Nesse sentido, a internet permite que o foco mude do lugar para a
interação (Markham, 2005, p. 258).
17 Berto e Gonçalves vão afirmar que se pode encontrar no Facebook “em um mesmo am-
biente as características e ferramentas encontradas nos outros gêneros dessa categoria, como os
chats on-line, os e-mails, os blogs etc.”, caracterizando o site como um gênero digital emergente
marcado por intersemioses distintas (Berto e Gonçalves, 2011, p. 108).
Considerações finais
Nosso intento com este texto foi não o de apresentar soluções para proble-
mas metodológicos de pesquisas que seguem abordagens etnográficas em
sites de redes sociais, mas ao menos levantar alguns dos principais desafios
que temos enfrentado em nossa própria pesquisa e tatear algumas das for-
mas com as quais temos lidado com eles, a partir da experiência empírica e
revisão da literatura. Para tal os sistematizamos e agrupamos em cinco ei-
xos – relacionados aos graus de inserção do(a) pesquisador(a), à seleção dos
informantes, aos campos de pesquisa que oferecem os sites de redes sociais,
entre outros – que, claro, na prática se atravessam, mas podem servir, espera-
mos, como pequenos guias norteadores para outras pesquisas.
Tínhamos como preocupação não nos determos, de modo “genérico”,
somente nos desafios mais amplos dos procedimentos metodológicos etno-
gráficos que se dão em ambientes virtuais e seus limites e potencialidades, já
vastamente debatidos da bibliografia. Queríamos trazer concretamente dú-
vidas e questionamentos que nos tomam no dia a dia da pesquisa, buscan-
do chamar atenção para as especificidades do Facebook e sua complexida-
de enquanto campo de pesquisa, bem como sua relevância para os estudos
voltados para dinâmicas identitárias on-line em culturas midiatizadas e de
consumo. Esperamos, ao final da pesquisa, conseguir fugir de generalizações
sobre “o ciberespaço”, “a internet” e “a virtualidade” e, em vez disso, produ-
zir “material que vai nos permitir entender os diferentes universos de possi-
bilidades técnicas e sociais que têm se desenvolvido em torno da internet”
(Miller e Slater, 2000, Kindle edition) no Brasil e em Cuba, especialmente
no tocante às performances de si em momentos pós-términos de relaciona-
mentos. Desse modo, não trazemos efetivamente conclusões nesse texto,
mas principalmente inquietações ainda em pleno processo de digestão.
Annette Markham
Professora associada da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e pesqui-
sadora visitante do Microsoft Research Center New England. Sua pesquisa
principal concentra-se em práticas éticas em pesquisa qualitativa na inter-
net e em espaços mediados pela tecnologia. Seu livro Life online: Researching
real experience in virtual space (1998) é considerado um estudo sociológico
fundamental sobre a experiência da internet. Outros escritos relacionados
com o método podem ser encontrados em: The Sage Handbook for Quali-
tative Research (Denzin e Lincoln, 2005, 3ª edição); Qualitative Research:
Theory, Method, and Practice (Silverman, 2004); e periódicos como Qualita-
tive Inquiry, The Information Society e Journal of Information Ethics. Annette
recebeu seu PhD. pela Universidade de Purdue, EUA.
199
Bruno Campanella
Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ (2010), mestre em Comu-
nicação Transnacional e Mídia Global pelo Goldsmiths College, University of
London (2002) e professor do PPGCOM e do Departamento de Estudos Cultu-
rais e Mídia, ambos da Universidade Federal Fluminense. Ganhador em 2011
do prêmio Compós de melhor tese de doutorado, é bolsista de Produtividade
em Pesquisa do CNPQ – Nível 2, bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da
Faperj, coordenador do GT Comunicação e Sociabilidade da Compós e coorde-
nador do Núcleo de Estudos em Comunicação de Massa e Consumo (Nemacs),
grupo de pesquisa do CNPQ. Publicou o livro Os olhos do grande irmão: uma
etnografia dos fãs do Big Brother Brasil, além de artigos e capítulos abordando,
entre outras coisas, o fenômeno das celebridades; recepção e etnografia mi-
diática; televisão; cultura fã; reality shows; e humanitarismo midiático.
Carla Barros
Doutora em Administração pelo Coppead/UFRJ, especializada em Antro-
pologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e graduada em Ciências Sociais
com concentração em Antropologia Social pelo IFCS/UFRJ. Professora do
PPGCOM e do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universida-
de Federal Fluminense. Colíder do Núcleo de Estudos em Comunicacão e
Consumo (Nemacs), grupo de pesquisa do CNPq. Publicou o livro Cultura e
experiência midiática, organizado em conjunto com Everardo Rocha e Clau-
dia Pereira. Autora de diversos capítulos de livro e artigos em revistas aca-
dêmicas a respeito de antropologia do consumo e da mídia, seu principal
interesse de pesquisa. Dentro desse campo, tem realizado pesquisas sobre
cultura material em ambientes digitais; consumo e mídia no contexto de
grupos populares; recepção e etnografia midiática e consumo e hierarquia
de classes, entre outras.
Christine Hine
Professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Surrey.
Foi presidente da Associação Europeia para o Estudo da Ciência e Tecnologia
200 Os autores
de 2004 a 2008. Autora de publicações sobre metodologia de pesquisas vir-
tuais, com um foco particular na etnografia on-line, incluindo os livros Vir-
tual Ethnography e, mais recentemente, Ethnography for the Internet. Sua
pesquisa principal está centrada na sociologia da ciência e tecnologia, in-
cluindo estudos etnográficos da cultura científica, tecnologia da informação
e da internet. Também assumiu um papel de liderança na promoção da dis-
cussão de metodologias para a compreensão sociológica da internet.
Daniela Schmitz
Pós-doutoranda em Comunicação da UFRGS, bolsista PDJ-CNPq. Doutora
pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação também
da UFRGS. Mestre em Ciências da Comunicação (2007) e graduada em Pu-
blicidade e Propaganda pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003). É
membro do Núcleo de Pesquisa Comunicação e Práticas Culturais (UFRGS)
e do Comitê Científico do Colóquio de Moda. Tem interesse em pesquisa
nas áreas de recepção e cultura, moda, juventude, publicidade e identidade
feminina.
Os autores 201
Janeiro (2002) e pós-doutor pela École Normale Supérieure, seção Sciences
Sociales, em Paris (2006). Atualmente é professor adjunto do Departamento
de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e participa das pós-gra-
duações em Antropologia e Sociologia na mesma universidade. Tem pesqui-
sas ligadas a diferentes temas, incluindo trabalhos que investigam a consti-
tuição de novas sociabilidades em redes virtuais.
Nilda Jacks
Pós-doutora em Comunicação na University of Copenhagen (1999) e na Uni-
versidad Nacional de Colombia (2006). Doutora em Ciências da Comunica-
ção pela Universidade de São Paulo (1993). Tem licenciatura em Artes Plásti-
cas pela Universidade Federal de Santa Maria (1975), assim como graduação
em Comunicação Social (1978) e bacharelado em Arte Decorativa (1978) pela
mesma universidade. Cursou mestrado em Ciências da Comunicação pela
Universidade de São Paulo (1987). Atualmente é professora associada da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista de Produtividade em Pes-
quisa do CNPq – Nível 1B. Investiga os seguintes temas: teoria da recepção,
teoria da comunicação, identidade cultural, metodologia e recepção.
202 Os autores
Raquel Recuero
Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (2006), mestre em Comunicação e Informação pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul (2002), graduada em Comunicação Social
com habilitação em Jornalismo pela Universidade Católica de Pelotas (1998) e
em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (1999). Atualmente é profes-
sora e pesquisadora do curso de Comunicação Social (habilitações em Jorna-
lismo e Publicidade e Propaganda) e do Programa de Pós-Graduação em Le-
tras, com foco em Linguística Aplicada da Universidade Católica de Pelotas. É
pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRGS,
além de membro do corpo editorial de diversos periódicos. Desenvolve pes-
quisas sobre redes sociais e comunidades virtuais na internet, conversação e
fluxos de informação, data science e métodos de pesquisa para mídia social.
Publicou diversas obras, incluindo o livro Métodos de Pesquisa para Internet,
em parceria com Suely Fragoso e Adriana Amaral, A Conversação em Rede e
Análise de Rede para Mídia Social, com Marco Bastos e Gabriela Zago.
Os autores 203
Veneza Mayora Ronsini
Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (1993),
doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2000), com bolsa-
-sanduíche (Capes) na University of California (1998) e pós-doutoramento na
Nottingham Trent University (Inglaterra) como bolsa Capes. Professora no
Departamento de Ciências da Comunicação e no Programa de Pós-Gradua-
ção em Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria.
Desde 2009 integra o Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva. In-
vestiga os seguintes temas: recepção da telenovela; consumo e identidades
juvenis; usos sociais da telenovela em mídias digitais; televisão, classe social
e gênero.
204 Os autores