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etnografia &

consumo midiático
novas tendências e desafios metodológicos

Bruno Campanella
Carla Barros
organizadores

Rio de Janeiro, 2016


© Autores / E-papers Serviços Editoriais Ltda., 2016.
Todos os direitos reservados aos autores /E-papers Serviços Editoriais Ltda. É
proibida a reprodução ou transmissão desta obra, ou parte dela, por qualquer meio,
sem a prévia autorização dos editores.
Impresso no Brasil.

ISBN 978-85-7650-525-9

Revisão
Helô Castro
Projeto gráfico e diagramação
Rodrigo R. Carmo
Imagem de capa
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Sindicato Nacional dos Editores de Livros, RJ

E84
Etnografia e consumo midiático: novas tendências e desafios metodológi-
cos / organização Bruno Campanella, Carla Barros. - 1. ed. - Rio de Janeiro:
E-papers, 2016.
204 p. : il. ; 23 cm.
Inclui bibliografia
ISBN 978-85-7650-525-9
1. Etnologia - Recursos de rede de computador. 2. Etnologia - Pesquisa. I.
Campanella, Bruno. II. Barros, Carla.
16-33944 CDD: 305.80072
CDU: 316
Sumário

5 Introdução
Bruno Campanella e Carla Barros

11 Capítulo 1
Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia
Christine Hine

29 Capítulo 2
Etnografia e digitalização
Jair de Souza Ramos

47 Capítulo 3
A globalização como desafio para o trabalho de campo
e a produção etnográfica
Sandra Rúbia da Silva

69 Capítulo 4
Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos
de consumo midiático
Laura Graziela Gomes

97 Capítulo 5
Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos
das mídias digitais e sociais
Annette N. Markham
117 Capítulo 6
Métodos mistos: combinando etnografia
e análise de redes sociais em estudos de mídia social
Raquel Recuero

133 Capítulo 7
Carne e alma: ensaio sobre feminilidade,
capital simbólico e melodrama
Veneza V. Mayora Ronsini

157 Capítulo 8
Jovens brasileiros e convergência midiática:
espiando o cenário nacional
Nilda Jacks e Daniela Schmitz

179 Capítulo 9
Términos de relacionamentos e Facebook:
desafios da pesquisa etnográfica em sites de redes sociais
Beatriz Polivanov e Deborah Santos

199 Os autores
Introdução

Bruno Campanella e Carla Barros

Os estudos de audiência e de consumo midiático têm passado por grande


tensionamento nos últimos anos. Recentes transformações sociais e tecno-
lógicas criaram oportunidades e desafios na pesquisa da articulação entre
meios de comunicação e cultura. Desse modo, observa-se a reconfiguração
de diversas formas de sociabilidade e subjetivação que ganham sentido den-
tro de contextos culturais específicos. Tais mudanças são atravessadas por
novas práticas cotidianas ligadas à televisão, telefonia móvel, mídias sociais
e inúmeras outras tecnologias que tornam mais opacas as fronteiras entre
mídia e vida social.
Esta coletânea tem por objetivo lançar luz sobre essas questões, apro-
fundando o debate iniciado no Seminário Internacional Etnografia e Con-
sumo Midiático: Novas Tendências e Desafios Metodológicos, ocorrido na
Universidade Federal Fluminense (UFF) em setembro de 2015. O evento foi
resultado de uma iniciativa conjunta do Núcleo de Estudos em Comunica-
ção de Massa e Consumo (Nemacs) e do Programa de Pós-Graduação em
Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF), com apoio finan-
ceiro da Capes e do CNPq. Dando continuidade à discussão iniciada naquele
momento, este livro reúne textos de palestrantes que se apresentaram no Se-
minário e de outros autores com reconhecido interesse em discussões me-
todológicas relacionadas à pesquisa contemporânea de consumo midiático.
Busca-se, desse modo, fomentar os debates a respeito de pesquisas etno­
gráficas e de consumo na sociedade hodierna a partir de uma perspectiva
interdisciplinar, com contribuições das áreas de comunicação, antropologia
e sociologia.

5
A importância de um olhar atento na direção do consumo de mídia
deve-se à sua centralidade na vida contemporânea, envolvendo um conjun-
to de atitudes, experiências, práticas e processos sociais que merecem um
maior aprofundamento analítico. O fenômeno do consumo expresso em
diversas plataformas midiáticas pode ser compreendido como um sistema
revelador de gostos e estilos de vida (Campbell, 2006; Raisborough, 2011;
Binkley, 2014), o que mostra a ênfase moderna nas emoções e no individua-
lismo enquanto um sistema de valores (Dumont, 1972; Freire Filho, 2010).
Outros aspectos importantes também podem ser analisados nesse campo,
como a utilização do consumo para definir situações relacionadas à posição
dos agentes na sociedade, revelando assim seu forte caráter político no que
tange à manutenção de hierarquias sociais (Bourdieu, 1979).
Os desafios, possibilidades e limites dos usos do método etnográfico
na pesquisa de consumo de mídia contemporânea, por sua vez, são de várias
ordens e indicaremos aqui apenas alguns pontos que nos parecem produti-
vos para servir de abertura para as questões que serão apresentadas ao longo
deste livro.
Inicialmente, é importante destacar um aspecto relacionado à contri-
buição da pesquisa etnográfica no campo da comunicação de um modo ge-
ral. A etnografia se constituiu na disciplina antropológica como algo muito
maior do que um “método”, o que não significa, obviamente, atribuir um ca-
ráter de trivialidade às questões metodológicas. Embora não exista consenso
acerca da concepção sobre o que seja uma pesquisa etnográfica, pode-se di-
zer que a tradicional visão de Evans-Pritchard (1962) é bastante pervasiva, ao
enfatizar que todo “fato etnográfico” é em si mesmo “teórico”, graças à sua ca-
pacidade de questionar pressupostos até então vigentes. Tal posicionamento
revela uma ênfase na “empiria”, não como um contraponto à “teoria”, mas
sim enquanto possibilidade de construir conhecimento a partir de contextos
culturais cuidadosamente especificados. Essa “vocação para a empiria” que
carrega a pesquisa etnográfica vai de encontro às análises generalizantes e
abstratas que pressupõem – nem sempre de um modo explícito – condições
de caráter universalizantes a questões como processos de subjetivação e so-
ciabilidade na sociedade hipermediatizada.
A realização de etnografias no contexto das “novas mídias” acabou por
revelar diferentes perspectivas sobre o que seja a relação entre os mundos

6 Introdução
on-line e off-line. Uma série de denominações surgiram nesse campo de
estudos para dar conta das novas configurações midiáticas, entre as quais
virtual ethnography (Hine, 2000), ethnography for the internet (Hine, 2015);
eth­nography on the internet (Beaulieu, 2004), digital ethnography (Murthy,
2008), internet ethnography (Sade-Beck, 2004, Boyd, 2008); netnography
(­Kozinets, 2010), cyberethnography (Robinson e Schulz, 2009), ethnography
of virtual spaces (Burrel, 2009) e internet-related ethnography (Postill e
Pink, 2012).
Conforme observou Androutsopoulos (2008), em uma “primeira
onda” dos estudos de comunicação mediada por novas tecnologias, o foco
residia nos aspectos que se supunham específicos de uma realidade emer-
gente. Nessa abordagem inicial, os dados apresentados não eram relaciona-
dos a contextos socioculturais particulares, partindo-se do pressuposto de
que o universo on-line seria apartado do off-line (Rheingold, 1994; Turkle,
1997). Propunha-se, assim, a criação de um termo específico para a etnogra-
fia realizada nesse “novo mundo”, frequentemente percebido como carente
de “autenticidade”.
Vale ressaltar que a própria história das práticas na internet deve ser
observada como um dos elementos que contribuíram para a constituição
dessa dicotomia entre o on-line e o off-line. Em um primeiro momento, o
imaginário da internet estava bastante voltado para a possibilidade de se
criar um “novo eu” virtual desvinculado do “verdadeiro” self cotidiano, per-
cepção que foi perdendo força, relativamente, com a expansão das redes so-
ciais e a ênfase na exposição de si.
Um posicionamento importante contra essa perspectiva dicotômica
surgiu no estudo de Miller e Slater (2000) realizado em cibercafés de Trinidad
e Tobago, onde os autores argumentaram que a separação entre o on-line e
o off-line não deveria ser tomada como um ponto de partida de pesquisa,
nem analítico nem metodológico. Em vez de tomar essa divisão como dada,
a realização de estudos etnográficos permitiria observar o forte aspecto con-
tingencial das práticas sociais relacionadas à internet, em seus diversos mo-
dos de articulação com o contexto off-line. Assim, Miller e Slater assinalam a
necessidade de se manter as características do conhecimento antropológico
no estudo das novas mídias, ou seja, de se conceber a etnografia como uma
possibilidade de imersão profunda em contextos culturais específicos, em

Introdução 7
busca da lógica interna dos agentes. Na abordagem etnográfica, o fato social
não é percebido como isolado, mas sim articulado com outras esferas da vida
que se relacionam e ganham sentido dentro de um todo que as precede. A
internet abarca práticas sociais tão múltiplas e diversas que torna problemá-
tica qualquer enunciação acerca do que a internet “seja”, como um meio que
leve a determinados comportamentos. As “novas mídias”, portanto, entram
na vida de sujeitos específicos, que se orientam a partir de códigos culturais
particulares que criam práticas diversas a serem analisadas.
Um outro aspecto a ser destacado no confronto entre essas diferentes
perspectivas é que não se compartilha a mesma concepção do que seja a
pesquisa realizada no âmbito da internet. Enquanto que para alguns auto-
res a etnografia aparece como uma conjunção de técnicas específicas – pri-
mordialmente, a observação participante com a entrevista em profundida-
de – para outros ela não pode ser reduzida a um conjunto de técnicas, pois
sua importância reside no fato de ela ser propriamente uma abordagem. A
proposição de polissemia nas mensagens midiáticas encontrada nos estu-
dos de recepção, especificamente, facilitou uma maior adesão às pesquisas
de abordagem etnográfica. No entanto, nem todas as pesquisas autointitu-
ladas como de “recepção” atendiam aos princípios da etnografia, como a
imersão prolongada em campo e a compreensão do contexto sociocultural
mais amplo no qual as práticas midiáticas estavam inseridas. Em um pri-
meiro momento, os estudos de recepção televisiva, por exemplo, utilizavam
grupos focais com o intuito de estabelecer uma relação entre a interpretação
da audiência e o seu contexto socioeconômico (Morley, 1992). Com o passar
dos anos, contudo, estudos qualitativos de consumo de TV também começa-
ram a incorporar abordagens etnográficas (Silverstone et al., 1991), com o
objetivo de articular “o sempre-em-mutação caleidoscópio da vida cotidiana
e como as mídias estão integradas e implicadas dentro dele” (Radway, 1988,
p. 366). Mesmo assim, a imersão prolongada em campo permanece como
questão, uma vez que o consumo de televisão, assim como de outras mídias,
ocorre em espaços cada vez mais multissituados (Marcus, 1995).
Os textos apresentados na presente coletânea são atravessados por
reflexões acerca dessa crescente complexificação das práticas de consumo
midiático, assim como das formas de estudá-lo que tomam como ponto de
partida as abordagens etnográficas. Alguns autores tratam dessas questões

8 Introdução
por meio de discussões teóricas sobre os desafios apresentados por mídias
específicas, como a internet ou a televisão, enquanto outros trazem análises
de estudos particulares de caso. Com o objetivo de enriquecer ainda mais
o debate, a coletânea também traz propostas de abordagens metodológicas
alternativas capazes de complementar a etnografia. Em suma, o livro bus-
ca lançar luz sobre os desafios, oportunidades e dificuldades da abordagem
etnográfica na pesquisa dos meios de comunicação, em especial a internet.
Por fim, gostaríamos de agradecer àqueles que participaram decisiva-
mente no desenvolvimento do Seminário e na concretização deste livro. De
imediato, agradecemos ao professor Marco Roxo, coordenador do PPGCOM/
UFF, pelo apoio institucional. Aos alunos Carlos Coelho Filho, Erica Ribeiro,
Joana D´arc de Nantes, Melissa Ribeiro, Milena Pereira, e Vinícius Azevedo
pelo apoio na realização do seminário. A Melina Santos e Patrícia Matos, res-
pectivamente, pela disponibilidade para a elaboração da versão em portu-
guês e revisão do texto da professora Christine Hine.

Referências
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ethnography. Language@Internet, 5, art. 9, 2008. Disponível em: http://www.langua-
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Introdução 9
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TURKLE, Sheryl. Life on the screen: identity in the age of the Internet. Londres: Wei-
denfeld and Nicolson, 1997.

10 Introdução
1
Capítulo
Estratégias para etnografia
da internet em estudos de
mídia

Christine Hine1

Introdução
As tecnologias digitais transformaram a paisagem midiática de variadas ma-
neiras. Na medida em que a internet se tornou uma tecnologia mainstream
em muitas partes do mundo, as pessoas se tornaram capazes de influenciar
umas às outras de novas maneiras, formando grupos sociais que se diferem
significativamente daqueles criados através da interação face a face e das in-
terações sociais distanciadas mediadas pela mídia de massa.
As instituições de mídia de massa se transformaram, desenvolvendo
novos produtos e alcançando audiências através de novos formatos e, uma
vez que as tecnologias digitais se popularizaram, novos modelos de negócios
visando o lucro emergiram. As tecnologias móveis, por sua vez, modifica-
ram as formas como nós experimentamos os espaços públicos e privados,
permitindo incorporar as comunicações pela internet a novos domínios de
interação social.
As mídias sociais proporcionam desafios e oportunidades para as con-
venções estabelecidas, transformando nossas experiências de identidade,
interação e fronteiras sociais. O aumento massivo das formas de sociabili-
dade que são refletidas on-line e, por sua vez, permeadas em espaços mais
amplos da vida social ofusca as fronteiras entre on-line e off-line.

1  Departamento de Sociologia, Universidade de Surrey, Inglaterra. E-mail: c.hine@surrey.ac.uk.

11
As tecnologias digitais se tornam cada vez mais uma parte intrínse-
ca das vidas cotidianas em vez de uma esfera separada de existência social.
Todas essas mudanças motivam os estudos etnográficos: nós precisamos sa-
ber em detalhes que tipos de mudanças estão ocorrendo nas instituições e
organizações, no engajamento das pessoas com a mídia nesta era digital, e
quais efeitos em termos de nossas culturas e nossas comunidades, quer seja
on-line, off-line ou, como é o caso mais frequente, complexos híbridos do
on-line com o off-line. Por mais que demandem atenção etnográfica, essas
transformações radicais também criam alguns desafios para a prática etno-
gráfica nos estudos de mídia, inspirando o desenvolvimento de novas estra-
tégias que permitem nosso engajamento com a paisagem midiática alterada.
Este capítulo explora algumas estratégias frutíferas para conduzir estudos
etnográficos da mídia na era digital.
Nos estudos de mídia, a etnografia tem se posicionado na linha de
frente dos esforços para compreender o impacto da mídia na vida das pes-
soas. A força da etnografia para os estudos de mídia reside em seu foco no
que acontece no campo, no contexto, no momento em que a mídia é produ-
zida e consumida. A etnografia da mídia pode nos ajudar a evitar uma abor-
dagem demasiadamente centrada na mídia em si (Pink e Leder Mackley,
2013; Krajina et al., 2014), observando o contexto mais amplo de como essa
mídia ganha significado.
O etnógrafo age, não julgando a priori o significado inerente da mídia
ou como as pessoas deveriam usá-la. Em vez disso, procura alcançar um pro-
fundo engajamento com os detalhes confusos contidos naquilo que as pes-
soas realmente fazem com a mídia na prática. A etnografia, portanto, pode
nos proporcionar um insight em um sentido mais profundo do significado
da mídia, explorando não somente o que um texto específico significa, mas,
qual o significado da mídia como um componente da vida cotidiana em um
sentido mais amplo, uma vez que ela é socialmente, culturalmente e tecno-
logicamente permeada.
Os interesses do etnógrafo frequentemente vão além de momentos de
engajamento entre pessoas pré-selecionadas individualmente e textos mi-
diáticos específicos, visto que o consumo da mídia é inerentemente social
e que o contexto pode tomar muitas formas: para o etnógrafo, o significado
reside não no texto propriamente dito, mas em uma gama de relações sociais

12 Christine Hine
que antecedem e, ao mesmo tempo, resultam daqueles momentos de en-
gajamento com o texto. Um estudo etnográfico frequentemente tem longa
duração e é de caráter exploratório, onde somente através da realização da
pesquisa o etnógrafo será capaz de identificar os temas e questões centrais
para a investigação mais profunda.
Nas pesquisas de mídia, algumas contribuições significativas têm sido
feitas para nossa compreensão das audiências através da pesquisa etno-
gráfica no espaço on-line. Um dos primeiros estudos de comunidades on-
-line focava em um grupo de fãs de uma novela: o estudo pioneiro de Nancy
Baym (1995, 2000) explorou um espaço on-line como uma comunidade de
audiência, uma comunidade on-line e uma comunidade de práticas. Com
sua imersão nesse espaço on-line, Baym foi capaz de explorar a produção de
sentido coletiva em torno das novelas e ver como, através das práticas dos
participantes, os fãs constituíram o fórum on-line como um espaço social
muito distinto.
Fandom e fórum podem ser ditos como mutuamente essenciais. Es-
tudos sobre as dimensões on-line do fandom, como os trabalhos influentes
realizados por Jenkins (2006), posteriormente nos ensinaram muito sobre as
práticas da audiência,2 explorando o engajamento ativo da audiência com as
mídias de massa e com o conjunto de atividades criativas e produtivas que
são estimuladas pelos objetos do fandom.
O Twitter também emergiu recentemente como um espaço para for-
mas criativas de fandom (Highfield et al. 2013). Cada plataforma, seja ela
fórum de discussão, Twitter, blog ou Facebook, traz diferentes modos e as-
pectos de fandom e é ao mesmo tempo formada e moldada pelas práticas do
consumo midiático.
Para além do foco nas formas intensivas de engajamento midiático que
constituem o fandom, os estudos de mídia têm sido amplamente estimula-
dos pela proliferação de rastros do consumo midiático nos espaços on-line.

2  No texto original, Hine utiliza o termo audiencehood. Para fins de interpretação, utilizamos
o termo audiência. Contudo, nos estudos de Comunicação, audiencehood seria a atenção – es-
pecial – dada pelo público a determinado evento veiculado pelos meios de comunicação, como
concertos ao vivo, resultados eleitorais, crises mundiais etc. Essa versão de audiencehood envol-
ve um cruzamento com a internet, a qual serve para construir uma rede de contatos em resposta
ao conteúdo da mídia de massa. Ver mais em McQuail, 1983.

Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia 13


Esses rastros on-line oferecem o potencial de observar – de novas maneiras
– o que as pessoas fazem com a mídia de massa. Enquanto os estudos sobre
fandom on-line podem ter inicialmente aberto o caminho, os fenômenos de
interesse não se limitam às formas intensivas de fandom que proliferaram no
interior de fóruns dedicados.
A própria audiência em si mesma se transformou com o advento das
tecnologias digitais (Livingstone, 2004) e a rede de possíveis campos de in-
teresse para os pesquisadores de Estudos de Mídia se multiplicou. A internet
oferece um espaço interativo e produtivo, rico em comentários passageiros
sobre a mídia. Essa característica nos permite observar uma gama de refe-
rências casuais referentes aos conteúdos midiáticos que caracterizam muito
do nosso envolvimento diário com a mídia, em contraste com formas inten-
sivas de fandom (Hine, 2011). Nessas condições, a internet oferece novos es-
paços para formas de estudos de mídia que exploram as atividades de não fãs
e olham para uma gama diversa de maneiras pelas quais a mídia é criativa-
mente incorporada no dia a dia.
Os estudos on-line, assim, têm sido uma adição valiosa e, de fato,
­indispensável, para o repertório dos estudos de mídia. É muito fácil, entre-
tanto, limitar nossa atenção às atividades on-line que deixam traços visíveis
de audiência. Fazer isso nos deixa potencialmente incapazes de explorar, em
uma profundidade etnográfica apropriada, fenômenos como a experiên-
cia diária da segunda tela, isto é, como um usuário se move entre as mídias
­sociais e o produto da mídia de massa em uma tela maior.
Se focarmos somente nas atividades observáveis nos espaços on-line,
perderemos de vista a contínua recirculação do conteúdo on-line na medida
em que este é apropriado pela mídia de massa e pelos usuários individuais,
e incorporado na vida diária. Focar somente nas atividades evidentes nos
espaços on-line também impede uma avaliação de seus significados para
a maioria dos que são consumidores mais do que produtores de conteúdo
on-line.
Existe uma divisão da produção digital (Schradie, 2011) e os estudos
de mídia correm o risco de se tornar demasiadamente focados em um gru-
po demograficamente restrito ao se basear somente no estudo daqueles que
participam ativamente nos espaços on-line. Corremos o risco, em resumo,
de desenvolver uma perspectiva sobre a internet muito centrada na internet.

14 Christine Hine
É importante executar outras formas de estudo além daquelas realizadas so-
mente on-line, a fim de considerar as conexões on-line/off-line e a circulação
de conteúdos de formas imprevisíveis.
Quando realizamos pesquisa etnográfica focada em um único espaço
on-line, muitas das convenções etnográficas existentes para um estudo ba-
seado em pesquisa de campo são transferidas de forma relativamente fácil.
De fato, encontramos alguns desafios em relação a identidade e autentici-
dade e alguns dilemas éticos singulares (como discutido, entre outros, por
Garcia et al., 2009; Steinmetz, 2012), mas os princípios etnográficos de en-
gajamento próximo com os participantes dentro de um campo específico
continuam bastante identificáveis. Se, no entanto, queremos explorar esse
campo maior de conexões, algumas estratégias diferentes estão disponíveis.
Em um livro recente (Hine, 2014), descrevo alguns traços da internet contem-
porânea que são particularmente desafiadores para o etnógrafo e destaco
algumas estratégias produtivas para engajamento com essa internet.
Na próxima seção, descreverei as qualidades pertinentes da internet
nos dias atuais para, então, prosseguir com a discussão sobre três tipos de
­estratégias que ajudam um etnógrafo a lidar com essas qualidades: aborda-
gens móveis, multilocalizadas e conectivas ao campo; mapeamento, visuali-
zação e associação; e uso dos insights autoetnográficos a fim de maximizar a
compreensão da internet como um fenômeno sensorial. A conclusão, então,
olha adiante para alguns dos desafios no horizonte, já que a internet conti-
nua a se desenvolver e se diversificar.

Internet incorporada, corporificada, cotidiana


A internet atual percorreu um longo caminho desde o ciberespaço dos anos
1990. Enquanto nos anos anteriores era mais fácil contemplar a existência da
internet como um espaço distinto, separado de outros aspectos da vida co-
tidiana, nossa relação com a internet, atualmente, é muito menos esotérica.
Nós encaramos a internet como um componente do dia a dia, não
falamos mais em “ficar on-line” como se fosse uma viagem para um local
distante, mas, ao invés disso, usamos a internet de uma forma despercebi-
da para fazer nossas atividades diárias, fazer fofocas, comprar objetos, en-
contrar amigos e para nos entreter. Os dispositivos móveis encorajam essa

Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia 15


incorporação, à medida que mais e mais pessoas possuem acesso a essas in-
terações mediadas digitalmente, durante todo o dia e em movimento.
Em vez de uma internet composta por um conjunto de espaços on-line
separados, nós temos uma “rede confusa de interconexões” (Postill e Pink,
2012) conectando espaços on-line e off-line de formas complexas e impre-
visíveis. Nós raramente experimentamos a internet como um “ciberespaço”
transcendental, mas, ao invés disso, a incorporamos em múltiplas estruturas
de construção de significado. Nosso uso da internet faz sentindo em contex-
tualizações muito particulares fornecidas pelos lares, instituições, locais de
trabalho, escolas, redes de amizade e de parentesco. O uso da internet torna-
-se significativo para nossas compreensões da identidade e responsabilida-
de, e transformador de nossas estruturas de recompensa, confiança e reco-
nhecimento. Qualquer fragmento individual dos dados derivados da internet
é, por isso, passível de ser interpretado de uma série de formas, dependendo
dos contextos em que se incorpora e adquire significado.
Parece lógico, portanto, que as estruturas específicas de construção de
significado que um etnógrafo deve buscar são, ao mesmo tempo, arbitrárias e
extremamente importantes, o que torna muito difícil falar do “campo” como
um objeto preexistente e delimitado. Ao invés disso, o campo é construído
através de nossa escolha de explorar linhas particulares de investigação em
vez de outras linhas possíveis.
A internet também pode ser compreendida como um fenômeno cor-
porificado. “Ficar on-line” não é uma forma distinta de experiência, mas
ocorre paralelamente a outras formas materializadas de ser e de atuar no
mundo e as complementa. Uma experiência on-line pode produzir uma res-
posta emocional em nós tanto quanto qualquer outra forma de experiência:
nossos corpos não distinguem necessariamente uma experiência on-line de
uma off-line a priori, de modo que seria problemático para um etnógrafo
fazê-lo. Esse aspecto sensorial da experiência da internet oferece uma for-
te base lógica para a pesquisa etnográfica participante. Mais do que manter
uma posição distanciada de observação simplesmente coletando dados de
ambientes virtuais, um etnógrafo normalmente deseja se envolver, partici-
pando das atividades e interagindo com os participantes. Esse engajamento
ativo permite que o etnógrafo desenvolva insights e teste teorias em desen-
volvimento através da interação. Isso também nutre o desenvolvimento de

16 Christine Hine
uma compreensão corporificada dessa forma de existência, através da refle-
xão dos prazeres e das frustrações das experiências on-line.
Um terceiro aspecto fundamental da internet nos dias de hoje é sua
cotidianidade. A internet e as variadas plataformas que a compõem têm sido
tratadas como algo dado, aspectos comuns da vida cotidiana em contextos
diversos. Para um etnógrafo interessado em explorar certos aspectos dos
usos da internet, isso pode criar um desafio metodológico significativo, na
medida em que as pessoas simplesmente não falam sobre a internet, mas
somente a usam nas atividades diárias em que estão engajadas.
Podemos ser capazes de observar as atividades on-line daquelas pes-
soas que ativamente contribuem em um fórum, mas temos um desafio mui-
to maior em nossas mãos se desejarmos trabalhar com o que essa atividade
on-line significaria em suas vidas diárias, ou daqueles que leem esses fóruns
sem contribuir ativamente com eles. Para um etnógrafo, essas práticas inter-
pretativas diárias podem ser evasivas. Assim que pedimos para as pessoas
falarem sobre uma dessas infraestruturas diárias, nós as colocamos artificial-
mente em primeiro plano e introduzimos uma nova gama de dinâmicas a
essa situação. O “silêncio do social” (Hirschauer, 2006) é um problema per-
manente para o etnógrafo, o qual sempre tenta colocar em palavras o que as
outras pessoas sabem, mas não falam. Novamente, a participação do etnó-
grafo é central aqui. Ser ativo no ambiente permite que o etnógrafo apren-
da com a imersão e o questionamento criterioso que encoraja as pessoas a
refletirem, em voz alta, sobre suas experiências. Isso sem esperar que eles
estejam aptos a construir respostas completas sobre a importância dessas
infraestruturas em suas vidas.
A internet, na atualidade, é um fenômeno incorporado, corporifica-
do e cotidiano. Isso apresenta desafios metodológicos significativos para um
etnógrafo que deseja descobrir o significado de determinado aspecto da in-
ternet para um grupo específico de pessoas. Podemos começar com um foco
particular ou uma questão intrigante em mente, mas a imprevisibilidade e
caráter escorregadio dessa internet incorporada, corporificada e cotidiana
torna muito difícil resolver onde ir para encontrar as respostas e como tra-
zer questões interessantes à luz. Nas seções seguintes, explorarei algumas
estratégias etnográficas que respondem aos desafios da internet contempo-
rânea e que, particularmente, se distanciam do estudo de espaços on-line

Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia 17


individuais e se aproximam de uma exploração espacialmente mais comple-
xa de uma internet incorporada.

Multilocalizada, móvel e conectiva


Se os Estudos de Mídia, de maneira generalizada, estão discutindo o valor da
abordagem centralizada na mídia, então seria estranho focar somente nas
abordagens centralizadas na internet para compreendê-la. Devemos esperar
que nossos estudos se espalhem para além da internet, explorando como as
atividades on-line passam a existir e adquirem significado em esferas da vida
social mais amplas e imprevisíveis.
Isso envolve ter a mente aberta sobre que tipos de conexões seguir, e es-
colher se aprofundar em pontos selecionados para as práticas que permitem
que um fragmento on-line específico faça sentido. Estudos etnográficos espa-
cialmente complexos têm uma longa história. Bem antes da influente explo-
ração de Marcus (1995) sobre os vários modos de etnografia multilocalizadas,
os etnógrafos têm buscado linhas de investigação que extrapolavam campos
delimitados e específicos. Mesmo um estudo focado em uma comunidade
específica localizada geograficamente, um etnógrafo geralmente poderia es-
perar estar alerta às conexões significativas que ligavam a comunidade às ou-
tras e engajar-se com o tráfego de entrada e saída do ambiente. Um etnógrafo
estaria interessado nas formas como as pessoas, dentro de sua principal área
de foco, interagiam com e se definiam em relação aos seus pares.
Como discutido anteriormente, o advento da internet ofereceu a
oportunidade para grupos sociais não orientados geograficamente desen-
volverem-se em uma nova escala (Jones, 1995). Enquanto algumas respostas
etnográficas focaram-se nos aspectos de delimitação, coerência e comuni-
tários dos espaços on-line, outros acharam melhor adotar uma abordagem
multilocalizada a fim de produzir estudos que se focam na internet, mas
que exploram conexões para além dos espaços on-line específicos. Garcia
e colaboradores (2009) argumentam que poucas questões podem, de fato,
ser abordadas satisfatoriamente por meio de estudos de espaços virtuais
de forma isolada. Já Hallett e Barber (2013) apontam que poucos estudos da
vida contemporânea podem se dar ao luxo de ignorar a internet, mesmo que

18 Christine Hine
a internet não seja o foco central do estudo. Modelos multimodais e espa-
cialmente complexos de pesquisa etnográfica estão consequentemente na
moda.
Baseado nesse modelo, o campo em si será sempre uma construção
arbitrária (Candea, 2007). Quando aceitamos que o campo não é algo pre­
existente, mas é construído a partir de uma rede complexa e contingente de
interconexões possíveis entre diferentes localidades, e estendida em diversas
mídias e formas de interação, estamos problematizando a noção de um estu-
do etnográfico holístico (Cook et al., 2009).
Se o campo é compreendido como uma construção do processo etno­
gráfico, podemos esperar que o etnógrafo aceite a responsabilidade por
construir um estudo que se encaixe em um conjunto particular de interesses
estratégicos. Respondendo a esse desafio, um corpus excitante de estudos
etno­gráficos, multilocalizados e multimodais, de aspectos da internet está
se construindo, incluindo focos diversos como movimentos sociais (Farino-
si e Treré, 2011; Postil e Pink, 2012), pôquer (Farnsworth e Austrin, 2010),
cibercafés em Gana (Burrel, 2009) e tricô (Orton-Johnson, 2012). Modelos
de pesquisa semelhantes têm muito a oferecer aos estudos de mídia, nos
permitindo perseguir algumas das questões mais desafiadoras sobre em que
medida as formas variadas de resposta do público e as interações que estão
acontecendo on-line modificam fundamentalmente noções de audiência e
afetam o papel da mídia na experiência da vida diária.

Mapeando, visualizando e associando


Enquanto a internet é desafiadora para etnógrafos devido a sua complexi-
dade espacial, e é ainda mais imprevisível e complexa em sua incorporação
em variados contextos de interpretação e uso, ela também pode ser difícil
de lidar devido à enorme quantidade de atividade em curso. Um etnógrafo
pode achar a internet simplesmente avassaladora devido à quantidade de
dados potenciais que se apresentam, em comparação com os cenários face
a face mais tradicionais onde cada fragmento de dados é conquistado dura-
mente com a formação de relações de longa duração e construção de laços
de confiança.

Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia 19


As sensibilidades etnográficas têm encontrado dificuldades para se
adaptar a essas novas condições de abundância de dados. Uma resposta tem
sido confinar os estudos em uma localidade e período de tempo específicos,
o que permite um foco restrito para manter o projeto etnográfico dentro da
capacidade interpretativa individual do etnógrafo. Uma resposta alternativa
se afasta do foco em pequena escala do engajamento qualitativo detalhado e
se adapta às condições de abundância através das abordagens de processa-
mento em massa de big data.
Entretanto, como boyd e Crawford (2012) argumentam, um afastamen-
to das abordagens criticamente focadas e qualitativas geram algumas perdas
significativas na habilidade de questionar padrões e criticar pressupostos.
Por essa razão, um número crescente de estratégias para lidar com os desa-
fios da complexidade da internet e sua abundância de dados buscam combi-
nar os benefícios tanto das abordagens de big data em larga escala quanto de
insights qualitativos em menor escala, através de uma variedade de métodos
combinados (Hesse-Biber e Griffin, 2013; Hine, 2015).
Embora possa parecer contraintuitivo sugerir que os etnógrafos pos-
sam usar as técnicas de big data, de fato, etnógrafos têm frequentemente
usado técnicas quantitativas para explorar aspectos essenciais do campo
(Maxwell, 2010). Uma visualização ou mapeamento de atividades on-line
pode ser muito útil no direcionamento da atenção do etnógrafo para locais
de interesse, utilizando técnicas de associação para realizar a “topografia
de campo” antes de decidir no que focar em profundidade (Howard, 2002;
Dirksen et al., 2010). Essas versões da etnografia em rede (Howard, 2002)
ou etnografia conectiva (Dirksen et al., 2010) envolvem a análise do etnó-
grafo em um número de subcampos em profundidade, e usam a visualiza-
ção em alto nível para compreender as conexões entre os subcampos e suas
características.
As ferramentas usadas para visualizar o terreno podem ser softwares
desenvolvidos especialmente para atender aos interesses das ciências so-
ciais, como o Issue Browser (Rogers e Marres, 2000). Entretanto, também é
igualmente possível usar algumas das ferramentas que já estão disponíveis
para o usuário comum da internet para visualizar o terreno. Mesmo o me-
canismo de busca pode ser visto sob esse aspecto. É sabido que os mecanis-
mos de busca não produzem um mapeamento neutro de um terreno, mas

20 Christine Hine
priorizam seletivamente a atenção para sites que o algoritmo considera mais
dignos de nossa atenção. Algoritmos patenteados indicam que não sabere-
mos como a ferramenta de busca elenca as prioridades. E a lista prévia de
resultados de nossos interesses, via cookies, significa que diferentes usuários
podem ver listas diferentes de resultados.
Todos esses fatores parecem descartar o mecanismo de busca para
o uso de um pesquisador sério. Porém, um etnógrafo pode querer conti-
nuar a usá-lo, baseando-se na ideia de que a ferramenta de busca é quase
um aspecto inevitável do uso da internet e ao usá-la podemos ser capazes
de refletir sobre as experiências que um usuário comum da internet poderá
ter. Podemos estar aptos a refletir criticamente sobre o papel da ferramenta
de busca na construção da experiência do usuário de internet, se olharmos
mais de perto para as formas como ela orienta nossa atenção para direções
particulares.
Para além das ferramentas de busca, existem também ferramentas
acessíveis de visualização como o Touchgraph,3 que mostra as geografias da
internet resultantes de padrões de links entre websites. Tal ferramenta pode
ser útil no âmbito de uma etnografia conectiva como um meio de exploração
de um espaço on-line do ponto de vista dos desenvolvedores, conectando
seus sites a outros de forma seletiva (Hine, 2007). Tais associações e visuali-
zações podem ser ferramentas muito poderosas para o etnógrafo. Mas elas
precisam ser observadas criticamente, até porque são baseadas geralmente
em um só tipo de dados, em contraste com as perspectivas multifacetadas
procuradas pelos etnógrafos.

Percebendo, sentindo e refletindo


A partir do reconhecimento da complexidade das conexões on-line/off-line e
da natureza imprevisível das conexões que um etnógrafo em particular pode
escolher seguir, é importante ser reflexivo em tal território. Onde o campo é
construído a partir de escolhas feitas pelo etnógrafo mais do que concebido
como um domínio preestabelecido e delimitado, o pesquisador precisa refle-
tir sobre os impactos de suas escolhas nos resultados de seu estudo. Quando

3  Mais informações em www.touchgraph.com.

Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia 21


escolhemos nos mover em uma direção e não em outra, nos aprofundando
em um foco de interesse para descobrir mais sobre as práticas de constru-
ção de significado que o rodeiam, julgamos prioridades que precisam estar
claras.
Como discutido na seção anterior, nós também precisamos refletir
sobre o papel dos mecanismos de busca e ferramentas de visualização e as-
sociação nas pesquisas que fazemos. As escolhas de dispositivos também
podem ser altamente significativas para um etnógrafo da internet: se nós
acessamos o mundo on-line através de um tablet, um celular ou um com-
putador faz uma grande diferença na forma como experimentamos aquele
mundo. A experiência da internet é, sob diversos aspectos, muito individual.
Assim, o etnógrafo está condenado a produzir uma perspectiva muito
individualizada do mundo on-line. Não podemos reivindicar que tenhamos
a mesma experiência que qualquer outro usuário, já que cada um terá uma
experiência única. Podemos, contudo, refletir sobre a experiência de ser um
usuário e tirar vantagem da nossa imersão no campo para refletir sobre o
que contém e o que possibilita seus movimentos particulares e suas formas
de compreensão.
Ao nos esforçarmos para compreender o significado de um comen-
tário específico em um fórum on-line, é importante refletir até que ponto
esse seria um problema de interpretação que muitos usuários podem estar
vivenciando. Na medida em que uma ferramenta de busca nos leva em uma
direção em particular ou um anúncio ao lado da tela chama nossa atenção, o
mundo on-line se revela para um etnógrafo, como faria para outros usuários,
e a dimensão reflexiva da etnografia se torna especialmente significativa.
Uma reflexão crítica sobre as formas de agenciamento empregadas na for-
mação da experiência de campo, à medida que nos sentimos orientados para
certas direções ou envolvidos em caminhos específicos, vem a ser um corre-
tivo útil para qualquer tendência residual que tenhamos para tratar o campo
como se simplesmente o tivéssemos encontrado e descrito como ele era.
Uma etnografia da internet não centralizada na própria internet pode
proveitosamente adotar uma abordagem reflexiva ou até mesmo auto­
etnográfica (Reed-Danahay, 1997; Ellis et al., 2010), usando a imersão do
­etnógrafo no campo para desenvolver insights acerca dos aspectos senso-
riais daquele campo para os participantes. As reflexões autoetnográficas

22 Christine Hine
fornecem insights sobre conexões e respostas emocionais sutis e permitem
pensar sobre as escolhas contingentes que moldam nossas experiências da
internet como um fenômeno cotidiano e incorporado. Qualquer pesquisa
realizada on-line é de alguma forma uma pesquisa “insider”, já que devemos
utilizar as mesmas ferramentas utilizadas pelos participantes para interagir
com eles on-line.4 Trazer a dimensão autoetnográfica à tona, nos permite ti-
rar vantagem do status de insider sem simplesmente tomar a ferramenta on-
-line como dada.

Conclusão
A internet, nos dias atuais, oferece uma gama de oportunidades e desafios
para o etnógrafo. A fim de compreender a paisagem midiática que abarca o
on-line e o off-line, é muito importante que os etnógrafos de mídia se mo-
vam nesses espaços e explorem como estão conectados pelas práticas diárias
comuns de seus usuários. A etnografia da mídia está experimentando algo
como um renascimento, ocasionado pela proliferação do uso de espaços
on-line pela audiência para fins de registrar suas respostas à mídia de mas-
sa, que antes eram consumidas em espaços privados da casa e, geralmente,
inacessíveis.
Existem, entretanto, novos desafios no horizonte. Pode ser que a proli-
feração de atividades on-line disponíveis publicamente associadas ao consu-
mo de mídia seja um fenômeno efêmero. Como Lievrouw (2012) aponta, dos
primeiros dias de internet até os dias atuais, houve uma mudança na direção
de espaços privados protegidos por senhas e de domínio exclusivo. Aqui, o
etnógrafo precisa pisar com cuidado, já que os participantes que dão os de-
poimentos podem não possuir de fato seus direitos autorais e podem haver
múltiplos guardiões para se negociar a fim de garantir um acesso legítimo do
etnógrafo ao espaço.
Preocupações com privacidade têm levado os usuários para espaços
menos públicos e mais efêmeros, onde eles são menos propensos a aparecer
nas pesquisas casuais dos etnógrafos. Se nós continuarmos a contar somente

4 Pesquisador-insider, segundo Paul Hodkinson (2002), designa o grau de proximidade inicial


entre o pesquisador e o grupo social participante da pesquisa (N.T.).

Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia 23


com os materiais disponíveis publicamente na internet para nossa etnogra-
fia da mídia, corremos o risco de distorcer nossos estudos artificialmente na
direção de espaços e tipos de pessoas específicos. Fazer etnografia no âm-
bito de uma internet restrita não será impossível, mas envolverá um esfor-
ço maior na obtenção de dados, construindo e desenvolvendo relações de
confiança com os participantes-chave a partir de práticas reminiscentes das
etnografias dos tempos pré-internet.
Se esse futuro de uma internet mais restrita representa um desafio
etno­gráfico, também há oportunidades no horizonte. Explorar o que a inter-
net significa para as pessoas, no dia a dia, exige uma construção de confiança
de longa duração que permita a observação de atividades on-line paralela-
mente às atividades off-line. Podemos observar o que acontece no Twitter
muito mais facilmente do que nos sentar ao lado da pessoa que está criando
o tweet, em seu sofá, e compreender de uma forma profunda como aquele
tweet faz sentido para ela.
Enfrentar esse problema da internet incorporada depende, ao menos
em parte, de técnicas etnográficas reconhecíveis de engajamento e imersão.
Elas podem também, com o tempo, se beneficiar de algumas soluções tecno-
lógicas dedicadas. Recrutar participantes no rastreamento de suas próprias
atividades on-line e gravar, em tempo real, suas reflexões tornou-se cada vez
mais possível através de dispositivos móveis e pode ser um complemento
muito útil (embora nunca um substituto) para as variadas formas de co-
presença e imersão praticadas pelo etnógrafo. Novas formas de etnografia
realizadas tecnologicamente irão inevitavelmente continuar a emergir mas,
espero, continuarão em diálogo com os princípios estabelecidos do etnógra-
fo como uma forma de produção de conhecimento aprofundada, imersiva e
criticamente engajada.

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24 Christine Hine
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Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia 25


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26 Christine Hine
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Referências extras
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MCQUAIL, Denis. McQuail’s Mass Communication Theory. Los Angeles: Sage, 1983.

Estratégias para etnografia da internet em estudos de mídia 27


2
Capítulo

Etnografia e digitalização 1

Jair de Souza Ramos2

Introdução – Digitalização, tradução e convergência


Quando tomamos o ciberespaço como objeto de investigação, é interessante
ter em mente um encontro célebre entre comunicação e antropologia. Trata-
-se da ideia, defendida por Levi-Strauss, de que a comunicação simbólica é
o elemento diferencial das sociedades humanas frente às demais sociedades
animais (Levi-Strauss, 1991). E talvez a demonstração mais cabal do acerto
dessa ideia é a própria existência da internet, um espaço inteiramente for-
mado através da comunicação simbólica. Nesse sentido, a internet é mais
uma demonstração de que a linguagem, além de produto, é produtora de
simbolismo, relações e espaços sociais. Christine Hine apontou a relação du-
pla da internet com a cultura: como produto da cultura e como produtora da
cultura (Hine, 2000). Podemos analisar a internet pelo mesmo ângulo, com
outro conceito, o de sociedade.3 Nesses termos, a internet é tanto produto

1  Agradeço o convite dos professores Carla Barros e Bruno Campanella, do PPGCOM/UFF, para
participar do seminário que deu origem a este texto.
2  Departamento de Sociologia da UFF.
3  A internet como produto de relações sociais e como espaço de produção de relações. Existem
algumas imagens anteriormente construídas para lidar como essa dupla condição de estruturado
e estruturante: as narrativas, desde a Grécia, sobre a colônia como embrião de uma nova socie­
dade e a colônia como expansão da velha sociedade sobre novos espaços. A colônia como lócus da
utopia ou como ferramenta do colonialismo. Podemos enxergar aí a colônia pensada tanto como
produção de novos mundos quanto como extensão de um mundo previamente existente.

29
de modos de subjetivação e socialidade quanto é produtora de ambos. Ela é
estruturada social e culturalmente, mas também é um princípio estruturante
de sociedade e cultura. Temos aqui uma relação entre o estruturado e o es-
truturante que atravessa a internet e a relação da antropologia com ela, tanto
se olharmos do ponto de vista da cultura quanto do ponto de vista da socie-
dade. Vamos, aqui, desenvolver algumas ideias acerca de ambos os olhares,
com uma pequena ênfase sobre o segundo ponto de vista.
Para isso, comecemos pela proposição de Horst e Miller de que uma
antropologia da internet tem de começar pela constatação de que estamos
diante de uma nova materialidade, que é fruto da tradução do analógico ao
digital (Horst e Miller, 2012). Digital aqui identifica tudo o que é convertido
ao código binário e depois retraduzido em imagens, sons e palavras que cir-
culam em computadores, tablets, telefones, televisores e consoles de vídeo.
Assim, uma antropologia do digital compreende, em parte, o conjunto de
possibilidades que emergem dessa conversão ao digital e da sua retradução.
A digitalização realiza o projeto milenar de uma língua geral que per-
mita traduções e convergências entre mundos sociais, agentes e objetos.
Mas o processo de digitalização passa desapercebido porque ele é uma caixa
preta maquínica. Se pensamos em um grupo de jovens fotografando com
um smartphone um encontro em um bar, podemos observar a convergência
de diferentes agências: a) a escolha da pose, do ângulo e do momento; b)
a captura da imagem; c) a imediata transformação da imagem em bytes no
celular; d) talvez o tratamento da imagem em algum aplicativo do celular; e)
talvez o envio da imagem para um serviço de armazenamento em nuvem; f)
provavelmente a postagem da foto em uma ou mais redes sociais; g) a difu-
são da imagem segundo os princípios de organização das plataformas e da
personalização que os usuários fazem delas; h) a recepção das imagens em
timelines também segundo os princípios de organização das plataformas e
da personalização que os usuários fazem delas; e, por fim, i) a apropriação
dessa imagem em narrativas que envolvem a ação de outros agentes.
Mas o que o exame da curta trajetória social desse objeto, uma fotogra-
fia, pode nos mostrar? Em primeiro lugar, que se os momentos a e b são fruto
da agência humana, o momento c, a digitalização, é pura agência da máqui-
na. Ambas acontecem sem conexão imediata com a internet, mas são ope-
radas tendo a internet em vista. As demais ações acontecem já na internet

30 Jair de Souza Ramos


e são fruto da articulação de agências maquínicas e humanas. Em segun-
do lugar, podemos dizer também que a digitalização é o passo fundamen-
tal que permite que essas agências convirjam, a cada momento da trajetória
social de foto, ainda que outras agências maquínicas se sobreponham a ela,
especialmente os algoritmos de tratamento, de difusão e de apresentação
da imagem. Em terceiro lugar, que os mecanismos de funcionamento dessa
agência maquínica são uma caixa-preta, invisíveis à maior parte dos agentes
humanos, uma vez que obedecem a um código-fonte escrito em diferentes
linguagens de máquina, ainda que os resultados de sua ação sejam mais ou
menos visíveis. Nesse sentido, expressões tais como: “o Facebook proíbe”,
“o Instagram mudou”, “o Google faz”, “o Twitter permite” não são figuras de
linguagem. São a tradução, na percepção dos agentes humanos, da agência
dessas máquinas, não por meio da visibilidade dos códigos-fonte, mas a par-
tir da experiência de seus efeitos sobre o mundo.
O tema da agência dos objetos tem sido colocado em primeiro plano
a partir, sobretudo, do impacto dos estudos em cultura material e da teo-
ria do Ator-Rede, e as considerações acima são tributárias dessas contribui-
ções teóricas (Latour, 2000 e 2012; Law, 1995). Contudo, meu objetivo aqui
não é repetir essas importantes discussões teóricas, e sim tentar dar conta do
modo como elas podem orientar a observação e a análise, o que é a motiva-
ção básica do etnógrafo.

Etnografia em meios digitais: a observação continuada das ações


A palavra etnografia é polissêmica e tem uma larga história na antropologia.
Ela pode significar muitas coisas, muitas delas legítimas. Então, o que cabe
ao etnógrafo é menos dar a palavra final sobre o seu significado do que dizer,
tão claramente quanto possível, de que modo ele a está usando.
Nesse sentido, recorro a uma combinação de definições clássicas. Em
primeiro lugar, àquela da “descrição densa” de Geertz, que eu leio como o es-
forço por observar, descrever e, sobretudo, interpretar a conexão entre ações
e significados coletivamente compartilhados por um conjunto de agentes,
situando, reflexivamente, o próprio etnógrafo, sua observação e interpreta-
ção, e o modo como sua cultura de origem estrutura ambas nessa rede de
ações e significados a serem estudados (Geertz, 1978). Nesse sentido, as

Etnografia e digitalização 31
palavras-chave são observação continuada, interpretação e reflexividade.
Cabe aqui, ainda, espaço para por em ação o velho e bom método compa-
rativo, desde dentro, como parte do esforço reflexivo. Em segundo lugar, re-
corro à análise situacional (Velsen, 1987) e seu esforço por escapar de uma
definição abstrata e normativa de cultura e se concentrar no modo como, em
situações sociais concretas, os agentes lidam estrategicamente com normas
e valores, frequentemente contraditórios entre si. Além disso, como o foco é
posto nas situações e não nos agentes, estes são concebidos como tendo de
se adaptar às múltiplas situações onde se encontram e o entendimento da
ação repousa sobre os imperativos da situação e não sobre qualquer subs-
tância do agente. Nesse sentido, o foco é colocado nos significados envol-
vidos na ação, nas convergências e conflitos, e não pensados como deriva-
dos de uma cultura integrada, estática e abstrata ou de um agente definido
substantivamente. Por colocar o foco na ação, a análise situacional constrói
um ponto de partida, tanto para pensarmos em termos de redes, e não de so-
ciedades tomadas igualmente como estáticas, integradas e abstratas, quanto
para vislumbrarmos o modo como as ações estão entrelaçadas em processos.
Então, acrescentamos à nossa fórmula etnográfica estes outros termos: re-
des, situação e processos. A análise situacional nos oferece ainda uma outra
orientação fortemente etnográfica, qual seja a de construir uma parcela das
peguntas analíticas no próprio processo de observação. A observação conti-
nuada nos permite enxergar progressivamente os problemas que os agentes
buscam enfrentar com suas ações. Em palavras simples, as perguntas “o que
os agentes fazem” e “por que o fazem?” são abordadas, em parte, com base
em modelos analíticos obtidos em leituras, em parte a partir das narrativas e
significados partilhados que observamos em campo.
Em resumo, as ferramentas etnográficas que dirigem o modo como
faço observação e análise na internet são: observação continuada, interpre-
tação, reflexividade, ações, redes, situações e processos. Ora, seria possível
objetar a essas ferramentas clássicas o fato de que a observação e a análise na
internet implicam o que podemos chamar de “passagem de nível”, posto que
a matéria do que é observado é nova e/ou, ao menos, bastante específica.
Contudo, como bem lembra Hine, há nessa maleta uma ferramenta preciosa,
a reflexividade, que defino provisoriamente de forma bem restrita, como a
capacidade e exigência de que o pesquisador examine seus pressupostos e

32 Jair de Souza Ramos


seus recursos conceituais e metodológicos frente às especificidades da situa-
ção que se quer observar e analisar, de forma a adequar seus meios à situação
estudada.
Mais atrás, examinamos umas dessas especificidades: a passagem
ao digital. De um lado, ela se inscreve numa continuidade histórica muito
longa, que é a da busca pela construção de linguagens universais, que vou
enumerar rapidamente. Mas antes, cabe uma advertência: o mito da torre
de Babel fala de uma língua universal a qual os homens perderam acesso e
da promessa de que a restauração dessa língua serviria à eliminação das di-
ferenças entre os homens. Bem, todos os esforços na produção dessa língua
demonstram que as diferenças e as desigualdades não são eliminadas por
esse caminho. Ao contrário, são reconfiguradas. Feita essa ressalva, vejamos
esses esforços. O Império Romano generalizou o latim, seu código civil e, tar-
diamente, o cristianismo. A Igreja católica levou adiante a obra romana na
Idade Média e, durante séculos, o cristianismo, seus rituais, seus saberes e
seu latim foram os princípios que produziam uma moldura de transações e
conexões na Europa. Paralelamente, temos o desenvolvimento milenar da
matemática, que foi saudada no século XVII como a linguagem universal
capaz de traduzir e intercambiar toda a matéria do mundo. Por fim, como
nos mostram Marx e Simmel, a generalização do dinheiro e do modo de pro-
dução de mercadorias levou mais longe esse processo por meio do qual a
diversidade empírica se torna intercambiável por meio de sua tradução em
códigos abstratos. O passo mais recente dessa longa história é exatamente a
conversão de coisas e pessoas ao digital. A internet, tornada possível graças
ao processo de digitalização, é a mais recente das molduras universais de
transações e conexões que envolvem pessoas e objetos.
Por outro lado, a materialidade do digital produz especificidades
­importantes que produzem impactos sobre nossas ferramentas de análise e
observação. Passo agora, a examinar a relação entre digitalização e observa-
ção continuada da ação.
Comecemos com o exemplo de uma antropóloga que se dedica a fazer
a etnografia de uma feira popular. Ao longo de meses, ela se dirige à feira e
observa ações físicas e verbais que se desenrolam ao longo do tempo. Uma
parcela dessas ações se repete e parece apta a ser apreendida em uma pers-
pectiva sincrônica. Outra parcela aparece como desdobramento de ações

Etnografia e digitalização 33
anteriores. Elas dependem de um antes e depois e se prestam a uma leitura
diacrônica. A observação inclui conversas e, talvez, algumas entrevistas. Pa-
ralelamente, ela reconstitui o contexto da feira, seus condicionantes históri-
cos, a rede de conexões que torna a feira possível e necessária. Também, em
paralelo com a observação, surgem pistas analíticas que exigem leituras e
comparações com outras situações etnográficas. Ao cabo de algum tempo, a
fertilização cruzada de observação, contexto, comparação e teoria permite à
antropóloga enxergar padrões que, mais tarde, vão virar um texto etnográfico.
É possível um empreendimento desse tipo na internet? Vejamos algu-
mas pesquisas com que eu tive um contato de primeira mão, fazendo, diri-
gindo ou colaborando. Um etnógrafo se dedica a estudar uma comunidade
no Orkut cujo tema são brasileiros que moram em Londres. Outro estuda
algumas comunidades, também no Orkut, formadas por leitores da revis-
ta Men’s Health. Um outro, ainda, pesquisa um fórum de consumidores de
serviços sexuais. Nossos antropólogos agem de forma mais ou menos seme-
lhante. Acessam diária ou semanalmente esses espaços on-line e observam
ações. Mas aqui já temos uma diferença em relação à situação da feira, pois
todas as ações observadas são atos comunicacionais. Não é possível obser-
var esquemas corporais presentes no modo como os feirantes carregam seus
caixotes, ou como pescadores lançam e puxam suas redes. Todas as ações
obser­vadas na internet envolvem a interlocução visada com um outro co-
nhecido ou imaginado. Essa é uma das razões pelas quais os etnógrafos que
trabalham na internet são atraídos pela riqueza das abordagens de Goff-
man sobre a apresentação do “eu” na vida cotidiana (Goffman, 1975). Pois
se deparam com ações que se desenvolvem em um contexto de interação
microssociológica que parece organizado quase que exclusivamente para a
apresentação de si ao outro. Contudo, em que pese a riqueza da abordagem
de Goffman, me parece que essa é uma perspectiva limitada. Em primeiro lu-
gar, esses atos comunicacionais se aproximam bastante da definição webe-
riana das ações sociais, isto é, ações orientadas pelo objetivo de influenciar
as ações de outros indivíduos. E sabemos que Weber concebia as ações so-
ciais como a matéria por excelência da sociologia. Assim, de uma perspectiva
weberiana, os esquemas corporais do feirante, mesmo que inconscientes, só
interessam ao sociólogo como portadores de um significado que pode ser
reconhecido publicamente. Em outras palavras, a lição que Geertz aprende

34 Jair de Souza Ramos


com Weber e coloca em jogo na definição de descrição densa é que atos co-
municacionais são ações sociais e vice-versa. Outro problema do centro de
gravidade exercido por Goffman é a crença de que essas ações podem ser
resumidas à apresentação do eu. Trata-se aqui da crença de que tudo que as
pessoas fazem on-line diz respeito à expressão e construção de identidades.
Ora, o exame das ações em fóruns e comunidades do Orkut revela agentes
envolvidos em disputas, controvérsias e imputações que se relacionam não
apenas ao eu, mas também ao outro, e, sobretudo, a objetos, marcas, com-
portamentos, grupos, partidos etc. Que são qualificados positivamente e ne-
gativamente nesses embates. E a noção de conflito nos mostra, também, que
essas ações não são realizadas de forma inteiramente consciente e coerente.
Ao contrário, as ações revelam esquemas mentais muitas vezes inarticulados
ao nível da consciência e que são contraditórios entre si. Por fim, a observa-
ção revela ainda uma grande circulação de informações sobre o que fazer e
como fazer em relação aos temas que organizam esses espaços sociais.
E para retomar nosso ponto, é exatamente a observação continuada
que permite, progressivamente, identificar em espaços de interação na inter-
net as trajetórias de ação dos agentes humanos e não humanos e, assim, os
debates, os conflitos e a produção de identificações positivas e negativas que
são construídas e constroem a situação social estudada.
Outro elemento fundamental que emerge da observação continuada
das ações comunicacionais em espaços sociais na internet, que desenvolve-
rei a partir de agora, diz respeito aos esquemas relativamente inconscientes
de percepção e ação que estruturam essas ações, tanto as humanas quanto
as não humanas.
Para isso, tenho que chamar atenção para o que apontei acima, o gê-
nero de operação reflexiva que realizamos cotidianamente ao observar e
analisar as ações na internet de um ponto de vista etnográfico. A reflexivi-
dade funciona aqui em duas direções: de um lado, ela implica em que nos
perguntemos sobre a adequação de nossas ferramentas conceituais ao mun-
do social que observamos; de outro lado, ela nos mostra que determinados
aspectos que organizam esses mundos sociais fornecem pistas falsas para
o pesquisador e produzem uma “ilusão real”, isto é, um modo de funciona-
mento que oculta seus próprios princípios operativos. Esse segundo vetor da
reflexividade guarda relação com a discussão marxista sobre o conceito de

Etnografia e digitalização 35
ideologia, devo confessar, mas como o meu objetivo aqui é pensar como dis-
cussões conceituais viram princípios concretos de observação e análise, vou
deixar de lado a discussão propriamente teórica e me concentrar em mostrar
o uso dessa ideia na pesquisa.
Uma das manifestações fundamentais da agência maquínica na inter-
net repousa na organização dos sites e do modo como eles constroem um ho-
rizonte de possibilidades de ação. Nesse sentido, um perfil é uma categoria
prática e um mecanismo que oferece uma moldura às ações dos agentes. Isso
é feito por intermédio de diversas ferramentas, como os campos de inserção
de dados e os recursos de apresentação de si e de interação com outros, por
exemplo. Nesse sentido, é na articulação da agência maquínica com a agên-
cia humana que se constrói o perfil como persona goffmaniana. Cabem aqui
duas observações: a primeira tem a ver a especificidade material da internet,
isto é, aquela “passagem de nível” realizada pelo processo de digitalização.
Basicamente, ela revela que o agente que observamos on-line não é uma pes-
soa, mas sim um perfil, um avatar ou uma outra categoria prática que mate-
rializa uma persona digital e que o pesquisador deve construir por meio da
observação on-line. Essa distinção entre pessoa e persona on-line é que exige
do pesquisador construir, por meio da observação continuada, empírica e
analiticamente as relações entre a persona digital e os marcadores da pro-
dução social dos agentes off-line, como classe, gênero, raça, filiação política,
religiosa, estilo de vida, cultura nacional etc.
Contudo, para além da identificação dessas categorias práticas, é
possível discernir, também, esquemas de percepção e ação das máquinas.
Assim, o exame de comunidades do Orkut, por exemplo, nos revela que a
organização maquínica dos perfis é feita em torno das categorias conexas
de indivíduo e identidade. Tudo se passa como se essas categorias operas-
sem de forma descritiva, oferecendo mecanismos de tradução digital des-
ses atributos do humano, que são o ser indivíduo e ter identidade. Contudo,
como aprendemos com Bourdieu, por sob o descritivo se oculta o prescritivo
(Bourdieu, 2008). De modo que, de fato, a agência maquínica envolvida na
produção de perfis se inscreve num sem número de mecanismos por meio
dos quais as sociedades ocidentais se esforçam por fabricar indivíduos em
meio a uma realidade bem mais complexa. Nesses termos, o indivíduo é uma
“ilusão real”. Real por ser um mecanismo operativo no mundo social, e ilusão

36 Jair de Souza Ramos


porque o que se oculta é exatamente o trabalho coletivo de produção da
forma-indivíduo e de seu funcionamento4. Assim, as categorias práticas per-
sonal computer, customização e perfil parecem descrever indivíduos e suas
propriedades e gostos particulares ocultando o fato de que tanto a produção
dessas categorias quanto seu uso concreto envolvem, em algum grau, uma
gestão coletiva. Podemos pensar em exemplos mais recentes, onde a adesão a
uma determinada plataforma é feita como decisão coletiva e não individual,
como é o caso de agentes envolvidos em redes escolares, familiares e profis-
sionais entrando em bloco no Orkut, no Facebook e, mais recentemente, no
WhatsApp. Na mesma direção, podemos lembrar da estratégia inicial de fun-
cionamento do Facebook, que consistia em fazer dele a duplicação on-line
de redes sociais prestigiosas que existiam off-line – no caso, aquela formada
por estudantes de algumas das principais universidades norte-americanas.
Assim, mais do que a gestão técnica dos perfis, o que circula nas redes
sociais, e aqui eu me refiro tanto à categoria prática quanto à noção antro-
pológica, são princípios de organização de ações e percepções do mundo, de
si e do outro.
Em resumo, podemos observar dois movimentos complementares e
necessários que operam nas pesquisas em que estou envolvido. O primeiro é
dirigido a um exame da especificidade de funcionamento de agentes, redes,
ações e das molduras digitais onde eles têm lugar. É nesse movimento que a
etnografia se aproxima de uma antropologia da internet. Essa é também uma
abordagem que privilegia a observação exclusivamente do on-line. O segun-
do movimento é dirigido à identificação dos esquemas de percepção e ação
dos agentes humanos e não humanos. Esses esquemas exigem do pesqui-
sador uma generalização mais ampla que é feita através da incorporação de
construções teóricas que atravessam diferentes contextos empíricos, dentro
e fora da internet, como é o caso das discussões sobre identidade étnica, na-
cionalismo, performance de gênero, dominação masculina, cultura popular,
consumo, sexualidade, política etc. E esse movimento nos leva em direção a
uma antropologia na internet. Essa é uma abordagem que tende a privilegiar
as articulações entre on e off-line.

4  Um exemplo desse mecanismo pode ser encontrado no trabalho de Carla Barros sobre as lan
houses. Ali, a autora testemunhou momentos em que a produção de perfis no Orkut era feita por
grupos de amigos e familiares diante de um mesmo computador (Barros, 2008).

Etnografia e digitalização 37
Antropologia na e da internet: reflexões a partir de etnografias
on-line
Em geral, esse jogo de palavras entre uma “antropologia de” e uma “antro-
pologia em” é usado para fazer o elogio da segunda abordagem, concebida
como relacional e comparativa, em detrimento da primeira, concebida como
substantiva e reificadora. Ocorre que para aqueles pesquisadores que lidam
com a internet, essa oposição é problemática, pois a internet não é apenas
um lugar onde acontecem ações. Ela mesma é parte fundamental das agên-
cias que tornam possíveis tais ações. Como dissemos no início do texto, ela
é um princípio estruturante de subjetivações e socialidades. Já vimos isso
quando falamos na agência maquínica. Daí deriva o fato de que, para além
de um enunciado geral sobre a agência dos objetos, que podemos remeter à
teoria do Ator-Rede, essa rede de computadores incorpora uma parcela da
inteligência humana e da intencionalidade dos agentes humanos em algo-
ritmos e programas de computador. Para usar termos descritivos à guisa de
metáforas, podemos dizer que, até o advento dos computadores, o modelo
suposto de agência dos objetos dizia respeito exclusivamente ao hardware;
agora, com a rede de computadores, temos que lidar com o software, isto é,
com o rudimento de inteligência em ação orientada por intencionalidade
que organiza as ações maquínicas. Nesse sentido, à já conhecida reflexivida-
de entre conhecer e agir dos seres humanos, a observação na internet acres-
centa um novo elemento: a capacidade de conhecer e agir das máquinas, o
que resulta na mudança constante dos sites e plataformas, o que, por sua
vez, significa a mudança da própria moldura das ações humanas, uma vez
que a arquitetura por meio da qual se dá a interação é construída e modifica-
da rápida e frequentemente de forma consciente pelos programadores e de
automática pelos algoritmos que selecionam o que vai aparecer na timeline
de acordo com as ações anteriores dos agentes humanos. Parece-me que a
exigência de reflexividade que o método etnográfico nos impõe, associada
a essa especificidade dos computadores como agentes maquínicos é a cha-
ve para entendermos porque quando nos propomos a fazer etnografias na
­internet, somos instados também a fazer, ou ao menos a dialogar, com uma
antropologia da internet. E, como procurei mostrar, o meu trabalho etnográ-
fico se organiza em torno do esforço de articular essas duas dimensões. Mas

38 Jair de Souza Ramos


há uma terceira proposição possível, que está diretamente ligada à abran-
gência do processo de digitalização: uma etnografia através da internet. Vou
falar dessas três dimensões a partir de duas etnografias que realizei sobre
política e internet.
A primeira tomou por objeto as disputas em torno do tema do aborto
na campanha presidencial brasileira de 2010 (Ramos, 2012). Não era a primei-
ra vez que esse tema desempenhava um papel em uma corrida à presidência,
mas há dois aspectos que tornam a eleição de 2010 digna de destaque. O pri-
meiro foi a intensidade da politização do aborto. O segundo foi o fato de que,
na campanha, o tema foi discutido tanto como política pública quanto no
que diz respeito à reputação dos candidatos, articulando assim as dimensões
do público e do privado. Minha etnografia abordou as lutas políticas travadas
no ciberespaço em torno do aborto a partir de dois objetivos. O primeiro con-
sistiu no exame do modo como as lutas políticas articulavam espaços sociais
on e off-line. Isso implicou tanto uma reflexão sobre os instrumentos teórico-
-metodológicos necessários a esse novo espaço de observação quanto um
exame da relação de circularidade e retroalimentação entre práticas sociais
desenvolvidas em espaços sociais dentro e fora da rede. Já o segundo objeti-
vo consistiu em examinar os modos de interação, as tomadas de posição e as
representações acerca das disputas políticas em torno do tema do aborto e
dos direitos sexuais levadas a cabo por agentes que participam de blogs e de
redes sociais. Tratou-se de entender o modo como as disputas políticas em
torno da ocupação do Estado e da direção de políticas públicas ocorrem no
ciberespaço em relação direta com seus desdobramentos off-line.
O primeiro agenciamento por meio do qual a campanha eleitoral se fez
presente na rede de computadores se deu por intermédio das listas de e-mail
que traziam ataques às reputações dos candidatos. Nas correntes de mensa-
gens se difundia o medo político através das redes de relações sociais que se
materializavam nas listas de contatos. Ao lado do espaço social configurado
pelas correntes de e-mails, mais próximo da vida privada, outro também foi
significativo: as redes sociais. Plataformas como Orkut e Facebook foram pal-
co de articulações de campanha, mas, especialmente, de circulação de ideias
e imagens que punham em jogo a reputação dos candidatos.
Quase em contraposição a essa arena mais privada, outra, mais
identificada à esfera pública, se estabeleceu como espaço fundamental de

Etnografia e digitalização 39
interlocução política: a chamada blogosfera. Ali se procedeu ao que de mais
próximo tivemos de um debate público em torno dos temas de campanha. E
a blogosfera se desenvolveu tendo como contraponto os jornais físicos, pu-
blicados off-line. Estabeleceu-se entre esses dois media relações de oposi-
ção, complementaridade e ressonância que tiveram um papel importante na
construção e na desconstrução da reputação dos candidatos.
Ora, o fato dessa politização ter por alvo a campanha eleitoral já nos
exige observar as conexões entre o on e o off-line. No mesmo sentido, o fato
de que os blogs políticos tomavam os jornais publicados off-line como seus
interlocutores fundamentais, ainda que o contrário não fosse verdadeiro,
também exigiu do etnógrafo transitar do on ao off-line.
Tendo sido inicialmente constituídos como diários on-line, os blogs
assumiram as mais diferentes formas e finalidades com o tempo mantendo,
talvez, como seu único traço comum o de permitir a exposição de percep-
ções, ideias e tomadas de posição individuais em contraposição a discursos
que são veiculados por instituições5. Os blogs se difundiram rapidamente e se
tornaram, em termos do investimento em produzir conteúdos e em termos
de acesso e visualização por internautas, um dos fenômenos mais importan-
tes do ciberespaço. Nesse sentido, os blogs são expressão da horizontalidade
que caracteriza a organização em rede da internet e permitem a descentrali-
zação da produção de informação e opinião, alargando a esfera pública.
Em termos abstratos, seria possível opor a proliferação anárquica e
horizontal dos blogs à centralização hierárquica da imprensa de massa. De
fato, existem blogueiros sem nenhuma inserção em empresas jornalísticas
e jornalistas que não constituem blogs, assinando tão somente matérias em
jornais. Contudo, essa distinção é limitada, uma vez que os jornais off-line
foram as primeiras grandes empresas a se instalarem de forma continuada
no ciberespaço. Praticamente todos os grandes jornais e revistas possuem
versões on-line de sua produção off-line, e seus principais colunistas pos-
suem também blogs ou, ao menos, colunas eletrônicas que se aproximam
bastante do formato do blog, na medida em que possuem periodicidade
diária ou semanal e uma seção de comentários. Por isso, não é de estranhar

5  Alguns autores definem os blogs como selfmedia, indicando com essa expressão tanto o as-
pecto de uma produção que é feita a partir de esforços individuais quanto o fato do blog ser um
espaço de exposição do “eu”.

40 Jair de Souza Ramos


que alguns dos blogueiros mais conhecidos e lidos sejam também colunis-
tas em jornais publicados off-line, pois a visibilidade e o prestígio do jornal
se transferem, em parte, para o blogueiro. De um modo geral, hoje em dia,
os blogs e microblogs são, para os jornalistas, quase que uma extensão de
seu trabalho off-line. Assim, em contraposição às abordagens que insistem
numa dicotomia jornais/blogs e numa horizontalidade da blogosfera, minha
etnografia revelou que jornais e blogs políticos estavam enredados em cone-
xões às vezes fortes, às vezes fracas, e em uma relação desigual de prestígio e
ressonância. Aliás, a rede mesma da blogosfera não é formada por pontos de
mesma densidade e prestígio.
Voltemos àquelas preposições que articulam antropologia e internet.
Essa foi uma etnografia da internet, na medida em que tomou por objeto
entender a dinâmica de funcionamento dos blogs e o modo como as pos-
sibilidades de publicização de ideias e informações abertas pelas tecnolo-
gias de comunicação reunidas na internet desempenham um papel na re-
configuração, a um só tempo, da prática jornalística e da definição da esfera
pública. Foi também uma etnografia na internet, na medida em que tomou
por objeto o aborto na campanha eleitoral para discutir a relação entre se-
xualidade e política e, a partir daí, articulou o exame das disputas políticas
nas dimensões on e off-line. Por fim, foi uma etnografia através da internet,
na medida em que a observação do off-line, composta por jornais e imagens
de televisão, foi feita por meio da internet, uma vez que esse material se en-
contrava digitalizado e disponível na forma de textos e filmes nos portais dos
grandes jornais.
Uma segunda etnografia, que dava continuidade a essa, foi dedicada
ao exame de um conjunto de embates políticos em torno de ações no Legis-
lativo e, em certa medida, no Judiciário, que se estruturaram em torno dos
temas do corpo, da sexualidade e da religião, e o campo de observação foi
constituído por ações que se desenvolvem na e através da internet (Ramos,
2014).
Tomei quatro eventos como ponto de partida dessas disputas. Foram
eles: o julgamento, no STF, da união estável de casais homossexuais, em
maio de 2011; as reações que levaram o governo federal a suspender a distri-
buição do kit anti-homofobia, também em maio de 2011; a retirada da PLC
122/2006, que criminalizaria a homofobia, em dezembro de 2011; e, por fim,

Etnografia e digitalização 41
a narrativa do kit gay na campanha à prefeitura de São Paulo, em outubro e
novembro de 2012.
O objetivo da pesquisa foi localizar, identificar e observar no campo
do ciberespaço as disputas politizadas que giram em torno da sexualidade
entre 2011 e 2013. Para tal, acompanhei a circulação de informação através
de redes sociais, blogs, Twitter, Facebook e sites do governo, de representan-
tes políticos dos setores analisados e de organizações tanto da militância
progressista, LGBT, feminista, quanto da militância religiosa e conservado-
ra, analisando sobretudo as dimensões do Estado e da sociedade civil acerca
dessas disputas.
Observei os embates simbólicos que são produto e produzem os gru-
pos que se enfrentam em torno do reconhecimento estatal de direitos se-
xuais. Assim, há um conjunto de atores organizados na sociedade civil: desde
movimentos sociais até igrejas, que realizam essa disputa no parlamento e
no Executivo. Ao mesmo tempo, é essa luta, as vitórias e derrotas das dife-
rentes agendas e o reconhecimento público dos agentes que constitui e/ou
reforça os grupos em luta. Nesse sentido, a internet é um campo social mul-
tifacetado que serve à visualização e à repercussão desses embates, além de
ser também um espaço onde tais embates se realizam por meio da dissemi-
nação das posições em luta.
O pressuposto mais geral que orientou essa pesquisa deriva do que o
Miller e Slater definem como uma abordagem propriamente antropológica
da internet, e supõe: 1) que o observador não deve definir a priori a separa-
ção ou continuidade entre on-line e off-line; 2) que o observador deve se es-
forçar por seguir as ações dos observados e descrever o modo concreto pelo
qual eles relacionam ou não os diversos espaços sociais on e off-line. Mas,
além disso, é fundamental seguir também a circulação das mensagens, daí
a importância de observar os compartilhamentos e retweets, por exemplo.
Isso foi feito a partir da observação flutuante de alguns pontos da
rede na forma de agentes e sites e, sobretudo, a partir do exame das ações de
compartilhamento.
A pesquisa teve dois objetivos que foram perseguidos simultaneamen-
te: o primeiro consistiu em examinar propriamente o modo como se dá a rela­
ção de circularidade e retroalimentação entre práticas sociais desenvolvidas
em espaços sociais dentro e fora da rede. Já o segundo objetivo consistiu em

42 Jair de Souza Ramos


examinar a mobilização política, as tomadas de posição e as representações
acerca dos direitos sexuais e reprodutivos que são colocadas em jogo nas
ações e na circulação de mensagens produzidas na disputa política em torno
de decisões judiciais, produção legislativa e orientação de políticas públicas.
Nesse sentido, desdobrando em outros termos a dualidade on e off, a
internet foi tomada, ao mesmo tempo, como campo e meio de observação, o
que definiu duas dimensões diferentes da pesquisa: a primeira, diz respeito
à observação on-line de fenômenos que se constituem fundamentalmente
off-line. Assim, por meio da internet, acessamos, na forma de vídeos hospe-
dados em sites institucionais, as sessões do STF em que foram discutidos o
aborto de anencéfalos e a união civil entre homossexuais, que foram transmi-
tidas em tempo real no site do STF e em alguns portais de notícias. O mesmo
pode ser dito das sessões e eventos legislativos, como é o caso da comissão de
direitos humanos e minorias. É aqui que nos encontramos com uma etnogra-
fia feita “através” da internet. O que só é possível graças à extensão do traba-
lho de tradução ao digital que se realiza atualmente. A segunda dimensão da
pesquisa é aquela que examina a interação que se dá propriamente on-line,
em espaços de sociabilidade tais como o Twitter e os blogs e em mecanismos
de associação, como as petições on-line. Evidentemente, existe uma continui-
dade entre ambos os espaços, constituindo aquilo que vários autores definem
como sendo uma esfera pública ampliada pelos espaços sociais construídos a
partir das tecnologias de comunicação e informação. Assim, existe o on-line e
o off-line entrelaçado das ações e da construção dos eventos, mas existe tam-
bém o entrelaçamento do on e do off na observação e, nesse caso, a internet,
graças à digitalização, torna-se uma janela a partir da qual é possível observar
uma parcela das ações que se desenvolvem no off-line.

Conclusão
Para concluir de forma rápida este texto, quero chamar atenção para o fato
de a internet, como mecanismo estruturante, implicar em dois mecanismos
que impactam fortemente a etnografia. O primeiro deles é a agência maquí-
nica baseada em software, isto é, em inteligência artificial. Ela implica na
necessidade de descrever e analisar tanto as ações humanas quanto as não

Etnografia e digitalização 43
humanas em rede. Mais além, ela implica também na observação e análise
das molduras de ação e interação que são continuamente reconstruídas pela
agência maquínica. Disso resulta a necessidade de entrelaçar antropologia
na internet e antropologia da internet. O segundo elemento é o processo de
digitalização. Ele está implicado diretamente na organização das molduras
de ação e interação. Ele também oferece um mecanismo universal de con-
versão de objetos, ações e pessoas à linguagem binária e, assim, produz a
materialidade da internet, mas uma materialidade moldada por algoritmos
que são fruto da inteligência e da intencionalidade humanas e, como tal, em
constante mutação a partir de interesses econômicos, políticos e jurídicos.
Por fim, o processo de conversão que a digitalização realiza faz da internet
um imenso arquivo, no qual o pesquisador pode estudar o registro de ações
e interações, como demonstrei acerca dos julgamentos do STF. Assim, a digi-
talização articula essas três dimensões que se oferecem como possibilidade
ao pesquisador: como etnografia da, na e através da internet.

Referências
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Etnografia e digitalização 45
3
Capítulo
A globalização como desafio
para o trabalho de campo e a
produção etnográfica

Sandra Rúbia da Silva1

Como agir, no entanto, quando não há pesquisas anteriores como


guias para fixar repères (marcos) seguros quanto ao objeto de estudo?
Como agir com relação a objetos contemporâneos que se rebelam
contra fronteiras precisas – que, se é que tiveram algum sentido há 30
ou 40 anos, já não tinham mais diante da instantaneidade do diálogo
que eu via se instaurar entre os fast-foods em escala planetária? Mas
como captar os efeitos dessa “disseminação global” senão redefinindo
o campo, para adaptá-lo à mobilidade única da época em que vivemos?
Carmen Rial, “Pesquisando em uma grande metrópole”.

Desde meados dos anos 80 do século passado, a antropologia e, em


especial, o método distintivo que lhe confere sua identidade disciplinar – a
etnografia – vêm sendo não apenas fortemente questionados por toda uma
literatura de cunho pós-moderno, mas seguidamente desafiados pelas mu-
danças provocadas, no seio da modernidade, pela intensificação dos proces-
sos conceituados como “mundialização”, “transnacionalização” e “globaliza-
ção” dos fluxos culturais2. A partir de uma reflexão sobre os questionamentos
e as transformações do trabalho de campo e da etnografia ao longo da exis-
tência da antropologia como disciplina acadêmica, proponho nesta primei-
ra parte do capítulo apontar as novas estratégias etnográficas que se estão

1  Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria.


2  Para uma discussão abrangente dos desdobramentos contemporâneos da prática e da teoria
antropológicas, ver especialmente Geertz (2001) e Moore et al. (1999).

47
delineando como resposta aos desafios que a globalização enseja para a prá-
tica antropológica. Gostaria de argumentar que tal reflexão pode se revelar
pertinente aos estudos que se localizam na interface dos campos da antro-
pologia e da comunicação, em especial àqueles relacionados ao consumo e à
mídia. Exemplifico essa proposta em relação às características do objeto de
estudo proposto em minha tese de doutorado e de meu problema de pesqui-
sa – o qual se preocupou em articular as dimensões do global e do local na
análise das dimensões culturais do consumo de uma tecnologia global, no
caso os telefones celulares, em um grupo de camadas populares (Silva, 2010).
O texto a seguir, nesse sentido, reflete as inquietações ocorridas na formula-
ção das estratégias metodológicas da pesquisa realizada para meu doutora-
mento. Vale ressaltar, como veremos adiante, que com a crescente circulação
transnacional dos fluxos midiáticos, decorrente da globalização cultural, o
campo dos media studies teve importante papel no sentido de trazer para
a antropologia pertinentes discussões que buscavam relativizar concepções
mais clássicas de campo. Dentre os objetos de estudo que ensejaram tais in-
quietações, Marcus (1998) cita o estudo antropológico das, na época, “novas”
formas de interação mediada por computador na comunicação eletrônica,
como a internet.
Uma reflexão sobre tais mudanças e desafios pressupõe, portanto,
apontar diferenças surgidas no trabalho de campo e na etnografia tanto em
termos de práticas metodológicas quanto de posições teóricas. Assim, na pri-
meira metade do capítulo, apoio-me primordialmente em Evans-Pritchard
(1978) e suas considerações sobre a tradição empírica do trabalho de campo
em antropologia para situar o estatuto da etnografia dita clássica, cujo maior
expoente foi Malinowski, de quem Evans-Pritchard foi aluno. Acompanho as
implicações para a etnografia do crescente desaparecimento de seu primevo
objeto de estudo: as sociedades “primitivas”, e pontuo o movimento que leva
a pesquisa antropológica para o contexto das sociedades complexas, com
atenção às dimensões metodológicas da pesquisa em antropologia urbana
no Brasil. Ao final da primeira parte do ensaio, apresento em linhas gerais os
argumentos dos antropólogos pós-modernos em torno da chamada “crise
de representação” na etnografia, bem como algumas das críticas às posições
por eles assumidas, as quais têm atualizado o debate até o presente: tanto
contra mas, principalmente, a favor da etnografia – corrente de pensamento

48 Sandra Rúbia da Silva


à qual filio-me. Nesse sentido, aponto a crescente valorização da abordagem
etnográfica no que tange às pesquisas em antropologia da comunicação e do
consumo, área específica na qual se insere meu objeto de estudo.
A constatação de que é no bojo das transformações e impactos da glo-
balização que o debate em torno da escrita sobre a cultura tem lugar guar-
da uma íntima associação com o segundo movimento que proponho nes-
te ensaio: uma análise de novas estratégias etnográficas que surgem como
proposta metodológica frente aos impasses trazidos pela globalização para
o trabalho de campo e a etnografia, principalmente em termos daquilo que
David Harvey (2003) denominou “compressão espaço-tempo”. Além disso,
chamo atenção para a emergência das novas tecnologias de informação e
comunicação como objeto de estudo e argumento que uma antropologia do
consumo e da mídia, na medida em que tem seus objetos inseridos em redes
globais de circulação de significados (Appadurai, 1986, 1999), tem como im-
portante desafio teórico-metodológico a discussão do conceito etnográfico
tradicional de “campo”. Nesse sentido, apoiando-me em Gupta e Ferguson
(1997), trago a discussão que questiona uma ligação naturalizada do campo
com o “local”.

Da ilha distante ao final do corredor: e quando os nativos


somos nós?
Como sabemos, o surgimento da antropologia como disciplina acadêmica
está indissoluvelmente ligada à expansão colonialista que se consolidou a
partir de meados do século XIX. A curiosidade do Ocidente sobre os povos
“primitivos” foi alimentada, principalmente a partir do século XVII, pelos
relatos de viajantes3 e funcionários administrativos das colônias (Evans-
-Pritchard, 1978). É no final do século XIX que aquilo que, lembra Rivers
(1991, original 1910), era uma “ciência amadora” baseada em dados coletados
“por pessoas que normalmente não possuem treinamento científico” co-
meça a institucionalizar-se e a profissionalizar-se. Inicialmente praticada à

3  Evans-Pritchard, embora apontando limitações, reconhece o valor dessas primeiras narrati-


vas na “construção de uma disciplina completa dedicada especialmente a estudar as sociedades
primitivas” por Morgan, McLennan, Tylor, Frazer e outros (1978, p. 112).

A globalização como desafio para o trabalho de campo e a produção etnográfica 49


maneira do que se convencionou chamar “antropologia de gabinete”, fruto
de “etnografias de varanda” – na qual os dados eram coletados através de
questionários4 com os nativos ou com funcionários coloniais e a observa-
ção, quando existia5, era feita do conforto da varanda (Peirano, 1995) –, é a
partir do final do século XIX, com consolidação a partir dos anos 20 do sé-
culo passado, que o paradigma do trabalho de campo baseado, entre outras
características, em uma convivência intensa do antropólogo com o grupo
estudado torna-se central na preparação dos estudantes e na pesquisa em
antropologia. Nesse sentido, ele é, até hoje, considerado um rito de passa-
gem indispensável para o antropólogo; uma “experiência educativa comple-
ta” (Geertz, 2001, p. 43) que, além disso, confere identidade à antropologia
como disciplina (DaMatta, 1984; Peirano, 1995; Giobellina Brumana, 2003;
Geertz, 2001; Giumbelli, 2002).
Como conceituar, então, o trabalho de campo? Quais suas caracterís-
ticas fundantes? Tem sido consenso geral na Antropologia que Malinowski,
embora um teórico pouco inspirado, é o exemplo mais acabado de excelência
na prática do trabalho de campo e da escrita de etnografias6 (Peirano, 1995,
Durham, 2004, Evans-Pritchard, 1978; Geertz, 2001, 2005; Giumbelli, 2002). O
valor de sua etnografia reside na valorização única dos dados empíricos, além
de um estilo envolvente na escrita etnográfica. O antropólogo, lembra-nos

4  Evans-Pritchard fornece como exemplos de obras escritas com base nas respostas de ques-
tionários: Systems of Consanguinity and Affinity of the Human Family (1871), de Morgan; e
Questions on the Manners, Customs, Religion, Superstitions, etc., of the Semi-Civilized People,
de Frazer, incluído em The Golden Bough. Esse primeiro momento da produção antropológica
também é discutido por DaMatta (1984).
5  Frazer, por exemplo, quando questionado se já tinha visto algum “selvagem” de perto, costu-
mava dizer: “Deus me livre!” (Evans-Pritchard, 1978).
6  Embora seja inegável, como sabemos, o valor de Malinowski para o estabelecimento do pa-
radigma do trabalho de campo e da observação participante, através de suas pesquisas con-
duzidas em Trobriand entre 1914 e 1918, ele não foi o primeiro a buscar coletar pessoalmente
seus dados: Rivers e Hocart fizeram visitas curtas às ilhas Salomão (Rivers, 1991, original 1910) –
algumas de apenas três dias (Giobellina Brumana, 2003); Radcliffe-Brown, discípulo de Rivers,
realizou pesquisas em Andaman entre 1906 e 1908, sendo este um primeiro trabalho de campo
propriamente dito considerado precursor ao de Malinowski (Evans-Pritchard, 1978). Igualmen-
te paradigmática é a expedição ao estreito de Torres, realizada em 1898 e da qual tomaram parte
Rivers, Seligman e Haddon e a expedição de Boas ao Ártico em 1883. Para uma avaliação crítica
dessas duas últimas experiências, ver Stocking Jr. (1982). Para uma discussão específica sobre
trabalho de campo e a relação observador-observado, ver Stocking Jr. (1983).

50 Sandra Rúbia da Silva


Geertz (2005) deveria deixar claro para o leitor através da escrita que ele “es-
teve lá”. Nesse sentido, é paradigmática a retórica de escrita “visual” de Mali-
nowski nos Argonautas do Pacífico Ocidental, que continuamente convida o
leitor a “imaginar-se” no campo, como na famosa passagem inicial na qual
Malinowski convida o leitor a imaginar-se “sozinho, rodeado apenas de seu
equipamento, numa praia tropical próxima a uma aldeia nativa [...]”.7
Aluno e discípulo de Malinowski, Evans-Pritchard defendia, como
aquele, que o avanço da antropologia como ciência não podia prescindir da
observação e coleta dos dados pelos próprios antropólogos8. Além disso, ou-
tro ponto fundamental diz respeito à relação entre teoria, trabalho de campo
e etnografia, já que “a simples recolha do que se denominam fatos é de pouco
valor, se não se possui um guia teórico para os observar e selecionar” (p. 108).
Apoiado nos ensinamentos de Malinowski9, Evans-Pritchard afirma que exis-
tem condições essenciais para realizar uma boa investigação etnográfica:
primeiro, o antropólogo deve dedicar um tempo suficientemente amplo ao
estudo de uma sociedade (que podia variar de um a três anos); segundo, deve
estar em contato estreito com o grupo estudado, estabelecendo laços de in-
timidade, cumplicidade e amizade10 – e não se trata apenas de uma proximi-
dade física, mas principalmente psicológica, na qual o antropólogo buscará

7 Em Obras e Vidas – o antropólogo como autor, Geertz (2005), além de realizar uma reflexão so-
bre o estatuto da etnografia, examina os estilos e estratégias de construção de texto não somente
de Malinowski, mas também de Lévi-Strauss, Evans-Pritchard e Ruth Benedict. Para uma crítica
a algumas das posições assumidas por Geertz nessa obra, ver Peirano (1992).
8  Recorrer a fontes de segunda mão frequentemente resultava em incorreções: caso de McLen-
nan, que supôs, a partir de suas fontes, que, entre os povos primitivos, as instituições da família
e do casamento não existiam – erro no qual não incorreria se soubesse a língua nativa (Evans-
Prit­chard, 1978). Entretanto, vale lembrar que a ausência de trabalho de campo não é sinônimo
de má teoria. Durkheim e Mauss (que escreveu seu Ensaio sobre a Dádiva a partir da etnografia
do kula feita por Malinowski), nesse sentido, são exemplos de excelentes teóricos que trabalha-
ram a partir de dados obtidos por outros pesquisadores.
9  Para uma visão mais aprofundada de Malinowski a respeito de sua própria experiência de
campo nas ilhas Trobriand, assim como do objeto e do método da antropologia, veja-se a intro-
dução, plena de discussões de ordem metodológica, de Argonautas do Pacífico Ocidental (1976).
Para uma reflexão sobre as relações entre antropologia e trabalho de campo a partir de uma
releitura do capítulo de abertura de Argonautas..., ver Giumbelli (2002).
10  Para Evans-Pritchard, o antropólogo podia considerar seu empreendimento fracassado se,
ao despedir-se do grupo estudado, “não existisse em ambas as partes uma profunda pena na
partida” (1978, p. 128). Entretanto, a premissa da simpatia pelo grupo estudado, embora regra
geral até hoje, possui exceções. Ver Peirano (1992) para a discussão de uma delas – o estudo de

A globalização como desafio para o trabalho de campo e a produção etnográfica 51


colocar-se sob o ponto de vista do nativo, vivendo com eles. É nesse ponto
que se torna possível a observação participante, já que, ao participar da vida
do grupo estudando, o antropólogo não interrompe nem altera as atividades
a serem observadas – ao contrário dos que viviam fora da comunidade na-
tiva. Pode ter acesso à vida cotidiana e observar os acontecimentos menos
habituais, captando “pela ação tanto como pelo ouvido e a vista o que suce-
de à sua volta” (p. 127).11 Terceiro, deve aprender a língua nativa e somente
comunicar-se com o grupo através dela; e, por último, deve estudar a tota-
lidade de sua cultura e da vida social (Evans-Pritchard, 1978). Para Evans-
-Pritchard, o antropólogo é, antes de tudo, aquele que busca traduzir uma
cultura em termos de outra. Nesse sentido, “tende a interpretar mais do que
explicar” (1978, p. 103).12 Geertz (1989), ao propor uma teoria interpretativa da
cultura, parece claramente inspirar-se em Evans-Pritchard para sua formu-
lação do conceito de etnografia como “descrição densa”. Entretanto, avança
ao chamar atenção para o fato de que os antropólogos trabalham com inter-
pretações de interpretações; portanto, torna-se fundamental a sensibilidade
etnográfica para se distinguir, como no célebre exemplo geertziano, uma pis-
cada de uma piscadela.
A partir de meados da década de 50 do século XX, com a independên-
cia de várias nações que se achavam sob a influência do colonialismo, conso-
lida-se um processo que já se iniciava no final do século XIX: a crescente “de-
saparição” do objeto de estudo da antropologia. Rivers já observa, em 1910,

Vincent Crapanzano (Waiting. The Whites of South Africa, 1985) sobre os brancos da África do Sul
na era pré-apartheid.
11  Cardoso de Oliveira (2000) problematiza a medida em que o “olhar” e o “ouvir” do antro-
pólogo são conformados pela teoria enquanto um sistema de ideias e valores. O autor, assim
como Peirano (1995), chama atenção para a necessidade de o antropólogo exercer uma contínua
reflexão sobre seu olhar e seu ouvir para que a última etapa da etnografia, o “escrever”, possa
buscar entender a outra cultura a partir de sua verdadeira interioridade. Peirano (1995) enumera
argumentos a favor da etnografia, mas contra os manuais: a etnografia deve sempre ser pensada
de maneira relacional.
12  Consciente dos problemas metodológicos por resolver na antropologia, Evans-Pritchard não
se iludia quanto à controvérsia que sua descrição do trabalho de um antropólogo poderia pro-
vocar. Aliás, ao assumir que a antropologia é mais “arte do que ciência”, causou seu rompimento
definitivo com Radcliffe-Brown, para quem a antropologia social era “uma ciência natural da
humanidade” (1975 [1940]) regida pelos métodos das ciências naturais e cujo objetivo era “des-
cobrir o caráter universal, essencial, que pertence a todas as sociedades humanas, do passado,
presente e futuro” (p. xi).

52 Sandra Rúbia da Silva


que “é quase impossível, hoje em dia, encontrarmos povos cujas culturas,
crenças e práticas não estejam sofrendo os efeitos da influência europeia”
(1991 [1910], p. 66). É no ponto culminante desse processo que Geertz anun-
cia, na década de 80: “somos todos nativos” (1983, p. 151). Assim, a reflexão
antropológica consiste, agora, em desvendar como os outros organizam seus
universos significativos, estejam eles além-mar ou no final do corredor. En-
tretanto, ainda que sublinhando a importância do rapport entre observador
e observado para o sucesso do empreendimento etnográfico, Geertz alerta
– evocando Malinowski – que estudar a cultura “do ponto de vista do nativo”
não implica em tornar-se um deles (Geertz, 1983, p. 57)13. Não há etnografia
sem teoria; nesse sentido, as teorias antropológicas, embora devam eviden-
temente estar ancoradas nas particularidades do vivido, não podem guardar
com este uma relação de isomorfismo (Moore, 1999). Como sublinha Geertz
em A Interpretação das Culturas, é o arsenal de conceitos da disciplina que
torna possível produzir conhecimento antropológico a partir de conceitos
nativos. É nesse sentido que o trabalho de campo e o relato etnográfico tor-
nam-se muito mais do que simples métodos.
Os objetos de estudo, a partir principalmente dos anos 1930, come-
çam a migrar das sociedades ágrafas e isoladas para o contexto das cidades14.
No caso brasileiro, Velho (2003) mostra que, a partir dos anos 1970, a antro-
pologia brasileira voltada para o meio urbano passa por uma mudança de

13  Para uma discussão crítica das ideias de Geertz (em especial as expostas no clássico ensaio
“Deep Play: Notes on Balinese Cockfight”, que permanece o exemplo mais citado de aplicação
do conceito de descrição densa) à luz do conceito geertziano de rapport e da importância dos
relacionamentos entre pesquisador e pesquisado para o conhecimento antropológico, veja-se
Marcus (1999). Para uma discussão sobre as dinâmicas do “ponto de vista nativo” a partir da
perspectiva de uma etnografia histórica, ver Sahlins (2006).
14  Nos Estados Unidos, a Escola de Chicago, inspirada fortemente pela obra de Georg Simmel,
é representativa dos primeiros estudos em antropologia urbana, os quais envolviam princi-
palmente imigrantes e populações pobres e marginalizadas, caso de Street Corner Society, de
William Foote-Whyte, obra seminal do campo e fruto de etnografia conduzida entre 1937 e 1940
(Foote-Whyte, 2005). No Brasil, como nos mostra Eunice Durham (1986), a tradição da antro-
pologia de estudar os grupos marginalizados urbanos inicia com Nina Rodrigues e seu interesse
pelo negro e pelo mestiço, avançando pelos chamados estudos de comunidade e das religiões
afro-brasileiras. Entretanto, a antropologia permanece, até a década de 1950, definida, em li-
nhas gerais, como uma disciplina que estuda as sociedades “primitivas”. É somente a partir dos
anos 1960 que tem início o processo de inclusão das chamadas “sociedades complexas” como
objeto de estudo legítimo da antropologia (Peirano, 1992).

A globalização como desafio para o trabalho de campo e a produção etnográfica 53


perspectiva: os antropólogos brasileiros começam a voltar seu interesse para
a investigação de sistemas e redes de relações. Processos sociais mais amplos
são tomados como objeto e, portanto, os antropólogos brasileiros foram tra-
vando contato com situações mais próximas e familiares. O uso crescente de
histórias de vida, biografias e trajetórias individuais revela, segundo Velho,
que os indivíduos, em sua singularidade, tornaram-se objeto da antropolo-
gia à medida que “eram percebidos como sujeitos de uma ação social cons-
tituída a partir de redes de significados” (2003, p. 18).15 Essa visão dinâmica
e processual das relações entre sociedade e indivíduos, que procura estabe-
lecer pontos de conexão entre os níveis micro e macro da análise cultural,
apontada por Velho, é também enfatizada por Ortner (1994) que, em sua revi-
são das teorias antropológicas a partir dos anos 1960, sublinha a valorização
teórica de uma abordagem centrada na prática, nas “pessoas reais fazendo
coisas reais” (p. 388) como central na antropologia a partir dos anos 1980.
Nesse sentido, Ortner (1994) e Cardoso (1986) observam que a antropologia
anglo-saxã e a brasileira efetuam um movimento de retorno à etnografia.
Cardoso, em particular, sublinha a contribuição do trabalho de campo na
crítica do economicismo e dos vários estruturalismos.
É certo que não somente, mas em especial quando “os nativos somos
nós”, as consequências metodológicas implicadas para o trabalho de cam-
po e a etnografia são inúmeras. A mais importante delas, a perda do isola-
mento do antropólogo que pesquisa em sociedades complexas. Como nos
lembra Geertz (2001), o antropólogo era um “solitário”. Assim, é fundante a
necessidade de observar o familiar a partir de um processo de estranhamen-
to, que era automático no caso do contato do antropólogo com as culturas
ágrafas. Tal processo de “estranhar o familiar” não pressupõe a indiferença,
mas sim a imparcialidade, relativizando o que seja o “familiar” e o “exótico”
(Velho, 1984) e jamais prescinde de um firme compromisso com a teoria (Ve-
lho, 1980) – ou, como prefere DaMatta (1984), o ofício do etnógrafo envolve
necessariamente experimentar um estado de anthropological blues. Outro
cuidado importante a ser tomado pelo etnógrafo que pesquisa na cidade é

15  Para uma discussão aprofundada e abrangente de experiências contemporâneas de antro-


pólogos brasileiros no trabalho de campo envolvendo pesquisas urbanas, bem como das técni-
cas e métodos empregados no trabalho antropológico, veja-se a coletânea organizada por Velho
e Kuschnir (2003).

54 Sandra Rúbia da Silva


o de não tomar as unidades de análise como autocontidas e isoladas – caso
das etnografias da escola funcional-estruturalista britânica, criticadas por
assumirem a sociedade como modelo isolado e estático da organização
social e política.16 Nesse sentido, Velho (2004) enfatiza que, em oposição às
sociedades tradicionais, de pequena escala ou ágrafas, as sociedades com-
plexas moderno-contemporâneas são definidas por uma divisão do trabalho
altamente complexa, grande número de papéis sociais, maior instabilidade
social, heterogeneidade, diferenciação e desigualdade socioculturais.
Outro ponto que merece destaque é a relação entre pesquisador e pes-
quisado. Nesse sentido, Lévi-Strauss (2003), na Introdução à obra de Marcel
Mauss, já entendia a etnografia como uma experiência que combina objeti-
vação e subjetividade. Para Geertz, uma das características mais marcantes
do trabalho de campo é que este não permite qualquer separação entre as
esferas pessoal e profissional; é um processo muitas vezes paradoxal e mul-
tifacetado no qual o pesquisador deve “ver a sociedade como um objeto e
experimentá-la como sujeito” (2001, p. 45).
As implicações da dependência completa da etnografia da interpre-
tação do antropólogo têm sido objeto de acalorado debate a partir dos anos
1980, capitalizados sob a rubrica pós-moderna da “crise da representação”. O
termo busca chamar atenção para uma crítica das linguagens de represen-
tação – as quais são impregnadas das relações de poder assimétricas entre
o Ocidente e o “outro” – o papel do antropólogo na construção do conhe-
cimento, a fragmentação das culturas e a parcialidade das interpretações e
representações antropológicas produzidas a partir de uma “autoridade et-
nográfica” que torna homogêneas e exotiza as diferenças culturais, subli-
nhando as diferenças entre “nós” e “eles” (Marcus e Fischer, 1986; Clifford
e Marcus, 1986; Clifford, 1988). Assumindo a posição de uma “antiteoria”
(Moore, 1999) de caráter desconstrucionista, os pós-modernos, nesse sen-
tido, valorizam “etnografias” de caráter experimental nas quais a presença

16  É o estudo de Leach, Sistemas Políticos da Alta Birmânia, de 1954, sobre os kachin da Birmâ-
nia, que irá mostrar que as sociedades têm características dinâmicas – tanto em termos tem-
porais quanto, principalmente, espaciais – e que a política, desse modo, deve ser tomada como
“processo”: no caso dos kachin, a sociedade oscila entre um modelo democrático e um modelo
hierárquico.

A globalização como desafio para o trabalho de campo e a produção etnográfica 55


da subjetividade do antropólogo é tensionada ao seu limite17. Entre as inú-
meras críticas18 aos posicionamentos pós-modernos, destaco aqui duas que
dizem respeito ao estatuto da etnografia e à sua relação com a teoria. Cardo-
so de Oliveira (2000, p. 29), nesse sentido, guarda reservas ao que qualifica
como o “desprezo que seus autores demonstram em relação à necessidade
de controle dos dados etnográficos”.19 Entretanto, certamente a crítica mais
conhecida contra os pós-modernos, no cenário da academia brasileira, é a
de Peirano (1995). Nela, a autora elenca argumentos contra os pós-modernos
que, como o antropólogo australiano Nicholas Thomas, posicionam-se con-
tra a etnografia. Fundamentalmente, Peirano destaca o valor das etnografias
para o refinamento teórico da disciplina. A consistência dos dados etnográ-
ficos que ensejam reanálises, assim, reafirma a fecundidade do trabalho et-
nográfico como demonstração da força da antropologia. Embora prenhe de
controvérsias, autores como Moore (1999) e Ortner (1994) reconhecem a con-
tribuição dos pós-modernos no sentido de uma maior conscientização dos
antropólogos em relação às suas práticas. Os segundos, embora enfatizando
o choque trazido para o campo pelos pós-modernos, argumentam que a an-
tropologia continuou a escrever como sempre fez, porém, agora, com uma
autoconsciência muito maior, o que terminou por beneficiar a etnografia.

17  Tuhami – Portrait of a Moroccan, de Crapanzano, com suas imbricações entre psicanálise e
antropologia, é um bom exemplo de escrita pós-moderna. Ver, também, a discussão de Clifford
(1986) a respeito da escrita experimental na obra de Michel Leiris, L´Afrique Fântome, original-
mente publicada em 1934, e de Giobellina Brumana (2005) a respeito do diário de campo de
Leiris e da participação deste e de Marcel Griaule na missão Dacar-Djibouti.
18  Explorar mais a fundo o debate pós-moderno e as críticas a ele dirigidas exigiria, a meu ver,
todo um outro ensaio. Para uma visão mais abrangente da polêmica, ver, entre outros críticos
e comentaristas, Geertz (2001, 2005); Eckert e Rocha (2005); Giumbelli (2002); Peirano (1995);
Sahlins (1997a; 1997b; 2006); e a introdução de Dirks, Eley e Sherry Ortner (1994) em Culture/
Power/History – a reader in contemporary social theory.
19  Embora simpático à perspectiva de uma antropologia polifônica, que aposte na polifonia e
na multivocalidade, incluindo as vozes dos atores do cenário etnográfico (Clifford, 1986), Car-
doso de Oliveira ressalva que tal proposta remete, sobretudo, “para a responsabilidade específi-
ca da voz do antropólogo, autor do discurso próprio da disciplina, que não pode ficar obscure-
cido ou substituído pelas transcrições das falas dos entrevistados” (2000, p. 30). Para Cardoso de
Oliveira, o trabalho do antropólogo envolve uma transformação na relação entre pesquisadores
e pesquisados, na qual o “informante” passa a ser um “interlocutor”. Trata-se, na proposta do
autor, de passar de um “discurso sobre” para o “diálogo com”. Em uma crítica mais irônica a
­Clifford, Sahlins acredita que a “autoridade etnográfica” foi censurada de maneira prematura e
tem de ser trazida “de volta da Sibéria epistemológica para a qual foi banida” (2006, p. 12).

56 Sandra Rúbia da Silva


Quero também ressaltar a valorização que a abordagem etnográfica
tem obtido no campo de estudos em antropologia do consumo. O campo
de estudos foi marcado, desde a década de 1960 e 1970 (principalmente em
obras de Baudrillard, como A Sociedade de Consumo) por uma abordagem
metodológica que não leva em conta a visão dos agentes sociais a respeito
de suas próprias práticas. Ao não submeter suas premissas ao crivo do em-
basamento empírico, segundo Barbosa e Campbell (2006), essa perspectiva
assume um registro universalizante que não atenta para as nuances e, mes-
mo, as contradições presentes nas práticas de consumo. As abordagens de
cunho sociológico e etnográfico, ao apostarem em um processo analítico que
privilegia a experiência vivida, mostram-se mais adequadas para captar as
complexidades das dinâmicas de consumo. Nesse sentido, é com satisfação
que se observa uma espécie de “segunda onda” nas pesquisas em consumo
que, tanto no exterior quanto no meio acadêmico brasileiro, tem apostado
em uma abordagem etnográfica (Barbosa e Campbell, 2006).

Novas configurações do trabalho de campo como estratégia


etnográfica
A globalização, embora possa ser entendida como um processo que se in-
tensifica em termos políticos a partir da queda do muro de Berlim, em 1989,
na verdade pode também ser entendida como um processo que se inicia a
partir das grandes navegações do século XVI (Canclini, 2003) ou até antes,
pois desde a Antiguidade há intensas trocas entre lugares distantes. Nesse
sentido, a globalização sempre esteve intimamente ligada à antropologia e às
transformações pelas quais a disciplina tem passado ao longo de sua existên-
cia: de um lado, a expansão colonial do século XIX e o interesse pelos povos
primitivos que marca o surgimento da disciplina; de outro, o movimento de
crescente influência do Ocidente nas culturas de povos que eram, até então,
isolados. Nesse processo ligado à globalização, como vimos, a antropologia
constitui, mas também perde seu primeiro objeto de estudo: os povos “pri-
mitivos” e isolados das sociedades ágrafas.
A partir das duas últimas décadas do século XX, o que já havia se ini-
ciado desde o século XVI intensifica-se de maneira até então inédita, o que
é proporcionado, em grande medida, pelo grande desenvolvimento das

A globalização como desafio para o trabalho de campo e a produção etnográfica 57


tecnologias de comunicação e informação, das quais a internet guarda lu-
gar central (Castells, 2002). Para a antropologia, segundo Geertz (2002), são
“tempos interessantes”, nos quais objetos que antes não eram legitimados
passam a fazer parte das preocupações teóricas da disciplina.20 Para Geertz
(2002), ao lado do fim da Guerra Fria, a emergência de um sistema mundial
que combina a interdependência global (dos fluxos de capital, multinacio-
nais, zonas de comércio e a internet) com provincialismos de caráter étnico e
religioso constitui um enorme impacto na agenda antropológica.
Na medida em que o mundo se torna crescentemente globalizado,
mas também localizado, assim também se tornam tanto a disciplina quanto
a prática da antropologia (Moore, 1999). Nesse contexto, no qual um con-
ceito estático de cultura, se é que um dia o fez, não dá mais conta das dinâ-
micas processuais da cultura (Sahlins, 1997a,b, 2004), surge um forte ques-
tionamento quanto ao binômio etnografia/local. Para Moore (1999), trata-se
da necessidade de se elaborar etnografias processuais, que levem em con-
ta as dinâmicas de mobilidade da contemporaneidade que continuamente
desafiam os conceitos e práticas tradicionais da antropologia. Para Gupta
e Ferguson (1997) a crescente intensificação da circulação dos fluxos cultu-
rais – aquilo que Appadurai (1998) tão brilhantemente apreendeu através do
conceito de scapes – traz a etnografia para o “fim de uma era”. Nesse senti-
do, provoca na prática antropológica a necessidade de se repensar o “local”
como conceito fundante da prática etnográfica. Os autores propõem que a
etnografia, enquanto metodologia distintiva da antropologia, tem um com-
promisso muito maior com questões epistemológicas e políticas relaciona-
das com a “localização” do que com o “local”. Para Clifford (1997), trata-se de
pensar no campo mais como um habitus do que como um lugar.
Gupta e Ferguson, embora reconhecendo o valor do estabelecimento
do paradigma boasiano da cultura como “pessoas e culturas”, ou seja, “a ideia
de que um mundo de diferenças humanas deve ser conceituado como uma

20  Como exemplos, Geertz aponta o que, na sua opinião, são excelentes trabalhos antropológi-
cos que têm como objeto, por exemplo, o comércio mundial de sushi, os negócios publicitários
no Sri Lanka, a televisão na Índia e estudos sobre migração e identidades transnacionais, dos
quais os dois últimos estiveram, desde o início, no centro do que tem sido chamado “antropo-
logia transnacional” ou “antropologia da ecumene global” (Hannerz, 2003), cuja preocupação
antropológica gira em torno de conceitos teóricos como os de fluxos, fronteiras e híbridos (Han-
nerz, 1997).

58 Sandra Rúbia da Silva


diversidade de sociedades separadas, cada qual com sua própria cultura”
(1997, p. 1) como fundamental como base teórica para o método de compara-
ção cultural, afirmam que tal paradigma torna-se atualmente cada vez mais
difícil de ser operacionalizado em uma sociedade e uma cultura marcadas
por fluxos transnacionais. Nesse sentido, tanto as linhas de crítica antro-
pológica baseadas na economia política – que apelam e conseguiram tra-
zer o olhar antropológico para a direção de processos econômicos e sociais
que conectam os locais mais isolados com o mundo – quando a crítica das
políticas de representação – que desafiaram a assim chamada “autoridade
etno­gráfica” – ajudaram a levar a teoria antropológica a um distanciamento,
hoje bem estabelecido, da ideia de “culturas” como entidades totalizantes e
separadas.
Assim, o argumento inicial de Gupta e Ferguson (1997) vai no senti-
do de pensar nas inter-relações entre cultura, poder e lugar como resultado
da íntima ligação entre duas diferentes linhas de pensamento crítico sobre
o conceito de “cultura”: a linha que o pensa através do “espaço” – na qual
observa-se uma crescente desterritorialização das práticas e diferenças cul-
turais, das quais a mídia21 é um exemplo interessante, segundo os autores
– e a linha que o pensa através do “poder”. A respeito da primeira – funda-
mental para a redefinição do conceito de “campo” –, enfatizam Ferguson
e Gupta que, mais do que simplesmente afirmar que as culturas não estão
mais fixas em um local (se é que um dia estiveram), trata-se acima de tudo
de desnaturalizar22 as associações entre lugar, pessoas e culturas, pensando-
-as como criações históricas e sociais e não fatos naturais. São os processos
constituintes dessas relações que irão requerer a atenção da antropologia.
Como resultado dessas duas linhas de pensamento, surgem, segundo Gupta

21  Para Gupta e Ferguson, não surpreende que haja tão pouco trabalho etnográfico sobre a mí-
dia, porque esta desafia as concepções de local. Nesse sentido, as práticas sociais e culturais
ligadas à mídia estão apenas começando a ser mapeadas na medida em que o estudo da mídia
foi, por muito tempo, tabu na antropologia (Ginsburg; Abu-Lughod e Larkin, 2002). Para os
autores, a centralidade da mídia de massa na contemporaneidade expressa uma oportunida-
de e um compromisso da antropologia em explorar sua significância analítica e prática. Nesse
sentido, vale registrar aqui o recente estudo de caráter etnográfico sobre as práticas sociais e
culturais envolvendo o uso de telefones celulares entre classes populares na Jamaica, realizado
pelos antropólogos Horst e Miller (2006).
22  Para uma problematização da naturalização do “local” na etnografia, das transformações nas
práticas espaciais e seu impacto na etnografia e no trabalho de campo, veja-se Clifford (1997).

A globalização como desafio para o trabalho de campo e a produção etnográfica 59


e Ferguson, três temáticas cruciais que dão conta dessas interrelações: a da
identidade, a da resistência e a do place making (penso que uma tradução
livre poderia ser a “constituição do lugar”, mas escolho usar o termo original).
Tendo em mente, mais uma vez, o elo indissolúvel entre etnografia e teoria,
o objetivo principal é pensar como todas essas mudanças na teoria antropo-
lógica podem se constituir efetivamente úteis na prática etnográfica. Todas
essas novas questões (por exemplo, processos e instituições transnacionais,
fenômenos “desterritorializados” como a mídia de massa, questões envol-
vendo migrações e refugiados, novas configurações identitárias trazidas pela
globalização) desafiam a prática etnográfica clássica centrada na observação
participante, face a face23. Qual o caminho a tomar então? Para Gupta e Fer-
guson, a antropologia continuará fazendo o que sempre fez: tentar “tomar
pé” em um estranho mundo novo, embora ciente de que, em termos me-
todológicos, as novas possibilidades de etnografia ainda estão em processo.
Para objetos globalizados, estratégias e práticas etnográficas globaliza-
das. Nesse registro, Marcus (1998 [1995]) advoga em favor de uma etnografia
“multissituada”, que reflita sua dinâmica de movimento em relação ao siste-
ma mundial. Assim, Marcus sublinha o caráter móvel e assinala a etnografia
“multissituada” como uma modalidade emergente de prática etnográfica.
Em linhas gerais, a etnografia “multissituada” consiste na coleta de dados em
diferentes localizações etnográficas, que deem conta dos processos de cir-
culação intensos, muitas vezes globais, dos fluxos culturais24 de objetos que
“não se circunscrevem dentro de fronteiras geográficas precisas” obrigando
o antropólogo a realizar pesquisa não apenas em uma cidade, mas em várias
(Rial, 2003, p. 74). Dessa forma, a construção dos objetos de estudo nas etno-
grafias multissituadas ocorre, segundo Marcus, através de diferentes modos

23  Nesse sentido, vale mencionar a discussão que ocorre nos estudos de cibercultura sobre a
possibilidade de “etnografias virtuais” – na qual o pesquisador pode, por exemplo, interagir com
seus “nativos” em uma sala de bato-papo ou em uma comunidade virtual. Para uma discussão
das dimensões metodológicas da etnografia virtual, ver Hine (2000). Clifford (1997), entretanto,
assinala a ainda existente dificuldade da antropologia em aceitar como legítima essa estratégia
metodológica.
24 Vale lembrar que, embora a etnografia multissituada esteja ganhando corpo como méto-
do etnográfico na atualidade – principalmente devido à intensificação dos fluxos de circulação
da mídia e de pessoas ao redor do globo – a etnografia do kula trobriandês de Malinowski, na
medida em que seguia os indivíduos através dos circuitos de circulação de objetos, já poderia
ser considerada, também, uma etnografia multissituada (Marcus, 1998 [1995]); Hannerz, 2003).

60 Sandra Rúbia da Silva


ou técnicas, as quais são baseadas em seguir a circulação desses fluxos. Nes-
se sentido, os estudos de migração e os estudos de mídia são dois campos
férteis para o seu emprego. Ginsburg, Abu-Lughod e Larkin (2002) sublinham
a necessidade do emprego de estratégias de pesquisa “multissituadas” para
dar conta dos complexos domínios que envolvem os circuitos do consumo
e da mídia em tempos de globalização. Respostas metodológicas vindas di-
retamente das inquietações do trabalho de campo são proporcionadas pelas
etnografias de Rial (2003) sobre os fast-foods e a de Hannerz (2003) sobre os
correspondentes estrangeiros das cadeias transnacionais de televisão. Rial
(2003) advoga em favor de uma explosão do terrain tradicional, instada pelas
características de seu objeto de pesquisa25.
Gostaria de encaminhar as derradeiras reflexões deste texto retornan-
do a Evans-Pritchard e ao estatuto da etnografia clássica. Nesse registro, Han-
nerz (2003) faz um paralelo entre esta, tal como vista por Evans-Pritchard,
e as condições para o exercício de uma etnografia multissituada. Assim, se
para Pritchard o antropólogo deveria passar um longo período com os “nati-
vos”, estabelecendo uma prática de corresidência, as condições contempo-
râneas instigam a relativização dessa prática. Dessa forma, tanto Hannerz
quanto pesquisadores Rial (2003) e Barros (2007) utilizaram-se da prática
da “covisita” em contraposição à da “corresidência”. Na etnografia clássica,
o antropólogo deveria comunicar-se com o “nativo” em sua própria língua.
Entretanto, Marcus (1995) observa que o inglês é a língua preferencial nas

25  Assim, pergunta-se a autora: “Seria conveniente, em nome da sacralidade das fronteiras do
campo, fechar os olhos aos títulos de jornais que anunciavam a abertura de um fast-food em
Moscou ou em outras cidades situadas fora dos limites geográficos de meu campo? [...] E o que
dizer das cascatas de anedotas que os amigos me traziam de visitas a fast-foods localizados em
outros países?” (2003, p. 73). Rial utilizou procedimentos clássicos da etnografia, como entrevis-
tas e observação participante. Utilizou também fontes documentais como jornais, literatura e
cinema, além de spots publicitários – que lhe permitiram elaborar hipóteses sobre o imaginário
social relativo aos fast-foods no Brasil e na França. Além do trabalho nesses dois países – seu
campo preferencial –, a autora realizou entrevistas com clientes e trabalhadores de fast-food em
outras cidades de países da Europa, América do Norte e América do Sul. Em termos de técnica
predominante, tanto Hannerz quanto Rial reconhecem a centralidade das entrevistas em suas
etnografias. A observação pura e simples, ou mesmo a observação participante, possuem um
papel mais limitado nas etnografias multissituadas, assinala Hannerz (2003). Para uma posição
atualizada do próprio Marcus, 10 anos após suas primeiras teorizações sobre a etnografia mul-
tissituada, ver Marcus (2005).

A globalização como desafio para o trabalho de campo e a produção etnográfica 61


etnografias multissituadas das sociedades complexas.26 Por fim, aos “laços de
cumplicidade e intimidade” estabelecidos com os informantes na etnografia
clássica, Hannerz propõe uma personalização que ocorre mais pela referên-
cia a redes transnacionais de relações em comum do que propriedade por
uma interação pessoal mais continuada, ou aprofundada. Por fim, ao estu-
do da “totalidade da vida social e cultural” tal como preconizada por Evans-
-Pritchard – e tornada possível em um campo tomado metodologicamente
como isolado e independente – Hannerz propõe a seleção, baseada em crité-
rios metodológicos próprios do desenho de cada investigação, dos campos a
serem privilegiados.
Em termos metodológicos, minha pesquisa de doutorado (Silva, 2010),
embora tenha abordado um objeto que poderia ser perfeitamente estuda-
do através de uma etnografia multissituada, fez a opção (tanto devido aos
constrangimentos temporais e financeiros próprios das regras atualmente
estipuladas pelas agências de financiamento quanto por compreender que
a metodologia adotada revela-se analiticamente produtiva) pela inserção em
um local determinado, usando largamente outras pesquisas, pertinentes a
diversos contextos socioculturais, como sinalizadores de outras significações
do objeto abordado naquele trabalho. Gostaria de sugerir, seguindo Marcus
(1998) que o campo de pesquisa de minha tese foi local apenas circunstan-
cialmente, e que a etnografia resultante buscou situar-se estrategicamente (a
strategically situated single-site ethnography). Como afirma o autor, algumas
etnografias podem inserir-se em um contexto multissituado em vez de circu-
larem fisicamente em diferentes campos: são etnografias de um único cam-
po (single-site), mas que constituem etnografias estrategicamente situadas;
como resultado, ao apostarem no que poderia ser definido também como
uma “etnografia de inspiração multissituada”, identificam de forma icônica
fenômenos culturais de um dado campo, mas que são reproduzidos em ou-
tros locais. Nas palavras de Marcus,

Essa etnografia estrategicamente situada pode ser pensada como uma


forma imediatamente anterior a um projeto multissituado mas que
deve, porém, ser distinguido de uma etnografia single-site que examina

26  O inglês também foi utilizado largamente por Hannerz (2003) no contato com seus infor-
mantes; Rial utilizou-se do francês e também do inglês.

62 Sandra Rúbia da Silva


as articulações de seus sujeitos locais primordialmente em termos de
sua subalternidade em relação a um sistema colonial ou capitalista
­dominante. A etnografia estrategicamente situada busca compreender
tanto o sistema quanto os sujeitos locais de forma ampla em termos
­etnográficos. É local apenas circunstancialmente, situando-se assim
em um contexto ou campo de forma bastante diversa em relação a ou-
tras etnografias de um único campo (Marcus, 1998, p. 95)27.

Certamente a proposta de uma etnografia “multissituada”, aqui ape-


nas exposta em linhas gerais enquanto possibilidade de estratégia etnográfi-
ca, pode não ser a única resposta possível aos desafios que as consequências
da globalização continuamente colocam para a teoria e a prática antropo-
lógicas. O que parece certo é que, na contemporaneidade, as concepções
antropológicas tradicionais sobre o “estar lá”, bem como suas dimensões
metodológicas, já não são mais as mesmas. Entretanto, filio-me a Geertz
(2002) quando este afirma que são “tempos interessantes” para o trabalho
do antropólogo. Assim, parece-me que o importante é enfatizar a diversida-
de de oportunidades e desafios etnográficos que, em termos teóricos e me-
todológicos, fazem-se presentes na contemporaneidade. Sem descuidar do
compromisso com a teoria, como nos lembra Roberto Cardoso de Oliveira,
e atentando para as especificidades do objeto de estudo, penso que é Rial
(2003, p. 75) quem formula a melhor direção a tomar: “para compreender
as sociedades moderno-contemporâneas [...] é conveniente colocar-se nas
autoestradas, seguir seu movimento, ampliando, se necessário, o campo e os
instrumentos de pesquisa”.

27  No original em inglês: “This strategic situated ethnography might be thought of as a fore-
shortened multi-sited project and should be distinguished from the single-site ethnography that
examines its local subjects´ articulations primarily as subalterns to a dominating capitalist or co-
lonial system. The strategically situated ethnography attempts to understand something broadly
about the system in ethnographic terms as much as it does its local subjects. It is only local cir-
cumstantially, thus situating itself in a context or field quite differently than does other single-site
ethnography” (Marcus, 1998, p. 95).

A globalização como desafio para o trabalho de campo e a produção etnográfica 63


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VELHO, Gilberto. Observando o familiar. In: NUNES, Edson (Org.). A Aventura Socio-
lógica. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1984.
VELHO, Gilberto; KUSCHNIR, Karina (Orgs.). Pesquisas Urbanas: desafios do trabalho
antropológico. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003.

A globalização como desafio para o trabalho de campo e a produção etnográfica 67


4
Capítulo
Novas tendências e desafios
metodológicos nos estudos
de consumo midiático 1

Laura Graziela Gomes2

Introdução
No presente artigo, apresento uma reflexão acerca do consumo de bens cul-
turais e midiáticos no Brasil, a partir de pesquisas realizadas por mim desde a
década de 1980. Nele destaco as mudanças ocorridas quanto às posições e re-
lações entre produtores e consumidores, partindo do paradigma televisual da
televisão aberta estabelecido a partir de 1965 e vigente até a segunda metade
da última década do século XX, no qual as posições de produtores e consu-
midores eram estabelecidas, fixas e estáveis. A partir de 1995, com o advento
das mídias digitais, as posições fixas deixam de existir, tornando-se relativas,
híbridas e, por conseguinte, instáveis. Isso não apenas dá origem a inúmeras
controvérsias e disputas no que se refere ao entendimento das novas lógicas
de produção dos bens culturais, mas, sobretudo, no que se refere à sua cir-
culação e que acabam por alterar completamente as representações sobre a
realidade social até então vigentes e construídas pelo paradigma anterior.

1  Uma versão muito preliminar deste artigo foi apresentada no Seminário Internacional Etno­
grafia e Consumo Digital: Novas Tendências e Desafios Metodológicos, organizado pelos pro-
fessores Bruno Campanella e Carla Barros do PPGCOM/UFF, no dia 3 de setembro de 2015, no
auditório de Economia do campus do Gragoatá da Universidade Federal Fluminense. Meus sin-
ceros agradecimentos aos organizadores pelo convite para participar do seminário e, posterior-
mente, para publicar o presente artigo.
2 PPGA/UFF.

69
Se para Mary Douglas o consumo moderno nas sociedades capitalis-
tas é “o que acontece aos objetos materiais (e imateriais) quando deixam o
posto varejista e passam para as mãos dos consumidores finais” (Douglas,
2004, p. 102), podemos imaginar, junto com Igor Kopytoff (2008), que os bens
possuem biografias sociais e que, conforme os casos, elas podem ser mais ou
menos acidentadas. Isso significa dizer ainda que, de qualquer modo, o in-
tervalo destacado por Douglas pode incluir muitas variações de valor. Como
se sabe, a própria condição de “autoridade dos consumidores” teve início na
década de 1970, por ocasião dos movimentos pelos direitos civis nos EUA,
que incluiu os direitos dos consumidores como parte dos direitos de cidada-
nia. Mas seu crescimento dependeu também de outros fatores sociotécnicos
e econômicos, como a globalização e o advento das tecnologias digitais, por
meio das quais os consumidores finalmente tornaram-se também protago-
nistas no processo criativo da indústria cultural, passando a participar ati-
vamente da construção dos novos mercados: inicialmente, na condição de
usuários e consumidores das (novas) mídias sociais (digitais); em seguida,
levando para elas suas respectivas experiências como consumidores e fãs de
determinados objetos e bens culturais e midiáticos.
Diante do exposto, passo a situar brevemente as três situações de pes-
quisa que realizei, nas quais pude observar modos de produção e hábitos
relacionados ao consumo de bens culturais, midiáticos na sociedade brasi-
leira: o primeiro momento pesquisado referiu-se ao período que coincidiu
com o auge do sistema midiático liderado pela televisão, diga-se Rede Globo
de Televisão, especialmente em relação a um determinado gênero teledra-
matúrgico, a telenovela, o que equivale dizer que, nesse momento, os funda-
mentos e pressupostos desse sistema midiático encontravam-se fortemente
estabelecidos, além de pressuporem uma fronteira bem definida entre pro-
dutores e consumidores – público e telespectadores (Gomes, 1998).
O segundo momento cobre o período em que esse modelo ou para-
digma midiático entra em declínio e passa a ser substituído por outro, no
final do século XX e início do XXI, por conta do processo de fragmentação da
mídia, iniciado com o acirramento da disputa pela audiência televisual no
Brasil (TV Manchete, SBT e MTV) devido ao maior acesso à televisão pelas
classes populares, a chegada das tevês por assinatura (TVA) e, finalmente,

70 Laura Graziela Gomes


na metade da década, em 19953, com a internet passando a ser de domínio
público – mas cujo acesso nesse primeiro momento era discado, feito através
de provedores. Em sua primeira fase de implantação, o acesso à internet era
orientado majoritariamente aos professores e pesquisadores das universida-
des, através de um consórcio com o LNCC. Somente a partir de 1995, com os
primeiros provedores (Alternex e UOL), houve o acesso aos segmentos das
camadas médias, particularmente entre os jovens, que passaram a explorar
e a usar as novas ferramentas digitais que permitiram o desenvolvimento de
novas formas de sociabilidade na rede, como listas de discussão (e-mails),
chats (salas de bate-papos em provedores como Alternex, UOL, Terra etc.).
No começo do século XXI, além do aumento de canais de TV por assi-
natura, tivemos também a chegada da banda larga, o que significou o acesso
à internet de alta velocidade. Nesse momento, entram em cena plataformas
que propiciaram mais recursos gráficos e de interatividade, como blogs, fó-
runs e, finalmente, as redes sociais (inicialmente o Orkut, em seguida o Twit-
ter e o Facebook). Uma atenção especial deve ser dada aos propósitos em
torno dos quais muitas dessas formas de sociabilidade se desenvolveram,
especialmente as listas de discussão, fóruns e comunidades em redes sociais
(Orkut), pois um grande número delas era dedicado à discussão, troca e com-
partilhamento de bens culturais e informações sobre literatura, livros, revis-
tas de HQ, mangás, filmes, telenovelas e séries norte-americanas de tevê,
dentre vários outros bens culturais (Gomes, 2007).
No que se refere ao PC (personal computer), ainda durante a primei-
ra década do século XXI, tivemos outro divisor de águas importante, com a
entrada em cena das placas de vídeo dedicadas, dando início a novos recur-
sos e plataformas, em especial, às novas mídias digitais em 3D, como os ga-
mes que passam a migrar para os computadores para serem jogados on-line,
além também do surgimento dos mundos virtuais (MMOPRG), metaversos
como o Second Life, criado em 2003 pela Linden Lab. Paralelamente, houve

3  Até 1995, o acesso à internet no Brasil era praticamente restrito às universidades e empre-
sas. Em 1995 ela passa a ser de domínio público, como serviço a ser explorado por provedores
comerciais. O Alternex, rede do Ibase, pode ser considerado o primeiro provedor público do
Brasil, aquele que primeiro disponibilizou a internet no Rio de Janeiro, seguido do UOL. A esse
respeito, consultar o site https://pt.wikipedia.org/wiki/Hist%C3%B3ria_da_Internet_no_Brasil.
Último acesso em: 13 abr. 2016.

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 71


também o desenvolvimento e a difusão das tecnologias digitais móveis e
portáveis, como laptops, celulares, tablets etc., permitindo a conectividade
all the time. O resultado é que em cerca de duas décadas houve uma grande
transformação que modificou radicalmente a nossa relação com o tempo,
espaço e também com o trabalho, com a vida – tanto a vida pública quanto
privada, dentre outras mudanças profundas que ainda se encontram em cur-
so. É nesse contexto de mudanças e transformações que afetam, inclusive, o
próprio conceito de sujeito, fronteiras materiais, objetivas e subjetivas até
então estabelecidas entre humanos e não humanos, no qual situo minhas
pesquisas mais recentes, já totalmente voltadas para o estudo da cultura pró-
pria do meio digital, ou seja, a cibercultura.

Telenovelas e a construção social da realidade: o elogio do


senso comum
O aspecto a ser tratado sobre a pesquisa desenvolvida ainda na década de
1980, cujo modelo era basicamente o sistema televisual encarnado pela Rede
Globo de Televisão, diz respeito à construção do valor social e político das te-
lenovelas na sociedade brasileira. Meu interesse inicial foi entender não ape-
nas o porquê, mas sobretudo como esse gênero narrativo tornou-se central
e estratégico na definição da programação da emissora e juntamente com
o telejornalismo (Jornal Nacional e Globo Repórter) foi fundamental para a
construção da relação de fidelização com o público.
Em certo momento considerei a hipótese de que existiriam algumas
propriedades intrínsecas a esse gênero que conformariam o gosto do público
com representações coletivas e consagradas na sociedade brasileira, muito
embora as circunstâncias e o contexto da recepção permanecessem os fiéis
da balança para mostrar também que as intenções dos produtores podiam
ser eventualmente rejeitadas ou subvertidas pelos consumidores (Certeau,
1994). Portanto, a captação do modus operandi da construção desse valor so-
cial dependia de estudos qualitativos sobre a produção e também sobre a
recepção televisual, esta última dirigida ao desvendamento dos mecanismos
culturais e simbólicos envolvidos.

72 Laura Graziela Gomes


Uma primeira constatação feita por mim e discutida em meu trabalho
(Gomes, 1998), se refere ao fato de que a recepção das telenovelas não pode-
ria ser entendida sociologicamente no Brasil como um fenômeno ou prática
relacionada à vida privada/doméstica apenas, em que pese o peso simbólico
da domesticidade na própria construção das narrativas, mas precisavam ser
observadas, sobretudo, como um fenômeno coletivo, o que conferia às tele-
novelas um caráter institucional e pedagógico. Nesse sentido, a própria re-
cepção deveria ser investigada por esse viés, isto é, levando-se em conta que
apesar de produzidas por uma rede privada de televisão, as novelas não eram
assistidas ou acompanhadas como simples entretenimento ou “produtos da
indústria cultural”, mas assistidas e experimentadas como um monumento
vivo da identidade nacional, uma história exemplar, “uma história contada
por nós, sobre nós e para nós mesmos” (Geertz, 1979).
Conforme destacou Appadurai a partir de Simmel (2008), de fato o
valor social das mercadorias não é apenas uma propriedade inerente delas,
mas dependem do julgamento que são feitos sobre elas, através das suas for-
mas de circulação. Desse modo, no caso das telenovelas, esse valor não se
restringe somente à emissão propriamente dita pela emissora, mas depende
das condições e circunstâncias locais particulares de circulação que, por sua
vez, também influenciam as condições de percepção dos telespectadores
orientando seus julgamentos sobre elas em dado momento. Diante disso,
minhas perguntas seguintes foram: 1) o que poderia estar em jogo quan-
do uma novela deixava de ser percebida como algo mais do que um “mero
produto de entretenimento” (mercadoria) ou uma “novela comum” para
ser julgada como uma “obra de arte” pelos telespectadores?; 2) por que isso
ocorria com essa ou aquela telenovela e não com todas ao mesmo tempo, já
que todas eram produzidas da mesma forma?; 3) que tipos de eventos pode-
riam deflagrar uma determinada forma de percepção – logo, de repercussão
– marcada por um processo de singularização que levava ao entendimento
de que tal ou qual novela era um “símbolo nacional”? Para responder a tais
questões, o acompanhamento da recepção de uma determinada telenovela
foi fundamental.
Uma oportunidade para fazer tal estudo qualitativo aconteceu em
1985, quando soube pela imprensa que a novela de Dias Gomes, Roque

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 73


Santeiro, iria ser novamente produzida 10 anos depois de ser censurada pelo
governo militar. Uma vez tendo obtido permissão para acompanhar as gra-
vações de Roque Santeiro, pude observar que, de fato, havia uma diferença
importante dessa novela em relação às demais que estavam sendo produzi-
das naquele mesmo momento. A primeira delas residia na própria história
de Roque Santeiro. Apesar disso, o trabalho de campo iniciado bem antes da
estreia da novela deixou evidente que, a despeito dos significados particula-
res atribuídos por autores, equipe técnica e atores, a novela não havia sido
identificada ainda como um grande fenômeno de massas, algo que iria mu-
dar os rumos da história da telenovela e da televisão em nosso país. De fato,
essa percepção só veio a acontecer depois que entrou em cena o julgamento
dos telespectadores, não apenas por meio da aferição dos índices de audiên-
cia, mas também por conta das primeiras reportagens sobre a repercussão
da novela, sobretudo porque virou um tema de conversação obrigatória em
todo o país.
Em suma, a partir de sua transmissão, Roque Santeiro passou a ser
“apropriada” pelos telespectadores como uma síntese da sociedade/cultu-
ra brasileira, uma “metáfora do Brasil”, permitindo-nos examinar de perto
o modus operandi pelo qual uma novela deixa de ser um mero “produto”
midiático e torna-se um “símbolo nacional” quanto mais os telespectadores
passem a exercer de fato sua soberania e autoridade como telespectadores
(consumidores) ao proporem diferentes associações e aproximações entre a
novela e a vida real, até o ponto de transformá-la numa representação icôni-
ca da realidade. Evidentemente, a unanimidade nacional alcançada em tão
pouco tempo de transmissão, juntamente com as associações feitas de ime-
diato pelo público com a novela e suas personagens, mudaram totalmente as
percepções construídas até então pela equipe e pela emissora.
O ponto crucial desse evento é que, desde então, até o último capítulo,
a novela não foi mais tratada e percebida por nenhum grupo da sociedade
brasileira como um simples “produto” da indústria cultural. A partir de então,
Roque Santeiro foi assimilada como um evento singular, um “símbolo sagra-
do”, pois havia se tornado um monumento vivo da “brasilidade”, um símbolo
audiovisual da chamada “cultura e identidade nacional brasileira”. Portanto,
a transmissão e a recepção da novela nos pôs diante de um fenômeno social
importante: a intervenção da cultura na trajetória social de um determinado

74 Laura Graziela Gomes


produto, que passou a ser então singularizado a ponto de ser “sacralizado”,
separado, distinguido de seus semelhantes (as novelas comuns).
Diante do exposto, cabe então perguntar: que propriedades intrínse-
cas a estória da novela trazia consigo e que, somadas às condições e circuns-
tâncias de sua recepção influenciaram a percepção dos telespectadores e o
seu engajamento no sentido de transformá-la num feito extraordinário da
televisão brasileira? Será que havia nessa novela algo tão excepcional que
conferia a ela esse sentido extraordinário? É exatamente nesse momento que
temos a intromissão da cultura, porque verificou-se ao mesmo tempo que
Roque Santeiro narrava uma história familiar a todos nós, brasileiros, qual
seja, a história de um “falso herói”, no caso um “falso santo”, cuja história
não passava de uma farsa montada pelos “poderosos de Asa Branca”. Essa
“farsa” era responsável pela riqueza econômica da cidade, pois havia sido
diretamente responsável por ela ter se tornado uma cidade mística, ponto de
encontro de romarias e romeiros em busca de milagres.
Mas como uma história que era familiar a todos poderia fazer tanto
sucesso? Diante disso, o próximo passo foi observar como a narrativa desse
enredo familiar, na verdade presente em várias outras narrativas, tais como
contos populares, literatura, estavam sendo atualizados na novela, fazendo
com que ela mudasse radicalmente sua trajetória, transformando-a numa
novela exemplar. A esse respeito é preciso mencionar Kopytoff (Appadurai,
2008), para quem uma das características essenciais do consumo moderno
é o fato de os bens possuírem uma vida social, isto é, de como suas “bio-
grafias” podem ser acidentadas e, através do seu estudo, revelarem muitos
aspectos sobre a natureza das trocas simbólicas e as relações sociais de uma
dada sociedade.
O argumento apresentado acima é particularmente importante por-
que, ao passar a observar a recepção de Roque Santeiro, verifiquei que ela
estava sendo singularizada, exatamente porque estava sendo experimentada
como uma “narrativa coletiva”, na qual todos se incluíam, se reconheciam
e com a qual se identificavam. Ao mesmo tempo, é importante destacar, as
qualidades intrínsecas de Roque Santeiro não diziam respeito somente ao
enredo, mas também à linguagem utilizada para narrar a história, o que fa-
cilitou mais ainda o engajamento e a identificação do público com a novela.
É verdade que ao realizar o levantamento desses atributos, concluí que eles

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 75


não diziam respeito apenas a essa novela, mas a outras novelas que tiveram
um destino semelhante e, de certa forma, foram responsáveis pela consoli-
dação de uma linguagem televisual brasileira. Porém, naquele momento e
contexto, combinada a um enredo específico, Roque Santeiro obteve uma
trajetória espetacular ao apresentar uma discussão acerca da construção
da verdade e da mentira em nossa sociedade, pelo viés do conhecimento do
senso comum e das circunstâncias em que ele assume sua legitimidade cul-
tural plena e incontestável, na definição da realidade por excelência.
Em seu artigo “O senso comum como um sistema cultural”, Geertz
(1999) define o senso comum como um sistema cultural nem sempre muito
integrado, mas que é de conhecimento geral e partilhado por todos. Geertz
usa a metáfora de subúrbio para dizer que o conhecimento do senso co-
mum está para o conhecimento formalizado, assim como o subúrbio estaria
para o centro da cidade. Para ele, é “aquilo que resta quando todos os tipos
mais articulados de sistemas simbólicos esgotaram suas tarefas, ou aquilo
que sobra da razão quando suas façanhas mais sofisticadas são postas de
lado” (Geertz, 1999, p. 140). O senso comum é composto por “sistemas que
surgiram e se expandiram ao redor do emaranhado de práticas herdadas,
crenças aceitas, juízos habituais e emoções inatas, existentes anteriormente”
(Geertz, 1999, p. 112).
A citação acima toca de perto nos problemas relacionados à carpinta-
ria das telenovelas e nas tentativas de escritores, produtores e diretores de in-
troduzir inovações no gênero, muitas vezes ignorando limites culturalmente
estabelecidos para se narrar e, consequentemente, para se mexer nos modos
e nos estilos de narrativas consagrados por uma sociedade. Como observou
Margareth Mead, citada por Igor Kopytoff, “uma maneira de entender a cul-
tura é ver que tipo de biografia ela considera representativa de uma carreira
social bem-sucedida. É evidente que o que é considerado uma vida bem vi-
vida numa sociedade africana é diferente do que seria aceito como uma vida
bem vivida ao longo do rio Ganges, ou na Bretanha, ou entre os esquimós”
(Appadurai, 2008, p. 91).
Essas considerações ajudam a entender porque algumas “novelas
não fazem sucesso” ou fazem “menos sucesso” que outras, independente
do investimento na produção. Nesses casos, fica evidente que se o públi-
co não consegue identificar na novela modelos culturalmente consagrados

76 Laura Graziela Gomes


de biografias de pessoas e coisas, inclusive se identificar ou se reconhecer
nela, a novela pode estar a meio caminho da rejeição. Enfim, quanto mais ela
frustra as expectativas e a autoridade do senso comum a esse respeito, mais
ela poderá ser recusada e, portanto, ser confinada a circular apenas em um
determinado circuito de trocas. Posso então depreender um segundo fato
importante: é provável que quanto mais os produtores de uma novela pre-
tendam singularizá-la antecipadamente, mais o público poderá rejeitá-la. Se
isso acontecer, posso supor junto com Geertz que, na verdade, o público está
rejeitando a pretensão de alguém lhe dizer que tal história é melhor contada
dessa forma do que daquela outra em que ele foi acostumado. Para Geertz, a
autoridade do senso comum permite a qualquer pessoa acreditar ser capaz
de entender uma história desde que narrada adequadamente (Geertz, 1999).
Temos então um fato igualmente importante que relativiza as inter-
pretações correntes sobre a representação de que o telespectador é sempre
e completamente manipulado, de que ele não consegue exercer nenhuma
forma de autoridade. Não é verdade, basta observarmos o que aconteceu a
partir do momento em que houve mais opções, como a TV por assinatura e
a própria internet. Uma análise comparativa entre “novelas que fazem muito
sucesso” e “novelas que fazem pouco sucesso” permite-nos dizer que as se-
gundas servem para desmentir empiricamente a interpretação maquiavéli-
ca, em favor de uma percepção do público, na qual este entra algumas vezes
como o único fator capaz de jogar completamente para o alto as poderosas e
muito bem construídas estratégias de marketing das emissoras. De qualquer
maneira, o fato de uma novela “pegar” ou “não pegar” sinaliza não apenas “o
quanto”, mas também “o como” ela está sendo apropriada.
Recorrendo ao ensaio de Geertz, podemos avançar em nosso argumen-
to que uma telenovela deixa de ser um “produto”, um “objeto comum”, para se
tornar possivelmente um emblema da “identidade nacional brasileira” todas
as vezes que, os telespectadores reafirmam a autoridade do senso comum.
Esse fato foi tão marcante no caso de Roque Santeiro que, numa consulta feita
ao público pela TV Globo no programa Fantástico, aquele votou contra a re-
velação do “falso milagre” para a “população de Asa Branca”, mesmo sabendo
que essa população representava a população brasileira, já que Asa Branca
foi considerada por todos “uma metáfora do Brasil”. Na ocasião perguntáva-
mos o que então levou esse público a “agir contra seus próprios interesses”?

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 77


Alienação? Solidariedade aos poderosos? Cabe então esclarecer o que naque-
le momento e contexto, estava subentendido como senso comum na socieda-
de brasileira, segundo as propriedades destacadas por Geertz: naturalidade,
praticabilidade, leveza, não metodicidade e acessibilidade.

Naturalidade
Um dos fatores mais importantes relacionados à transmissão e recepção de
Roque Santeiro foi o tom ao mesmo tempo de naturalidade e realismo cons-
truído a partir do compromisso com as “estruturas de plausabilidade” e com
as “redes conversacionais” (Berger e Luckmann, 1979) legitimadas na socie-
dade brasileira, impresso do princípio ao fim, para lidar com os ingredientes
farsescos, fantásticos e sobrenaturais da narrativa. Em nenhum momento de
Roque Santeiro pareceu estranho aos telespectadores que um “fato” pudesse
ser ao mesmo tempo percebido como uma “farsa” (uma mentira) e um “mi-
lagre” (um fato verdadeiro) mesmo depois do conhecimento de todos de que
tudo, de fato, havia sido uma farsa. Essa representação da realidade como
“farsa” e “milagre” ao mesmo tempo é bastante familiar ao brasileiro e faz
parte do sistema cultural não formalizado. Está presente nos mitos, nos con-
tos populares e mesmo na literatura. Personagens como Pedro Malasartes
e Macunaíma transitam nesse espectro. Roberto DaMatta, em seus estudos
sobre o malandro (farsa) e o renunciador (sobrenatural), também destacou
ambas as possibilidades e de como uma personagem pode transitar de uma
posição para a outra.
Mas, ainda em Roque Santeiro, tivemos uma cidadezinha do interior
brasileiro – Asa Branca – catapultada à condição de “metáfora do Brasil”, tan-
to pelos produtores quanto pelos consumidores. Essa perspectiva metoní-
mica e de síntese da realidade, onde se toma a parte pelo todo é também
familiar ao brasileiro por ser uma qualidade das narrativas orais e míticas.
O mesmo ocorre em inúmeras circunstâncias com relação ao futebol e ao
carnaval, quando são tomados para representarem o Brasil, os brasileiros e
as inúmeras situações da vida social brasileira. Embora em 1985 a sociedade
brasileira já fosse, em sua maior parte, urbana e industrializada, algo que po-
deria pôr em risco a associação do Brasil (o plano nacional) com uma cidade-
zinha do interior (local) nordestino, no entanto, ela foi perfeitamente aceita

78 Laura Graziela Gomes


como algo “natural” e pertinente pelos telespectadores (mesmo os dos gran-
des centros urbanos) que não apenas entenderam as “intenções” do ­autor,
como também as desenvolveram para além de suas expectativas.

Praticabilidade e leveza: a telenovela como “enciclopédia oral”


Para Geertz, a praticidade do senso comum está relacionada à utilidade e aos
objetivos imediatos da sociedade em questão. Todos entenderam, portanto,
o ponto de vista de Sinhozinho Malta e de outros poderosos quando, diante
do retorno repentino de Roque Santeiro, tentaram impedir a revelação da
verdade. Como disse anteriormente, a telenovela no Brasil não é/era somen-
te um entretenimento. Ela também se legitimou porque possui ou possuía
uma utilidade prática de orientação/navegação social, ao vir de encontro a
uma importante necessidade, qual seja, a de ser um dispositivo pedagógico
e de memória – uma mnemotécnica – que garantia aos telespectadores não
letrados ou não plenamente letrados o acesso a informações de conteúdo
social e cultural relevantes que, de outra forma, eles não teriam acesso, caso
não tivessem acesso à televisão, especialmente em uma sociedade em que a
escolaridade continuava não sendo acessível à grande parte da população
e onde, ao contrário da escrita, a oralidade continua a ser tecnologia inte-
lectual predominante (saber prático, conhecimento tácito) como forma de
transmissão do saber.
Assim, diante do conflito ético e moral instaurado entre os “poderosos
de Asa Branca” e os “defensores da verdade” liderados por Luís Roque e Padre
Albano, nada como a qualidade da praticabilidade no sentido estritamente
pragmático, expressa nas imagens do progresso da cidade após o mito, de
um lado, e a possibilidade da destruição da cidade, de outro lado, para confe-
rir dramaticidade à narrativa e à própria análise do telespectador. De fato, no
plano real, é praticamente impossível se fazer uma análise bem-sucedida das
mudanças e transformações ocorridas na sociedade brasileira nas últimas
seis décadas sem incluirmos os desvios e a corrupção como parte desse pró-
prio processo de modernização da sociedade, capaz de conciliar ao mesmo
tempo mudanças e continuidades, tanto em nível nacional, como local (re-
gional), sem as quais uma “unidade nacional” seria impossível pela natureza
e grau das desigualdades sociais que a sociedade apresentava.

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 79


Não metodicidade e acessibilidade: televisão versus escola; oralidade
versus escrita
Roque Santeiro corresponde exatamente ao que Geertz (1999, p. 137) escre-
veu: “o saber do bom senso é, descarada e ostensivamente, ad hoc. Vem na
forma de epigramas, provérbios”. Se considerarmos a ideia de que a televi-
são, em especial a telenovela, é um “pot pourri de conceitos discrepantes”
jogado em cima de um público em sua maioria não letrado ou que possui
uma educação formal deficitária, sem dúvida alguma, tenderemos a ver as
telenovelas como algo nefasto. Mas quando constatamos que a escola não
se universalizou para a grande maioria da população brasileira temos de re-
pensar essas representações e a telenovela pode assumir outros sentidos. De
acordo com depoimentos e entrevistas de muitos professores de 1o e 2o graus,
a educação básica no Brasil permanece um desafio não apenas por causa dos
problemas relativos à carência de recursos, ou devido à falta de interesse e,
consequentemente, a apatia demonstrada pelos alunos (particularmente os
adolescentes) a tudo o que se refira à educação formal. Em contrapartida, o
acesso às estatísticas do IBGE e do Ibope apresenta outra face da realidade:
nas últimas décadas o número de aparelhos de televisão no Brasil atingiu a
marca de 97,5% dos domicílios. Com a crescente oferta e facilidades de con-
sumo, as famílias tendem a possuir mais de um aparelho de TV, além dos
equipamentos e suportes digitais, como laptops, smartphones etc. Os índices
do Ibope mostram ainda que a duração de tempo que um jovem brasileiro
(entre 10 e 16 anos) fica exposto à programação diária de TV não é inferior
a quatro horas diárias. É verdade, que dependendo do segmento social, esse
índice pode aumentar ou diminuir, mas é importante termos em mente os
motivos pelos quais a televisão e mais recentemente a internet seduzem os
jovens e, nesse caso, admitirmos a hipótese de que a televisão e a telenovela
realmente “ensinam” algo mesmo que diferentemente da educação escolar
formal. Assim, é preciso definir a natureza desse ensinamento.
Chegamos então à última “quase-qualidade” apontada por Geertz, a
acessibilidade. Roque Santeiro atingiu 100% de níveis de audiência durante
toda a sua transmissão. É um fato histórico, o que significa dizer que os te-
lespectadores abrangeram o amplo espectro social da população brasileira.
Todos que a assistiram a discutiram com propriedade sem necessidade de

80 Laura Graziela Gomes


se colocarem como especialistas ou peritos, mas somente pelo fato de com-
partilharem um conhecimento comum a partir de sua própria condição de
brasileiros.
Embora em 1985 a sociedade brasileira já fosse eminentemente urba-
na, ela não era, em sua grande maioria, escolarizada e tal fato permite le-
vantar questões quanto ao caráter político da telenovela, pois, no limite, a
história que ela conta não contempla nenhum processo de mudança calca-
do em valores ou ganhos considerados como aqueles que dizem respeito à
cidadania moderna ou às democracias modernas. A despeito do grande su-
cesso da novela e do reconhecimento de seu valor cultural, não é por acaso
que a principal emissora do país continuou sendo objeto de suspeitas dos
intelectuais politicamente engajados e interessados nas mudanças sociais
estruturais. Se é verdade que a população não letrada, através das telenove-
las toma contato ou é apresentada às “principais questões nacionais”, isso
não significa que ela adquire as competências para lidar politicamente com
elas. Em 1989, quatro anos depois da transmissão histórica de Roque Santei-
ro, a mesma emissora esteve diretamente envolvida nos acontecimentos que
precipitaram e que levaram à eleição do então candidato Fernando Collor de
Mello, tendo sido responsabilizada diretamente por eles.

TV por assinatura e mídias digitais


Como disse, uma mudança significativa desse paradigma midiático, até en-
tão bem-sucedido, fundado na autoridade do senso comum, em estilos nar-
rativos que pudessem promover as mediações socioculturais necessárias e
cujo suporte eram as tecnologias audiovisuais (rádio e tevê), no Brasil, en-
carnado em uma rede formada por uma mesma emissora, começa a ocorrer
com a chegada da TV por assinatura e da internet no Brasil, a partir do final
do século XX (1990) e início do século XXI (2000 em diante), consequente-
mente alterando as regras, os hábitos e as relações entre consumidores/fãs e
autores/produtores. Independente de considerar os aspectos eminentemen-
te técnicos, físicos e materiais das novas tecnologias, é preciso ter em con-
ta que, junto com elas, mudou-se inteiramente a linguagem e, portanto, os
pressupostos cognitivos e regimes retóricos vigentes até então, alterando-se
concomitantemente as formas de percepção da realidade e também o gosto.

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 81


Fansites
Foi no início do século XXI que passei a investigar audiências de seriados
de tevê norte-americanos e acabei por optar por pesquisar telespectadores e
fãs brasileiros de uma série estadunidense de grande sucesso, CSI Las Vegas,
transmitida no Brasil, a partir de 2001, em um canal de TV por assinatura
(AXN). Naquela ocasião, encontrei um ambiente midiático bem diferente em
relação àquele que havia estudado nos anos 1980, pois na primeira década
do século XXI, as séries norte-americanas já competiam abertamente com
as telenovelas no gosto de uma geração de telespectadores mais jovens, eli-
tizados, formadores de opinião que não possuíam mais o hábito de assistir
à tevê aberta, pois já a haviam substituído pelos canais de assinaturas e pela
internet.
Para essas pessoas, assistir e ser fãs de séries norte-americanas de tevê
envolvia, entre outras mudanças, uma mudança de gosto do ponto de vista
narrativo e estético, o que de imediato equivalia a um rompimento com os
“acordos tácitos” implícitos nas telenovelas (televisão aberta) em relação à
autoridade do senso comum, nas “estruturas de plausabilidade” e nas “re-
des conversacionais” (Berger e Luckmann, 1979) tradicionais legitimadas na
sociedade brasileira, corroborando e facilitando uma postura mais crítica
em relação à qualidade da programação da televisão aberta, especialmente
em relação às telenovelas. Além disso, o ato de consumir e fruir séries norte-
-americanas envolvia muitas e variadas práticas, pois além de assisti-las em
um canal por assinatura, era importante comentá-las, discuti-las no ambien-
te digital, isto é, em listas/grupos de discussão, fóruns, blogs e redes sociais
(e também no Orkut, a partir de 2004). Dessa forma, consumir séries de tevê
naquele momento significou para os “fãs” adquirirem um conjunto de com-
petências cognitivas que lhes permitiam desfrutar de plataformas e ambien-
tes digitais onde passavam boa parte do tempo discutindo detalhadamente
episódios das séries preferidas, postando muitos conteúdos relacionados a
elas, enquanto se interagia com os demais fãs, tudo isso – muito importante
– sem a mediação ou controle de empresas de comunicação, principalmente
no que se referia à produção de seus próprios conteúdos, artefatos digitais
muito variados, feitos por eles próprios (fãs), como ícones, gifs, fanvídeos,
fanfics ou fotos manipuladas das cenas e das personagens preferidas. O fato

82 Laura Graziela Gomes


mesmo de termos as fanfics como uma das práticas regulares de apropriação
(consumo) das séries já denunciava que o pressuposto da oralidade, domi-
nante na televisão aberta não era mais dominante entre esses consumidores.
Com o objetivo de averiguar os sentidos atribuídos para todas aquelas
práticas e “objetos” ou conteúdos que os fãs faziam e compartilhavam nos
fóruns, blogs e comunidades do Orkut, passei a segui-los e a agir também
como eles, realizando as mesmas práticas em relação às séries (Gomes, 2007).
Então, não somente passei a “estar lá”, nesses ambientes digitais, passando
a frequentá-los assiduamente, como também passei a me dedicar a fazer
as fanarts. Após me submeter a todas essas práticas, pude então aprender
a lição que meus interlocutores procuravam me passar – qual seja, a de que
assistir e apreciar uma série não se limitava a assisti-la somente, mas discuti-
-la, analisá-la, além de criar objetos que expressassem a devoção do fã por
ela. Nesse contexto, a reflexividade não estimulava apenas os vínculos com
a série, autores e atores, mas também os vínculos entre os membros da lista,
fórum ou comunidade. No caso de muitas fanfics que li na ocasião sobre CSI,
elas tinham como motivo, além das discussões acerca da ciência forense,
das práticas científicas, laboratórios, discussões também sobre as relações
pessoais entre as personagens, tendo em vista o caráter, as subjetividades,
a psicologia delas em função de seus dramas pessoais, o que me permitiu
observar o quanto os fãs eram afetados emocionalmente por elas e pela série
como um todo.
Para mim, tratava-se de uma forma de consumo completamente iné-
dita se comparada àquela predominante na televisão aberta. Nesse caso,
o consumo de determinados bens, como as séries, acarretava formas de
apropriação e singularização que resultavam em outros bens, envolvendo,
da parte dos fãs, o manejo de diferentes plataformas (softwares), formas de
expressão, linguagens e narrativas, a partir das quais aqueles novos bens cir-
culavam, eram apropriados e incorporados. Então, o que se compartilhava
não eram apenas os “significados” das tramas negociados nos fóruns de dis-
cussão, mas também esses novos objetos e, fundamentalmente as “experiên-
cias” envolvidas na criação deles, a partir das emoções e afetos que a série
proporcionava e que, portanto, se encontravam inscritas em grande medida
nas fanarts produzidas e compartilhadas pelos fãs através dos fóruns e co-
munidades. Em suma, ao contrário da cultura televisual tradicional, baseada

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 83


nas novelas, as séries promoviam um tipo de apropriação que incluía o en-
gajamento e a intervenção ativa do fã, tudo isso a ser compartilhado com os
demais numa plataforma digital na forma de um outro bem cultural.
Na ocasião em que realizei meu trabalho de campo, busquei acompa-
nhar grupos e comunidades que tratassem das telenovelas. Encontrei vários,
mas não vi nada semelhante ao que ocorria nas comunidades que discutiam
as séries que eram totalmente controladas e administradas pelos fãs. Em
­algumas tentativas que fiz de propor discussões sobre a carpintaria das tele-
novelas ou mesmo acerca da qualidade das tramas, fui hostilizada por invo-
car as séries como termo de comparação, tendo constatado ainda a presença
de pessoas ligadas à emissora monitorando essas comunidades, buscando
se impor como mediadoras ou administradoras das discussões. Diante disso,
achei que não valia a pena prosseguir com minhas participações e incluir as
telenovelas na discussão.

Ambientes imersivos: Second Life e games


O terceiro momento de pesquisa teve início em 2007, quando ingressei no
Second Life. Naquela ocasião, não havia muitos outros MMORPG (Massively
Multiplayer Online Role-Playing Games)4, então o estranhamento foi muito
grande e tudo representava uma grande novidade. Meu primeiro problema
em campo foi ter que me deparar com a diferença entre interatividade e
imersividade, esta última, característica das interfaces 3D, tomando cuidado
para não naturalizar questões como conexão e deslocamento, não perden-
do de vista que o “estar lá dentro”, em um ambiente imersivo, pressupunha
formas de percepção distintas, portanto, não era a mesma coisa de estar
­conectada, interagindo nas redes sociais, por mais que minhas interações
nelas pudessem ser frequentes e intensas, a ponto de se tornarem absorven-
tes, como aconteceu com os fóruns e as comunidades sobre séries de televi-
são no Orkut.
No meu caso, e isso vale ainda para os tempos atuais, estar logada no
Second Life (SL) implicava “atravessar” duas fronteiras importantes: estar

4 Disponível em: https://pt.wikipedia.org/wiki/Massively_multiplayer_online_role-playing_


game. Último acesso em: 13 abr. 2016.

84 Laura Graziela Gomes


on-line no SL significava, de fato, um afastamento do “aqui e agora” off-line,
mas, ao mesmo tempo, significava entrar em conexão com outra temporali-
dade diferente do on-line 2D. Assim, a questão da conectividade passou a ser
tema de reflexão, inclusive no que dizia respeito à consciência e não natura-
lização dos aspectos mais técnicos dela, na medida em que, diferentemente
do que ocorria com as interfaces 2D e as redes sociais, no novo ambiente di-
gital, o hardware se impunha como um requisito fundamental e fazia toda a
diferença para a qualidade do consumo – fruição e experiência nesses novos
ambientes “on-line”.
Nesse sentido, uma das consequências de minhas experiências imer-
sivas foi que me senti obrigada a repensar toda minha relação com o compu-
tador tendo em vista os modos de uso anteriores, já que, enquanto usuária
somente de plataformas em interfaces 2D, elas não constituíam exatamente
um problema ou questão para mim, ao contrário do que ocorreu quando co-
mecei a frequentar o SL. Nesse caso, a necessidade imperiosa de ter uma má-
quina mais robusta para rodar o sistema da Linden Lab (LL)5 e aguentar horas
seguidas de imersão me obrigou a pensar no papel do hardware, da mecatrô-
nica, qual seja: saber distinguir os componentes do equipamento, saber a di-
ferença entre uma placa de vídeo dedicada e uma placa on-board, distinguir
fabricantes, saber como as placas funcionam, como devem ser configuradas
para fazer toda a diferença para quem acessa o SL, tendo em vista as necessi-
dades e atividades naquele ambiente. Em seguida, outra questão importan-
te foi resolver o problema da conectividade. Não era suficiente ter um bom
equipamento, era fundamental ter também acesso garantido a um provedor
de banda larga de alta velocidade e de boa qualidade. Isso me obrigou a fazer
um investimento tanto em termos econômicos quanto técnicos, mudar de
provedor e instalar uma nova rede de banda larga em minha residência.
Tendo resolvido minha nova relação com o equipamento e com a
­conectividade e uma vez estando “lá dentro”, tive de enfrentar a outra ques-
tão fundamental que se apresentou a mim, como de resto a qualquer pessoa
que pretenda ingressar nesse ambiente, qual seja, saber lidar com o próprio
sistema que rege aquele mundo, e, mais ainda, saber lidar com todos os obje­
tos digitais nele existentes, no caso, começando pelo próprio avatar, sem o

5  Empresa proprietária do mundo virtual Second Life.

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 85


qual é impossível entrar e habitar aquele mundo. Como venho sustentando
desde então, no Second Life possuir um avatar não é uma trivialidade; ele não
é apenas um “dado” do sistema. Em termos antropológicos e sociotécnicos,
o avatar é o “nativo”, e é somente através dele que qualquer usuário pode
pensar em conquistar, habitar, viver, criar e partilhar as demais coisas exis-
tentes nesse mundo. Nesse sentido, o avatar (objeto técnico) é quem possui
centralidade no Second Life, não o humano que está por trás dele, e esse fato
possui muitas e complexas implicações, porque embora “eu” me conecte ao
“meu” avatar, ele não é exatamente “meu”, tampouco meramente um “subs-
tituto” ou uma “extensão” de mim. Além de o avatar não me pertencer, ele
está separado do meu corpo material, encontra-se dentro do computador, eu
dependo de um equipamento e de um sistema para alcançá-lo.
Como disse, ele é gerado pelo sistema e, portanto, faz parte dele, mas
ao mesmo tempo, ele só “nasce” quando eu acesso minha conta pela primei-
ra vez e, nesse sentido, ele se torna intransferível. Do ponto de vista da LL é
proibido uma pessoa passar sua conta para outra, ou seja, passar seu avatar
para outra. Se ela o fizer, e a empresa descobrir, sua conta será imediatamen-
te bloqueada. Mas essa ambiguidade não se refere somente ao avatar, pois o
“mundo” com tudo o que existe nele pertence também à empresa proprietá-
ria, bem como é administrado por ela. É sempre bom lembrar que se a em-
presa quiser, ela pode bloquear minha conta e a de qualquer outro usuário,
o que significa que não poderemos acessar mais nossos avatares, a despeito
de termos com ele um vínculo afetivo forte. Diante disso, imaginar que um
residente do SL está no comando das ações e situações é não se dar conta
das relações sociotécnicas complexas que se estabelecem entre humanos-
-residentes, suas criaturas digitais, o sistema e a empresa proprietária, inclu-
sive, quanto às relações de poder às quais passam a estar submetidos, pelo
simples fato de gostarem e quererem passar algumas horas imersas nesses
ambientes conectados a essas criaturas. Mais ainda, é não se dar conta do
poder de agência que esse mundo possui, ao ponto de afetar, inclusive, nos-
sas próprias percepções sobre nós mesmos.
O primeiro sinal de que nos encontramos afetados é justamente quan-
do constatamos que estamos e permanecemos ali, porque desenvolvemos
sentimentos profundos por nossos avatares, ao ponto de termos com eles
relações de cuidado especiais, além de passarmos muitas horas com eles

86 Laura Graziela Gomes


fazendo vários procedimentos para singularizá-los, afastá-los cada vez mais
de sua condição e aparência genérica inicial. Mas não é só isso. Uma vez “lá
dentro”, esse laço ou vínculo entre o usuário humano e seu avatar, absoluta-
mente necessário, não é, e não torna nada trivial. Ao contrário, pode por em
destaque alguns aspectos da subjetividade do usuário que a vida “do lado de
cá” encobria. Nesse sentido, posso dizer que fazer a etnografia do/no “lado
de lá” da tela, obrigou-me a aprender a “jogar o jogo” de saber fazer esses
deslocamentos entre “lá e cá” de modo que pudesse vislumbrar e compreen-
der diferentes alternativas de “ser eu” e estar no mundo, mas ao mesmo tem-
po encarando o desafio de manter a autonomia de ambos os lados e do “aqui
e agora” (que também se desdobra em dois tempos paralelos), tanto do “lado
de lá” (SL) quanto do “lado de cá” (RL) (Gomes e Leitão, 2011).
Como ocorreu com a situação de pesquisa anterior, essa pesquisa me
obrigou a aprender e exercitar novas competências cognitivas e subjetivas.
Quanto a esta última, gostaria de me referir ao que venho chamando de
“dividuação” em que o “eu” do usuário apresenta-se fragmentado, sem que
esse estado seja percebido como uma anormalidade ou uma incapacidade,
mas, ao contrário, um exercício de alteridade que ele experimenta consigo
mesmo, algo que “ali dentro” é consentido socialmente. De uma forma ou
de outra não é nada trivial uma empresa de tecnologia garantir a milhares de
pessoas no mundo a possibilidade de viverem em dois mundos/espaços pa-
ralelos diferentes, em corpos distintos, identidades distintas e papéis igual-
mente distintos e, dessa forma, poderem vivenciar e experimentar esse pro-
cesso de dividuação. Por isso mesmo, pretender analisar esse mundo com a
perspectiva somente do “lado de cá”, sem haver construído uma perspectiva
interna, êmica do “lado de lá” é fazer uma simplificação e recusar o desafio
de compreendermos o que temos pela frente em termos de possibilidades de
existir, ser e estar no mundo ou mundos.
Não por acaso, nas primeiras imersões no Second Life, minha expe-
riência de estranheza me fazia lembrar recorrentemente o livro de Lewis Ca-
roll, Alice no País das Maravilhas. Para quem conhece/leu o livro de Carroll,
a experiência etnográfica no Second Life exige que o antropólogo realmente
suspenda suas pré-noções e abandone suas pretensões de conhecer aque-
le ambiente a partir das categorias do senso comum ou das regras que co-
mandam a nossa vida cotidiana, o “aqui e agora”. Essa nova perspectiva que

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 87


se abre para nós, de podermos nos deslocar ou deslizarmos através de uma
superfície plana – a tela – e imergirmos e caminharmos para um “dentro que
fica do outro lado” que no limite corresponde a uma ilusão ou impressão
provocada em nosso cérebro a partir da tecnologia (no caso possível, graças
às placas de vídeo), enfim, experimentarmos aquele ambiente como se ele
tivesse realmente 3 dimensões, e nele habitarmos um segundo corpo assu-
mindo um second self (Turkle, 2005), é, sem dúvida, uma das experiências
mais estranhas, fascinantes, maravilhosas e também assustadoras.
Mas sabemos que as plataformas imersivas não se restringem ao Se-
cond Life. Embora os games não ofereçam as mesmas condições de imersivi-
dade como a destacada acima, por se tratarem de estruturas mais fechadas,
o acesso a eles é bem maior que o SL, pois são mais acessíveis e abrem mui-
tas possibilidades para outras formas de interação no ambiente digital, além
da relação colaborativa e criativa entre produtores e consumidores. A esse
respeito, em 2015, a empresa Riot Games Inc., proprietária do jogo League
of Legends (LoL) – um dos jogos eletrônicos de maior sucesso no mundo –
lançou um documentário (Viver/Jogar)6, no qual apresentava a trajetória de
cinco jovens jogadores de países diferentes (Brasil, Coreia do Sul, Egito, EUA,
Islândia). Através dos depoimentos desses jovens e de suas respectivas expe-
riências como jogadores e fãs do LoL, o espectador é informado a respeito
das alternativas profissionais que se abrem para eles, enquanto jogadores:
game designer, atleta ou jogador profissional, cosplayer, artesão de robots,
entre outros. No caso de LoL, os depoimentos do vídeo destacam ainda que,
no caso dos jovens em questão, enquanto jogadores, fãs e apreciadores do
referido jogo, eles podiam desenvolver suas próprias criatividades, buscando
um lugar próprio no universo do game para nele se expressarem, além de
fazerem projetos de vida a partir dele.
No documentário, a representante brasileira é uma jovem cosplayer,
isto é, uma fã que se caracteriza como personagens (no caso, personagens
de LoL) e se apresenta em feiras e convenções. É bom lembrar que o cosplay7
não existe apenas em relação às personagens de games, mas a muitas outras
personagens e bens da chamada indústria cultural, como filmes, desenhos,

6  Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=DWBZw__6l2Q.


7  Ver https://pt.wikipedia.org/wiki/Cosplay.

88 Laura Graziela Gomes


HQs, séries, livros (como Harry Porter, Senhor dos Anéis) etc. Entretanto, no
que se refere aos games, eles vêm assumindo uma importância grande para
a divulgação e o crescimento desse mercado, atualmente um dos maiores da
indústria cultural. Apresentações de cosplayers estão praticamente presentes
em todos os eventos envolvendo a mídia eletrônica, tais como feiras, con-
venções e campeonatos de games. O documentário em questão mostrou a
jovem envolvida com essa atividade desde quando ela decide a personagem
com a qual vai se apresentar numa convenção onde vai haver um concurso
para, em seguida, mostrá-la envolvida com a confecção da fantasia, do co-
meço ao fim até o momento em que se apresenta no concurso em São Paulo,
cidade onde mora. Como ela mesma declara, sua intenção é se profissionali-
zar na produção desse tipo de produto.
Apesar disso, um episódio recente relacionado a uma reportagem feita
pelo UOL a respeito dos cosplayers permite percebermos o desconhecimento
e o estranhamento que a maioria do grande público experimenta diante des-
se tipo de fandom, dando a entender que, mesmo constituindo um grande
mercado, esses consumidores gamers e cosplayers permanecem invisíveis. A
matéria foi realizada por ocasião de uma feira de jogos em São Paulo, evento
que contou com apresentações de cosplayers. Após ter entrevistado alguns
deles, fotografado e filmado, jornalistas do site fizeram uma entrevista com
duas psicólogas. Ambas demonstraram um completo desconhecimento des-
se universo dos games e dos fandoms e teceram várias críticas a essa ativi-
dade, até finalmente patologizá-la. Imediatamente após o UOL ter postado
a matéria com a entrevista das psicólogas, cosplayers e fãs indignados com o
teor da matéria passaram a revidar no próprio site as críticas feitas, inclusive
reclamando da falta de ética dos jornalistas que postaram imagens de pes-
soas sem a autorização delas. Por conta da quantidade de críticas recebidas,
o UOL decidiu retirar a matéria do ar, juntamente com os comentários, o
que gerou mais indignação. As pessoas foram então para o YouTube8, onde
postaram novamente a matéria do UOL e continuaram a revidá-la através da
postagem de vídeos próprios.

8  Existe uma série de vídeos postados. Ver em: https://www.youtube.com/results?search_query


=polemica++uol+cosplayers.

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 89


O fato de terem escolhido o YouTube para fazerem seu desagravo ao
UOL não foi um mero acaso. Uma observação do YouTube pode dar uma
medida do que ele representa, pois se trata de uma plataforma global, uma
das mais acessadas no planeta, com um acervo gigantesco em termos de
conteúdos audiovisuais, cujo acesso é livre para qualquer pessoa que deseje
ver e/ou abrir uma conta gratuita para postar qualquer conteúdo. Além das
contas comuns, existe ainda uma categoria especial de usuários. Refiro-me
aos youtubers, usuários que abrem contas com o objetivo de compartilhar e/
ou postar conteúdos feitos por eles próprios, na maior parte das vezes sobre
algo de que gostam muito na condição de consumidores. Esses conteúdos
podem ser sobre bens materiais (produtos, marcas), bens culturais (games,
filmes, livros etc.) ou também sobre artistas ou celebridades. Os vídeos, além
de serem postados no YouTube, são também linkados em fóruns de discus-
são ou fansites (Gomes, 2007). Pelo fato de ser um consumidor contumaz
desses bens e objetos e publicar seus conteúdos sobre sua experiência como
tal, ele acaba por ser considerado uma referência, construindo uma reputa-
ção enquanto especialista, o que lhe dá aval para ser considerado por outros
fãs uma “autoridade” sobre aquele assunto, bem cultural, artista, celebridade
etc. Essa atividade recobre uma gama muito ampla e variada de pessoas de
um lado, e de bens e objetos de outro lado, e não se define tecnicamente
como publicidade, embora cada vez mais esteja sendo apropriada por ela.
Ora, se youtubers e fansites têm sido bastante eficientes como prin-
cipais divulgadores de uma variedade grande de bens culturais, materiais
e imateriais etc., podemos dizer, então, que a indústria cultural contempo-
rânea além de pressupor e se desenvolver a partir das tecnologias digitais,
se baseia também na “cultura do fandom” que, por sua vez, encontrou na
cultura digital as condições ideais para seu desenvolvimento, em função das
formas de interatividade, colaboração e compartilhamento que a internet
promove entre consumidores e produtores. Tudo isso significa dizer que, nos
tempos atuais, temos uma mudança significativa de paradigmas na indústria
cultural e o centro dessa mudança é, de um lado a cultura digital, as platafor-
mas digitais e, de outro, os consumidores que uma vez tendo migrado para
esse meio transformaram radicalmente seu papel. No atual contexto, se não
houver desvios de rotas estamos caminhando para sermos igualmente con-
sumidores e produtores ao mesmo tempo.

90 Laura Graziela Gomes


Conclusão
Se no início deste artigo falei a respeito dos limites culturais impostos às so-
ciedades sobre o que narrar, formas de narrar, modelos de biografias sociais,
etc, vale perguntar o que a era da internet nos reserva. No presente momento,
observo que ela vem permitindo uma maior diversidade de biografias pos-
síveis de serem narradas e performatizadas, a partir de conteúdos escritos
postados nas redes sociais e em outras plataformas, que podem vir acompa-
nhadas ou não de imagens, além de narrativas/performances propriamente
visuais, especialmente quando se trata de plataformas exclusivamente vol-
tadas para a circulação de imagens, fotos, vídeos e áudio como Flickr, Pin-
terest, Instagram, Tumblr, YouTube, Vimeo, Soundcloud, Spotify etc. para
mencionar as mais usadas e populares e, finalmente, não menos importante,
as interfaces 3D que vêm tendo grande adesão, tanto games como mundos
virtuais, cuja imaginária é bastante extensa, variada e que, graças às placas
de vídeo, vem alcançando níveis de qualidade nunca antes imaginadas.
No que tange à televisão aberta, ela não possui mais a mesma impor-
tância cultural e poder de persuasão de antes, pelo menos em relação a uma
parcela significativa das camadas médias brasileiras. Nos tempos atuais, a
internet vem superando a televisão em termos de legitimidade e reconheci-
mento intelectual. Em termos midiáticos, a construção social da realidade
não depende tanto do que é narrado e transmitido pela televisão (telejornais,
sobretudo), mas também, e cada vez mais, do que circula na internet, nota-
damente nas redes sociais. Através delas, a internet vem assumindo cada vez
mais o protagonismo na aferição e nas narrativas sobre a realidade nacio-
nal. Mais ainda, no Brasil, as redes sociais assumiram a condição de espaço
público onde ocorrem os principais debates públicos e por onde circulam
discursos públicos a respeito de pautas politicamente importantes da socie-
dade brasileira. Na verdade, o que temos hoje é uma disputa acirrada no que
se refere ao processo de construção da “verdade” na sociedade brasileira e
que passa pela crescente legitimidade das redes sociais, em detrimento do
declínio da confiança na mídia tradicional. Nas últimas eleições e na pre-
sente crise político-institucional (2015-2016), as redes sociais vêm cumprido
um papel importante no que se refere ao poder discricionário das redes de
televisão brasileira, notadamente a rede globo de televisão e todas as suas

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 91


afiliadas. No presente momento, perante um número cada vez maior de bra-
sileiros a emissora em questão tem tido inclusive a continuidade de sua exis-
tência posta em questão. Hashtags como #ForaRedeGlobo, #GloboGolpista e
#Felizsemglobo, entre outras, afora sua referência pelos grupos de esquerda
como Partido da Imprensa Golpista (PIG)9, têm sido usados amplamente nas
manifestações.
Embora, do ponto de vista da teledramaturgia, o gênero predominan-
te continue sendo as telenovelas, as emissoras que as produzem e transmi-
tem estão enfrentando muitos problemas para manterem a fidelidade de
audiência. De toda a forma, a telenovela perdeu a audiência das camadas
médias, aquelas que correspondem às parcelas da população mais escolari-
zadas. As razões para tanto são muito variadas e infelizmente não puderam
ser aprofundadas neste artigo. Em termos gerais, as telenovelas não acom-
panharam as mudanças significativas que ocorreram na sociedade brasilei-
ra, especialmente a partir da última década do século XX quando entraram
em cena fatores políticos e econômicos que alteraram significativamente a
paisagem socioeconômica da sociedade, isto é, melhorando as condições
de vida e o aumento do consumo de um grande contingente da população,
além da difusão do acesso às tecnologias digitais, especialmente da telefonia
móvel. Acostumadas durante décadas a pautarem a sociedade, a determi-
narem o que deve ser ou não ser discutido, as emissoras abertas de televisão
não conseguiram acompanhar e captar mudanças de gosto, sensibilidade e
de habitus em relação ao consumo, notadamente de bens culturais e, dessa
forma, incorporarem essas mudanças nas telenovelas. Estas seguiram sendo
produzidas a partir das mesmas estruturas de pensamento e representações
das novelas do passado, mantendo-se as principais características de outro-
ra, com a direção da emissora decidindo o que é ou não é relevante para ser
apresentado.
É nesse contexto que voltamos a falar da relevância da cultura digital.
Conforme tentei mostrar, ela se desenvolveu inicialmente no vácuo criado
pela própria televisão aberta e no interesse crescente pelas séries de televi-
são norte-americanas, tendo seus telespectadores elegido o ambiente digital

9  Referência e nome popularizado pelo jornalista Paulo Henrique Amorim, autor do blog Con-
versa Afiada e do livro O quarto poder (2015).

92 Laura Graziela Gomes


como meio privilegiado para o desenvolvimento de uma cultura do fandom
no Brasil. Nesse caso, com o desenvolvimento da cultura digital entre nós,
incluem-se não apenas fandoms de séries de televisão, filmes, HQs, mas todo
tipo de fandom relacionado a livros, artistas, celebridades, figuras públicas,
bem como aqueles vinculados a estilos de vida, gostos e/ou produtos pro-
priamente ditos (moda, comida, gadgets etc.). No caso dos chamados am-
bientes imersivos, 3D, o ciberespaço, temos não apenas os games nos seus
diferentes gêneros e modalidades de acesso, mundos virtuais etc., mas di-
retamente vinculado a eles, um tipo particular de fandom que é o chamado
cosplay. O interessante do cosplay relacionado às personagens de games, é
que ele via de regra promove também formas de sociabilidade presenciais,
como apresentações em festivais, encontros e convenções off-line.
Conforme afirmei, o fandom vem contemplar uma dimensão impor-
tante do consumo moderno, aquela que, segundo Campbell, diz respeito à
qualidade da experiência e é chamada por ele de hedonismo elusivo e/ou
imaginativo, mas que no mundo contemporâneo se bifurca em duas dire-
ções que se complementam e se alimentam reciprocamente: a primeira no
sentido da fruição do prazer e da emoção, abrindo as possibilidades percep-
tivas e da imaginação; e a segunda relativa aos rituais de posse, expressos
no conjunto de práticas ou modos de apropriação que misturam expertises,
competências e saberes que o consumidor adquire e desenvolve por con-
ta de seu engajamento com determinados bens culturais. Essa combinação
vem promovendo uma mudança significativa do papel do consumo e muito
especialmente da posição dos consumidores, uma vez que elas passaram a
ser francamente valorizadas como requisitos desejáveis, e cada vez mais ne-
cessários para o recrutamento de profissionais aptos a atuarem nesses mer-
cados criativos, tendo em vista a ampliação e a consolidação de mercados
baseados em inovação e criatividade.
Estamos testemunhando um momento em que a indústria cultural,
com base nas tecnologias digitais estão desenvolvendo instrumentos cada
vez mais eficazes para incorporarem o know-how acumulado pelos consu-
midores e fãs de forma a utilizá-lo para/na criação de novos produtos/bens
culturais. Muitas empresas estão desenvolvendo estratégias para amplia-
rem esses processos de incorporação e, um deles, passa pelo recrutamento
ostensivo de fãs e/ou produsers como profissionais. As empresas que estão

Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 93


fazendo isso de modo eficiente serão aquelas que estabelecerão os novos pa-
râmetros das economias criativas. A meu ver, esse constitui o principal traço
distintivo da nova economia cultural, isto é, a forma pela qual ela está orga-
nizando o trabalho criativo, basicamente em torno do desenvolvimento de
mecanismos de apreensão, conhecimento e apropriação da subjetividade e
das experiências desses “consumidores artesãos” (Campbell, 2004, p. 45-67)
ou produsers – uma categoria que traduz bem essa nova realidade ou para-
digma, pois ela inclui tudo aquilo que pode ser “criado” ou “produzido” p ­ elos
consumidores, a partir de seus modos de fruição e apropriação dos bens
culturais.
Para finalizar, é preciso dizer que, infelizmente, todos esses ganhos e
conquistas correm perigo nos dias de hoje. No presente momento em que
finalizo este artigo está em discussão uma nova regra que as operadoras de
internet fixa e móvel querem impor aos consumidores brasileiros, qual seja,
a de cobrarem o acesso estabelecendo-se limites de usos da internet para os
usuários finais. Estes teriam limites fixados pelos planos de acesso e, uma vez
ultrapassados esses limites, o fornecimento de internet seria interrompido.
Tal fato, diante do cenário político que está se vivendo neste momento confi-
gura-se como uma tentativa deliberada, muito provavelmente patrocinado e
incentivado pelos meios de comunicação tradicionais, alguns falidos e desa-
creditados, de se reverter todo o processo histórico de mudanças propiciado
pelo acesso à internet no Brasil. Se as regras forem realmente aprovadas e
postas em prática, não estaremos sendo controlados apenas em relação ao
consumo em termos de entretenimento audiovisual. Como tive oportunida-
de de postar em uma rede social, as regras impactam no próprio processo de
conhecimento, produção e circulação de bens culturais que têm como base
a inovação e a criatividade alimentadas pela rede mundial de computadores.

Referências
Berger, Peter L.; LUCKMANN, Thomas. A construção social da realidade. Petrópolis:
Vozes, 1973.
Campbell, Colin. A ética romântica e o espírito do consumismo moderno. Rio de Ja-
neiro: Rocco, 2001.

94 Laura Graziela Gomes


Certeau, Michel de. Artes de fazer. v.1. A invenção do cotidiano. Petrópolis: Vozes,
1994.
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Novas tendências e desafios metodológicos nos estudos de consumo midiático 95


5
Capítulo
Remix(ando) métodos
qualitativos para os contextos
das mídias digitais e sociais 1

Annette N. Markham

Há alguns anos, passei a me informar sobre todas as notícias mundiais uti-


lizando somente as minhas redes sociais pessoais, mais especificamente o
Facebook e o Twitter. Queria mergulhar na ideia de que “o mundo inteiro
e a nossa experiência vivida nele podem – e talvez devam – ser vistos como
moldados, atenuados e realizados imediatamente pelas mídias difundidas e
onipresentes” (Deuze, Banks e Speers, 2012).
Rapidamente deparei-me com situações que não vivenciaria de ou-
tras maneiras. Vi algumas tragédias bem de perto e pessoalmente, como as
enchentes de Queensland e os terremotos da Nova Zelândia (dois de meus
­colegas viviam em Brisbane, um em Christchurch). Aprendi muito sobre o
cenário musical na Inglaterra – segui um músico que tuitava muito e que
­vivia apenas a um fuso horário longe de mim. Assisti a vários vídeos da R
­ achel
Maddow e do Jon Stewart – já que a maioria dos meus amigos no Facebook
e no Twitter compartilhavam esses videoclipes. Li artigos de estudiosos que
eram postados quando estava acordada – e como estava na Dinamarca, isso
significava que minha transmissão era principalmente europeia.

1  Uma versão semelhante deste artigo apareceu no livro Global Dimensions of Qualitative In-
quiry (Dimensões Globais da Pesquisa Qualitativa), editado por Norman Denzin e Michael Giar-
dina (Left Coast Press, 2013).

97
Comecei a vivenciar uma compreensão polarizada e individualizada
do que estava acontecendo no mundo. “Homofilia”, um conceito que des-
creve o modo pelo qual as pessoas tendem a se congregar a indivíduos se-
melhantes, é um modo de descrever como nossas compreensões do mundo
são idiossincráticas, limitadamente canalizadas por nossas redes sociais, e,
portanto, polarizadas. Como Deuze, Banks e Speers (2012) escreveram:

enquanto as pessoas que utilizam a mídia são simultaneamente e ins-


tantaneamente conectadas com diversos e amplos grupos e redes, elas
também estão, de modo crescente, imergindo em um sistema profun-
damente individualizado e autocentrado.

Isso se tornou ainda mais claro para mim em 25 de janeiro, quando a


Revolução Egípcia começou a encher as minhas páginas do Twitter. O ato de
clicar em links se tornou algo aleatório, mas levou a alguns caminhos distin-
tos de significado. Alguns dias depois, minha mãe estava nos EUA, assistindo
ao jornal MSNBC em sua televisão, escutando o âncora falar sobre a sua cres-
cente preocupação com os manifestantes que estavam se preparando para
o “dia da fúria”, enquanto um vídeo passava por trás dos ombros do âncora
mostrando vários manifestantes gritando, sendo possível ver incêndios dis-
tantes. Ela ficou sabendo que os manifestantes tinham machucado 87 poli-
ciais, e um tinha sido morto.2 O tom de voz do repórter parecia objetivo, mas
os exemplos eram sempre inclinados ao ponto de vista do governo egípcio.
Ao mesmo tempo, do outro lado do mundo, eu seguia, no YouTube, os rela-
tos de protestantes nas ruas. Chorava enquanto assistia um remix criado por
Tamar Shaaban, que misturava uma filmagem de várias agências de notícias,
além dos vídeos que foram filmados no local. Sob uma trilha sonora esti-
mulante, escutei as vozes apaixonadas e compromissadas do povo egípcio,
sangrentas, nas ruas do Cairo.3
Esse exemplo é apenas um momento único na alarmante transforma-
ção do modo como o conhecimento cultural é produzido e como o signifi-
cado é negociado. A era digital não marca o começo desse tipo de atividade,

2  Disponível em: http://www.youtube.com/watch?v=o-0Hm-n_LAM.


3 Para mais informações e para visualizar o vídeo, acesse: http://www.youtube.com/
watch?v=ThvBJMzmSZI.

98 Annette N. Markham
enfim, mas ela facilitou uma aceleração notável com relação ao desprivilégio
do conhecimento especializado, descentralizando a produção de cultura e
afastando as unidades culturais de informação de suas origens. Um modo de
pensar sobre essa produção de conhecimento é através das lentes do remix.
Apesar de o remix ter sido há muito tempo associado com os formatos musi-
cais de hip hop, agora é um termo geral relacionado aos processos e produtos
que retiram partes de materiais culturais e, por meio do processo de copiar
e colar, produzem novos significados para compartilhar com outras pessoas.
Conforme vivencio realidades sociais que foram remixadas pelas interações
que tenho com minhas redes sociais de mídia, adquiro um conhecimento
específico do mundo, remixo novamente e o distribuo para outras pessoas.
Inspirada pela minha experiência de me saturar com o modo como a
nossa compreensão do mundo é modificada em função de nosso compro-
misso com a mídia social4, tenho pensado sobre as maneiras em que o remix
é uma ferramenta poderosa para refletir sobre a prática investigativa quali-
tativa e interpretativa. A forma e a prática cultural do remix fornecem uma
lente através da qual podemos lutar corpo-a-corpo com a complexidade dos
contextos sociais caracterizados pela internet onipresente, pelos celulares
sempre conectados, pelas redes de comunicação globais, pelos fragmentos
do fluxo de informação e pelas formações da comunidade temporais e ad hoc.
Uma abordagem de remix oferece um modo diferente de pensar sobre
o que nós fazemos quando nos ocupamos com métodos específicos para dar
sentido aos fenômenos. Assumir uma abordagem de remix se inicia com as
premissas da abordagem de bricolagem (Kincheloe, 2001, 2005), e então se
transforma em um nível que podemos chamar de ‘método inferior’, no qual
nos dedicamos às práticas diárias de criação de sentido. O conceito de remix
destaca atividades que não são normalmente abordadas como parte de um
método e podem não ser notadas, tais como utilizar a boa sorte, criar inter-
pretações parciais, brincar com diferentes perspectivas, pegar emprestado
conceitos discrepantes e talvez disjuntivos, movimentar-se por múltiplas
variações, e assim por diante. Embora textos sobre métodos ofereçam des-
crições extensas de como alguém pode estruturar perguntas de investigação,

4  Também inspirado pelo trabalho de Lashua e Fox (2007), utilizando o remix como um método
de pesquisa de ação.

Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 99


coletar dados, gerenciar e ordenar dados e aplicar ferramentas analíticas a
esses dados, muito do processo atual, desde os dados até a conclusão, per-
manece uma caixa preta. Mais frequentemente, especialmente em discipli-
nas em que pesquisas reflexivas interpretativas não são consideradas, esses
processos não estão inclusos no que é disponibilizado aos leitores. Ao con-
trário, vemos a versão organizada de um processo longo, bagunçado e criati-
vo de criação de sentido.
Adaptação e inovação criativa são profundamente necessárias para es-
tudar a complexidade da vida digital. A pesquisa na internet tem sido bom-
bardeada por uma constante “reinvenção da roda” e por inúmeras tentativas
de forçar a utilização de métodos que foram inventados e funcionam melhor
em situações face a face. Argumento que, ao se comprometer com um ní-
vel maior de atenção aos nossos processos diários de criação de sentido em
projetos de pesquisa, podemos identificar e então submeter essas práticas a
um escrutínio maior. Remix é uma metáfora que pode nos ajudar a levar esse
tipo de atenção reflexiva à prática, ao produto e ao objetivo, além de ser uma
abordagem proveitosa para se engajar em interpretações culturais altamente
receptivas, fundadas na ética e sensíveis ao contexto.
Nas próximas páginas, vou discutir algumas das complicações asso-
ciadas ao estudo de contextos mediados pela internet. Forneço uma defini-
ção centrada da pesquisa de remix e então descrevo os elementos particu-
lares do remix, os quais têm provado ser valiosas ferramentas pedagógicas
para auxiliar na interrupção dos formatos tradicionais de conduzir pesquisas
qualitativas em contextos digitais: brincar, criar, tomar emprestado, mover e
interrogar.
O remix é uma ferramenta geradora para pensar criativamente sobre
métodos; não se trata de um método novo, nem mesmo de um enquadramen-
to. É uma abordagem para pensar de forma diferente sobre o nosso trabalho,
para que sejamos mais adaptáveis e sensíveis à complexidade dos contextos
que estudamos. Desse modo, o remix reside lado a lado de outras metáforas
que visam a desafiar o modo como antevemos a pesquisa, tais como a dança
(Janesick, 1994), o jazz (Oldfather e West, 1994), a cristalização (Richard-
son, 1994), a bricolagem (Kincheloe, 2001, 2005) ou as facetas (Mason, 2011).
Esses tipos de metáforas nos lembram de que o processo de pesquisa é, entre
outras coisas, exploratório e criativo, uma mistura de paixão e curiosidade.

100 Annette N. Markham


Além de que os produtos de nossa investigação, “seja um artigo, um gráfico,
um poema, uma história, uma peça, uma dança ou uma pintura, não é algo a
ser recebido, mas algo a ser usado; não é uma conclusão, mas uma mudança
em uma conversa; não é uma declaração fechada, mas uma questão aberta;
não é um modo de declarar ‘é assim que é’, mas um meio de convidar outros
para considerar o que esse (ou esses) poderiam se tornar” (Bochner e Ellis,
2003, p. 507).

Pesquisando o “social” nos contextos do século XXI


As últimas três décadas marcam enormes crescimentos na interação social
digital, desde experimentos prévios em realidade virtual, comunidades à
base de textos e jogos de imitação até a saturação atual da mídia social, aon-
de nós estamos sempre acorrentados a dispositivos móveis, estabelecendo o
que Neilson, em 2012, rotulou de “geração C” (de conectados).
Na virada do século, as tecnologias de comunicação se tornaram mui-
to mais difundidas através da mobilidade e convergência. As características
participativas e distributivas da rede eram muito mais plenamente realiza-
das nesse momento com o avanço dos blogs. A capacidade de se conectar fa-
cilmente – por meio de comentários, marcações e compartilhamentos – faci-
litou um enorme crescimento em redes complexas entre pessoas, tanto local
quanto globalmente, por intermédio de qualquer forma de mídia imaginá-
vel. Tanto no âmbito dos blogs quanto no comercial, um sistema foi desen-
volvido por meio do qual o valor era conectado à reputação e conectividade
nessas redes. Essa economia de reputação e compartilhamento mudou nos-
sos entendimentos tradicionais de autoria, confundindo as fronteiras entre
produtor e consumidor.
Durante esse tempo, os conceitos para compreender e definir identi-
dade e ideias sociais continuaram se deslocando dos indivíduos para as re-
des e fluxos de informações. O desempenho da vida diária está cada vez mais
crescendo inseparável das confluências mediadas por tecnologia e media-
tizadas, em que nossas informações fluem, com ou sem a nossa atenção ou
intenção. A materialidade nessa época de celulares é melhor compreendida
como conexão, processo e relacionamento.

Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 101
Gergen aborda isso como um reconhecimento inevitável, mas tardio,
do self relacional (1991). Turkle descreve-o mais em termos de fragmentação
ou uma visão de várias personalidades virtuais, cada uma com conjuntos de
atributos para se adaptar a algumas situações particulares (2011). Estudio-
sos, como Bruno Latour (2005, 2012), vão mais longe para enfatizar que, na
cultura contemporânea, precisamos ir além da noção e privilégio do indiví-
duo para melhor entender as múltiplas agências que influenciam qualquer
situação social. Na teoria Ator-Rede, o ator não está apenas inserido em re-
des, mas é “definido por sua rede...inteiramente definido pelas listas sem fim
nos bancos de dados” (Latour, Jensen, Venturini, Grauwin e Boullier, p. 3).
Dessa perspectiva, qualquer coisa que possamos chamar de indivíduo é sim-
plesmente uma constituição temporária de atributos.
Para pesquisadores sociais, isso significa que muitas técnicas que não
são levadas em conta para identificar limites situacionais discretos, indiví-
duos ou outros objetos ou para análise são muito menos úteis do que podem
ter parecido. Como notei em outro trabalho (Markham, 2013), pelo menos
quatro complicações surgem ao considerarmos os envolvimentos dos con-
textos sociais com os humanos, as tecnologias da rede 2.0 e os dispositivos
móveis inteligentes.
1. Limites das situações e identificação de contextos não são normal-
mente claros a respeito dos dramas representados em cenários e que
estão muitas vezes removidos da origem da interação.
2. Limites entre si mesmo e outros não são normalmente claros, princi-
palmente quando as informações desenvolvem uma vida social pró-
pria, além das circunstâncias imediatas de uma pessoa.
3. Agência não é uma propriedade única de entidades individuais, mas
um elemento performático temporal que surge na interação dinâmica
das pessoas com suas tecnologias de comunicação.
4. A performatividade pode ser associada não apenas aos sujeitos, mas
às ações dos dispositivos, às interfaces e às redes de informação pelas
quais dramas ocorrem e o significado é negociado.
Para lidar com os desafios de conduzir uma pesquisa qualitativa em
ambientes móveis, globais e fragmentados mediatizados e mediados, de-
vemos nos prender à tradição, com a esperança de termos uma fundamen-
tação firme? Ou continuamos tentando? Essas questões são complicadas

102 Annette N. Markham


devido a outras questões axiológicas. Parte da dificuldade em ser inovador se
relaciona à persistência de modelos e procedimentos positivistas. Seja dis-
cutindo os retrocessos contra o interpretativismo ou pós-modernismo ou as
mudanças geradas pela economia, diante dos modelos de pesquisa baseados
em evidências, parece que o ambiente acadêmico ainda está lutando contra
o tempo. Isso ocorre no meio de uma explosão cultural, fora dos muros da
academia, da produção de conhecimento colaborativo, de fontes abertas e
de reputação.
Isso se torna uma preocupação ética em muitos níveis, relacionados
a como e de que modo estamos questionando nossos métodos adequada-
mente para proteger pessoas (nossos participantes, suas comunidades e nós
mesmos) de danos. Com a captura de tela automatizada que tem ocorrido
em enormes níveis por várias plataformas de mídia e várias agências, indiví-
duos e interesses privatizados, como podemos assegurar a privacidade dos
dados? Como podemos nos certificar de que as nossas técnicas para manter
fontes anônimas vão funcionar? A resposta simples para essa pergunta é que
não podemos, a menos que ajustemos nossos métodos de representação.
Ou se discutirmos sobre privacidade e consentimento informado. Não há
respostas fáceis, como enfatizamos nas diretrizes de éticas mais recentes da
Associação de Investigadores da Internet (Markham, Buchanan e Comitê de
Ética Aoir, 2012). As pessoas participam de atividades que tradicionalmente
seriam consideradas altamente apreciáveis, mesmo sabendo que suas ações
são públicas e o público possível é amplo. Não nos esquecemos dos limites
que constituem as esferas pública e privada; na verdade, o próprio conceito
está mudando (veja, por exemplo, Boyd e Marwick, 2012; Markham, 2012;
Nissenbaum, 2011).
Acrescentando a esse dilema, os avanços tecnológicos nos ensinam
que não podemos prever como as nossas informações serão usadas no futu-
ro. Agora, mais do que nunca, temos a obrigação de tentar proteger os par-
ticipantes de modo proativo, ou de considerar modos de realizar pesquisas
que minimizem o risco de danos futuros. Meu esforço em despertar metá-
foras inovadoras para pensar sobre pesquisas está inserido, então, em um
argumento maior de que os estudos interpretativos de experiência digital
seriam não apenas mais fortes, mas teriam mais fundamentação ética se

Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 103
nós interrompêssemos mais radicalmente – ou revisitássemos interrupções
prévias de – parâmetros que ainda não são considerados para a pesquisa
qualitativa.

Remix como uma lente


Remix é um termo que começou a ser utilizado no final do século XX para se
referir à prática e produção de pegar amostras de trilhas de áudio e juntá-las
em modos novos e criativos. A história do remix é mais comumente relacio-
nada à forma musical do dub jamaicano, muito bem representado pelo artis-
ta King Tubby. Ele, cujo trabalho influenciou gerações de artistas engajados
com hip-hop, dub, scratch, rap e DJ, começou a desconstruir e reconstruir
trilhas musicais no final dos anos 1960. Nós agora já conhecemos muito bem
a maneira pela qual as músicas são remixadas em modos que as ampliam
ou reinterpretam para diferentes públicos. Mas o remix vai muito além da
música.
Remix se tornou um termo utilizado para descrever a prática difundi-
da dos vídeos de mashup, que são muito frequentes no YouTube, ou o fenô-
meno dos memes da internet, que são tipicamente compostos por pequenas
unidades de informação cultural (uma frase, uma figura, um pequeno áudio
ou videoclipe) que se misturam em diversos modos, geralmente para efeitos
de comédia. Um meme caracteriza-se por sua evolução – de fato, ele não
existe a menos que se transforme através da reprodução ou disseminação.
Poderíamos afirmar que o remix está em todos os lugares, ou “tudo é
um remix” (Fergunson, [s. d.]), além de uma prática e um resultado em todas
as formas de produção cultural. Navas (2006) menciona que “recortar/copiar
e colar, a fragmentação do material, é hoje parte de atividades rotineiras, tan-
to no trabalho quanto no lar, graças ao computador”, pelo qual aplicativos de
software de fácil uso permitem que as pessoas desenvolvam mashups sofisti-
cados. Lessig (2008) e Fergunson (s. d.) fornecem discussões extensas sobre
remix, discutindo sobre vários artistas e contextos históricos, além de con-
temporâneos, para argumentar que é o conteúdo de uma ideia, não o autor,
que importa, e que emprestar, amostrar e remixar criativamente ideias são
aspectos inerentes de qualquer cultura. Conceituado amplamente, o remix

104 Annette N. Markham


não é algo para além de nossa vida cotidiana, mas sim o modo como faze-
mos o nosso mundo ter sentido, transformando o bombardeio de estímulos
em uma experiência integrada. Se levarmos a sério a ideia de que tudo que
assumimos ser “real” é uma negociação constante de relacionamentos entre
pessoas e coisas, e que a cultura é um “hábito em larga escala”, o remix como
uma forma de fazer sentido abrange essa estrutura.
Com o intuito de abordar a pesquisa qualitativa e estudar a experiên-
cia digital, acredito que dois aspectos do remix são importantes: primeiro, o
remix se baseia em samplear, tomar emprestado e remontar criativamente
unidades de informação cultural a fim de criar algo que seja utilizado para
sensibilizar ou induzir outras pessoas. A chave para o poder do remix é que
não importa onde os elementos são desenvolvidos, desde que o produto fi-
nal tenha ressonância para o público. O remix trabalha no espaço liminar
para criar um modo particular de conectar o familiar com o não familiar, ou
os elementos originais e os remixados.
Segundo, o remix sempre acontece como parte de uma comunidade
maior de remix. É um processo de criação temporária de grupamentos que
mudam quase que imediatamente após a produção inicial. O mero poder do
remix se baseia na participação de outros como produtores5 ou remixado-
res colaboradores. Produtores de qualquer remix compreendem que, assim
que o produto deixa a mão deles e é distribuído, outros irão potencialmente
remixá-lo várias vezes. O formato do remix vai mudar com o tempo. Pode ter
sua qualidade e coesão aprimoradas com o tempo através de várias itera-
ções. Além de poder se transformar em algo completamente irreconhecível
com apenas alguns elementos para relacioná-lo aos pontos de origem (ou
pode se enfraquecer e morrer de negligência). Um meme pode parecer que
tem vida própria já que ele se metamorfoseia e se transforma. Mas é negocia-
do, interativo. É transformado e transforma seus usuários e criadores.
O remix é uma parte inerente da cultura digital. Conforme navegamos,
criamos estruturas de significado momentâneas, pequenos remixes que são
várias vezes remixados, a cada vez que navegamos de modo semelhante com

5  Produser e prosumer são termos que passaram a representar o colapso da distinção entre os
papéis de produtores e usuários e produtores e consumidores.

Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 105
diferentes resultados. Nossas próprias ações produzem esses remixes em um
nível, mas esses remixes são influenciados por outros fatores.
De fato, o remix reforça as infraestruturas de tudo que entendemos
como parte da internet. Como Navas aponta (2010), o Google é um excelente
exemplo de um tipo bem diferente de remix, um que seletivamente nos apre-
senta com resultados baseados em um complexo (e normalmente escondi-
do) conjunto de algoritmos. As recomendações da Amazon.com, o “conteú-
do relacionado” do YouTube e os feeds do Facebook são do mesmo modo
remixados para nós, baseando-se em algoritmos registrados que funcionam
debaixo da superfície de atividade. O remix pode não ser a única lente para
se pensar sobre isso, mas ele destaca os modos que significado, contextos e
estruturas podem ser vistos como resultados temporários de interação, sur-
gindo e desaparecendo, transformando-se em algo ligeiramente novo a cada
vez que nos engajamos.
Pensar sobre a cultura digital pela lente do remix oferece significados
poderosos de resistir ao foco em sujeitos e objetos para se aproximar dos
fluxos e pontos de conexão entre diversos elementos do sistema de ecologia
da mídia, no qual significado, grupamentos e imaginários são negociados em
relação e (inter)ação (Markham e Lindgren, 2014). No nível meta, pensar so-
bre a prática das pesquisas qualitativas pela estrutura do remix oferece um
significado de reconfiguração de algumas das práticas associadas à pesqui-
sa qualitativa. Permite nos envolvermos e combatermos de modo complexo
(mais do que tentar apenas simplificar), focando-nos menos nos métodos
(como moldes para aplicar a experiências e organizá-las em categorias e es-
truturas específicas) e mais no significado derivado de um processo criativo
de investigação.
Meu uso de remix como um conceito envolve a essência da bricola-
gem, como descrito por Kincheloe (2001, 2005). Ao ampliar o conceito de bri-
colagem, o remix se foca nas práticas diárias do método estabelecido, bem
como no modo como a investigação está – ou pode estar – situada na rede
2.0, cultura de remix saturada de mídias sociais. O remix foca a nossa atenção
no modo como argumentos situados temporalmente são desenvolvidos e
desenvolvidos novamente conforme passam por vários públicos. Cada uma
dessas interpretações tem um significado e é avaliada pelo leitor/espectador/
ouvinte, mas a qualidade e credibilidade de cada uma não é predeterminada

106 Annette N. Markham


pelo modo como os dados (material cultural) são coletados ou as ferramen-
tas são utilizadas para gerenciar, separar e categorizar esses dados em algo
que pode ser então reorganizado e editado pelo remixer. Preferivelmente, a
qualidade está incorporada na medida em que a produção (seja chamando-a
de argumento, história ou achado) demonstre ressonância com o contexto, e
também tenha ressonância com o público-alvo.
Em vez de marginalizarem os conceitos de copiar/recortar e colar, co-
lagem, miscelânea e mashup, essas práticas se tornam lentes ressonantes e,
desse modo, adequadas para pensar sobre as formações culturais, bem como
modos adaptativos de investigação. Esquecendo-se da ideia de que nossos
projetos acadêmicos deveriam fornecer respostas, o remix fornece ao pes-
quisador uma grande liberdade de criar argumentos criativos e persuasivos
que entram em amplas conversas, tanto dentro como fora da Academia.6
Essa abordagem também enfrenta a dificuldade de realizar as práticas
que Latour (2005) e outros defendem pela teoria Ator-Rede. Segundo o autor:

Qualquer interação dada parece transbordar de elementos que já estão


na situação, advindos de outro tempo, outro lugar e criados por outra
agência. Essa poderosa intuição é tão antiga quanto as ciências sociais.
Como disse anteriormente, a ação é sempre deslocada, articulada, de-
legada, traduzida. Desse modo, se qualquer observador é fiel à direção
sugerida por esse transbordamento, ela será levada para longe de qual-
quer interação dada a alguns outros lugares, outros tempos e outras
agências que parecem tê-las moldado (Latour, 2005, p. 166).

O remix é um modo de seguir o transbordamento, permitindo aplai-


nar o social considerando todos os elementos como semelhantes, sem tentar
identificar sujeitos ou contextos ou distinguir o local do global. O resultado
das atividades de alguém – caso seja considerado um ato de desenvolver um
argumento – influencia o processo, importando menos aonde isso começa ou
termina, porque os padrões e as possibilidades sempre emergem. Isso tam-
bém leva ao deslocamento das questões de fato para os assuntos de interesse.

6  Esse tipo de trabalho há muito tempo tem sido o projeto de Yvonna Lincoln e Norm Denzin
(por exemplo, 1994, 2003), Art Bochner e Carolyn Ellis (por exemplo, 2003), Laurel Richardson
(por exemplo, 1994) e muitos outros que compõem o movimento interpretativista do final do
século XX nos Estados Unidos.

Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 107
Cinco elementos do método de remix
Uma porcentagem significativa de estudiosos que investigam a cultura digi-
tal, os contextos mediados pela internet ou as mídias sociais nunca haviam
utilizado a pesquisa qualitativa. Essa é uma consideração importante quan-
do nos colocamos a imaginar os modelos comuns que informam os parâ-
metros de definição de como a pesquisa qualitativa é feita. Mesmo quando
definidos como um processo não positivista, os procedimentos ainda man-
têm fundações lineares e compartimentalizadas. Inicia-se um fenômeno que
informa as questões investigativas de alguém, que, por outra vez, informa
estratégias específicas para coleta, análise e interpretação de dados. Várias
fases são descritas como momentos separados, e os achados são escritos até
o fim. Embora o processo possa ser mostrado como iterativo, as metáforas
fundamentais do trabalho não são nem um pouco inovadoras como nós,
com extenso histórico ou experiência com pesquisa qualitativa inovadora,
imaginaríamos.
Do ponto de vista de investigadores consolidados em formas positi-
vistas de investigação, entender a força da pesquisa qualitativa interpretativa
requer que voltemos à pergunta básica: o que fazemos quando nos engaja-
mos na pesquisa qualitativa?

Criar
Brincar
Mover
Tomar emprestado
Interrogar

Esses termos foram muito úteis em oficinas interdisciplinares que ex-


ploraram abordagens inovadoras ou criativas, já que auxiliam na desconexão
da prática de investigar a partir de bagagem metodológica ou epistemológi-
ca. Essas cinco atividades de pesquisa, na realidade, se parecem muito com
o que achamos que as pessoas estão fazendo quando estão comprometidas
com a prática do remix. É claro que cada um desses termos será conceitua-
lizado e operacionalizado de modos diferentes para qualquer investigador,
dependendo de sua perspectiva, disciplina, projeto, e assim por diante. Do
mesmo modo, os termos receberão significados variados em diferentes fases

108 Annette N. Markham


do projeto. Desse modo, as seguintes breves descrições de cada termo ser-
vem somente como um ponto de início, ilustrando como posso situar esses
termos em meu próprio mundo de pesquisa.

Brincar. Brincar é, às vezes, uma atividade guiada ou com regras, igual a


quando brincamos de algum jogo. Outras vezes, brincar é uma atividade de
lazer sem fim, igual a quando nos distraímos ou fazemos piadas. É fácil ver
o remix como um produto de ambos os tipos de brincar. Como um processo
de investigação, o remix se baseia em experimentar diversas combinações
de elementos, para produzir algo significativo. Remixes bem-sucedidos são
originais e normalmente entregam resultados que parecem muito novos,
apesar de os elementos estarem sendo combinados e emprestados de ou-
tras fontes. Portanto, o remix é um processo altamente em aberto. E como a
maioria dos empreendimentos artísticos, paixão e inovação trabalham jun-
tos com a habilidade, se não de especialista, da arte/ofício de alguém. Ao
mesmo tempo, a maioria dos remixes ocorre em uma comunidade maior de
remix, aonde alguns objetivos e diretrizes são aplicados.
Em contextos acadêmicos, temos estado bem longe de concordar
em caracterizar a pesquisa como o ato de brincar ou ser brincalhão. Caso
as práticas de uma pessoa sejam gerenciadas ou controladas de perto por
forças exteriores, como supervisores ou consultores, brincar pode parecer
uma forma de atividade desrespeitosa, preguiçosa ou não rigorosa. Na pes-
quisa qualitativa, isso é um erro, já que o que fazemos nos melhores mo-
mentos do processo interpretativo é apenas isso. Como qualquer atleta ou
músico diria, entrar na zona de brincadeira ou se engajar em improvisação
requer pelo menos algum elemento do uso hábil de certas técnicas e também
funciona como uma ferramenta importante para aperfeiçoar as habilidades
de alguém. A curiosidade e a exploração marcam um tipo significativo de
brincadeira.
Experimentar sem nenhum propósito específico permite que o inves-
tigador vá além do que é conhecido como um ponto de aprendizagem, fa-
zendo novas conexões. A brincadeira imaginativa permite que alguém deixe
de fazer o que deve ser feito ou pensado e trabalhe um conjunto de possibili-
dades. Quanto a explorar os contextos de mídia social complexos, isso pode
assumir diversas formas. Brincar com diferentes ferramentas analíticas sem

Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 109
um objetivo específico pode levar a resultados inesperados, mas também a
novas perguntas. Por exemplo, posso brincar com a análise de uma metáfora
para refletir a razão de um entrevistado descrever o Facebook como um par-
ceiro abusivo. Ou posso usar a teoria da narrativa nessa mesma transcrição
da entrevista para contar a história de como o Facebook e o entrevistado es-
tão presos em uma batalha para dominar o território do self. Posso utilizar
os reais documentos de ajuda do Facebook e as transcrições do entrevistado
para construir um diálogo, no qual o Facebook e o entrevistado discutem so-
bre o seu relacionamento e o Facebook o prende numa gaiola, ou vice-versa.
Nessa situação, a brincadeira é mais importante do que os resultados, já que
a meta aqui é tentar explorar sem limites.
A brincadeira pode, na verdade, tornar-se um ponto de virada funda-
mental para o desenho de uma pesquisa que soa melhor com contextos das
análises de fluxo ou construção que se movem com ou nesses fluxos, mais do
que abstraindo e isolando objetos arbitrariamente e artificialmente. Como
Marantz Henig (2008) aponta: “em função de sua variedade...tem algo co-
mum em brincar de todas as formas naturais: a própria variedade. A essência
de brincar é que a sequência de ações está fluida e dispersa”. Bekoff descreve
a brincadeira como um “treinamento para o inesperado... A flexibilidade e
a variabilidade comportamentais são adaptativas; nos animais, é muito im-
portante conseguir mudar o seu comportamento em um ambiente transfor-
mador” (Henig, 2008). A brincadeira também pode ser útil para encontrar
formas de representação com integridade contextual, ou para encontrar,
mais do que simplesmente aplicar, modelos conceituais que auxiliam esses
fenômenos a terem sentido.

Criar. Quando penso nesse termo, imediatamente visualizo as pilhas físicas


de materiais que cresciam na minha mesa durante um tempo de estudo. Era
mais fácil compreender o que o termo significava quando as “coisas” de nos-
sa pesquisa eram mais notadas fisicamente. As dimensões transformadoras
– em comprimento e altura – da pilha durante o tempo indicavam um estado
de progresso. Quanto mais eu investigava, mais coisas eram criadas: docu-
mentos de rascunho, anotações de campo, mapas de conceito, cadernos de
esboços cheios de rabiscos, fotos e desenhos, anotações sobre os livros que
estava lendo, cópias impressas de artigos teóricos e conceituais, transcrições

110 Annette N. Markham


intocadas de entrevistas, as mesmas transcrições codificadas na primeira
vez, as mesmas transcrições codificadas na segunda vez ou em um modo di-
ferente, e por aí vai. Considerava essa oscilante pilha uma coleção valiosa de
tesouros, cheia de dados. Escolher objetos aleatórios pode provocar algumas
conexões entre as ideias. Abrir um periódico de pesquisa pode criar uma me-
mória e abrir uma comporta de novas informações para serem consideradas.
Esse maravilhoso caos de pesquisa é menos visível quando trabalhamos digi-
talmente. A maior parte dessa qualidade criativa de pesquisa está esquecida,
nunca foi vivenciada ou está perdida.
Podemos pensar sobre o processo de criação como um em que trans-
formamos dados, baseando-se em diferentes esquemas de classificação te-
mática. Cada iteração desse processo apresenta um novo (já que é diferente)
conjunto de dados, que representa o fenômeno em um novo modo. O ato de
transformação é de interpretação e remix. Do mesmo modo, nós criamos um
“novo” participante cada vez que transformamos suas atividades iniciais em
uma forma diferente, tais como um texto escrito, uma versão editada de suas
conversas, uma versão gramaticalmente corrigida de seus discursos, ou um
resumo de temas que surgem de suas atividades e interações. Ao refletirmos
sobre essas e outras práticas, podemos ver que a pesquisa não se trata ape-
nas de simplificar e estreitar, mas de criar camadas sobre camadas de unida-
des informativas que influenciam as nossas interpretações. Focar-se apenas
na primeira camada de dados (as coisas originais que relacionamos) não nos
dá permissão de apreciar por completo o que realmente está em jogo quan-
do nos engajamos na arte e ciência longa, envolvente, indutiva e exploratória
de “escrever cultura”.
Quando esse processo criativo inerente é compreendido, ele pode for-
necer uma análise mais completa de múltiplas camadas de significado. Pon-
tuando de um modo mais simples, mais “coisas” são postas na mesa para
serem consideradas como “dados”.

Tomar emprestado. No contexto dos direitos autorais, Lessig (2008) nos


lembra de que a fundação básica da escrita é mencionar outros trabalhos.
Referindo-se à escrita de um sujeito específico, ele diz: “fosse música, cha-
maríamos de samplear. Fosse pintura, seria chamado de colagem. Fosse algo
digital, chamaríamos de remix” (p. 51). Na pesquisa acadêmica, o empréstimo

Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 111
é essencial, desse e de outros modos. Para que qualquer fenômeno tenha
sentido, tomamos empréstimos toda hora, reconhecendo ou não isso. Pega-
mos emprestadas ideias sobre estratégias de amostragem, gêneros de escrita,
ferramentas para analisar dados e assim por diante.
Como eu assumo compromissos a curto prazo em várias universida-
des, normalmente acabo sentada durante dias, semanas ou meses nos es-
critórios de outros estudiosos. Enquanto penso ou escrevo, perambulo nas
salas de cientistas de computador, tecnocientistas feministas, linguistas,
teóricos pós-fenomenológicos ou autores da teoria Ator-Rede, vejo os cargos
em suas estantes. Ao dar uma olhada em livros, vendo as artes nas paredes
e lendo artigos deixados em suas mesas, não é surpresa alguma me deparar
com conceitos, teorias e frases úteis que, de outro modo, nunca encontraria.
Por meio da sorte, faço novas conexões e encontro perspectivas alternativas.
Tudo isso amplia as minhas perspectivas, sem importar o assunto.
É claro que é meio confuso quando saio da minha disciplina de confor-
to para me dedicar a novos conceitos. Mas tudo faz bastante sentido quando
considero o alvo da minha pesquisa. A maioria dos aspectos dos fenôme-
nos relacionados à internet acontece através de várias plataformas, mídias e
dispositivos. Interações que parecem coesivas ou completas são apenas tra-
ços parciais de interações, abstraídas de experiências vividas, deslocadas no
tempo e espaço. Quando levamos em conta o modo como as pessoas usam
e se relacionam com as tecnologias de comunicação, a variação é interminá-
vel. Apropriar-se de abordagens, perspectivas e técnicas não apenas de fora
da disciplina de alguém, mas fora do meio acadêmico, parece não só natural
como também fundamental para encontrar modos criativos de enfrentar es-
ses contextos.

Mover. Tudo o que foi discutido acima, seja aplicado às atividades de remix
ou às atividades da pesquisa qualitativa, trata-se de se mover e ser movido.
A pesquisa está sempre situada, mas nunca estática. Isso é algo importante
de se lembrar, especialmente em redes globais de fluxos culturais que com-
preendem terrenos de significado em constante mudança. George Marcus
(1998) usa o termo “seguir” para descrever modos criativos de se envolver na
etnografia multissituada: siga a história, siga as pessoas, siga as metáforas.
Podemos acrescentar a isso outros modos de pensar, tais como: transformar

112 Annette N. Markham


a perspectiva de alguém, alterar as perguntas, entrar e sair dos fluxos de in-
formação, seguir os silêncios, as lacunas e as ausências.
Em grande medida, o mais importante não é como alguém se movi-
menta, mas que se reconheça que o movimento é inevitável, natural e pro-
dutivo. Também não é necessariamente pensado para frente, já que muitos
movimentos irão nos levar de volta ao início, ou irão nos forçar a visualizar
o projeto inteiro de diferentes modos, forçando-nos a marcar o nosso ponto
atual como um novo começo para se partir.

Interrogar. Um remix bem-sucedido interroga pedaços da cultura, movi-


mentando-os e integrando-os em algo único para que o público possa ver
cada pedaço ou o todo de um modo diferente. Isso tem acontecido ao longo
do tempo na literatura, na pintura, na arquitetura, no design, em filmes, na
música e assim por diante. Agora, vemos em fanfictions, vídeos de mashup,
artes de rua, memes da internet... Em todos os lugares, vemos a produção de
cultura, sabemos que estamos testemunhando o resultado de um processo
de interrogação reflexiva.
Talvez “interrogar” pareça muito forçado para descrever o ato de ques-
tionar reflexivamente tudo o que estamos fazendo, vendo, sentindo ou o
projeto e o próprio fenômeno. Uso esse termo para destacar que qualquer
leitura mais profunda, análise detalhada ou interpretação indutiva requer
um fluxo constante de questionamento. Às vezes, direcionamos essa inter-
rogação ao objeto, para ver como ele está situado, a fim de focar no que o
rodeia, envolve ou cerca, para pensar sobre como ele pode parecer ou ser “de
outro modo”, para refletir sobre a sua existência no tempo e espaço. Outras
vezes, direcionamos essa interrogação para dentro, a fim de considerar por
que estamos interessados neste e não em outro fenômeno, para perguntar
como estamos situados em relação a essa “coisa” de nossa curiosidade, para
considerar como podemos pensar de outro modo, focando criticamente no
que está ao nosso redor, que nos envolve, abrange ou cerca. Esse questio-
namento constante pode não ser diretamente reconhecido como parte do
método de alguém, mas compreende uma prática diária poderosa de todas
as pesquisas. Ao perceber isso, podemos fazê-lo melhor, com propósito, além
de podermos incorporar processos e produtos de nossas interrogações mais
claramente, ou rigorosamente.

Remix(ando) métodos qualitativos para os contextos das mídias digitais e sociais 113
Ressonância como uma medida de rigor
Esses cinco elementos – brincar, criar, tomar emprestado, mover e interrogar
– resistem de forma útil ao ato de disciplinar e podem instigar mais liberdade
para inovar ao explorar contextos que desafiam a encapsulação fácil. Como
ocorre com a bricolagem ou a narrativa em camadas (Rambo Ronai, 1995), o
remix supõe que o pastiche final nunca constituirá uma figura completa ou
inteira. Mais propriamente, cada resultado é uma versão iterativa. Cada um
é um trabalho em desenvolvimento. Todos eles são possibilidades. Cada um
se constrói nos outros, informa os outros e influencia a perspectiva geral que
alguém acaba tendo no final. Esse é um processo sem fim, um processo que
convida à conversa, à colaboração e à posterior remixagem. Remixes podem
mostrar conexões entre os elementos ou apresentarem uma peça lindamen-
te coesa, como vemos nos corais virtuais de Eric Whitacre7. Ou ainda, remixes
podem ilustrar uma justaposição, disjunção ou descontinuidade. Ao invés de
tentar resolver a complexidade no projeto de pesquisa, um remix pode ilus-
trar bem claramente a complexidade irresoluta do fenômeno.
É claro que surgem questões sobre qualidade e credibilidade. Há mui-
tos modos de pensar sobre os critérios para qualidade8, mas aqui menciono
apenas um: os remixes mais bem-sucedidos são aqueles que têm longevida-
de e podem ser vistos por muitas pessoas como se possuíssem uma marca de
qualidade. Seja essa qualidade analisada de perto por estudiosos ou simples-
mente feita por membros de uma cultura, ou esteja no modo como algo é
feito ou na história contada, provavelmente tem alguma relação com quanto
o produto repercute. Um remix bem-sucedido vai além do que é considerado
apenas suficiente para algo monumental. A pesquisa criativa, ética e sensível
ao contexto faz o mesmo, se, no final, captura a atenção do leitor, faz com
que ele pense diferente ou com que ele queira se comprometer, contribuir
mais para a conversação e continuar o processo lúdico do remix.

7  Disponível em: http://ericwhitacre.com/the-virtual-choir.


8  Ver, por exemplo, diversos escritores no Handbook of Qualitative Research, editado por Den-
zin e Lincoln (todas as edições publicadas pela Sage). Questões de critérios para qualidade são
consideradas fundamentais e constituem um tema sólido por todos esses volumes.

114 Annette N. Markham


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116 Annette N. Markham


6
Capítulo
Métodos mistos
Combinando etnografia e análise de redes
sociais em estudos de mídia social

Raquel Recuero1

Introdução
A análise de redes sociais (ARS) tem despontado, em alguns grupos no cam-
po dos estudos de cibercultura no Brasil, como uma das abordagens úteis
para compreender insights gerados por dados empíricos, relacionais, de gru-
pos e fenômenos sociais on-line. Dentre esses trabalhos, sua popularidade
tem aumentado principalmente dentro dos estudos de mídia social (ver Re-
cuero, Bastos e Zago, 2015; Coelho, Ramos e Malini, 2015; Regattieri et al.,
2015). Apesar disso, a ARS ainda é pouco discutida em suas aplicações gerais,
bem como, em seu uso combinado com perspectivas metodológicas varia-
das e de modo particular, com perspectivas mais qualitativas (dado o caráter
primário mais quantitativo da ARS). Desse modo, neste artigo, discutimos
a combinação da análise de redes com a etnografia virtual para o estudo de
objetos decorrentes da mídia social. Nossa proposta parte de elementos da
abordagem dos métodos mistos e discutirá vantagens, desvantagens e obje-
tos, bem como as aproximações dos dois focos.
A mídia social, compreendida como aquela que é construída a partir
da apropriação das ferramentas de comunicação mediada por computador e

1  Doutora em Comunicação, professora e pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em


Letras da Universidade Católica de Pelotas e do Programa de Pós-Graduação em Comunicação e
Informação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: raquel@raquelrecuero.com.

117
de modo especial, dos chamados sites de rede social (Boyd e Ellison, 2006), é
prolífica na geração de dados de relacionamento, conversação e conexão en-
tre os atores. Ferramentas desse tipo permitiram a publicização das redes dos
atores e suas transformações (como por exemplo, com a inclusão de diferen-
tes tipos de atores, como empresas e personagens) e também impactaram
com força o tecido social, tornando os modos de comunicação mais com-
plexos. Estudos novos, focando esses processos começaram a surgir, vários
deles abordando análise de dados e análise de redes sociais. Um dos objetos
que surgiu com maior proeminência nesse contexto é o da interseção entre
o papel da mídia social e o ativismo político (Bastos, Mercea e Charpentier,
2015; Coelho, Ramos e Malini; 2015; Regattieri et al., 2015; Recuero et. al,
2015; Bastos, Recuero e Zago, 2014, entre outros), notadamente nos eventos
de protestos ao redor do mundo e, principalmente, entre os pesquisadores
do Brasil. Mas estudos em outras áreas também podem ser encontrados, tais
como na visualização de dados (Malini et al., 2014), nos estudos de jorna-
lismo (Recuero, Bastos e Zago, 2015) e mesmo no debate metodológico de
sua combinação de métodos diferentes para atingir os objetivos da pesquisa
(Lycarlão e Santos, 2016).
O crescimento dos trabalhos que focam a análise de redes para mídia
social dá-se, primeiro, pela proeminência do objeto, cuja adoção e impacto
têm crescido nos últimos anos mas, também, pela facilidade de acesso aos
dados. O uso de crawlers (ferramentas de coletas automatizadas) para as di-
ferentes APIs2, também criou um contexto altamente favorável para esse tipo
de estudo. Ferramentas como o Facebook e o Twitter, por exemplo, geraram
milhões de trabalhos focados em seus dados a partir de diferentes perspecti-
vas (ver Adamic e Adar, 2005; Java et al., 2007 etc.), justamente por isso. Esses
mesmos motivos também apoiaram o foco qualitativo dos estudos sobre a
mídia social, em muito maior número e seu forte foco empírico nas ciências
sociais e humanas.
Ao mesmo tempo, a abordagem da etnografia virtual (Hine, 2000, 2008)
já é tradicional no Brasil entre os estudos de cibercultura, principalmente
por conta da flexibilidade do método e do seu foco subjetivo, que permitem

2  Application programming interface, as interfaces destinadas à programação de aplicativos


que funcionem com essas interfaces.

118 Raquel Recuero


uma pluralidade de perspectivas e objetos. No Brasil, a abordagem floresceu
justamente nos estudos de grupos e comunidades nativos do meio digital.
Nesse sentido, trabalhos de Amaral, Natal e Viana (2008), Rocha e Montardo
(2005), Amaral (2007, 2010), Sá (2002), entre outros, traçam algumas premis-
sas sobre esses usos. Assim, a etnografia virtual sempre foi caracterizada pelo
seu foco qualitativo e sua abordagem elástica, motivos que a popularizaram
entre áreas diversas.
Mas como essas abordagens poderiam ser combinadas? Como pensar
em objetos e perspectivas que fossem propícios para a análise conjunta des-
sas abordagens? Para discutir essa combinação, iniciaremos apresentando
brevemente as duas abordagens e suas raízes e premissas básicas, para de-
pois elaborar desenhos metodológicos a partir da perspectiva dos métodos
mistos (mixed methods).

Análise de redes sociais


A análise de redes sociais é uma perspectiva cujo foco pode ser compreendi-
do como teórico e metodológico (Wasserman e Faust, 1994). Enquanto a ARS
busca estudar os padrões das interações e laços sociais (Wellman, 2001), ela
também busca modos de medir esses padrões (Degenne e Forsé, 1999) e vi-
sualizá-los (Freeman, 2001). Suas raízes, portanto, estão em disciplinas como
a sociometria, a análise estrutural e a teoria dos grafos (Wasseman e Faust,
1994; Degenne e Forsé, 1999). Desse modo, a análise de redes sociais consti-
tui-se em uma abordagem relacional, cujo foco é construído nas relações en-
tre os atores, na sua medida e exploração estrutural, a partir de perspectivas
interdisciplinares. A metáfora da rede, assim, funciona para os fenômenos
que se deseja observar de modo relacional, ou cujas relações são o centro da
análise. Da teoria dos grafos vêm os modos de representação das relações
entre os diferentes elementos de um fenômeno e os modos de calculá-los.
Desse modo, as redes são representadas por grafos, originados em matrizes
de relações entre os atores.
Ora, dentre as diversas características da mediação do computador so-
bre as interações sociais, uma das principais é o registro dessas interações e
sua permanência no tempo (Recuero, 2012; Boyd, 2010). Com isso, as redes

Métodos mistos 119


sociais ficam mais facilmente mapeáveis e perceptíveis e seu estudo em larga
escala foi bastante facilitado. Justamente por isso, a ARS despontou como
uma das abordagens mais usadas para compreender essas redes, uma vez
que seu registro poderia ser, também, coletado e medido em maior escala.
Assim, redes sociais on-line passaram a ser percebidas também através de
grafos e estruturas que permitiam a visualização das relações entre atores e
fenômenos sociais.
O grafo é uma representação das relações e da estrutura da rede, que é
construído através de algoritmos específicos e em cima de dados obtidos em
campo. Há, portanto, um foco matemático de cálculo dessas relações, bem
como dos modos de visualização desses grupos. São usadas, assim, métricas
de nó (que servem para “medir” a centralidade de cada ator na rede), como
grau, grau de entrada, grau de saída, centralidade de intermediação etc. e
métricas de rede (que servem para “medir” a estrutura da rede em geral),
como centralização, densidade etc. (ver, por exemplo, Wasserman e Faust,
1994; Degenne e Forsé, 1999; Recuero, Bastos e Zago, 2015). A ilustração des-
sas estruturas, assim, auxilia a percepção visual das relações.
Além disso, também se usam métricas de grupabilidade (Wasserman
e Faust, 1994; Degenne e Forsé, 1999) para explorar os grupos que aparecem
na estrutura. Em termos de mídia social, essas medidas são baseadas em ele-
mentos que o pesquisador escolhe observar, como, por exemplo, uma rede
de conversação no Twitter, um determinado grupo no Facebook etc. As re-
lações e os nós, como representações, são também determinados pelo pes-
quisador (por exemplo, as relações podem ser relações de “amizade” no Fa-
cebook ou mesmo turnos de conversação em uma determinada postagem),
que vai assim, delimitar o seu objeto de análise e o modo de utilizar a análise
de redes. Os modos de representação das redes através dos grafos também
são construídos através de representações computacionais.
Essas características, assim, trazem os quatro elementos que deveriam
aparecer conjuntamente na organização desse paradigma, de acordo com
Freeman (2004): (1) traz intuição estrutural, ou seja, focada nos laços que co-
nectam os atores; (2) constrói-se sobre dados empíricos coletados de modo
sistemático; (3) baseia-se em gráficos e imagens que representam os dados
da pesquisa; (4) utiliza-se de modelos computacionais ou matemáticos.

120 Raquel Recuero


Vemos, assim, que a ARS tem um foco predominantemente quantitati-
vo, uma vez que essa abordagem é definida justamente pelo uso de medidas
e métricas e predominantemente empírico.
Apesar disso, a análise de redes sociais também tem sido usada de
modo mais qualitativo. Diversos autores têm trabalhado com essa perspecti-
va. Edwards (2010) discutiu a perspectiva de abordar estudos de redes a partir
de métodos mistos, explicitando que a ARS presta-se também para aborda-
gens qualitativas. De acordo com a autora,

abordagens quantitativas mapeiam e medem as redes através da sim-


plificação das relações sociais em dados numéricos, onde os laços são
ausentes ou presentes. (...) As abordagens qualitativas, por outro lado,
permitem aos analistas considerar elementos relativos à construção,
reprodução, variabilidade e dinâmicas dos laços sociais complexos3
(Edwards, 2010, p. 2).

O argumento aqui reside no fato de que boa parte das interações hu-
manas precisa ser compreendida de um ponto de vista interpretativo, e que
a construção dessas conexões é bastante qualitativa, no sentido de que é
preciso extrair algum sentido desses dados relacionais. Assim, muitos desses
estudos “qualitativos” sejam, na verdade, mistos, ou seja, misturam as métri-
cas quantitativas, modelos propostos por algoritmos de grafos e métricas de
centralidade, eles também focam na interpretação qualitativa e contextual
das mesmas. As redes sociais (e de modo especial, aquelas on-line) são obje-
tos dinâmicos, cuja constante apropriação e reapropriação transformam seu
sentido. Por conta disso, uma abordagem qualitativa pode oferecer insights
importantes sobre o quadro que é observado a partir das métricas originadas
pela abordagem quantitativa.

3  Tradução da autora para: “Quantitative approaches map and measure networks by simplify-
ing social relations into numerical data, where ties are either absent or present. (...) Qualitative
approaches, on the other hand, enable analysts to consider issues relating to the construction, re-
production, variability and dynamics of complex social ties.”

Métodos mistos 121


Etnografia virtual
A etnografia virtual4 (Hine, 2000, 2008), por outro lado, é um método por
excelência qualitativo. Baseia-se na observação e na percepção do pesqui-
sador, principalmente por meio da coleta de dados, seja por entrevistas com
informantes ou pela observação das práticas de um determinado grupo em
campo. A adaptação para o ciberespaço como locus específico vem especifi-
camente da discussão estabelecida por Hine (2000, 2008) em diversas obras.
A premissa de Hine (2008, p. 9) é a de que a internet é, ao mesmo tempo, um
“artefato cultural” e um espaço onde a cultura é “formada e reformada”.
A etnografia tem suas raízes na antropologia e nos métodos de estudo
de grupos sociais utilizados pelos seus pesquisadores (Geertz, 1973). Hine
(2000) explica que o ponto comum da etnografia virtual e da etnografia con-
sistem, justamente, na imersão do pesquisador em seu campo, ou setting.
Essa imersão é especialmente importante porque vai dar ao etnógrafo a per-
cepção de um insider, ou seja, de um sujeito que convive com um determi-
nado grupo, focando as práticas sociais características deste. A etnografia
virtual segue as mesmas premissas (Fragoso, Recuero e Amaral, 2011), mas
adapta essa visão para um novo objeto. Aliás, seu caráter adaptável à media-
ção do computador é fortemente defendido por vários autores (Hine, 2000;
Boyd, 2008; Amaral, 2007) como forma de extrair do método o que ele tem de
melhor a contribuir para a pesquisa.
Como a ARS, a etnografia virtual também foca o estudo de grupos
sociais, notadamente limitados por um determinado local ou espaço geo-
gráfico no ciberespaço (por exemplo, uma comunidade, grupo ou conjunto
de atores que se encontre em um determinado espaço comum). Embora a
percepção dessas fronteiras no espaço digital tenha sido bastante discutida,
é importante observá-las como não estanques (Boyd, 2008). Nesse sentido, a
autora defende o foco maior nas relações entre os atores do que especifica-
mente em um único espaço (uma vez que essas relações podem ser mantidas
em vários espaços diferentes no digital). O foco nas relações também é uma

4 Para este trabalho, optamos por nominar a abordagem como “etnografia virtual”, mesmo
diante de suas várias denominações, como “netnografia”, por compreender que se trata da mes-
ma abordagem. Mais detalhes sobre essa discussão podem ser observados em Fragoso, Recuero
e Amaral (2012).

122 Raquel Recuero


das premissas da análise de redes, justamente como explicitamos na sessão
anterior.
A etnografia virtual enquanto método é adaptável, como dissemos,
embora um conjunto de técnicas sejam frequentemente associadas, como o
uso de diário de campo, as práticas de observação, observação participante,
contextualização, entrevistas com informantes e interpretação sistemática
dos dados (Fragoso, Recuero e Amaral, 2012). Essas estratégias auxiliam na
sistematização da coleta de dados, e são bastante qualitativas, focadas na
documentação das práticas que são observadas (Boyd, 2008). Quanto a aná-
lise dos dados, o processo interpretativo é a principal estratégia, de modo
a extrair sentido dos dados sistematizados. Portanto, a etnografia virtual é
fortemente baseada em dados empíricos, de forma análoga à análise de re-
des sociais. Entretanto, a etnografia utiliza-se principalmente de modos de
coleta de dados qualitativos e esse é um ponto onde já não há tanto contato
já que a ARS, por outro lado, tem métodos de coleta principalmente quanti-
tativos (crawling, por exemplo).

Métodos mistos: conectando análise de redes sociais e


etnografia virtual
Como, assim, misturar análise de redes e etnografia virtual? Para discutir
essa intersecção, partiremos da abordagem dos métodos mistos (mixed me-
thods5) para desenhar esse tipo de pesquisa. A ideia é trabalhar com pers-
pectivas metodológicas distintas, tanto quantitativas quanto qualitativas,
combinadas de modo a dar conta de um determinado problema de pesquisa.
Métodos qualitativos, grosso modo, tendem a focar mais em palavras
como elementos descritivos, enquanto os quantitativos, em números; bem
como pesquisas mais qualitativas focam perguntas mais abertas, pesqui-
sas quantitativas focam questões fechadas; além disso, pesquisas qualita-
tivas tendem a focar na interpretação dos dados coletados, geralmente no
ambiente dos participantes, enquanto as quantitativas tendem a focar em
medidas, variáveis e procedimentos numéricos (Creswell, 2014, p. 12). Essas

5  Embora a ideia por trás da perspectiva trabalhe diretamente com a combinação de vários
métodos diferentes, trabalharemos aqui com a combinação de abordagens diferentes.

Métodos mistos 123


diferenças são facilmente percebidas em abordagens mais etnográficas (que
focam, como dissemos na sessão anterior, principalmente em métodos de
coleta e análise mais qualitativos), enquanto abordagens de análise de redes
focam em métricas (medidas) e possuem resultados numéricos, conforme
também explicitamos na seção 2.
Apesar disso, poderíamos discutir que dificilmente métodos de coleta
e análise desenhados para um dado problema são estritamente qualitativos
ou quantitativos. É possível, por exemplo, abordar uma determinada ques-
tão dentro de uma etnografia virtual em termos numéricos, assim como é
possível também interpretar os grafos gerados pela análise de redes. Ainda
assim, o que define o método de modo mais forte, segundo Creswell (2014), é
a perspectiva abarcada ir mais para um lado ou para o outro.
Os métodos mistos, por outro lado, constituem “uma abordagem para
a pesquisa envolvendo a coleta de dados qualitativa e quantitativa, integran-
do as duas formas de dados e usando desenhos de pesquisa que possam
envolver questões filosóficas e abordagens mais teóricas”6 (Creswell, 2014,
p. 4). Embora o conceito da abordagem dos métodos mistos não seja consen-
so na literatura (vide Cameron, 2011, por exemplo), a maior parte dos pesqui-
sadores concorda que se refere a modos de explorar e misturar perspectivas
quantitativas e qualitativas. A ideia é que o desenho do método possa per-
mitir ao pesquisador utilizar uma perspectiva para validar a outra e comple-
mentar os dados de modo a melhor compreender o fenômeno.

4.1 Objetos
Quais objetos, assim, prestam-se para uma análise que prescinda da combi-
nação entre ARS e etnografia virtual? Primeiramente, é preciso focar objetos
cujas questões de pesquisa sejam relacionais, ou seja, onde a análise da es-
trutura das conexões da rede seja relevante e onde exista um componente
cultural a ser analisado diante dessa estrutura. Essa circunstância permiti-
ria compreender, assim, aquele grupo, naquele momento, naquele espaço,
como produtor de artefatos culturais que serão explicitados pela etnografia

6  Tradução da autora para: “an approach to inquiry involving both quantitative and qualita-
tive data, integrating the two forms of data, and using philosophical assumptions and theoretical
frameworks”.

124 Raquel Recuero


e como grupo, que será também analisado pela ARS. Como dissemos, tanto
a etnografia virtual quanto a análise de redes sociais focam em estruturas
sociais e fenômenos sociais. Desse modo, enquanto a análise de redes se
ocuparia com a estrutura do grupo, a etnografia focaria as práticas culturais
emergentes dessa estrutura.
A partir dessas premissas, alguns tipos de objetos que seriam relevan-
tes, para esse tipo de estudo compreendem:

a) Grupos sociais determinados e suas interações on-line, como, por exem-


plo, fãs, ativistas, militantes, grupos determinados por páginas, ferramentas
etc. Seriam grupos formados em espaços on-line, que compartilham e cons-
troem experiências em locais específicos desse espaço. Esse seria o objeto
mais nítido, uma vez que a análise de redes poderia, aqui, investigar as ca-
racterísticas estruturais do grupo (e possivelmente suas mudanças no tem-
po), bem como a posição de determinados atores e seus papeis no grupo,
enquanto a etnografia dedicar-se-ia a avaliar o grupo, as práticas e intera-
ções, de modo mais qualitativo. Os dados estruturais e culturais, assim, são
complementares para um estudo de caso ou análise de caso.

b) Grupos sociais constituídos diante de discursos/conversações específi-


cas, como por exemplo, grupos reunidos em torno de uma hashtag ou de
algum movimento que permita que esse grupo seja limitado. Nesse caso, o
objetivo é observar como se dá a construção dos diferentes discursos a partir
da participação das pessoas, não há um local específico, mas um “momento”
específico da presença desses grupos (Recuero, 2012). Nesse caso, o objetivo
é observar aquele grupo naquele momento. Novamente, a análise de redes
fornece a base para o estudo de estrutura do grupo em si (poderia ser com-
parativa a outro grupo), enquanto a etnografia pode fornecer elementos re-
ferentes à qualidade do grupo e da conversação.

c) Estudos sobre informação e difusão de práticas culturais, como por


exemplo, estudos de difusão de comportamentos, linguagem etc. dentro de
determinados grupos on-line. Nesse caso, o foco está especificamente num
tipo de prática cultural que é difundida pelo grupo. Aqui, por exemplo, a aná-
lise de redes pode auxiliar a definir quais atores são mais centrais para os
processos de difusão de práticas culturais, a influência dessas práticas em

Métodos mistos 125


pequenos grupos, bem como os caminhos tomados por essas práticas na
rede. A etnografia, por outro lado, pode auxiliar investigando as particulari-
dades desses atores, as práticas em si e suas características dentro da adoção
dos vários grupos, bem como outros elementos qualitativos relevantes para
a compreensão do fenômeno.
Os objetos escolhidos precisam ter dados possíveis de ser capturados
para sua análise como rede, evidentemente, seja de forma manual ou de for-
ma automática, pelo pesquisador. Por isso, como dissemos, aqueles prove-
nientes de APIs com possibilidade de crawling seriam talvez mais facilmente
compreendidos.
Dentro desses objetos, é claro, as questões de pesquisa precisam ser
apropriadas para atender a objetivos possíveis para a ARS e a etnografia.
­Assim, estudar as possibilidades e as dinâmicas da rede para a produção dos
artefatos culturais, o impacto dessas estruturas nessas produções, a cultura
emergente nesses grupos etc. são apenas alguns possíveis questionamentos
que poderão ser feitos aos objetos.

4.2 Desenhos metodológicos


Uma vez definidos objetos e problemas, é preciso construir o desenho me-
todológico do estudo. Há alguns modelos mais comuns de uso de méto-
dos mistos, em termos de desenho de pesquisa, apresentados por Creswell
(2014). Esses modelos poderiam servir de ponto de partida para o desenho
particular de cada trabalho.

a) Métodos mistos convergentes e paralelos são desenhos de pesquisa


onde os dados são coletados de modo qualitativo e quantitativo geralmente
ao mesmo tempo e convergem ou são misturados na análise. O objetivo é
a complementariedade dos dados para a análise (Creswell e Clark, 2013).
Assim, os resultados são apresentados de modo integrado, pois são anali-
sados também dessa maneira. Isso poderia acontecer, por exemplo, numa
pesquisa focada em um determinado evento e sua repercussão em um site de
rede social. Imaginemos, por exemplo, um debate eleitoral transmitido pela
televisão e sua repercussão no Twitter. Nesse caso, geralmente há a coleta
de dados quantitativos dos tweets (por exemplo, através de um crawling) e,

126 Raquel Recuero


ao mesmo tempo, a observação qualitativa do que está acontecendo através
do streaming e no debate televisionado de modo a gerar dados contextuais
que possam auxiliar a interpretação dos demais dados depois. Essa coleta
conjunta auxiliará a compreender os resultados do trabalho na análise final.

b) Métodos mistos explanatórios sequenciais são desenhos de pesquisa


onde há primeiro a condução de uma pesquisa quantitativa, cujos resultados
servem de base para uma pesquisa qualitativa. A ideia aqui é que o trabalho
qualitativo permite explorar em maior profundidade os resultados quanti-
tativos, explicando-os de modo mais global. No caso, aqui, não há a neces-
sidade de coleta de dados conjunta. Imaginemos, em outro exemplo, que a
partir de dados coletados de um grupo no Facebook (número de interações,
por exemplo) pretende-se compreender a densidade das diferentes redes de
participantes e sua percepção dos grupos da ferramenta. Nesse caso, é preci-
so analisar primeiro esses número, para eleger sujeitos que possam ser pos-
teriormente entrevistados pelo pesquisador.

c) Métodos mistos exploratórios e sequenciais são desenhos de pesqui-


sa que funcionam de modo contrário ao item anterior. Aqui, a abordagem
qualitativa vem primeiro e, nessa primeira fase, são constituídos elementos
que servem de base para a abordagem quantitativa posterior. Essa aborda-
gem é particularmente útil quando não se sabe quais serão as variáveis mais
importantes a serem analisadas na pesquisa, o que a abordagem qualitativa
inicial pode ajudar a desvelar. Por exemplo, quando se deseja compreender
a atuação dos fãs em um site de rede social, mas não se sabe exatamente em
quais eventos essa atuação se deu. Poderíamos, aqui, optar por uma aborda-
gem qualitativa, no sentido de compreender como a ferramenta em questão
é apropriada e, posteriormente, analisarmos esses tipos de apropriação de
modo quantitativo.
No caso específico da mistura de métodos da etnografia virtual e da
análise de redes, dependendo da questão de pesquisa e do contexto, qual-
quer uma das três abordagens poderia ser utilizada. Independentemente do
desenho metodológico, a análise de redes trabalha com métricas da rede em
si, enquanto a etnografia vai investigar o contexto e a qualidade do fenôme-
no. Assim, portanto, temos uma abordagem que foca a estrutura e outra que
foca a função e a produção dessa estrutura, podendo ser usadas de modo

Métodos mistos 127


complementar para auxiliar na compreensão dos diferentes fenômenos so-
ciais da comunicação mediada pelo computador. Além disso, os métodos de
coleta podem ser combinados também entre aqueles quantitativos e quali-
tativos característicos de cada abordagem.

Apontamentos finais
O desenho metodológico escolhido, bem como a opção pela combinação
das abordagens precisa ser claramente explicada nos capítulos metodológi-
cos dos trabalhos. Além disso, o reconhecimento de suas forças e limitações,
diante do problema de pesquisa, também podem ser levantadas e debatidas.
De modo geral, dentre as vantagens de uso dessa perspectiva de dese-
nho de métodos mistos está primeiramente a complementariedade dos da-
dos e das análises e a possibilidade de explorar fenômenos mais complexos
do que com apenas um dos métodos. Por conta disso, a análise é enrique-
cida, uma vez que os dados qualitativos podem ser utilizados para validar
o quantitativos e vice-versa. A validação é um modo interessante de traba-
lhar essa combinação, uma vez que os dados quantitativos obtidos pela ARS
podem ser explorados em maior profundidade pela etnografia e vice-versa.
Conforme Hine (2000), o método da etnografia é bastante flexível e por isso,
bastante adaptável. Ou seja, onde a análise de redes pode ser cega, trazen-
do apenas métricas e medidas da posição dos nós na estrutura (Degenne e
Forsé, 1999), a etnografia pode trazer uma visão mais sistêmica e dinâmica
da composição desses dados (Recuero, 2009). Em termos de mídia social,
onde os dados são bastante distanciados dos grupos sociais, a combinação
desses métodos pode ser extremamente vantajosa, justamente por permitir
compreender o fenômeno em sua abordagem mais ampla.
Apesar das vantagens, entretanto, é preciso um certo cuidado para ex-
plorar essa combinação. A ARS dá à etnografia uma possibilidade de mais
abrangência e maior fundamentação em dados, ao mesmo tempo que lhe
rouba parte da subjetividade que lhe é característica. Já a etnografia, por
sua vez, complementa a ARS com uma visão contextual, mas pode tam-
bém lhe conferir um caráter subjetivo e interpretativo que pode trazer uma
certa instabilidade ao estudo quantitativo. É preciso, assim, construir esse

128 Raquel Recuero


desenho com cuidado, apontando de que modo as vantagens sobrepujam as
desvantagens.
Cuidados são, portanto, necessários. Um deles é que essas abordagens
devem ser usadas de modo complementar, e devem ser, portanto, combina-
das. Assim, os dados de uma devem servir à outra e devem ser ambos com-
preendidos em sua totalidade pelo pesquisador. A perspectiva de métodos
mistos é uma combinação do desenho metodológico, onde o pesquisador
precisa compreender ambos e não apenas utilizar um método como suporte
e outro apenas para agregar os dados sem analisá-los. A ideia de “combina-
ção” das abordagens promove, justamente, um diálogo entre ambas que ape-
nas será possível dentro dessas condições.
Assim, por exemplo, o grafo, uma das práticas de representação da
análise de redes, assim, pode ser utilizado de modo ilustrativo, mas precisa
ser compreendido, em seus algoritmos de representação e em sua arquite-
tura pelo pesquisador, de modo a explorá-lo também na análise qualitativa.
Não podemos utilizar apenas um “pedaço” da perspectiva sem utilizar o res-
tante dela. Se o grafo denota uma representação medida, constituída pela
escolha de dados e pelo algoritmo de visualização, é preciso compreender o
que está sendo mostrado (Recuero, Bastos e Zago, 2015). De modo especial,
grafos de mídia social podem ser especialmente mutantes, dado o contexto
dessas redes (Recuero, 2009).
Outro cuidado ainda é aquele de desvelar os métodos de coleta de da-
dos e discutir suas limitações e vantagens. O uso desses dados precisa ser
claramente explicitado e apontado no trabalho. Interpretações mais quali-
tativas, assim, podem ser ancoradas por dados quantitativos que suportem
essas afirmações.
Finalmente, é preciso também uma maior preocupação com a questão
da ética em pesquisa7. Embora o conteúdo de canais de mídia social seja
percebido como público, na maior parte das vezes é preciso a preocupação
sobre a exposição dos atores e dos participantes da rede social. Anonimiza-
ção dos dados é um dos passos fundamentais adotados pelos pesquisadores
para reduzir o impacto do trabalho sobre indivíduos específicos. Embora isso
nem sempre possa ser possível, é recomendado que, ao menos, a discussão

7  Algumas orientações podem ser observadas em: http://aoir.org/ethics/.

Métodos mistos 129


de como essa preocupação esteve presente nos processos de coleta e análise
de dados seja realizada.
Nesse conjunto de considerações, esperamos ter contribuído com al-
guns esclarecimentos e ideias para a utilização dos desenhos metodológicos
mistos que combinem análise de redes sociais (ARS) e etnografias virtuais.

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132 Raquel Recuero


7
Capítulo
Carne e alma
Ensaio sobre feminilidade, capital
simbólico e melodrama

Veneza V. Mayora Ronsini1

O ideal de beleza feminina é variável, mas certas exigências permanecem


constantes, diz Simone de Beauvoir: exige-se que seu corpo ofereça as quali-
dades inertes e passivas de um objeto, que seja carne sem transcendência. Os
costumes e as modas podem ser utilizados para a impotência (1980, p. 199-
200). O tamanho das unhas pode privar a mulher do pleno uso das mãos,
tal como o salto do sapato, do andar seguro. Não surpreende que uma ideia
publicada pela primeira vez em 1949 possa ser tão atual, dada a disjunção
entre a representação coletiva sobre a necessidade da independência femi-
nina e a persistência do sentimento moral da dependência. Nosso problema
de pesquisa é relacionar a esfera midiática ao movimento de potência e im-
potência do feminino: onde a potência é pensada como alma, metáfora do
capital simbólico como prestígio moral; a impotência como carne, o corpo a
serviço do outro e não um corpo para si mesmo.
O gênero é estruturante da textura da experiência, tal como classe,
porque é uma forma primária de dar sentido às relações de poder baseadas
nas diferenças percebidas entre os sexos. A historiadora feminista Joan Scott
(1986, p. 1067-1068) conceitua gênero sob um ponto de vista materialista – ao

1 Professora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação UFSM/RS; pesquisadora do


CNPq; doutora pela FFLCH/USP; pós-doutora pela Nottingham Trent University/Inglaterra
(Capes).

133
incluir a economia, a organização política e o parentesco como dimensões
da sua constituição, porém destacando a centralidade da cultura: as repre-
sentações simbólicas constitutivas do binarismo homem-mulher, os concei-
tos normativos que permitem a interpretação de tais representações pelas
doutrinas religiosas, educativas, científicas, políticas ou jurídicas e, ainda, as
formas subjetivas das identidades de gênero.
Articulando esse ponto de vista com a sociologia da reprodução de
Bourdieu, entendemos a identidade feminina (pessoal e coletiva) como pro-
duto da dominação simbólica e dos lugares que a mulher ocupa nas relações
de produção, incluindo o trabalho doméstico não remunerado. Em outras
palavras, ela é produto do habitus de classe e de gênero e dos esquemas clas-
sificatórios baseados no valor moral das pessoas.
O capital simbólico2 ou o valor moral dos agentes não é legitimado so-
mente pela lógica do interesse, nem o habitus é moldado pela estrita coerên-
cia com as condições de existência (Lamont, 1994, p. 187). Por isso, é possível
que o prestígio social possa ser moldado para além do interesse econômico
e que a identidade, resultado do habitus, se constitua por empréstimos hete-
róclitos extraídos da relação com outros modelos culturais. E nossa tese é de
que a mídia é um campo para a negociação do capital simbólico e do habitus
das classes trabalhadoras.
A exploração da temática dos usos sociais das telenovelas brasileiras
do horário nobre tem uma finalidade acadêmica e política. A primeira será
explicitada ao longo dessa fala, e seu cunho político é o de compreender as
relações de poder que dão origem às desigualdades e de classe de gênero,
com vistas à sua transformação. O fato de nos basearmos em pesquisa em-
pírica3 com mulheres heterossexuais, de diferentes classes, grupos étnicos e
gerações, não significa pretensão de teorizar sobre todas as dimensões dos

2  Seguimos a discussão de Robert Moore (2008), segundo a qual habitus e capital simbólico
são conceitos equivalentes porque a formação do habitus se confunde com a aquisição de um
capital simbólico.
3  O texto é um excerto da pesquisa Aprendendo a ser mulher “de classe” com a mídia, que foi
contemplada no Edital Universal 14/2012 do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico
e Tecnológico (CNPq). Agradeço a contribuição dos membros do grupo de pesquisa Usos Sociais
da Mídia na categorização dos dados no software NVIVO9, especialmente à professora doutora
Sandra Depexe (vice-coordenadora), ao doutorando Gustavo Dhein e aos mestrandos Hellen
Barbiero e Otávio Chagas pela descrição dos dados empíricos.

134 Veneza V. Mayora Ronsini


processos de produção das diferenças e desigualdades. A questão geracional
não é aprofundada, e as clivagens étnicas são tratadas como dados socio­
demográficos. Finalmente, a escolha da intersecção entre classe e gênero he-
terossexual é arbitrária e pragmática, e por isso os termos “mulher” ou “con-
dição feminina” não designam uma condição universal.
Nossa contribuição é dimensionar o caráter estrutural da domina-
ção de gênero e classe pelo exame da relação entre meios de comunicação
tecnológicos e audiência feminina. O texto é um recorte do estudo de caso
comparativo de recepção das telenovelas do horário nobre com 24 mulheres
da elite e das classes populares acerca da construção da feminilidade. O es-
tudo se baseia na construção de retratos sociológicos individuais e inclui um
protocolo parcial (observação participante com oito mulheres da amostra)
para o exame do momento de assistir televisão/telenovela. Além do longo
período de aplicação, as entrevistas em profundidade incorporaram o viés
etnográfico de dar livre voz aos sujeitos da pesquisa, assumindo também a
forma de longas conversas sobre temas diversos: capitais e consumo de mí-
dia; relações de classe; relações de gênero; recepção da telenovela; trajetórias
de vida na família primordial e na atual, na escola e no trabalho. Os dados das
entrevistas foram coletados entre os anos de 2012 e 2013, categorizados com
o auxílio do software de análise qualitativa NVIVO9.
As 12 informantes de classe popular, no período de coleta de dados,
assistiam às novelas exibidas no horário nobre da Rede Globo de Televisão,
além de outras do horário vespertino: Fina Estampa (Aguinaldo Silva, agos-
to de 2011 a março de 2012), Avenida Brasil (Emmanuel Carneiro, março de
2012 a outubro de 2012) e Salve Jorge (Glória Perez, outubro de 2012 a maio
de 2013).
A curto e médio prazo, esperamos que esse esforço possa ser agrega-
do ao conjunto das pesquisas que dão visibilidade às pessoas comuns, es-
pecificamente, às mulheres das classes populares. A teoria é amparada em
histórias biográficas contemporâneas – as trajetórias de mulheres jovens,
maduras e velhas – e suas injunções com a banalidade cotidiana dos rituais
da assistência televisiva e com o que ela permite inferir sobre a inércia e a
mudança das mentalidades. Ao revelar o tempo presente e imediato do co-
tidiano, esperamos sondar, aqui, na forma de um esboço e não de um texto
acabado, o tempo longo da estrutura social.

Carne e alma 135


O ensaio analítico parte da descrição da trajetória de quatro consu-
midoras idosas de telenovelas (Jiani, Hilda, Zulmira e Sara) para debater as
relações entre mídia e feminilidade de classe, que é examinada pela consti-
tuição do corpo como capital simbólico. A questão que exploramos está rela-
cionada ao fato de que o corpo das frações mais baixas das classes populares
tem um valor simbólico mínimo: é um corpo desvalorizado no campo da
produção econômica e um corpo com pouca utilidade para o ciclo do capital
que se completa no consumo. O trabalhador braçal ou pouco qualificado é
visto como um corpo destinado a obedecer ao comando racional dos que
possuem as espécies de capital requeridas no mercado de trabalho.
A escolha de receptoras idosas para este exercício analítico é inten-
cional, em função de que o envelhecimento acarreta a perda da capacidade
de conversão do capital corporal em capital econômico, cultural e social. A
singularidade de quatro retratos sociológicos pode iluminar aspectos gerais
da discussão teórica sobre o consumo/recepção, gênero e classe social por-
que uma classe social pode ser definida pelo lugar e o valor que atribui aos
dois sexos. E, assim, as disposições socialmente construídas e o número de
maneiras de realizar a feminilidade são variáveis de acordo com as frações de
classe (Bourdieu, 2008, p. 102).
A categoria feminilidade pode ser entendida como o modo de ser – tra-
duzido em comportamentos e práticas variadas – considerado característico
da mulher. Na prática, homens e mulheres, heterossexuais ou não, manifes-
tam comportamentos tidos como “femininos” e “masculinos”. Nascemos ho-
mem ou mulher, mas masculinidade e feminilidade são aquisições culturais
expressas na gestualidade, na aparência (Bartky, 2003, p. 27) e em nossas
preferências sexuais.
A dominação exercida sobre as mulheres tem como um dos seus eixos
constitutivos a divisão sexuada do privado e do público, que fornece sua base
material e assegura sua legitimidade, oferecendo-lhes o posto de “rainhas”
da esfera privada e de vassalas da esfera pública. A feminilidade se torna,
assim, o produto da domesticação do lar e das mulheres. No projeto polí-
tico da modernidade, o doméstico é o lugar da privação dos direitos civis e
políticos e, também, da exclusão das mulheres na definição das regras da
vida em comum (Varikas, 2013, p. 174 e 180). Se o feminismo, desde a dé-
cada de 1960, afirma que o “pessoal é político”, não é porque subestime as

136 Veneza V. Mayora Ronsini


estruturas e as instituições em nome da transformação da vida cotidiana, ao
contrário, enfatiza o caráter estrutural da dominação expresso nas relações
pessoais (­Varikas, 2013, p. 179). A vida doméstica como alienação e resigna-
ção, como reprodução da força de trabalho e como exploração do trabalho
feminino não remunerado pode ser tomada, ainda, como o lugar do cuidado
e do afeto, e suas regras poderiam ter um impacto positivo na gestão da vida
em comum na esfera pública (Varikas, 2013; Elshtain, 2013). Afinal, admitir
a relevância dos laços emocionais familiares não é o mesmo que endossar a
reprodução de uma família patriarcal.
O caráter estrutural da dominação é construído também pela relação
entre meios de comunicação tecnológicos e audiência feminina. A reprodu-
ção das desigualdades de classe e gênero no campo cultural opera por meio
da classificação das mulheres de acordo com seu pertencimento de classe e
pela fixação de uma feminilidade normativa que é propriedade das mulheres
de classe alta e média, as quais definem o que é respeitável em termos de
aparência e conduta (Skeggs, 2002, p. 99).
Os dados quantitativos disponíveis sobre os modos como as mulhe-
res são retratadas na televisão brasileira não esclarecem sobre as diferenças
de tratamento para mulheres de classes distintas. De acordo com levanta-
mentos da Unesco sobre a presença da mulher na mídia televisiva, o corpo
feminino é mercantilizado e, nos telejornais, elas aparecem como vítimas
ou testemunhas anônimas e, raramente, como especialistas (apud Moreno,
2013, p. 100). Na pesquisa nacional de opinião pública da Fundação Perseu
Abramo e Sesc, em 2010, as respondentes de um survey sobre a percepção
das representações da mulher afirmam que a exposição exagerada do corpo
da mulher na TV é elemento de desvalorização do gênero feminino, havendo
uma pequena proporção delas que avalia como legítimo exibir o corpo jo-
vem e bonito (Moreno, 2013).
Levando em conta o indivíduo feminino de classe trabalhadora, a
questão pode ser formulada como segue: o consumo da telenovela permi-
te a valorização do capital simbólico de um indivíduo com escasso capital
econômico, social e cultural? Por duvidarmos da colonização completa dos
modos de vida e dos valores pelo capital, desenvolvemos a hipótese de que
as leituras das telenovelas por receptoras de classe popular reproduzem as
desigualdades de gênero e classe e são passíveis de produção de sentidos

Carne e alma 137


alternativos à lógica do valor econômico. Como afirma a socióloga Beverley
Skeggs (2014, p. 16), nós podemos estar sujeitos à alienação diante dos impe-
rativos do neoliberalismo, do populismo de mercado e do realismo capitalis-
ta, mas não são essas as únicas forças que moldam nossas relações sociais e
nossas subjetividades.
A escassez de discussão teórica acerca de classe e de gênero na linha
dos estudos de recepção/consumo é uma justificativa acadêmica para nossa
investigação. Apesar das desigualdades entre as classes em nosso país, a ca-
tegoria foi relegada a um papel secundário, ou mesmo irrelevante, nos estu-
dos de recepção brasileiros (Figaro e Grohmann, 2013), acompanhando uma
tendência mundial no cenário político e acadêmico (Murdock, 2009; Munt,
2000). O interesse teórico pela problemática de gênero4 também é incipien-
te no campo comunicacional (Escosteguy, 2008, 2012). Reunir as duas cate-
gorias sem subsumir gênero em classe e, por outro lado, evidenciar como tais
categorias são estruturantes das relações sociais é um desafio teórico-me-
todológico. Não bastassem essas dificuldades, falta-nos relacioná-las com a
vida ordinária “midiatizada”.
Mas de qual midiatização estamos falando? Não é a das redes sociais,
é a midiatização5 promovida pela televisão de massa, a televisão aberta, um
dispositivo6 depreciado pelas elites, mas que continua a ser o lazer predileto
dos brasileiros, não somente pelo apreço ao entretenimento e à informação,

4  Sobre as distinções entre estudos feministas e estudos de gênero, a linha demarcatória pa-
rece ser, como aponta Meirelles (2009), o alinhamento declarado à perspectiva do movimento
feminista, seja por conta própria, seja em termos de uma filiação às publicações feministas. Os
estudos de gênero, por seu turno, discutem a desigualdade entre homens e mulheres sem expli-
citar o compromisso com a luta política pela transformação das relações de gênero. No campo
da comunicação, a criação do Núcleo de Estudos da Telenovela na USP é considerada um marco
para a legitimação da telenovela como objeto de estudo (Meirelles, 2009). No campo das ciên-
cias sociais brasileiras, o reconhecimento é institucionalizado graças a espaços consolidados
de veiculação da pesquisa sobre mulher e gênero, como é o caso da Revista Estudos Feministas
e Cadernos Pagu (Grossi, 2004), que investem nos estudos de mídia somente a partir dos anos
2000. Na Inglaterra e nos Estados Unidos, foram as pesquisadoras feministas que inauguraram
a subárea dos estudos culturais e de mídia, denominada television studies, para discutir a cons-
trução da feminilidade e das identidades de gênero na mídia (Meirelles, 2009).
5  Midiatização, segundo a concepção de Krotz (2014), é a modificação dos padrões de comuni-
cação humana pelo uso da mídia.
6  De acordo com Yvana Fechine (2009, p. 143), a noção de dispositivo remete aos modos de
funcionamento de um suporte técnico midiático e às suas modalidades de produção de sentido.

138 Veneza V. Mayora Ronsini


mas também pela conveniência e economia do lazer no espaço privado do
lar. Ver telenovela permanece um momento de interação coletiva familiar,
mesmo com o crescimento da internet no Brasil e da navegação nas redes
sociais.

Modos de vida, consumo e corpo


Existe um modo de vida das classes trabalhadoras, mesmo diante da perda do
potencial político delas na transformação social? Afinal, a sociedade de con-
sumidores acabou com a disputa pela propriedade dos meios de produção
e as lutas de classes, antes ancoradas nas disputas (coletivas) pela posição
ocupada no campo econômico, foram deslocadas para as disputas (indivi-
duais e coletivas) no campo do consumo. Nesse deslocamento, a consciência
de classe, que é a consciência da exploração, foi substituída pela identifica-
ção com grupos de indivíduos com o mesmo padrão de consumo. Tudo in-
dica haver uma luta tanto pelo direito básico ao acesso aos bens materiais
como pelo reconhecimento do valor pessoal através da exibição dos signos
do consumo. Mas há também uma luta em torno de valores e modos de ser
porque as classes se definem tanto pela detenção de um capital econômico
como pelas culturas distintas relacionadas ao capital possuído.
A cultura das classes populares na América Latina, segundo a pon-
deração de Martín-Barbero (1987), assenta-se nas relações familiares, de
vizinhança e do bairro tal como demonstraram a obra seminal de Richard
Hoggart (1973) e trabalhos mais recentes (Savage, Bagnall e Longhurst,
2005) sobre a cultura dos operários ingleses e o seu senso de pertencimento
local. A proximidade entre indivíduos que só podem contar com seus pares
faz todo sentido, mesmo que essa proximidade coexista com o desmantela-
mento parcial dos laços de reciprocidade e solidariedade. Diferentemente
dos endinheirados e suas redes de relações sociais, que também operam por
laços pessoais, os pobres necessitam das pessoas mais próximas.
Outra característica do modo de vida das classes populares é sua sus-
cetibilidade à doença e à morte, a aniquilação do corpo físico. Apesar da he-
terogeneidade das frações de classe que vivem do trabalho mal pago, elas têm
em comum o fato de serem corpos disponíveis para a acumulação perversa

Carne e alma 139


do capital. Na discussão de Bourdieu, o capital corporal, além de ser trata-
do como uma forma específica de capital, é entendido como capital cultural
corporificado na forma de disposições duráveis do corpo/mente simbólico.
O reduzido capital cultural incorporado na forma de disposições ou
objetivado em títulos e diplomas não é apenas resultado do capital econômi-
co e gerador da reprodução das posições ocupadas, mas também está asso-
ciado a um sentimento de vergonha constante para as classes populares. O
corpo inadequado pela sua singela aparição na sociedade da abundância ou
por suas inabilidades cognitivas – aquelas associadas ao uso da linguagem e
da capacidade de comunicação – é uma queixa constante das mulheres in-
vestigadas e razão do preconceito contra as pessoas “humildes”. Fatores que
impedem sua plena inserção social mesmo para as que tiveram a chance de
concluir o ensino médio ou estão cursando uma faculdade, não “saber falar
direito” é considerado humilhante porque diminui o prestígio das pessoas
na sociedade, reduzindo seu potencial de negociação nas interações diárias.
Uma demonstração clara do que significa um corpo de classe, no sen-
tido de Bourdieu, um conjunto de disposições que envolve corpo e mente,
é o desejo expresso pelas informantes idosas de retornar aos estudos (Jiani,
Sara e Hilda) – para terem mais chances ou para se realizarem como indiví-
duos – ou de aprender um ofício como o de aeromoça (Zulmira). Justamente
a profissão que simboliza a mobilidade do turista globalizado para uma pes-
soa que nunca saiu da sua cidade.
A escassez do capital econômico é também percebida pelas mulheres
das classes populares como um determinante da divisão do espaço social
em termos de “eles” e “nós”. Sentem que estão fadados ao convívio com seus
iguais e que o corpo e os gestos são expressões vivas da diferença e da desi-
gualdade. Mais do que as redes de vizinhança e as amizades, é a instituição
familiar que melhor representa para elas o aspecto positivo da cultura das
classes trabalhadoras. Mesmo para aquelas mulheres que precisam mitigar
as marcas de uma família primordial autoritária para seguir em frente, en-
quanto os valores morais lhes permitem manter “a cabeça erguida”.
A dignidade, o humor despretensioso, os elevados padrões de honra, a
lealdade, a disposição para ajudar (Skeggs, 2004, p. 88) são valores morais e
disposições práticas de um modo de vida que não se limita ao desequilíbrio
entre acúmulo de necessidades e escassez econômica.

140 Veneza V. Mayora Ronsini


Convivo com pessoas pobres como eu, de relação de amizade, com
meus amigos que são pobres como eu. Mas tenho relação com pessoas
mais pobres, não de conviver, mas de dar boa tarde, boa noite [pausa].
E quando posso ajudo, com comida e tal [pausa], porque também não
posso ajudar muito, né? Tem uma senhora aqui do lado, que mora aqui
que tem um monte de criança e, quando eu posso, eu ajudo (Hilda).

[...] sempre tem um vizinho que ajuda os outros, meu marido ajuda
com ferramentas quando os outros não têm, e atualmente se reuniram
todos para o asfaltamento da rua (Jiani).

Qual é, então, o papel do consumo de mídia na percepção que as clas-


ses populares têm de si mesmas? Percepção de si mesmo significa construir
uma representação baseada no valor atribuído a si mesmo a partir da me-
diação da experiência pela televisão e da experiência definida pelo volume
global de capital que caracteriza as posições de classe e de gênero.
As relações entre mídia, feminilidade de classe (modo de ser das mu-
lheres de acordo com a classe) e identidade de gênero (aspectos da femini-
lidade que podem ser compartilhados pelas mulheres) necessitam ser com-
preendidas no quadro cultural do nosso tempo, mas levando em conta as
distintas temporalidades das formações sociais. É assim que o argumento
de Lipovetsky – sobre o esvaziamento da moral rigorista baseada na tradi-
ção familiar e religiosa e o processo de generalizado individualismo induzido
pelo processo de personalização (2005) – pode ser relativizado pela obser-
vação empírica: as percepções das mulheres idosas de classe popular sobre
a feminilidade são orientadas pelo rigor moral e pelas demandas coletivas
da família. Se o impulso, no final do século XX, é pela realização pessoal e
privada (França, 2010), observamos os entraves que a escassez das diversas
modalidades de capital coloca para a individualização e individuação dos
membros das classes populares, sendo o reduzido espaço (físico) um exem-
plo emblemático do problema.
O lar das classes populares é dividido, disputado pelos indivíduos em
busca da autonomia individual, mas pode ser também o lar acolhedor onde
reina a cooperação. O mundo do trabalho, por seu turno, pode ser mais hostil
que o da vida privada, diferente dos assalariados vinculados à organização
flexível do tempo de trabalho. Para eles, a flexibilidade significa precarização
e coerção.

Carne e alma 141


Outro aspecto do processo de personalização que contribui para o
gozo da liberdade individual, segundo Lipovetsky (2005, p. 42), é o investi-
mento no corpo, porque ele representa “nossa identidade profunda da qual
não se tem motivo para sentir vergonha”. Acerca dessa liberação do corpo,
necessitamos indagar em que medida ela é praticada pelas mulheres das
classes populares, pelo menos em termos do que elas dizem que fazem com
o corpo, porque não observamos diretamente seus comportamentos.
Supondo que a preocupação com um ideal corporal seja generalizada,
nem todo corpo tem autorização para exibir suas qualidades em função de
que o corpo que agrega capital simbólico necessita ser ou parecer jovem e de
um investimento de tempo e dinheiro. Presumimos que as classes populares,
levando em conta os padrões estéticos disseminados socialmente, podem
ter motivo para a vergonha do corpo, mesmo que no espaço privado da casa
e no espaço público do bairro o corpo mais opulento possa ser apreciado.
Seguindo os historiadores da vida privada, sabemos que, no período
do entreguerras, nas grandes cidades, houve a difusão de ideais do corpo que
foram adotados ao longo do desenvolvimento da sociedade de consumo por
todas as classes. Os aconselhamentos acerca da higiene e das práticas es-
portivas e físicas de moralistas burgueses e de médicos se difundiram em
campanhas publicitárias, enquanto as revistas femininas insistiam que, para
conservar o marido, a mulher devia seduzir. Os cuidados com a beleza e o
uso da maquiagem não eram mais apanágios das “mulheres fáceis” (Prost,
2009, p. 84). A televisão consagrou os novos hábitos do corpo para uma am-
pla audiência.
A história dessa adoção no Brasil é pouco estudada e circunscrita à ques-
tão da sexualidade e do erotismo (Priore, 2011; Carmo, 2011). Nosso interesse é
refletir sobre a micro-história pessoal da adoção, mediada pela classe social e
pelos valores acerca da feminilidade que são visibilizados pela televisão.
Grosso modo, com base na sociologia da reprodução de Bourdieu e
em ampla literatura de comentadores, Chris Shilling (2012, p. 148-149) obser-
va que, mesmo com o aumento da pressão pelos cuidados com a aparência
física, a atitude em relação à decadência corporal varia em termos de classe
social. As classes populares tendem a encarar o envelhecimento como inevi-
tável, pois não têm os recursos disponíveis para retardá-lo; as classes médias
padecem de uma ansiedade provocada pela ameaça de perda de prestígio

142 Veneza V. Mayora Ronsini


social que compensam com regimes, intervenções médicas e exercícios fí-
sicos e, as classes altas, também com o uso dos avanços das técnicas para
amenizar os sinais do tempo, compensam o declínio do capital físico com o
prestígio dos seus postos de comando no campo profissional.
Parece-nos que o investimento narcísico no corpo, estimulado pela
cultura do espetáculo7 e pela ampliação de novos mercados de consumo, in-
cide sobre as percepções do envelhecimento no sentido apontado por Guita
Debert (2012): a maleabilidade da idade cronológica e a abertura para novas
experiências de envelhecimento são acompanhadas também da negação da
experiência de envelhecer e das perdas que ela acarreta. A centralidade do
corpo, nessa nova moral, entretanto, não parece alterar a artificial separação
entre corpo e mente que continua a operar para legitimar a hierarquização
entre as classes e entre os gêneros. A mente continua como a diretriz privile-
giada para a condução da vida individual, da esfera pública governada pelo
poder masculino e prova da aptidão racional das elites.
Nosso debate, por um lado, se concentra na especificidade que a se-
paração ideológica entre corpo e mente tem para a divisão e hierarquização
baseada em classe e gênero; por outro, na relevância do corpo para a cons-
trução de uma feminilidade de classe popular. Diferentemente de Bourdieu,
enfatizamos que há uma valorização das virtudes morais pelas classes popu-
lares que combate a associação negativa entre pobreza e corpo. Não significa
dizer que as virtudes são o apanágio dos pobres, mas que elas lhes conferem
um senso de dignidade e de honra que lhes é negado em um sistema baseado
no valor econômico das mercadorias e dos seres-mercadorias.

Ah, recebi uma boa educação, eles eram tudo direito. Assim... sabe? Nós
era de família mesmo, de gente distinta, era pobre, mas era distinta. [...]
a minha família, meu pai e minha mãe, eram muito direitos (Zulmira,
sobre a educação que recebeu dos pais).

[...] quem rouba um tostão, rouba um milhão! (Zulmira, referindo-se


aos ensinamentos da mãe).

7  A separação ideológica entre mente e corpo, que remonta à Antiguidade clássica e ao cristia-
nismo e é retomada no sentimentalismo burguês, segundo a discussão sobre a moral do espe-
táculo, seria invertida pela cultura somática, baseada na centralidade do corpo e na moral das
sensações (Costa, 2004).

Carne e alma 143


Não existe mulher feia, o que existe é mulher sem coração, que acha
que uma plástica aqui outra ali, vai resolver (Jiani, comentando a pres-
são social que existe acerca do embelezamento feminino).

Retratos sociológicos e capitais


As informantes idosas selecionadas para análise têm entre 65 e 80 anos de
idade8, duas são pardas e duas são brancas9. Jiani (80 anos) e Zulmira (69
anos) pertencem à classe média baixa e Sara (67 anos) e Hilda (65 anos), à
classe baixa. Zulmira e Hilda são aposentadas como empregadas domésti-
cas e Sara ainda se dedica à mesma profissão. Jiani era costureira autônoma.
Com relação ao lazer, todas mencionam a convivência com familiares e/ou
amigos, como as rodas de chimarrão ou encontros de final de semana, como
atividade predileta. Com exceção de Jiani, que passou férias escolares com
os pais na infância, nunca tiveram possibilidades de gozar férias. Zulmira, à
diferença das demais que vivem do salário de empregada doméstica, é classi-
ficada pelo critério ocupacional como classe média baixa porque mora com
o filho, que é comerciário e vigilante noturno.
Hilda completou o ensino fundamental e Jiani o ensino médio. Zul-
mira e Hilda são viúvas, Jiani e Sara, casadas. Todas são mães: Hilda tem três
filhos, Zulmira, dois, Jiani e Sara, cinco. Todas residem em Santa Maria-RS.
Na época em que nasceram, entre as décadas de 1930 a 195010, os pais con-
trolavam a vida dos filhos e eles não tinham direito a uma vida privada: esco-
lhiam profissões ou ofícios, amizades, proibiam ou endossavam os namoros.
A instituição familiar era opressora, com exceção da família de Jiani, onde
havia harmonia entre pais e filhos, mesmo que as regras quanto à divisão de

8  Muitos países desenvolvidos utilizam como referência para definir “idoso” a marca de 65
anos, ainda que a ONU considere como tal a pessoa com 60 anos ou mais.
9  Não tratamos de questões étnicas no texto, e os dados são baseados em características feno-
típicas detectadas durante a pesquisa de campo. Cinco informantes são pardas e uma é negra.
Dentre as formas de discriminação por classe, aparência física ou origem étnica relatadas, a
única que menciona caso de racismo é a informante negra.
10  Baseamo-nos na obra História da vida privada, v. 5 (2009 [1987]), escrita a partir da realidade
francesa. Apesar das diferenças entre Europa e Brasil quanto à intensidade e duração do modelo
patriarcal, os relatos das entrevistas podem ser lidos à luz da reflexão de Antoine Prost sobre as
fronteiras entre o público e privado na França (2009, p. 13-136).

144 Veneza V. Mayora Ronsini


tarefas entre homens e mulheres seguisse o padrão da época, com as mulhe-
res encarregadas do serviço doméstico. O capital econômico e cultural da
sua família primordial é diferente das demais informantes, pois, por ser filha
de um trabalhador qualificado (ferroviário), conseguiu estudar até comple-
tar o ensino médio e não enfrentar as dificuldades das demais.
Zulmira – igualmente filha de pai ferroviário, falecido em um acidente
de trabalho quando ela tinha oito anos de idade – viveu a experiência da de-
sestruturação familiar. Ela foi morar “de favor” na casa de uma prima, onde
fazia o serviço doméstico. O marido da prima tentava abusar dela quando
ainda era criança. Hilda morava no campo com os pais e, com oito anos de
idade, foi trabalhar como babá em outra propriedade rural. Como Sara e
Zulmira, recebeu uma educação muito rígida, com a diferença de que era
humilhada e castigada fisicamente pelo pai. Ela nunca questionou a educa-
ção que recebeu nos momentos em que foi indagada a falar sobre a família
primordial, mas avalia que não repetiu esse modelo com os filhos. Acerca
dos maridos, Sara, Zulmira e Hilda se queixam da infidelidade e do alcoolis-
mo dos maridos, e as duas últimas também enfrentaram crises de ciúme dos
cônjuges.
Não havia aparelhos televisores nos lares, e todas elas começaram a
assistir à televisão regularmente, no espaço doméstico, depois de casadas.
O prazer que as mulheres das classes populares extraem do melodra-
ma está relacionado às especificidades do capital econômico e cultural delas,
para além de um habitus de gênero que as segrega às funções domésticas. O
lazer se restringe ao convívio com os amigos no bairro ou na vizinhança, a
escolarização geralmente é interrompida pela necessidade de trabalhar ou
pelo casamento. A ocupação profissional exercida raramente é motivo de
prazer ou orgulho. Dentre as 12 entrevistadas da investigação, cinco foram
(ou são) empregadas domésticas e uma é faxineira em um shopping center.
As demais são donas de casa (duas), recepcionista e estudante universitária,
massoterapeuta, funcionária de uma creche e vendedora autônoma. Uma
jovem é estudante universitária e não tem renda própria, sendo mantida
pelo marido. Mesmo as duas jovens que frequentam o ensino superior têm
dificuldades de expressão e avaliam seus desempenhos escolares como bai-
xos. O contato com o cinema é desproporcionalmente menor, mesmo con-
siderando o cinema pela televisão, e a concorrência entre televisão e livro

Carne e alma 145


só é manifesta pelas idosas, interessadas em livros espíritas, na Bíblia ou na
literatura de autoajuda.
Segundo dados da Pesquisa Brasileira de Mídia (Brasil, 2015) acerca
do uso que os brasileiros declaram fazer dos meios de comunicação social, a
TV continua sendo o veículo com mais penetração nos lares brasileiros. Nada
menos que 95% dos entrevistados afirmaram ver TV, 55% ouvem rádio e 48%
têm o hábito de acessar a internet. Já a leitura de jornais e revistas impressos
é menos frequente e alcança, respectivamente, 21% e 13% dos entrevistados.
Mais do que as diferenças regionais, são a escolaridade e a idade dos entre-
vistados os fatores que impulsionam a frequência e a intensidade do uso da
internet no Brasil, pois, quanto maior a escolaridade do usuário e mais jovem
ele for, maior é a intensidade do uso (Brasil, 2015). Entre as 12 informantes
de classe popular da amostra, apenas duas (uma madura e uma jovem) men-
cionam navegar pelo site da Globo.com para buscar informações, novidades
e/ou discussões sobre as telenovelas e metade delas (quatro idosas e duas
maduras) não utilizam a internet.
Sem desmerecer a importância dos novos desafios que os estudos das
novas modalidades de ver e interpretar, escolhemos pensar a midiatização
da experiência por mulheres que não participam das interações mediadas
pela web, que são desvalorizadas socialmente pelo pertencimento geracio-
nal, de classe e de gênero.
Um dos fatores de grande impacto no modo de vida das mulheres das
classes populares é a exiguidade da casa, e a conquista da vida privada é mais
difícil para elas, seja em função da ausência de um lugar na casa onde pos-
sam usufruir de momentos de maior isolamento, seja porque há pouco tem-
po para si mesmas diante da execução das tarefas domésticas e do cuidado
dos filhos. Mesmo as solteiras têm mais obrigações que os irmãos homens.
Os limites que o capital econômico coloca para a realização feminina
esclarecem os modos pelos quais as mulheres de classe popular transferem
para as relações afetivas e familiares as possibilidades de satisfação pessoal,
visto que o investimento em si próprio é um desejo que necessita ser mitiga-
do pelo acesso desigual aos bens de consumo.

Quando a mulher é pobre, não tem dinheiro para nem mesmo ir no


cabeleireiro. Talvez vai alguma vez quando tem uma festa muito

146 Veneza V. Mayora Ronsini


importante [...]. Mas acho que a pobre pode ser realizada também,
sempre damos um jeito, nos arrumamos em casa e tal, mas não tanto
quanto a rica [pausa], porque não adianta a pobre pode ser realizada
também na questão da família, ser boa mãe, esposa e tudo, ter uma
família direita, mas realizada com tudo que tem direito, como a gente
gosta, só as ricas mesmo! (Hilda).

Ah, não sei como vou te responder isso: casa, carro, curso. Fica tudo
difícil sem ter dinheiro (Zulmira).

Uma mulher que não tem dinheiro depende do marido, ou dos pais
(Jiani).

Ah, se ela não tem dinheiro ela não se realiza nunca, né? [pausa] O di-
nheiro não é tão importante, importante porque ela pode se realizar no
amor, na família. O dinheiro ajuda, mas também não é só ele que vai te
deixá ser feliz, né? [...] (Sara).

A respeitabilidade, a beleza/embelezamento e o trabalho doméstico e


fora do lar são deveres femininos que garantem a manutenção de um capital
simbólico, mesmo que à custa da reprodução do papel subordinado nas re-
lações de gênero. A adequação aos deveres promete a inversão da submissão
em poder:

[...] a mulher, assim como todo ser humano, deve ser leal, honesta
(Jiani).

Mas ela tem que ser digna, tem que ter moral, ser honesta. Não ser va-
gabunda, né? Vulgar. Ela pode ter a vida dela, se ela tá gostando de um
homem, eu acho que ela queira, que faça [sexo] com amor, não por fa-
zer. Entende? Só por vulgaridade. Usam os homens, só por usar. Mas
acho que a mulher tem que ter, se ela gosta daquela pessoa, e ela quer
transar, com amor, sem problemas (Zulmira).

Olha ela deve de se forte, honesta, trabalhadera e também charmosa,


gostosa né, eu acho que a mulher é tudo. A mulher tem personalidade
muito forte, e ela por ser mulher ela domina o mundo (Sara).

Se for dona de casa, ser bela igual. Digo assim, depois que fizer todo
o serviço da casa e quando o marido chegar estar pronta, com a casa

Carne e alma 147


em ordem, com chimarrão pronto, cafezinho, quitutes final de semana.
Seja lá o que for, tem que estar tudo pronto e em ordem. E a mulher
tem que se cuidar também, ter suas horas de lazer, olhar sua novela, se
cuidar, se pintar, colocar um batom (Hilda).

A negociação com o corpo ideal: mãe, trabalhadora,


batalhadora
O elemento narrativo essencial da telenovela, nas suas distintas vertentes
­românticas e modernistas, é o melodrama que se caracteriza pela polaridade
entre o herói e o vilão e a celebração da virtude moral (Junqueira, 2009, p. 72;
Brooks, 1996, p. 53). Outro argumento sobre a “mídia popular” que serve para
refletirmos sobre o papel das telenovelas na construção de uma feminilida-
de de classe é o da vida heroica (Featherstone, 1997). Virtude moral e vida
heroica são incorporadas e convertidas em capital simbólico das mulheres
idosas de classe popular.
Desde a literatura grega, a banalidade da vida cotidiana se contrapõe
ao caráter extraordinário da vida heroica, vista como um atributo do sexo
masculino, porque exige coragem, astúcia e ambição para a conquista da
glória, enquanto a vida cotidiana é a vida da reprodução e dos cuidados.
Contestada por vanguardas modernistas do século XX, as imagens do herói
e do seu sacrífico pelo bem comum ainda dividem espaço no imaginário
da cultura do consumo com as personalidades das celebridades (Feather­
stone, 1997, p. 87-99).
No atual cenário midiático, a vida heroica baseada em narrativas mas-
culinas se expandiu para incluir as mulheres, pelo menos em alguns pro-
dutos ficcionais cinematográficos, ou nas séries televisivas como Game of
Thrones,11 na qual as heroínas empunham armas e lutam como os homens
para ocupar uma posição política simbolizada pelo trono.
Por seu turno, a expansão que as novelas propõem para a vida heroi-
ca não é a conquista do poder político, mas a autonomia para gerir os pro-
blemas domésticos, amorosos e da esfera do trabalho, além de ter direito à

11  Série norte-americana exibida no canal HBO, cuja primeira temporada estreou em 2011.

148 Veneza V. Mayora Ronsini


monogamia sequencial. O corpo feminino ideal, magro e jovem, preconizado
pelos meios de comunicação, pela publicidade e indústria da moda também
é adequado para a construção das personagens femininas nas telenovelas,
mas, por elas tratarem de histórias familiares com núcleos de personagens
de idades variadas, as narrativas permitem que mulheres maduras e idosas
se reconheçam nas tramas através do corpo feminino que simboliza os tradi-
cionais papéis da mãe e da trabalhadora.
As heroínas, amantes, esposas, mães, não são apenas carne, pois culti-
vam a vida virtuosa, com exceção das “periguetes” e das mulheres sedutoras
e más que são guiadas pelos desejos individuais. Se a crítica feminista inter-
preta as figuras mais tradicionais da mãe e da trabalhadora como mulhe-
res passivas e assujeitadas ao patriarcado, as receptoras as transformam em
imagens heroicas e emblemáticas da superação individual.
Nas telenovelas, a luta das heroínas com as quais as mulheres de clas-
ses populares se identificam é pela ascensão social e, eventualmente, pela
sobrevivência econômica. A vida heroica que as receptoras reconhecem no
melodrama é baseada no trabalho e na família, eixos entrelaçados cujo pro-
pósito é preservar a célula familiar e os filhos. O termo “batalhadora” é ado-
tado para falar do esforço pessoal das mulheres para cumprir com as suas
múltiplas funções nas esferas pública e privada.
Essa mesma representação é endossada quando discorrem sobre a
identificação com as personagens virtuosas e com as quais Hilda e Sara se
identificam: Lucinda (Avenida Brasil, 2012, João Emanuel Carneiro) e Maria
do Carmo (Rainha da Sucata, 1990, Sílvio de Abreu). Zulmira e Jiani, que ini-
cialmente rejeitam se identificar com personagens femininas, em outros mo-
mentos das entrevistas acabam citando personagens nas quais se projetam
ou se identificam: Zulmira se refere à personagem Suelen (Avenida Brasil,
2012), repetidamente, quando defende a liberdade sexual e admira a beleza
corporal como um capital simbólico que pode gerar capital econômico. Jia-
ni contrapõe personagens vulgares às personagens mães e trabalhadoras, as
quais são os exemplos a serem seguidos.

Ser mulher é ser mãe, trabalhadora, batalhadora, é saber se valorizar e


lutar por melhores condições para ajudar a família (Hilda, definindo o
que é ser mulher).

Carne e alma 149


Eu vejo que são bem valentes, responsáveis, tem muito mais responsa-
bilidade, inteligência com serviço, emprego, com tudo. São batalhado-
ras, são sim. Dependendo da condição financeira, são bonitas (Zulmi-
ra, definindo a mulher brasileira)

Ah! com essa mesma do lixão. Aquela do lixão, aquela sim, aquela chega
ser do tempo antigo. Vai à batalha, abraça aquela filharada, dá amor às
crianças, ensina e tudo (Hilda).

Ah, sim! Tem aquela Rainha da Sucata! É a mesma coisa que eu! Deus o
livre, me perdoe, nunca juntei lixo, graças a Deus, né? Mas ela tem uma
força interior, dentro dela assim, que tem vontade de fazer as coisa e
de consegui as coisa e ela começo lá embaixo, né? Aquilo que eu acho
bonito, a pessoa começa lá embaixo, né? (Sara).

Ah! A Suélen é liberal. Eu achava que é, né? É a que faz o que quer. Eu
nunca achei feio assim, andar [...]. Eu não tenho corpo bonito, mas
eu acho bem legal, eu também posaria nua se tivesse um corpo, pra
­ganhar dinheiro (Zulmira).

Quando indagadas sobre a mulher que gostariam de ser, as informan-


tes mencionam personagens femininas de telenovelas que ascenderam de
classe ou a apresentadora de televisão Hebe Camargo. Zulmira declara que
gostaria de ser ela mesma, porém ressalta que rica, bonita e “arrumada”.
Sara mostra sua admiração pela “Rainha da Sucata” (vivida por Regina
Duarte em folhetim eletrônico homônimo) e Pereirão (Griselda, vivida por
Lília Cabral em Fina Estampa). Hilda se refere à personagem Griselda, em
razão de ela ser “batalhadora, buscar e lutar pelas coisas, ser mãe, dona de
casa, tudo! […] Representou uma coisa muito bonita na novela, ainda mais
para gente, de classe baixa assim [pausa], essa coisa de ficar rica e conti-
nuar humilde”.
As receptoras idosas não limitam sua leitura à sagração da maternali-
dade, enfatizando a honestidade e a dignidade da classe trabalhadora ou a
importância da adoção de uma nova moral sexual, quando indagadas sobre
como a mulher é retratada na novela que assiste, qual tipo de contribuição
a novela oferece para entender o que é ser mulher e para pensar sobre si

150 Veneza V. Mayora Ronsini


mesma. Jiani é exceção e responde que não acha possível aprender algo com
uma narrativa ficcional que não funciona como a realidade.

[...] eu aprendo bastante coisa, antigamente era tudo feio, e agora eu


vejo outra coisa. Que coisa triste antigamente. Eu queria que a minha
mãe olhasse novela agora! (Zulmira).

Ah! Ajuda, ajuda muito, pra nós que são humilde. Acham que as mu-
lher porque são humilde precisa andar rastejando atrás dos outros, não
precisa não! Aquelas mulher da novela, elas vê que ela era pobre, ela era
encanadora, era tudo [pausa]. Ela fazia tudo pelo direito, no fim todo
mundo dobro para o lado dela né, ela era pobre, mas trabalhava direi-
tinho né, honestamente, com a família com tudo. Eu acho que isso aí é
um ensinamento pra todo mundo né, pras pessoas (Sara).

[...] é bom para as pessoas terem uma ideia das coisas, o que vão passar,
o que é que estão passando, o sacrifício [pausa], essa questão de ser
humilhada, às vezes, para ter uma iniciativa para mudar, para se orien-
tar mais e se espelhar ali [pausa], para ver o que está certo, o que está
errado. Porque tem muita coisa que acontece na novela, mas acontece
aqui com a gente também, esse mau exemplo das mães abandonando
as crianças. Mas também tem aquela mãe lá, aquela mãezona, a Lucin-
da. Aquela sim, baita mãezona, apoia as crianças, dá lar, tudo, ajuda
as crianças, trata bem com carinho. Agora aquela outra malvada lá, eu
dispenso (Hilda).

Diferentemente dos reality shows que promovem a transformação do


habitus de classe e gênero pela violência simbólica da humilhação (McRob-
bie, 2004), as telenovelas brasileiras transformam, sutilmente, o habitus de
classe, pela mobilidade social ascendente de personagens que alteram o
­estilo de vida e continuam “simples”, ou o habitus de gênero, pela adoção
do estilo da mulher independente que conjuga trabalho e relações amorosas
igualitárias. O habitus de gênero da mulher provocante e sedutora de classe
popular, simbolizado pela “periguete”, é tematizado com humor e comicida-
de. Enquanto ocorre a identificação/projeção com os dois primeiros mode-
los pelas receptoras, a “periguete” é, usualmente, vista como ameaça à res-
peitabilidade cultivada pelas mulheres de classe popular.

Carne e alma 151


O corpo feminino e a acumulação de capital simbólico
Se para as informantes os graus de exposição à televisão variam de menos
de uma hora a mais de quatro horas, o sentido comum que a televisão tem é
o mesmo para todas elas, o de mediar a classificação da experiência femini-
na pela legitimação dos modelos de feminilidade que são convertidos para
manter ou contestar as relações de gênero vividas.
Quando as mulheres de classe popular12 avaliam os personagens de
telenovela, estão buscando modelos do corpo ideal baseados na elegância
burguesa, contrapondo esses modelos a uma estética popular e extraindo
capital simbólico do corpo materno e voltado ao trabalho.
A exibição da liberação do corpo feminino nas novelas não possui ape-
nas um caráter mercantil e reprodutor de desigualdades de gênero, mas tem
a função de fomentar ideias acerca da falta de liberdade sexual das mulheres
e do direito de serem donas do próprio corpo. É o que nos diz a voz disso-
nante de uma das informantes, enquanto as demais idealizam o destino da
mulher como corpo biológico para a maternidade e para o trabalho, mesmo
que estejam também cientes do efeito causado pelo corpo sedutor feminino
e das suas recompensas na forma de aprovação social da mulher.
A dicotomia entre corpo/emoção e alma/razão como base para a do-
minação de gênero não é plenamente adotada pelas informantes idosas, que,
por um lado, vislumbram o gênero como decorrente de uma natureza corpó-
rea e de um destino biológico e se sujeitam a administrar o espaço doméstico
com pouca ou nenhuma colaboração; por outro, reconhecem-se positiva-
mente como a alma e o corpo da casa, sendo mais capazes que os homens de
controlar e racionalizar todas as tarefas, inclusive as ligadas à provisão dos
recursos necessários para o sustento familiar. É assim que a desvantagem da
divisão sexual do trabalho é convertida em capital simbólico.
Se a realização das virtudes consideradas tipicamente femininas de-
pende do corpo maternal e trabalhador – o corpo para a reprodução, o corpo
para a casa e para os cuidados do Outro, para o sustento da unidade domés-
tica –, as virtudes humanas da honestidade, da bondade, da solidariedade
são um capital simbólico de classe que lhes dá a sensação de serem iguais ou

12  Parte das conclusões aqui relatadas foi também publicada na Revista Matrizes (2016).

152 Veneza V. Mayora Ronsini


melhores que os que detêm o capital econômico e cultural. É quando o corpo
encontra, novamente, sua alma.

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Carne e alma 155


8
Capítulo
Jovens brasileiros e
convergência midiática
Espiando o cenário nacional

Nilda Jacks e Daniela Schmitz

Os dados aqui apresentados partem de uma pesquisa de caráter nacional e


comparativo desenvolvida por 27 equipes estaduais, incluindo o Distrito Fe-
deral, que reuniu pesquisadores de universidades federais e particulares, de
várias áreas e níveis de experiência, compondo a Rede Brasil Conectado.
O trabalho de campo foi realizado em três etapas com começo em
2012. A primeira de cunho bibliográfico/documental, e muitas vezes in loco,
consistiu de uma pesquisa para o levantamento de dados contextuais sobre
cada estado e sua capital1: históricos, geográficos, econômicos, demográfi-
cos, culturais, midiáticos etc.
A segunda etapa combinou um estudo-piloto com uma pesquisa
explo­ratória, com dois procedimentos: aplicação de um questionário entre
10 universitários de estratos baixos, entre 18 e 24 anos, seguido da obser-
vação de uma semana do perfil do Facebook de outros 10 jovens do mesmo
segmento2. O questionário, focado especialmente nas plataformas digitais,
mapeou o consumo cultural e midiático de cinco moças e cinco rapazes. A
observação do Facebook levantou as práticas e conteúdos disponibilizados e

1  Além de prover informações para embasar a análise e a interpretação dos dados, foi uma
maneira tanto de proporcionar uma imersão de cada equipe na realidade que seria estudada
quanto de dá-la a conhecer às demais equipes.
2 Orozco, em palestra ao PPGCOM/UFRGS (Porto Alegre, 17 set. 2009), defendeu que não se
constitui um problema metodológico e, ao contrário, expande o âmbito de análise.

157
compartilhados, além do consumo midiático e cultural revelado pelos perfis
selecionados.
A última etapa foi executada através de um questionário on-line dis-
ponibilizado para jovens de todo o país, cujas questões foram fruto dos resul-
tados obtidos nas etapas anteriores3.
Essas estratégias foram concebidas para responder ao problema que
está relacionado com a posse e/ou acesso às tecnologias digitais por parte
de jovens das cinco regiões do país. A finalidade foi saber se diferenças con-
dicionadas por acessos distintos, em contextos diversos, podem definir prá-
ticas divergentes no uso das plataformas midiáticas ou não. O objetivo geral
foi conhecer as realidades regionais brasileiras no que diz respeito ao uso e
apropriação dos recursos multimidiáticos em processo de convergência, por
parte de jovens.

Consumo e convergência midiática: aproximações


A convergência midiática, como já foi apontada por muitos autores, traz a
principal mudança cultural do século XXI. Ela é muito mais que uma revo-
lução tecnológica como já afirmaram Henry Jenkins (2008), Jesús Martin-
-Barbero (2006), Klaus Jensen (2010), Manuel Castells (2009), entre tantos
outros, visto que está mudando profundamente os processos, as práticas e
as experiências culturais em todos os âmbitos da vida social. É uma das mais
intensas mudanças já ocorridas na história da humanidade.
Por essa razão, entender esse fenômeno que está reconfigurando a vida
cotidiana tem requerido uma miríade de enfoques, a exemplo das práticas
e rituais (Winocur, 2009, Prensky, 2001), construção de identidades e sub-
jetividades (Urresti, 2008; Turkle, 1997), níveis de participação (Berrocal,
Campos-Dominguez e Redondo, 2014; Orozco, 2011), formas de autorrepre-
sentação (Máximo, 2007; Schittine, 2004), autoexpressão e autopromoção
(Santaella, 2013), modos de entretenimento (Régis, 2008) e sociabilidade

3  O questionário foi discutido com as equipes estaduais durante encontro realizado em Brasília
para debater as duas primeiras etapas e planejar a terceira. Uma das decisões foi que a única
delimitação seria a faixa etária, 18 a 24 anos, critério definido pelo IBGE, embora a pesquisa
tenha trabalhado com um conceito mais amplo e complexo de juventude (Toaldo e Jacks, 2014).

158 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


(Sá e Enne, 2004), usos comunicacionais (Jacks et al., 2013), performances da
intimidade (Sibilia, 2008), regimes de visibilidade (Haythornwhite, 2005),
formas de empoderamento (Malini e Antoun, 2013; Shirky, 2008), intera-
ção sociais (Braga, 2008; Primo e Smaniotto, 2006), formas de participa-
ção (Carlón e Neto, 2012), inclusão/exclusão digital (Pellanda, Schlünzen
e Schlünzen Júnior, 2005; Santos, 2009), busca e difusão de informação
(Knewitz, 2010), prossumo (Bruns, 2008), consumo cultural (Canclini, 1993)
e midiático (Jacks e Toaldo, 2014), entre tantos assuntos quanto as novas
plataformas podem propiciar como fenômenos a serem conhecidos, tantos
quantos preocupam os pesquisadores também no chamado mundo off-line,
como no caso da violência, das imigrações, do lazer, do entretenimento etc.
Para pensar o consumo midiático em tempos de convergência, tema
da pesquisa aqui apresentada, ou seja, para entender a relação dos jovens
com os meios de comunicação no contexto da convergência, partiu-se da
noção de consumo midiático (Toaldo e Jacks, 2013), a qual deriva da contex-
tualização esboçada por Canclini sobre consumo cultural.
O autor parte de seis teorias4 consideradas mais significativas sobre o
debate em torno do consumo, todas abordando aspectos parciais do fenôme-
no, e propõe que o consumo cultural seja compreendido como “o conjunto
de processos de apropriação e usos de produtos nos quais o valor simbólico
prevalece sobre os valores de uso e de troca, ou onde ao menos estes últimos
se configuram subordinados à dimensão simbólica” (Canclini, 1993, p. 34).
Desse modo, alarga as perspectivas sobre o consumo para além das necessi-
dades e instrumentalidade dos bens, sendo que o consumo midiático pode
ser considerado uma vertente do consumo cultural, pois o autor se refere
aos meios de comunicação de modo específico ao fazer uma diferenciação
a respeito da maior implicação econômica na produção cultural midiática.
O consumo midiático refere-se ao que a mídia oferece nos gran-
des meios – televisão, rádio, jornal, revista, internet etc. – e nos produtos/

4  As seis teorias, que o autor também designa como modelos, são resumidas por ele com as se-
guintes assertivas: “o consumo como o lugar de reprodução da força de trabalho e de expansão
de capital”; “como o lugar onde as classes e os grupos competem pela apropriação do produto
social”; “como lugar de diferenciação social e distinção simbólica entre os grupos”; “como siste-
ma de integração e comunicação”; “como cenário de objetivação dos desejos”; “como processo
ritual” (Canclini, 1993).

Jovens brasileiros e convergência midiática 159


conteúdos veiculados por eles – novelas, filmes, notícias, informações, entre­
tenimentos, moda, shows, publicidade, entre outros. Nesse contexto, a ofer-
ta da mídia inclui também o próprio estímulo ao consumo, que se dá tanto
através da oferta de bens quanto de tendências, comportamentos, novida-
des, identidades, fantasias, desejos. Morley (1996, p. 194) exemplifica o que
significa consumir a mídia como “o processo da prática de ver televisão en-
quanto atividade”. A mesma noção pode ser aplicada à prática de acessar a
internet, de ouvir rádio, de ler jornal, entre outras tantas.
Nesse sentido, em estudos sobre consumo midiático interessa saber o
que os indivíduos consomem – meios e produtos/conteúdos – como e quan-
to se expõem aos meios e o contexto em que se envolvem com eles (lugares,
maneiras, rotinas etc.). Essa dimensão não envolve, portanto, a análise das
respostas dos receptores aos conteúdos de um programa específico, ou seja,
não chega à apropriação e interpretação dos conteúdos, objeto mais adequa-
dos aos estudos de recepção.
A partir dessas considerações, é possível entender os estudos sobre
consumo midiático como da ordem da relação mais ampla com os meios
de comunicação, sua presença no cotidiano pautando tempos, espaços, re-
lações, percepções etc. O enfoque no consumo midiático torna-se o preâm-
bulo para conhecer outras formas de relação com os meios de comunicação,
em termos gerais, e especificamente dos dispositivos digitais, uma vez que
nesse caso se dá simultaneamente e de forma entrecruzada a partir da con-
vergência midiática.
A transição entre tecnologias midiáticas ou entre mídias diferentes uti-
lizadas em rede por um ou mais usuários torna-se mais do que uma mudan-
ça de telas à medida que a interação do usuário com o suporte transforma
também seu comportamento e sua forma de consumo. A partir da digitali-
zação dos meios e o desenvolvimento de interfaces, a relação com as telas
passa a ser cada vez mais interativa.
Esse cenário de transformações não retrata somente questões de tec-
nologia, uma vez que a utilização de aparelhos, e seus recursos, passa pela
vontade e pela atividade do usuário, e também é condicionado por questões
de classe e competência cultural, para citar apenas duas mediações (Mar-
tín-Barbero, 2003) implicadas no processo. O acesso às tecnologias modifi-
ca os hábitos, que por sua vez modificam as características e funcionalidade

160 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


dos meios. Nesse sentido, não somente são afetados os suportes midiáticos e
seus consumidores, como também os produtores midiáticos.
No contexto de convergência midiática, a articulação da produção,
buscando a variabilidade de conteúdos em múltiplas plataformas, conta
com a capacidade de fruição do consumidor, que se apropriando, organiza
e replica o conteúdo inclusive integrado à produção própria (Jenkins, 2008).
A investigação sobre o consumo midiático torna-se importante, por-
tanto, para a compreensão das amplas transformações nas formas de con-
sumo advindas da inserção e do acesso a novas tecnologias, especialmente
relativas aos jovens que estão no âmago dessa utilização. E, para compreen-
der melhor as relações que os jovens brasileiros estabelecem com os meios e
algumas práticas relativas ao seu consumo, mais especificamente a conver-
gência dos usos, traz-se dados do questionário on-line realizado pela Rede
Brasil Conectado, última etapa da pesquisa.

Juventude e convergência: práticas de consumo midiático


Os dados a seguir são derivados de 31 questões, das quais seis abertas, que
estiveram on-line por sete semanas (entre agosto e outubro de 2014). O ques-
tionário5 explorou o acesso à internet, a produção de conteúdos nesse am-
biente, o uso de redes sociais e a comunicação via web, a posse e o uso de
dispositivos, a importância dos meios e seus usos convergentes, além de per-
guntas relativas ao perfil do jovem.
Aqui será apresentado o panorama nacional construído nas questões
fechadas sobre a importância dos meios no cotidiano juvenil e seus usos
convergentes, além do perfil dos respondentes. Para tanto serão utilizadas
as respostas de 6.471 jovens que responderam o questionário integralmen-
te (71% do total de respondentes). E para que seja possível compreender
as ­explorações qualitativas empreendidas, as respostas de duas questões

5  As perguntas fechadas foram tratadas no software SPSS (Statistical Package for the Social
Sciences), que facilitou a organização, sistematização e análise do material de cunho quantita-
tivo. As abertas foram trabalhadas no NVivo, software CAQDAS (Computer Assisted Qualitative
Data Analysis Software) que permitiu explorar a base da dados com a produção de nuvens de
palavras e árvores de significados que serão apresentadas mais adiante.

Jovens brasileiros e convergência midiática 161


abertas também serão discutidas, embora elas digam respeito apenas aos
dados da região Sul que contabilizou 1.696 respondentes6.
Na Tabela 1 está indicada a distribuição, por região e estado, dos infor-
mantes que concluíram o questionário.

Tabela 1. Região e estado dos jovens investigados7


Região Estado Respondentes
Acre 15
Amapá 41
Amazonas 35
Norte Pará 351
Rondônia 63
Roraima 193
Tocantins 487
Alagoas 139
Bahia 182
Ceará 397
Maranhão 74
Nordeste Paraíba 111
Pernambuco 143
Piauí 56
Sergipe 503
Rio Grande do Norte 120
DF 405
Goiás 187
Centro-Oeste
Mato Grosso 381
Mato Grosso do Sul 350

6  Nas perguntas abertas utilizou-se os dados de todos os respondentes, independente de te-


rem concluído ou não o questionário.
7  Questionários respondidos até o final.

162 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


Região Estado Respondentes
Espírito Santo 309
Minas Gerais 175
Sudeste
Rio de Janeiro 263
São Paulo 373
Paraná 229
Sul Santa Catarina 341
Rio Grande do Sul 548
Total 6.471

a) De quais jovens trata-se aqui: perfis


Dois terços dos jovens investigados estão na faixa dos 21 anos (61%), com
igual proporção de representantes do sexo feminino (63%), sendo o outro
terço (37%) masculino. O nível de instrução mais presente é a graduação
(concluída ou em curso) com quase 80% das respostas, seguido por ensino
médio e pós-graduação.
Entre eles destaca-se a predominância de jovens que moram com pais
e/ou familiares (75%), sendo dois terços do total em imóvel próprio (61%)
e 12,5% em alugado8. Tal situação de moradia pode estar relacionada com
a faixa de renda familiar: pouco mais de 40% dos jovens indica rendimento
mensal entre 3,5 e 12 salários-mínimos, sendo que metade deles não ultra-
passa os sete salários mínimos mensais9.

8  Apenas 8,6% declaram morar sozinhos, dos quais 6,7% em imóvel alugado. Um número me-
nor divide moradia com amigos (6,4%), maior parte pagando aluguel (5,9%). A terceira situação
é a coabitação com companheira(o), 5,6%, sendo que 2,7% vivem de aluguel. Ainda há 2,9% que
declaram morar em casa estudantil. Dos 23,5% que não residem com os pais, mais da metade
(15,3%) mora em imóvel alugado.
9  O cálculo foi feito com base no salário-mínimo de novembro de 2014 (R$ 724,00): 24% têm
rendimento mensal entre 3,5 e sete salários, seguido de 17,4% com renda entre 2,5 e 3,5. Renda
familiar entre um e 1,5 salário foi indicada por 15,3%, e entre sete e 12 salários, por 15,1% da
amostra. As rendas menos presentes estão nos dois extremos: 9,3% declaram que a família rece-
be mais de 12 e 4,4%, menos de um salário-mínimo ao mês.

Jovens brasileiros e convergência midiática 163


b) Usos simultâneos de meios: principais evidências
Quanto às práticas de consumo midiático simultâneo, representativas da
chamada “cultura da convergência”, em especial o uso do computador asso­
ciado a outro meio, tem-se a preferência pelo celular como segunda tela
(83%), seguido da televisão (56%). Em terceiro, o livro (30%), seguido da TV
on-line (20%)10, do rádio (13%), do tablet (11,5%), da revista impressa (7%) e
do jornal impresso (5%)11. Contudo, 5% declaram utilizar unicamente o com-
putador, do que se pressupõe um uso com atenção concentrada, mas que
ainda assim pode ser multitarefa.
Chama atenção que o celular, a segunda tela mais indicada, possui
funcionalidades próximas à oferta do computador, principalmente os smart-
phones. Ainda assim, algumas atividades parecem ser determinantes para a
associação do computador ao celular, como é o caso dos aplicativos de men-
sagens instantâneas, que obtiveram grande destaque (82%)12. Contudo, a
segunda atividade mais destacada, o acesso a redes sociais (59%), poderia
ser realizado no próprio computador, com exceção do Instagram, que é uma
rede com funcionalidades reduzidas quando não acessada via aplicativo. Já
o uso do Facebook, rede mais utilizada pelos jovens, não sofre nenhum com-
prometimento. As atividades que figuram em terceiro e quarto lugares são
justificadas pelo fato de requererem o dispositivo móvel, como é o caso das
ligações (47%) e do envio de SMS (40%) e também baixar aplicativos, o sexto
uso mais indicado (28,5%). Ao passo que ouvir música (37%), acessar sites
(27%) e jogar (22%) figuram no rol de tarefas disponíveis no próprio compu-
tador e talvez por isso tenham sido menos indicadas.
Uma interpretação possível é que os jovens desenvolvem alguns ri-
tuais de usos em que algumas atividades podem estar mais associadas a um
ou outro dispositivo. Outra percepção é que na segunda tela, há uma prefe-
rência por atividades que os coloquem em contato com outras pessoas, já
que as quatro atividades mais citadas sugerem esse tipo de ação.

10  Existe a possibilidade de os jovens terem interpretado a opção “TV on-line” com assistência
via computador, pois o número que indica uso de TV on-line é pouco expressivo em outras per-
guntas do questionário.
11  A soma excede 100% porque a questão permitia respostas múltiplas.
12  No momento em que o questionário foi aplicado, não havia a possibilidade de utilizar o
WhatsApp via web, por exemplo.

164 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


Quanto ao consumo de televisão associado a outro meio, a preferência
pelo celular como segunda tela se repete (64%), e o computador, nas ativida-
des on-line, figura em segundo (56%); porém, seu uso cai consideravelmente
quando off-line (18%). O livro figura em terceiro (17%), seguido do tablet em
atividades conectadas (12%), revista impressa (7,5%), tablet desconectado
(4%). Jornal e rádio são pouco expressivos, 3% cada.
Como ocorreu com o computador, é baixo o número de jovens que
consomem TV com exclusividade (6%). Entretanto, se o índice dos que não
utilizam computador está abaixo de 1%, o não consumo de televisão atinge
10%. Se por um lado esse dado indica uma preferência por outros meios,
ele não necessariamente reflete a falta de consumo de conteúdos televisi-
vos, pois outra questão13 revelou que 24% assistem conteúdos televisivos via
YouTube.
O quadro das principais atividades que concorrem com a tela prin-
cipal, seja ela o computador ou televisão é muito próximo: celular no topo,
computador ou televisão em segundo e o livro, atividade que supostamente
requer atenção, em terceiro.
Do consumo associado entre televisão e celular, as atividades mais
significativas estão praticamente na mesma ordem indicada para uso conco-
mitante entre computador e celular: aplicativos de mensagens instantâneas
como WhatsApp e Snapchat (89,5%), redes sociais (69%), SMS e ligações (30%
cada), o que pode demonstrar um uso mais acentuado desse dispositivo mó-
vel para tais ações simultâneas. O quadro de atividades muda na relevância
que acessar sites (28%) e jogar (27%) adquirem.
Agora, se 69% indicam congregar a televisão e o acesso a redes sociais,
suas práticas revelam uma baixa produção de conteúdos: quase metade não
costuma comentar sobre os programas que assiste (43%), mas gosta de ler o
que os outros comentam (42%). Quase um terço deles conversa sobre o con-
teúdo consumido com pessoas que conhece (28%) e um grupo menor posta
comentários sobre o que assiste (21,5%). O uso de hashtags dos programas
nos comentários é pouco expressivo (8%), assim como a interlocução com
produtores, autores, atores dos programas (6%). É ainda menor o índice dos
que trocam impressões com desconhecidos (5,5%). Ao que parece, a prática

13  Sobre os motivos de uso do YouTube.

Jovens brasileiros e convergência midiática 165


da segunda tela conectada às redes sociais serve para colocar os jovens em
contato entre si, mesmo que não em interlocução, já que leem mais do que
produzem e trocam apenas com seus pares.

c) Atenção exclusiva aos meios: práticas menos convergentes


A exclusividade de atenção no uso dos meios traz outro quadro, com o livro
no topo (58%), seguido pelo computador (22%) e celular (21%)14. Embora a
questão explorasse em primeiro plano a concentração de atenção, o costu-
me de utilizar mais de um meio também era uma possibilidade de respos-
ta e foi citado por 20,5%15, o que sugere uma predisposição juvenil ao uso
concomitante.
Destaca-se que o principal dispositivo indicado como segunda tela,
o celular, também recebe atenção exclusiva, dedicada principalmente aos
aplicativos de mensagem instantânea como WhatsApp, Snapchat etc. (68%),
ligações (43%) e redes sociais (40%). Do lado oposto, música (27%), SMS
(22,5%), jogos (17%), sites em geral (16%) e download de aplicativos (11%)
requerem menor exclusividade no uso do referido dispositivo móvel.
A atenção exclusiva no computador off-line se dá em atividades de es-
tudo e trabalho (67%), acesso a redes sociais (45%) e a sites (42%)16. Quadro
que se repete no uso concentrado de tablet, ainda que com percentuais mais
baixos.
Essa questão também teve exploração qualitativa, quando os jovens
eram questionados sobre os motivos que os levavam a concentrar atenção
em determinados meios. Aqui se discute as razões dessa prática entre os jo-
vens da região Sul, como já anunciado, que conta com 1.696 respondentes17.

14  Os demais meios são: revista impressa (20%), jornal impresso (17,5%), televisão (11%), rádio
(4,5%) e tablet (2%).
15  Como estratégia metodológica, o questionário foi construído para explorar aspectos impor-
tantes da pesquisa de formas distintas e em mais de uma questão. Em função disso, a pergunta
que explorava uso exclusivo de meios incluía a opção de uso concomitante como resposta, da
mesma forma que o uso simultâneo também explorava a concentração.
16  Música (33%), jogos (19%) e download de aplicativos (9%) vêm na sequência.
17  No grupo sulista, os meios que recebem atenção exclusiva são distintos do panorama na-
cional: o livro também figure em primeiro, mas o segundo e terceiro são ocupados por jornal
impresso e revista impressa; o computador vem em quarto e o celular, na quinta posição.

166 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


A Tabela 2 apresenta os índices dos meios que recebem atenção exclu-
siva dos jovens sulistas cruzados com as categorias indutivas criadas a partir
da exploração das respostas em nível nacional. Essa exploração qualitativa
foi realizada no software NVivo18 que ajuda a compreender as motivações dos
jovens para suas práticas de consumo midiático.192021222324

Tabela 2. Meios com atenção exclusiva e os motivos indicados – região Sul

8 Interlocução23
Contingência22
3 Performance

5 Conteúdo21
do meio20

Tipos de
1 Perfil19

tarefa24
Celular 31% 19,1% 12,0% 6,6% 8,3% 22,6%
Computador 25,6% 22,3% 14,9% 7,2% 5,1% 24,7%
Jornal impresso 31,3% 27,1% 18,2% 2,2% 1,2% 19,8%
Livros 32,5% 25,8% 18,5% 2% 0,8% 20,3%
Rádio 27% 28% 13,8% 9,1% 3,1% 18,7%
Revista impressa 31,5% 25% 19,9% 1,9% 0,4% 21,1%
Sempre uso mais de um meio 0% 0% 0% 0% 0% 0%
ao mesmo tempo
Tablet 28,1% 29,8% 19,3% 0% 6,3% 16,3%
TV 22,8% 21,7% 26,6% 7,4% 2,5% 18,7%

18  Nessa ferramenta foram criadas as nuvens de palavras com as respostas constantes no cruza-
mento do meio com a categoria indutiva para identificar termos e destaques que auxiliaram na
interpretação das questões abertas. Depois, foram eleitos alguns termos-chave dessas nuvens
para criação das árvores de significado. Essa operação permitiu explorar um banco extenso com
mais de seis mil respostas sem que fosse preciso ler, interpretar e categorizar cada uma delas.
19  Identificação das preferências, gostos ou hábitos individuais que são definidores da atenção
exclusiva a determinados meios.
20  Congregou respostas em que as características, exigências e/ou desempenho do meio deter-
minam o grau de atenção.
21  Fator que requer maior atenção, devido ao volume, interesse e/ou dificuldade.
22  Agrupa respostas cujas circunstâncias de uso/acesso são determinantes para atenção exclu-
siva; é o único meio disponível no local (trabalho, casa etc.).
23  A necessidade e/ou desejo de comunicação interpessoal demandam maior atenção e exclu-
sividade na tarefa.
24  A complexidade da tarefa condiciona o grau de atenção (a leitura, seja de livros, jornais, re-
vistas, sites ou atividades referentes a estudos é a principal tarefa a receber atenção exclusiva).

Jovens brasileiros e convergência midiática 167


Os dados da Tabela 2 indicam o quanto o perfil do respondente é de-
terminante para a atenção exclusiva aos meios. Com exceção do rádio e do
tablet, em que o fator perfil está em segundo lugar25, essa categoria figura em
primeiro em todos os demais meios.
A partir dos dados mais evidentes da Tabela 2, a discussão a seguir fo-
ca-se nos três meios de maior destaque na região Sul (livros, revista e jornal,
todos impressos) e nas duas principais categorias apontadas (perfil e perfor-
mance do meio).
Em relação ao livro, entre os jovens do Sul, 32,5% indicam que ele exige
atenção exclusiva em função do perfil do respondente. Nas respostas abertas
sobre as motivações dessa atenção concentrada, os termos mais recorrentes
figuram na nuvem de palavras abaixo.

Assim, os termos mais proeminentes estão relacionados às caracte-


rísticas do usuário como “concentração” e “atenção” para a leitura do livro.
Outras palavras em menor tamanho na nuvem ajudam a entender o porquê
da atenção exclusiva, como se esta fosse necessária para “compreensão”26,

25  Mas a diferença é mínima: 1% entre as duas categorias mais relevantes.


26  Última palavra na horizontal, na parte inferior da nuvem.

168 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


“estudo”27, “entender”28. A concentração também pode ser explicada pela
recorrência de termos como “densa”29, “dificuldade”30 e “prende”31, que ao
mesmo tempo que se relaciona ao conteúdo, também é indicativo da forma
como o sujeito prefere consumi-lo, centralizando atenção.
Há palavras ainda que dão indícios de possíveis rituais que os jovens
desenvolvem na leitura de livros: “silêncio”32 e o seu oposto “barulho”33.
Aparecem também termos relacionados diretamente ao meio e suas práti-
cas, como “ler”34, “leitura”35, “lendo”36 e “livro”37. E verbos que são indicati-
vos das relações que empreendem com o livro e suas exigências de atenção:
“distrair”38, “entender”39, “desligar”40, “conseguir”41, “prestar”42. A nuvem
de palavras acima pode ter melhor compreensão quando contraposta à ár-
vore de significados43 gerada em torno do termo concentração, o mais proe-
minente na nuvem.
Na árvore de significados gerada com as respostas da categoria perfil
relativa ao livro, as expressões à esquerda do termo “concentração” revelam
necessidades em relação à leitura (“preciso de”, “leitura pra mim precisa de”,

27  Penúltima palavra na horizontal, na parte inferior da nuvem.


28  Dividindo a nuvem em quatro quadrantes, na parte inferior, do lado direito, na horizontal.
29  No quadrante inferior, à direita, posicionada na vertical.
30  Quadrante inferior à esquerda, na horizontal.
31 Idem.
32  Quadrante superior à esquerda, na horizontal.
33 Idem.
34  Quadrante inferior à esquerda, na vertical, logo abaixo do termo “concentração”.
35  Quadrante superior à esquerda, na horizontal, logo acima do termo “concentração”.
36  Quadrante superior à esquerda, na vertical, logo acima do termo “concentração”.
37 Idem.
38  Quadrante inferior à direita, na horizontal.
39 Idem.
40  Quadrante inferior à direita, na horizontal.
41  Quadrante superior à esquerda, na vertical.
42 Idem.
43  A árvore de significados traz um panorama do “campo de sentidos” que envolve determina-
da palavra, ou seja, ela aponta algumas recorrências no discurso dos jovens, tendo como centro
a expressão eleita. À esquerda estão frases e expressões que precedem tal palavra e à direita, a
fala que a sucede.

Jovens brasileiros e convergência midiática 169


“porque preciso”) e indicam certo esforço para a manutenção dessa con-
dição (“para manter”, “para melhorar”, “para conseguir”, “para não perder”,
“para ter 100% de”). Outras construções, contudo, são reveladoras de carac-
terísticas individuais (“porque tenho sérios problemas de”, “qualquer baru-
lho atrapalha minha”, “no silêncio e com muita”, “gosto de silêncio e total”).
Há também uma série de expressões que indicam que, na visão dos jovens, as
características do livro é que demandam atenção exclusiva.44
Já no lado direito da árvore de significados é possível ter mais indica-
ções dos motivos pessoais para o livro exigir tamanha concentração: “leitura
é algo difícil”, “para conseguir interpretar”, “para não me perder”, “para com-
preender o que eu leio”, “não consigo absorver nada”, “me distraio muito”,
“para entender”, “dedicação no que estou lendo”, “especial para serem bem
aproveitadas”, entre outras.
Para os outros dois meios impressos indicados pelos sulistas, jornal e
revista, também foram gerados os mesmos dados45 e, na análise desse ma-
terial é possível perceber que eles exigem mais concentração e atenção para
maior envolvimento, melhor compreensão e uma experiência de consumo
mais efetiva.
Dessa forma, os resultados revelam o quanto os meios impressos exi-
gem dos jovens outra dinâmica de consumo, assim como maior dedicação
e concentração que não são investidas na relação com outros meios. Há em
seus discursos a necessidade de maior esforço para garantir a concentração,
uma atenção que serviria para “absorver o conteúdo” e ter uma “leitura in-
terpretativa”, indicando além do mais que há concorrência com outros meios
nesse processo.
Aparentemente, a relação com os impressos demanda uma quebra nas
práticas de consumo convergente. E é curioso que os mesmos meios em suas
versões on-line não tiveram destaque nas respostas, do que é possível de-
preender que há formas de leitura e dinâmicas distintas na leitura de jornais,
revistas e livros nas versões impressas e on-line.

44  Tais respostas também podem figurar na categoria “performance do meio”, porque as res-
postas poderiam figurar em mais de uma categoria.
45  Ou seja, nuvem de palavras com as categorias perfil e performance do meio e árvores de
significados com os termos concentração e atenção, que se destacaram nas nuvens geradas.

170 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


Jovens brasileiros e convergência midiática 171
Ainda mais instigante para pensar as atuais formas de relação dos jo-
vens com os meios de comunicação é a associação possível entre os meios
que demandam maior concentração e os que fazem menos falta. O livro é o
único que não consta entre os mais dispensáveis na região Sul, como se verá
a seguir.
Na questão sobre os meios de que menos sentem a falta, o panorama
dos jovens sulistas é muito próximo do nacional. No Brasil, o jornal impres-
so é o meio que menos faz falta (46%), seguido do rádio (42%), da revista
impressa (34%) e do tablet (26%)46. Na região Sul, apenas a ordem do jornal
impresso e do rádio é inversa.
Essa pergunta também teve uma exploração qualitativa, questionando
as razões de não sentirem a falta47 dos meios marcados, que serão discutidas
a partir dos dados da região Sul. A Tabela 3, tal qual a pergunta aberta ante-
rior, apresenta os índices de cada categoria, relacionadas ao interesse/con-
sumo que os jovens do Sul possuem em relação a cada meio.48495051

Tabela 3. Meios de que não sentem a falta e motivos indicados – região Sul
Não usa/ Prefere
Meios/ categorias Substituído48 Não possui51
não gosta49 outro50
Rádio 33,40% 34,30% 21,20% 10,90%
Tablet 32,90% 26,50% 20,10% 20,30%
Jornal impresso 43,70% 22,30% 23,30% 10,60%

46  Na sequência, revista on-line (18%), televisão (14%) e jornal on-line (6%) tiveram menos
indicações. E, pelos dados, smartphone (6%), celular (3,5%), livros (2%) e internet (1%) são os
meios mais importantes no cotidiano juvenil, visto que um número muito reduzido de jovens
indicou que eles não fazem falta. Já 15% admitem precisar de todos os meios.
47  Esse material foi tratado da mesma forma que a outra questão aberta, com a produção de
nuvens de palavras e árvores de significados cruzando os dados do meio com cada categoria.
48  Nessa categoria, o meio foi abandonado em função de sua substituição. A troca é geralmente
marcada por alguma evolução em relação ao meio anterior: performance, custos, conectivida-
de, interatividade, velocidade de acesso, disponibilidade de conteúdo, redundância com outra
mídia, entre outros.
49  Casos em que o jovem possui e/ou tem acesso ao meio, mas prefere não utilizá-lo.
50  Os hábitos, rituais, práticas e preferências pessoais do jovem são determinantes para seu
consumo midiático e não a evolução/performance do meio em questão.
51  O uso/consumo do meio está condicionado à posse e/ou ao acesso.

172 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


Não usa/ Prefere
Meios/ categorias Substituído48 Não possui51
não gosta49 outro50
Revista impressa 40,10% 26,70% 23,30% 9,70%
Jornal on-line 20,90% 29,40% 38,10% 11,50%
Revista on-line 27,80% 25% 33% 14,10%
TV 38,50% 28,60% 27,50% 5,20%
Livros 57,20% 21,80% 13,90% 6,90%
Smartphone 22,80% 35,70% 12% 29,30%
Internet 76% 24% 0% 0%
Celular 36,60% 30,00% 24,50% 8,70%
Nenhum, sinto que
preciso de todos 0% 0% 0% 0%

Em termos gerais, a categoria “substituído” é bastante relevante para


todos os meios, seguida de “não usa/não gosta”. No caso dos quatro meios
que menos fazem falta aos sulistas52, esse panorama se mantém. A exce-
ção é o rádio, para o qual “não usa/não gosta” está apenas 1% à frente de
“substituído”.
Na interpretação dos dados qualitativos, o rádio não é muito presente
no cotidiano juvenil, e o discurso dos jovens leva a crer que ele é tido como
desnecessário, e que a internet é seu substituto. Razões para o baixo consu-
mo do rádio estão relacionadas à falta de hábito, não tendo sido substituído,
portanto. A dinâmica temporal da emissão radiofônica e a não customização
do meio são indicadas como motivos para o baixo consumo: “nunca tive pa-
ciência para escutar” ou “faço minha própria playlist”, revelando que o jovem
prefere ter maior autonomia no seu consumo musical, o que é ratificado por
vários dados, produzidos em procedimentos distintos, que indicam a rele-
vância da música no cotidiano juvenil.
No caso do jornal impresso, que aparece em segundo lugar entre os
sulistas (em primeiro no Brasil), a principal explicação é sua substituição por
outros meios de maior preferência. A internet, seja com a versão on-line do
jornal ou como espaço de busca de informações, é indicada como principal
substituta do meio. Sua praticidade é um dos principais motivos, assim como

52  Todos destacados em cinza.

Jovens brasileiros e convergência midiática 173


o menor custo e a velocidade de atualização. Ocorre o mesmo com a revis-
ta impressa que vem na sequência do jornal. Há nas respostas expressões
curiosas, como a interpretação de que a internet “parece conseguir substituir
a experiência” e que a revista on-line é um bom substituto, “salvo é claro re-
vistas científicas”, situação em que o jovem ainda prefere ler o conteúdo em
meios impressos.
O tablet, quarto meio apontado, tem a maior parte das respostas con-
centradas na categoria “foi substituído”. O que leva a crer que os jovens o
veem como um dispositivo sem nenhuma especificidade, pois o que ele ofe-
rece pode ser realizado em um smartphone ou computador, por exemplo. Há
ainda uma parte dos jovens que indica nunca tê-lo usado ou mesmo não o
possuírem, e entre estes há os que reforçam que prescindem dele, com ter-
mos como “parafernália”, “sem utilidade” ou “encontrei um substituto mais
moderno”, referindo-se ao smartphone.

Considerações finais: alinhando alguns resultados


Embora a proposta do texto tenha sido discutir um panorama nacional do
consumo midiático juvenil no contexto da convergência, sabe-se que o gru-
po investigado é formado por um número maior de mulheres, de alta escola-
ridade, que moram com a família, em casa própria, ou seja, não abarca todos
os estratos sociais. Ainda assim, o alto número de respondentes constitui um
banco de dados bastante representativo e que ajuda a conhecer com maiores
detalhes algumas práticas juvenis.
Nesse grupo, o uso simultâneo de meios é uma realidade, vide o baixo
número dos que declaram concentrar a atenção no computador (5%) ou na
televisão (6%). O celular desponta como segunda tela preferida, o que traz al-
guns questionamentos sobre essa expressão, se ele seria mesmo secundário,
visto que acompanha o consumo de vários outros meios e que sua mobilida-
de permite que transite em espaços distintos do cotidiano juvenil53. Inclusive
no uso associado de computador e celular, o acesso às redes sociais se dá de

53  A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílio – PNAD 2014 (2016) indica o aumento da
posse de celulares em todas as faixas investigadas (população acima de 10 anos), sendo que
nacionalmente o grupo de 20 a 24 anos é o que está à frente na posse desse dispositivo.

174 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


forma bastante intensa no dispositivo móvel, ainda que o computador pu-
desse ser utilizado para tanto. Tais hábitos e práticas podem sugerir rituais
de uso que envolvem o consumo em meios e dispositivos específicos, ainda
que não se tenha explorado os motivos pelos quais o celular é escolhido para
determinados usos.
Contudo, ainda que se mostrem afeitos a usos concomitantes, mul-
ticonectados e multifuncionais, os jovens pesquisados não configuram um
grupo assíduo na produção de conteúdos, ao menos no que diz respeito ao
consumo de televisão associado às redes sociais. No que se pode depreender
que a insígnia “prossumidores” não seja a mais adequada nesse consumo
específico.54
De todo modo, na forma como se mostram inseridos na cultura da
convergência, seja no consumo simultâneo ou na migração dos meios tradi-
cionais para os digitais, há práticas que parecem ser prejudicadas pela acele-
ração ou simultaneidade. É o caso do consumo de meios impressos, o que foi
indicado nacionalmente, embora aqui tenha sido apresentada uma explora-
ção qualitativa concentrada nos dados da região Sul. Curiosamente, dois dos
meios que os jovens sulistas indicam necessitar de maior atenção (jornal e
revista) estão entre os que eles menos sentem falta. O que pode sugerir uma
menor predisposição ou interesse em meios que exijam mais concentração
ou que quebrem com a lógica do uso simultâneo.
Pelos dados produzidos, o perfil dos jovens é bastante determinante
da forma como se relacionam com os meios, seja com atenção exclusiva ou
não, muito mais do que a tarefa que executa ou o meio que utiliza. O que
indica a importância da subjetividade e competência cultural nos processos
de consumo cultural e midiático (Martín-Barbero, 2003).
Por fim, é claro o quanto os jovens incorporaram a internet em seu
cotidiano55, seja nas práticas de comunicação (WhatsApp e Facebook) ou
substituindo meios analógicos por seus equivalentes digitais, apostando na
“customização” e na autonomia que os meios on-line oferecem.

54  Outros dados não apresentados aqui também indicam uma baixa produção de conteúdos
na internet nesse grupo: questionados sobre a manutenção de blogs, tumblrs, sites pessoais e
canais do YouTube, 32% dizem que não possuem e, quando têm, 16% não os atualizam.
55  O grupo entre 20 e 24 anos é o que registrou maior crescimento no uso da internet (PNAD,
2016).

Jovens brasileiros e convergência midiática 175


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178 Nilda Jacks e Daniela Schmitz


9
Capítulo Términos de
relacionamentos e Facebook
Desafios da pesquisa etnográfica em sites
de redes sociais

Beatriz Polivanov1 e Deborah Santos2

Introdução
Os sites de redes sociais estão hoje entranhados no cotidiano de milhares
de sujeitos, mediando processos comunicativos e afetos através de diferen-
tes suportes materiais, como smartphones, tablets e computadores. Se Hine
(2015) propõe que a internet atualmente pode ser entendida a partir de três
E’s – embodied, embedded e everyday –, isto é, que ela estaria incorporada e
inserida em nossas vidas diariamente – não raras vezes de modo síncrono
com outras formas de interação –, os sites de redes sociais podem ser um dos
melhores exemplos de ambientes que encarnam tais características.
É nesse contexto que uma série de pesquisadores têm se dedicado
a investigar os usos e apropriações que são feitos dessas plataformas pe-
los usuários, focando em aspectos tão diversos que podem envolver desde

1  Docente do Departamento de Estudos Culturais e Mídia, bem como do Programa de Pós-


Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense (UFF); doutora e mestre em
Comunicação pelo mesmo programa, onde desenvolveu pesquisa de pós-doutorado com bolsa
Capes/PNPD na linha de Estéticas e Tecnologias da Comunicação. Graduada em Letras pela
Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), com licenciatura pela Faculdade de Educação,
também na UFRJ. E-mail: beatrizpolivanov@id.uff.br.
2  Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Flu-
minense (UFF) com bolsa PEC-PG/CNPq; graduada em Comunicação Social pela Universidad
de La Habana. E-mail: debrs1990@gmail.com.

179
a linguagem utilizada por marcas para se comunicar com seu público-alvo
(Saad Corrêa, 2009; Coutinho e Pereira, 2011), os comportamentos discur-
sivos violentos de sujeitos (Recuero, 2015), a disseminação de memes (Cha-
gas, 2015), práticas de ciberativismo (Malini e Antoun, 2013), vigilância e
privacidade (Bruno, 2013) dentre uma quase infinidade de outras questões e
temáticas3. A nós interessa pensar como os sujeitos se apropriam de tais sites
para se autoapresentarem on-line, isto é, para performatizarem discursiva-
mente seus selves através dessas plataformas.
Mais especificamente nosso recorte recai sobre sujeitos que passaram
por um final de relacionamento amoroso e como essa sua performance de si se
dá no Facebook em um momento pós-término. Após observação inicial, per-
cebemos que alguns atores sociais mudam sobremaneira os tipos de conteú-
dos que postam no Facebook, buscando, em muitos casos, demonstrar para
a figura do outro – que pode ser o(a) ex-parceiro(a) amoroso(a), seus amigos
e familiares, dentre outros – que estavam bem após o término, ou melhor,
que estavam demasiado bem, em condições ainda mais favoráveis e positivas
do que anteriormente, durante o relacionamento. Assim, discutimos em tra-
balho anterior sobre narrativas de superação em término de relacionamento
enquanto performance de si no Facebook (Polivanov e Santos, 2015).
Com isso, estamos interessadas em discutir questões relacionadas a de
que modos suas performances são alteradas (se é que o são) e de que tipos de
narrativas – ligadas ou não a um discurso de superação e/ou certo imperati-
vo da felicidade – e conteúdos irão se apropriar nesse momento, entendendo
tais conteúdos como mediadores que comunicam determinados sentimen-
tos e impressões de si que se deseja criar no outro.
Mais importante para este trabalho, contudo, do que uma discussão
sobre dados empíricos, é nossa proposta de refletir sobre como, em termos
metodológicos, podemos operacionalizar tal pesquisa4 a partir do que alguns
autores denominam de “etnografia virtual”. Nosso objetivo aqui, portanto,

3  Apontamos aqui apenas alguns dos pesquisadores brasileiros que têm trabalhado com tais
temáticas.
4  Vale destacar que discutimos neste trabalho principalmente os desafios e questões enfren-
tados na pesquisa de mestrado de Deborah Santos, que deverá ser finalizada e defendida até
março de 2017. Ou seja, trata-se de um “trabalho em progresso” (work in progress), ainda a ser
concluído.

180 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


é chamar atenção para desafios específicos que a pesquisa tem nos impos-
to e tangenciar as potencialidades e limites da “etnografia virtual” em nosso
caso.5 Para tal iremos em um primeiro momento discutir sobre alguns dos
principais pontos que envolvem o que seria uma etnografia “tradicional” e
virtual, buscando não tratá-las de modo dicotômico. Feito isso, trataremos
mais especificamente sobre a construção de identidade on-line para, em se-
guida, elencarmos cinco eixos de desafios metodológicos que temos enfren-
tado em nossa pesquisa. Tais eixos buscam discutir as seguintes questões:
como escolher os sujeitos de pesquisa? Que variáveis utilizar para tal, como
idade, localização geográfica etc.? Como interpelá-los? Como definir o recor-
te temporal da pesquisa? Deve-se comunicar antes ou depois os informantes
sobre a coleta de dados dos seus perfis que estão sendo observados? E, mais
especificamente em relação ao Facebook, quais seriam os diferentes campos
de pesquisa que ele possui? Como lidar com conteúdos de tipos e linguagens
diferentes, como fotos, textos e vídeos?
Naturalmente não pretendemos dar respostas definitivas a todas essas
questões, mas acreditamos que fazê-las e tensioná-las a partir de outras pes-
quisas e de nossa experiência empírica possa trazer subsídios interessantes
para os estudos que se dedicam a investigar os sites de redes sociais a partir
de uma abordagem etnográfica.

Questões sobre etnografia “tradicional” e virtual


Quando falamos de pesquisa social, e especificamente de pesquisa qualita-
tiva, referimo-nos aos métodos que, dentro do campo das ciências sociais
e humanas, propõem enfoques de aproximação aos objetos cujo propósito
fundamental é compreender e interpretar fatos e fenômenos sociais diversos
a partir da inserção aprofundada do(a) pesquisador(a) em ambientes cultu-
rais específicos.
Um dos principais desafios daqueles que assumem esses méto-
dos como guias de trabalho reside na sua capacidade para se inserir em

5  Entendemos, em consonância com Amaral (2010), que, assim como outros métodos de pes-
quisa, a etnografia tem, claro, suas próprias limitações. Contudo, não iremos nos deter aqui tan-
to na ideia dos limites etnográficos, mas principalmente em seus desafios.

Términos de relacionamentos e Facebook 181


ambientes os mais variados e entendê-los a partir de posições ao mesmo
tempo respeitosas e críticas, que não comprometam a legitimidade científica
da pesquisa nem pressuponham manipulação dos dados em favor de provar
premissas ou hipóteses.
Dentro desse campo, a etnografia revela-se como uma metodologia
baseada na compreensão de culturas a partir do estudo de casos particu-
lares. O propósito fundamental da pesquisa etnográfica é “o estudo da cul-
tura em si mesma, ou seja, a delimitação em uma unidade social particular
dos componentes culturais e suas inter-relações para possibilitar afirmações
­explícitas sobre eles” (García Jiménez, 1994 apud Rodríguez ,1996, p. 45).
Como afirma Clifford, inspirado em Geertz: “A etnografia é a interpretação
das culturas” (Clifford, 2014, p. 37).
Diferentemente de outras abordagens metodológicas, ela não se preo-
cupa tanto com a quantidade de casos estudados, mas sim com a profun-
didade com que o(a) pesquisador(a) se insere neles; daí que normalmente
essas pesquisas se caracterizem por ter um nível de descrição muito mais
detalhado se compararmos com outros enfoques, mesmo dentro do campo
da análise qualitativa. Para o(a) etnógrafo(a) é fundamental ter acesso aos
universos culturais do seu objeto de estudo; mergulhar neles é condição in-
dispensável se o propósito é realizar uma boa etnografia. Assim, a “imersão”
em um trabalho de campo pode ser vista como um dos elementos-chave das
pesquisas etnográficas.
Se tais premissas iniciais da etnografia moderna parecem quase in-
questionáveis atualmente, nos últimos anos tem se desencadeado um de-
bate dentro do próprio campo científico sobre a adaptação ou transposição
de técnicas, procedimentos e demais esforços intelectuais ligados a ela para
ambientes não físicos, a partir da proliferação e do interesse crescente dos
pesquisadores por realizar pesquisas etnográficas nos universos virtuais da
internet.
O aumento de pesquisas interessadas na virtualidade levou os acadê-
micos da área a se questionarem se os métodos utilizados pela etnografia
para enxergar processos não virtuais continuavam sendo aplicáveis a esses
entornos mediados pela tecnologia. Nesse contexto, surgiram as discussões
sobre a pertinência de adotar novos termos que não só indicassem uma
­diferenciação linguística, mas também uma especificidade metodológica.

182 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


Foi assim que começaram a aparecer na literatura sobre o tema algumas va-
riações do conceito de etnografia, como é o caso de netnografia, etnografia
virtual, ciberantropologia, antropologia digital, dentre outros.6
Como os termos indicam, eles consistem na aplicação de técnicas
etno­gráficas de coleta de dados para estudar problemáticas que têm lugar no
ciberespaço, podendo ser este entendido como mais um entorno de sociali-
zação com linguagens próprias e no qual tensões e conflitos podem aparecer
com os mesmos graus de intensidade e legitimidade que nos espaços off-
-line. Porém, para além do reconhecimento que progressivamente tem ga-
nhado a aplicação desses métodos em ambientes on-line, os “netnógrafos”
expõem-se ainda a muitos desafios relacionados principalmente à ideia do
ciberespaço como um ambiente incapaz de preencher por si só as demandas
empíricas de uma pesquisa desse tipo. Conforme afirma Polivanov: “uma das
questões centrais que vai pautar boa parte das discussões e as implicações
de um ou outro termo poderia ser resumida do seguinte modo: pode-se con-
siderar o ciberespaço efetivamente um lugar”? (Polivanov, 2014, p. 95). Com
isso, alguns pesquisadores têm a percepção de que trabalhos de campo que
não abarquem também os espaços de socialização off-line dos sujeitos anali-
sados não devem ser considerados “verdadeiras etnografias”.
Ao analisar essas questões no seu livro Etnografia virtual, a professora
e etnógrafa inglesa Christine Hine argumenta que:

Nos nossos dias, as possibilidades das interações mediadas permitem-


-nos repensar o papel da presença física como fundamento da etnogra-
fia. Mais do que isso, estamos na posição de avaliar que aspectos con-
cretos da interação cara a cara fazem convincente a análise etnográfica
tradicional; assim como explorar as potencialidades que existem na
reconceptualização da noção de autenticidade nesse tipo de estudos.
Para isso é muito importante estudar as interações mediadas, não des-
de perspectivas externas e fundamentações apriorísticas, mas nesses
termos nos quais elas acontecem (Hine, 2004, p. 58, tradução nossa).

Desse modo, a autora defende que pesquisas realizadas inteiramente


em ambientes digitais podem ser consideradas tão autênticas quanto aquelas

6  Fragoso, Recuero e Amaral (2011) elencam alguns desses termos e buscam diferenciá-los a
partir de sua contextualização histórica e apropriações por diferentes sujeitos.

Términos de relacionamentos e Facebook 183


feitas off-line, em relações face a face com os entrevistados.7 Não obstante,
isso não quer dizer que abordagens múltiplas, feitas através de técnicas de
coletas de dados que se dão em ambientes com diversos tipos de mediação,
não sejam válidas, pelo contrário.
Tal debate é de especial interesse para este trabalho, uma vez que dis-
cutir dinâmicas de construção de identidade on-line envolve quase sem-
pre a ideia de que nossas identidades virtuais são distintas de nossas iden-
tidades off-line. Para alguns, as primeiras seriam tidas como falsas em um
certo sentido, uma vez que supostamente é possível nesses ambientes “ser
quem se quiser ser”, enquanto as segundas seriam tidas como mais autên-
ticas, por estarem de certo modo limitadas à presença física. Estabelece-se,
assim, uma dicotomia virtual/falso x real/autêntico que julgamos relevante
problematizar.

Construção de identidade on-line


Os debates acima mencionados surgiram da ideia de que existe uma dife-
renciação entre a identidade on-line e off-line dos sujeitos, uma barreira que
­divide e demarca as duas, entendidas como dois conjuntos de traços pes-
soais que não se conectam necessariamente um com o outro. Em certa me-
dida os ambientes digitais que têm proporcionado, ou melhor, intensificado
sobremaneira tal discussão são os sites de redes sociais.
Esses tipos de sites surgiram no final da década de 1990, quando a po-
pularização da internet já estava em curso há quase uma década. Segundo
Boyd e Ellison, o primeiro deles teria sido o Six Degrees, criado em 1997 com
base na teoria dos seis graus de separação, segundo a qual qualquer indi-
víduo no mundo pode ser conectado a outro por no máximo seis graus de
laços sociais. Assim como sites mais atuais, como o Facebook, ou já desati-
vados, como Orkut, o Six Degrees também tinha a proposta de permitir que
as pessoas pudessem criar perfis pessoais na rede e se comunicar de modo

7  Sá (2005) nos lembra ainda que mesmo pesquisas realizadas presencialmente são também
quase sempre mediadas por artefatos tecnológicos (tais como gravadores de áudio, câmeras de
fotografia e filmagem, entre outros), além de eventuais mediadores humanos como intérpretes.
Ou seja, o caráter de mediação estaria presente tanto na pesquisa realizada on quanto off-line.

184 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


público ou privado com elas através de comentários. Principalmente, esses
– e os demais sites de redes sociais (ou ao menos os considerados “propria-
mente ditos” por Recuero, 2009) – têm em comum uma estrutura organi-
zacional que se pauta na articulação e potencial visibilidade dos laços, das
redes sociais dos indivíduos, que formam os centros comunicacionais em
tais plataformas.
Tendo as pessoas como nós em uma rede, como os centros das aten-
ções (diferentemente de outros ambientes de mídias sociais como wikis,
fóruns, dentre outros) nos quais elas podem se autoapresentar a princípio
como desejarem, boa parte dos primeiros estudos do campo da comunica-
ção virtual – e muitos não pioneiros – defendem que os sites de redes sociais
seriam espaços “alternativos” de construção identitária, com peculiaridades
atreladas ao caráter mediado da comunicação que ali tem lugar. Seriam, as-
sim, ambientes propícios para mascarar o que “realmente” se é, para confi-
gurar “identificações possíveis ou ideais que não têm que ser reais ou estar
relacionadas a papéis estabelecidos” (Morales, 2013, p. 93, tradução nossa),
além de criar redes de sociabilização ilusórias ou menos orgânicas (Turkle,
2011).8 Em outras palavras, o que somos capazes de expressar nas redes vir-
tuais através dos nossos comportamentos seria uma versão distorcida e fictí-
cia de nossa identidade “verdadeira”, apresentada nos encontros face a face.
Porém, uma linha importante de pesquisadores do campo tem promo-
vido estudos que tentam assumir uma visão da identidade virtual como mais
uma expressão do que o sujeito é/pode ser. Para os adscritos a essa corrente,
a virtualidade deve ser estudada pensando nas possibilidades e linguagens
particulares que oferece para a autoconstrução, não por isso significando
que esses comportamentos são ilegítimos, mas ao contrário, analisando-os
sob a premissa de eles serem expressões diversas, sempre em construção, de
um “eu” (Rebs, 2014; Zhao et al., 2008).
De fato, tais estudiosos, dentre outros, têm problematizado essas no-
ções, reforçando – mais ou menos diretamente – o caráter fragmentário,
multifacetado, dinâmico, contraditório, fictício e contextual das identidades

8  Concordamos plenamente com Miller e Horst quando criticam o tom lamentoso dessa obra
de Turkle, na qual a autora defende, a nosso ver ingenuamente, que “formas primárias de socia-
bilidade eram de algum modo mais naturais ou autênticas pela virtude de serem menos media-
das” (Miller e Horst, 2013, Kindle edition).

Términos de relacionamentos e Facebook 185


(Hall, 2005), seja em ambientes virtuais ou físicos. Nesse sentido, afastamo-
-nos de uma visada que reforça o caráter de role-playing (de encenação a
partir de personagens) que pode ocorrer nos SRSs, não por entendermos que
não podemos “jogar” com traços identitários distintos nesses ambientes,
mas sim por defendermos que frequentemente neles busca-se uma coerên-
cia expressiva (Sá e Polivanov, 2012) nas construções de si, ainda mais se le-
varmos em consideração o fato de serem ambientes não anônimos, diferen-
tes, portanto, de chats, fóruns, jogos etc. (Zhao et al., 2008).
Entendemos, assim, que, de um modo geral, busca-se manter certa
coerência expressiva entre os selves off-line e nos sites de redes sociais. Isto é,
nesses ambientes – e em especial no Facebook, nosso objeto de estudo – os
atores sociais tendem a querer mostrar traços identitários que consideram
“reais”, como nome, local onde trabalham/estudam, gostos relacionados à
indústria cultural, pessoas com as quais se relacionam, locais que frequen-
tam etc., ainda que possa haver rupturas e desencaixes nessa construção por
uma série de razões (intencionais ou não)9.
Com isso, ressaltamos a importância de se atrelar tal discussão à cultu-
ra do consumo, entendendo que marcadores identitários que poderiam ser
considerados de ordem mais tradicional – como gênero, idade, etnia, reli-
gião e profissão – não apenas estão sendo problematizados continuamente
nas sociedades contemporâneas, como também são cada vez mais: a) “com-
plementados” ou mesmo suprimidos por preferências relacionadas à esfe-
ra do consumo midiático;10 e b) percebidos como – e de fato – construídos
por meio dessa esfera. Isto é, através de “performances de gosto” (Hennion,
2001), afirmamos quem somos ou desejamos ser, seja ao curtir determinadas

9  Um exemplo de ruptura intencional se dá quando os sujeitos buscam construir a si mesmo


como mais “socialmente interessantes” do que seriam, fazendo postagens relativas a viagens
que talvez não tenham feito ou de fotos com supostas/os namoradas/os que não têm. Já um
exemplo de ruptura não intencional ocorre quando um indivíduo é marcado (função de tag) em
imagens de eventos que não expressariam seu gosto cultural.
10  Conforme apontam Pempek e colaboradores (2009) em sua investigação com universitá-
rios no Facebook: “marcadores tradicionais de identidade, como religião, ideologia política e
trabalho foram importantes indicadores de identidade […], mas também o foram as preferên-
cias midiáticas, que foram selecionadas mais frequentemente do que os marcadores clássicos”
(Pempek, Yermolayeva e Calvert, 2009, p. 233, tradução nossa).

186 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


páginas (fan pages) no Facebook, ao mostrar que se está ouvindo certa músi-
ca ou que se gosta do filme de tal diretor.11
Isso é relevante para nossa discussão metodológica, uma vez que afeta
diretamente não apenas o recorte dos sujeitos de pesquisa (deve-se focar em
aspectos como idade, etnia, religião e/ou hábitos de consumo?), como tam-
bém o próprio material de análise da etnografia (que poderá envolver fotos,
links, vídeos, hashtags, “curtidas” etc.), aspectos que iremos discutir na seção
seguinte.

Desafios metodológicos da pesquisa em sites de redes sociais


Reafirmando que nosso trabalho enfoca o entendimento de como as pes-
soas envolvidas em relacionamentos amorosos constroem suas identidades
e narrativas de si no Facebook durante e após um relacionamento amoroso,
voltamo-nos para as questões/eixos de desafios metodológicos que apresen-
tamos na introdução, discutindo cada uma delas:

a) Investigação sobre indivíduos e/ou casais


Se partimos do entendimento de que as identidades são fragmentadas e di-
nâmicas, investigá-las já constitui, por si só, um grande desafio de pesquisa.
Soma-se a isso o fato de que alguns dos estudos que temos observado foca em
grupos de pessoas, comunidades que se constituem on-line (como a própria
pesquisa recente de Christine Hine na comunidade Free Cycle, além de traba-
lhos como os de Baker et al., 2013) e que trazem suas dinâmicas e valores pró-
prios, sendo relativamente poucos os voltados para a observação qualitativa
de perfis individuais12 e menos ainda de casais (que seria algo interessante
para nossa investigação), principalmente no campo da Comunicação.

11  Em trabalho anterior, discutimos que por vezes não importa tanto se de fato os sujeitos con-
somem os produtos, serviços, marcas que mencionam, sendo mais relevantes os valores simbó-
licos aos quais buscam se afiliar através deles, configurando uma ideia de “consumo por afilia-
ção” (Polivanov, 2015). Não obstante, há momentos em que os sujeitos são “cobrados” por outros
quanto à “veracidade” de tal consumo, ou sentem que é relevante materializá-lo para manter
sua identidade almejada. Nesses casos, importa, por exemplo, para alguns jovens mostrar que as
fotos que tiram para postar em certo site foram feitas com um aparelho da marca Apple.
12  Caso excepcional são os estudos sobre perfis de celebridades, que têm se avolumado.

Términos de relacionamentos e Facebook 187


Isso não quer dizer, de modo algum, que tais estudos não sejam rele-
vantes (claramente o são), mas destacamos que estamos mais interessadas,
em nossa pesquisa, em conhecer em profundidade experiências particulares
do que em estudar as dinâmicas de um grupo ou um número maior de casos.
Nesse sentido, o recorte inicial dos sujeitos que irão participar da
pesquisa de campo até pode ser feito a partir de uma comunidade ou agru-
pamento específico importante para o tema da pesquisa (no nosso caso,
começamos a observar grupos no Facebook que tivessem como temática
­relacionamentos amorosos), mas apenas como uma entrada inicial em cam-
po, da qual deverão ser selecionados posteriormente indivíduos para serem
de fato o “objeto” de estudo. Mas como selecioná-los?

b) Escolha e interpelação dos sujeitos de pesquisa


Esse é um dos pontos, a nosso ver, cruciais da pesquisa. Por vezes pode não
ser produtivo, por razões diversas, o caminho de adentrar primeiramente
certa comunidade on-line para selecionar indivíduos para a pesquisa a partir
dela. No nosso caso ele tem se mostrado frutífero para entrar em contato
com sujeitos que não fazem parte das nossas redes de contatos no Facebook.
Além disso, é importante destacar que sendo uma das autoras deste traba-
lho de nacionalidade cubana, suas observações iniciais sobre como os jovens
cubanos utilizam o site nos levaram ao interesse de realizar uma pesquisa de
cunho comparativo, tendo como informantes sujeitos cubanos e brasileiros.
Desse modo, julgamos adequado selecionar os participantes da pes-
quisa a partir de uma criação de amostra intencional e heterogênea, sendo
parte de nossa própria rede de contatos e parte de desconhecidos com os
quais não tínhamos quaisquer laços sociais. Queríamos ter em conta ainda
variáveis específicas que pudessem nos ajudar a entender as construções de
si em contextos socioculturais distintos. Assim, para delimitar os informantes
da nossa pesquisa, procuramos fazer um recorte de casais que fosse o mais
heterogêneo possível, tendo como base indicadores tais como gênero e na-
cionalidade, fundamentalmente.13 Dessa forma, nossa amostra imaginada

13  Ainda que entendamos, como apontamos anteriormente, que tais marcadores podem não
ser tão relevantes para os sujeitos quanto outros ligados à esfera midiática e de consumo, o que
pretendemos discutir na realização da pesquisa.

188 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


foi composta por seis casais, sendo três de nacionalidade brasileira e três de
nacionalidade cubana, e dentre os quais um de cada grupo é homossexual.
Com isso, totalizamos o ideal de 12 informantes potenciais para a pesquisa.
Todos os casais deveriam cumprir com a condição de terem atravessado por
problemas no seu relacionamento e posteriormente desfeito suas relações
amorosas enquanto casais.
A partir de um processo de conversas informais – on e off-line – com
conhecidos de nossas redes de contatos e a partir da técnica da “bola de
neve”14 (Weiss, 1994), conseguimos sugestões de possíveis informantes que
atendessem nossos critérios. Para além daqueles que fizessem parte de nos-
sas redes, a escolha da parte da amostra de “desconhecidos” foi feita a partir
da procura de grupos temáticos, conforme apontado acima, focando des-
se modo nosso olhar a pessoas que atravessaram algum conflito amoroso
e usaram (usam) a rede e o suporte (semi)público para lidar com situações
dessa natureza, sendo nosso interesse conhecer como se dá essa relação de
“desabafo” entre o sujeito e a plataforma, no caso, o Facebook. Uma vez que
os identificamos por meio dessa via, fizemos contato através de mensagens
privadas no próprio site e apresentamos nossa pesquisa e o interesse que
tínhamos de trabalhar com suas experiências individuais.
Não foi possível, no entanto, nessa fase, contar com a colaboração de
ambos os membros dos casais para participarem da pesquisa.15 É importan-
te destacar que para quem faz pesquisa qualitativa, e ainda mais para quem
trabalha em ambientes virtuais, o risco de perder em algum momento a pres-
teza dos informantes para colaborar está sempre latente. No nosso caso, ao
trabalharmos com eventos que tocam de perto a intimidade dos sujeitos que,
em alguns casos, podem ser dolorosos e emocionalmente prejudiciais de se
rememorar, a possibilidade se intensifica, de maneira que a construção da
amostra de informantes não resultou tarefa fácil nem como esperado.

14  Sucintamente, está relacionada ao processo de pesquisa no qual seus participantes indi-
cam outros potenciais participantes.
15  Resulta por vezes complicado conseguir a colaboração de ambas as partes do relaciona-
mento, tendo em conta que os casos até agora analisados constituem exemplos de ruptura
nas quais pelo menos uma das partes decidiu cortar qualquer tipo de comunicação com o(a)
ex-parceiro(a).

Términos de relacionamentos e Facebook 189


c) Grau de inserção do(a) pesquisador(a)
Outro dos desafios que como “pesquisadoras digitais” nos atinge reside na
questão do grau de inserção que assumiremos para lograr uma aproximação
aos sujeitos que, sem deixar de ser profunda e exaustiva, não se torne invasi-
va aos olhos dos investigados. A respeito disso, nosso principal conflito tem
a ver com a escolha do grau de inserção e o tipo de relação que teremos com
nossos informantes.
Há taxonomias para classificar os tipos de etnógrafos virtuais de acordo
com seu nível de inserção no campo: fundamentalmente, lurker e insider. A
primeira denominação descreve um tipo de pesquisador que “apenas obser­va
determinado grupo social, objetivando interferir o mínimo possível em suas
práticas cotidianas [...] o pesquisador não se manifesta, apenas dedicando-
-se a observação do comportamento dos outros” (Polivanov, 2014, p. 106). Em
contraposição, o insider “está inserido no ou tem ligações próximas com o
objeto de estudo e, portanto, seu comportamento dificilmente poderia ser o
de alguém que apenas observa o grupo” (Polivanov, 2014, p. 107).
No nosso caso, o interesse fundamental pelo tema de estudo surgiu
a partir da observação de alguns comportamentos nas próprias redes de
contatos pessoais das pesquisadoras no Facebook, que depois nos levou a
observar casos similares em outras redes das quais não fazíamos parte até
esse momento da pesquisa. Tal observação nos levou também a procurar ca-
sos similares fora da virtualidade, desde que cumprissem com a condição de
usarem o Facebook como canal de comunicação-expressão. Dessa maneira,
o convívio com alguns sujeitos na etapa inicial da pesquisa foi precondição
para iniciá-la. Por essa razão e pelo fato de sermos usuárias ativas no Face-
book, consideramo-nos pesquisadoras insiders. Ao sermos usuárias frequen-
tes dessa rede, tanto para fins profissionais quanto pessoais, fazemos parte
de grupos e comunidades de interesse que podem favorecer o desenvolvi-
mento da pesquisa em relação ao trabalho de campo. Contudo, e eis aí outro
grande desafio que enfrentamos, a questão da apresentação do pesquisador
no seu ambiente de estudo não deixa de ser um desafio desde o ponto de
vista ético.
Como mencionamos antes, fazer trabalho etnográfico em ambientes
virtuais supõe uma delimitação metodológica rigorosa, precisamente pelo

190 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


perigo de cair no conforto investigativo que, por natureza própria, esse tipo
de ambiente oferece para os pesquisadores que são ao mesmo tempo usuá-
rios de certas plataformas. A estrutura semipública do Facebook (Boyd, 2010)
em relação à possibilidade que oferece para a observação de pessoas e gru-
pos nos permitiria encaminhar nossa pesquisa e levantar alguns dados sem
atingir diretamente aos usuários-sujeitos envolvidos, fora alguns casos nos
quais a entrada a grupos depende da aprovação de algum administrador.
Aqui valeria a pena nos perguntar até que ponto esse tipo de aproximação,
sem aviso aos informantes de que estão sendo observados, é eticamente cor-
reta. Além disso, seria apenas a observação, participante ou não, suficiente
para entender as dinâmicas e discursos dos sujeitos ou necessariamente de-
vem ser realizadas entrevistas?
Nossa proposta metodológica entende que somente a observação dos
sujeitos analisados não seria suficiente para responder as questões de pes-
quisa, sendo necessária uma aproximação direta e privada (ainda que vir-
tual) com os mesmos que outorgue integralidade à pesquisa. Para isso é nos-
so propósito entrar em contato com cada um dos sujeitos escolhidos como
amostra e realizar entrevistas, tanto on quanto off-line com eles, que com-
plementem os dados obtidos na etapa de observação, tentando fugir assim
dessa posição um tanto voyeurística e procurando vias diferentes de acesso à
informação. Mas por quanto tempo deve-se realizar a observação?

d) Recorte temporal da pesquisa e da coleta de dados


Pode-se entender que toda pesquisa pode seguir uma perspectiva mais sin-
crônica, propondo-se a ser um “retrato” de uma dada realidade em um de-
terminado momento, ou mais diacrônica, buscando um olhar longitudinal,
uma coleção de dados sobre determinado fenômeno durante um recorte de
tempo mais prolongado. No nosso caso, interessa-nos a primeira perspec-
tiva, centrada em uma realidade contemporânea de subjetividades perfor-
matizadas discursivamente em plataformas on-line. Ainda que isso seja por
si só um recorte inicial, deve-se, claro ser feito de modo mais específico, re-
lacionado diretamente ao tempo de observação e coleta de dados acerca do
que se investiga.

Términos de relacionamentos e Facebook 191


Frequentemente lê-se na bibliografia que trata sobre métodos e me-
todologias de pesquisa empírica que a observação sistemática dos aconte-
cimentos e a coleta de dados deve ocorrer até atingir determinado ponto de
saturação, isto é, até que não seja possível – seja por um limite de tempo,
verba ou do próprio corpus – obter dados categoricamente novos. Segundo
Bauer e Aarts:

Saturação é o critério de finalização: investigam-se diferentes repre-


sentações, apenas até que a inclusão de novos estratos não acrescen-
te mais nada de novo. Assume-se que a variedade representacional é
limitada no tempo e no espaço social. A identificação de mais varie-
dade iria acrescer desproporcionalmente os custos do projeto; então o
pesquisador decide parar de investigar novos estratos (Bauer e Aarts,
2002, p. 56).

Isto é, um corpus estaria “equilibrado quando esforços adicionais


acrescentam pouca variância dialética” (Bauer e Aarts, 2002, p. 53). Claro que
tal “ponto de saturação” refere-se também à própria escolha dos informantes
que, em uma pesquisa etnográfica, é parte fundamental da geração de dados
primários, seja através de entrevistas e/ou observação de seus movimentos e
discursos. Descobrir tal ponto é um dos desafios da pesquisa e algo que, em
geral, não deve ser definido aprioristicamente e vai variar sobremaneira em
cada caso. Retomando o nosso, como ainda nos encontramos em fase ini-
cial de pesquisa de campo, certamente não atingimos ainda a saturação dos
dados, sendo necessários meses de investigação por vir. Nesse percurso, ain-
da que preliminar, já nos deparamos, no entanto, com um questionamento
relevante: devemos avisar nossos informantes que seus perfis no Facebook
estão sendo observados por nós antes, durante ou após a coleta de dados?
Trata-se novamente de uma questão que se relaciona com a ética da
pesquisa e também, não podemos nos esquecer, com a própria forma como
os sujeitos configuram seus perfis no site, podendo ser públicos, semipúbli-
cos ou fechados (com conteúdos visíveis somente para aqueles que fazem
parte de sua rede de contatos). Ainda que saibamos que visibilidade é um
valor buscado nos sites de redes sociais pelos indivíduos (Recuero, 2009), en-
tendemos que comunicar uma pessoa que ela está sendo observada no Fa-
cebook para uma pesquisa pode alterar sua própria autoapresentação. Isso,

192 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


claro, vale também para pesquisas que se dão off-line e deve nos lembrar
que “os pesquisadores sempre interferiram no contexto de algum modo en-
quanto conduzem suas pesquisas” (Markham, 2005, p. 250, tradução nossa).
E ainda que, em diferentes medidas, as noções de sujeito/objeto, pesquisa-
dor/pesquisado não devem ser tomadas como instâncias separadas, mas ao
contrário, como afetações mútuas.
Em nossa pesquisa optamos por seguir o seguinte caminho: 1) obser-
vação não revelada do perfil no Facebook; 2) contato direto com potencial
informante; 3) tendo seu consentimento em participar da pesquisa, novo
período de observação, seguido de coleta de dados do perfil. Em se tratando
de dados retirados de um site de rede social, os tipos de conteúdos vão variar
sobremaneira – fotos, memes, vídeos, links, hashtags etc. –, o que nos leva ao
próximo e último item.

e) Pesquisa de campo ou campos de pesquisa no Facebook


Se em determinadas pesquisas que se dão integralmente de forma “presen-
cial” deparamo-nos por vezes com o questionamento “onde exatamente
devo realizar minha pesquisa de campo?”, processo similar ocorre em pes-
quisas feitas em plataformas virtuais, talvez de modo ainda mais complexo,
por se tratar de ambientes tidos como imateriais e intangíveis, para alguns
até como “não lugares”. O campo de pesquisa na internet, como aponta Hine
(2004, 2015), é vasto e multissituado, realocando noções de tempo e espaço.
Conforme argumenta Markham:

Porque a internet é geograficamente dispersa, o pesquisador tem a


opção de desconsiderar localização e distância para se comunicar ins-
tantaneamente e sem custos com as pessoas. Em termos de logística,
a capacidade da internet de colapsar distâncias permite ao pesquisa-
dor se conectar com participantes ao redor do globo. O pesquisador
pode incluir pessoas previamente não disponíveis para o estudo. Isso
não apenas aumenta o “pool” de participantes como também fornece
o potencial para comparações cross-culturais que não eram facilmente
disponíveis anteriormente por razões práticas e financeiras (Markham,
2005, p. 257).

Términos de relacionamentos e Facebook 193


Nosso estudo, como apontamos anteriormente, pretende justamente
se beneficiar dessa potencialidade da pesquisa em campo on-line para reali-
zar uma investigação comparativa envolvendo indivíduos de Cuba e do Bra-
sil.16 Ademais, temos já definida a plataforma de mediação e interação social
que queremos analisar: o Facebook. No entanto, tal definição ainda não é su-
ficiente, uma vez que existem diversos ambientes e campos para pesquisa no
site, tais como: grupos (secretos, fechados ou públicos) que funcionam como
comunidades virtuais; fan pages/páginas de empresas, artistas etc.; social ga-
mes/jogos sociais; perfis de indivíduos ou marcas e suas timelines/linhas do
tempo; espaços de inbox (mensagens privadas, chats), com dinâmicas con-
versacionais privadas em pares ou grupos; entre outros. Ou seja, uma única
plataforma como o Facebook engendra distintos campos comunicacionais17,
públicos e privados, individuais e coletivos, todos potencialmente podendo
ser apropriados pelos sujeitos para construírem identidade e sociabilidade.
Mesmo ao nos concentrarmos nos perfis e linhas do tempo de nossos
informantes, campos que nos interessam mais diretamente, ainda temos que
fazer recortes quanto à seleção de que “subcampos” farão parte do corpus da
pesquisa, podendo incluir o espaço de descrição de si (“Sobre”), as páginas
curtidas por um sujeito, os diversos conteúdos que posta, os comentários
que recebe, dentre muitos outros. Isso, claro, implica também outros dois
desafios, relacionados a lidar com: um grande volume de dados e dados com
linguagens e gramáticas distintas entre si.
Em se tratando de uma perspectiva qualitativa com a qual trabalha-
mos aqui o foco não recai, conforme apontamos acima, na quantidade de
dados. Contudo, é inegável que pesquisas que conseguem dar conta de um
grande volume de dados (big data) têm despertado cada vez mais a atenção
da academia e ao mercado. Não exploraremos a fundo esse ponto neste tra-
balho, mas defendemos que abordagens mistas, que lidam com grandes e
“pequenos” dados, possam ser enriquecedoras.

16  Não obstante, não é necessário que pesquisas virtualmente situadas sigam recortes geográ-
ficos, pela mesma razão. Nesse sentido, a internet permite que o foco mude do lugar para a
interação (Markham, 2005, p. 258).
17  Berto e Gonçalves vão afirmar que se pode encontrar no Facebook “em um mesmo am-
biente as características e ferramentas encontradas nos outros gêneros dessa categoria, como os
chats on-line, os e-mails, os blogs etc.”, caracterizando o site como um gênero digital emergente
marcado por intersemioses distintas (Berto e Gonçalves, 2011, p. 108).

194 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


Quanto ao segundo desafio, ele envolve tanto pesquisas quantitativas
quanto qualitativas. Na coleta e análise de dados, como devemos lidar com
conteúdos de tipos e linguagens diferentes, como fotos, textos, links, vídeos,
hashtags, entre tantos outros? Conforme argumentam Berto e Gonçalves:

O gênero emergente Facebook proporciona, através de sua plataforma


colaborativa, diversas formas de interação social através de quatro se-
mioses: a escrita; a associação de fotos, conteúdos audiovisuais e ima-
géticos; a convergência entre as diversas plataformas digitais através da
postagem de links; e a possibilidade de comunicação não verbal, pouco
explorada em outras redes sociais (Berto e Gonçalves, 2011, p. 105).

Como analisar materiais com semioses tão distintas em uma única


pesquisa? Deve-se focar mais em uma do que em outra? Certos autores en-
tendem que materiais de tipos diferentes devem ser agrupados separada-
mente – som com som, imagem com imagem, texto com texto etc. – de modo
a não deixar o corpus por demais heterogêneo e facilitar a análise (Bauer e
Aarts, 2003). Por outro lado, abordagens da análise do discurso e da semió-
tica – que podem ser utilizadas para a análise dos dados coletados através
de métodos etnográficos – tendem a seguir a ideia de que um determinado
conteúdo só pode ser interpretado de modo mais completo a partir de todos
os seus “dados” informacionais, sejam eles textuais, imagéticos, audiovisuais
etc. Certos tipos de conteúdos no Facebook vão tensionar ainda mais essa
separação como, por exemplo, memes que se utilizam de imagem e texto,
­hiperlinks textuais que levam para vídeos, hashtags que precedem textos e,
por vezes, são seguidas por emoticons, gifs animados que têm difícil classifi-
cação por si só, entre outras possibilidades.
Cabe, assim, a cada pesquisador(a) determinar o recorte do corpus
que irá analisar e que ferramentas irá utilizar para tal. Em nosso percurso
até o momento temos optado por dar especial atenção aos campos da se-
ção “Sobre” e das postagens diversas feitas pelos sujeitos em suas linhas do
tempo, buscando analisá-las não em grupos definidos quanto ao seu tipo
de linguagem, mas sim enquanto unidades materiais-discursivas multisse-
mióticas que devem ser entendidas principalmente a partir do momento e
da intencionalidade de publicação, elementos que só podemos investigar a
partir da realização de entrevistas direcionadas. Em todo caso, vale lembrar

Términos de relacionamentos e Facebook 195


que “como no corpus linguístico, devemos renunciar a qualquer esperança
de se conseguir um corpus totalmente representativo, para propósitos gerais,
com respeito a um tópico” (Bauer e Aarts, 2003, p. 60).

Considerações finais
Nosso intento com este texto foi não o de apresentar soluções para proble-
mas metodológicos de pesquisas que seguem abordagens etnográficas em
sites de redes sociais, mas ao menos levantar alguns dos principais desafios
que temos enfrentado em nossa própria pesquisa e tatear algumas das for-
mas com as quais temos lidado com eles, a partir da experiência empírica e
revisão da literatura. Para tal os sistematizamos e agrupamos em cinco ei-
xos – relacionados aos graus de inserção do(a) pesquisador(a), à seleção dos
informantes, aos campos de pesquisa que oferecem os sites de redes sociais,
entre outros – que, claro, na prática se atravessam, mas podem servir, espera-
mos, como pequenos guias norteadores para outras pesquisas.
Tínhamos como preocupação não nos determos, de modo “genérico”,
somente nos desafios mais amplos dos procedimentos metodológicos etno-
gráficos que se dão em ambientes virtuais e seus limites e potencialidades, já
vastamente debatidos da bibliografia. Queríamos trazer concretamente dú-
vidas e questionamentos que nos tomam no dia a dia da pesquisa, buscan-
do chamar atenção para as especificidades do Facebook e sua complexida-
de enquanto campo de pesquisa, bem como sua relevância para os estudos
voltados para dinâmicas identitárias on-line em culturas midiatizadas e de
consumo. Esperamos, ao final da pesquisa, conseguir fugir de generalizações
sobre “o ciberespaço”, “a internet” e “a virtualidade” e, em vez disso, produ-
zir “material que vai nos permitir entender os diferentes universos de possi-
bilidades técnicas e sociais que têm se desenvolvido em torno da internet”
(Miller e Slater, 2000, Kindle edition) no Brasil e em Cuba, especialmente
no tocante às performances de si em momentos pós-términos de relaciona-
mentos. Desse modo, não trazemos efetivamente conclusões nesse texto,
mas principalmente inquietações ainda em pleno processo de digestão.

196 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


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198 Beatriz Polivanov e Deborah Santos


Os autores

Annette Markham
Professora associada da Universidade de Aarhus, na Dinamarca, e pesqui-
sadora visitante do Microsoft Research Center New England. Sua pesquisa
principal concentra-se em práticas éticas em pesquisa qualitativa na inter-
net e em espaços mediados pela tecnologia. Seu livro Life online: Researching
real experience in virtual space (1998) é considerado um estudo sociológico
fundamental sobre a experiência da internet. Outros escritos relacionados
com o método podem ser encontrados em: The Sage Handbook for Quali-
tative Research (Denzin e Lincoln, 2005, 3ª edição); Qualitative Research:
Theory, Method, and Practice (Silverman, 2004); e periódicos como Qualita-
tive Inquiry, The Information Society e Journal of Information Ethics. Annette
recebeu seu PhD. pela Universidade de Purdue, EUA.

Beatriz Brandão Polivanov


Graduada em Letras pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
mestre e doutora em Comunicação pela Universidade Federal Fluminen-
se (UFF), com pesquisa de pós-doutorado concluída com bolsa Capes pela
mesma instituição. Professora do Departamento de Estudos Culturais e Mí-
dia, bem como do PPGCOM da UFF. Foi também professora da ESPM SP até
2013, onde atuou como coordenadora e pesquisadora do ESPM Media Lab.
Desde 2010 integra o Laboratório de Pesquisa em Cultura e Tecnologias da
Comunicação (LabCult/UFF). Investiga temas relacionados a cultura digital
e sites de redes sociais; consumo e identidade; cenas musicais; marketing e
publicidade; materialidades da comunicação.

199
Bruno Campanella
Doutor em Comunicação e Cultura pela ECO/UFRJ (2010), mestre em Comu-
nicação Transnacional e Mídia Global pelo Goldsmiths College, University of
London (2002) e professor do PPGCOM e do Departamento de Estudos Cultu-
rais e Mídia, ambos da Universidade Federal Fluminense. Ganhador em 2011
do prêmio Compós de melhor tese de doutorado, é bolsista de Produtividade
em Pesquisa do CNPQ – Nível 2, bolsista Jovem Cientista do Nosso Estado da
Faperj, coordenador do GT Comunicação e Sociabilidade da Compós e coorde-
nador do Núcleo de Estudos em Comunicação de Massa e Consumo (­Nemacs),
grupo de pesquisa do CNPQ. Publicou o livro Os olhos do grande irmão: uma
etnografia dos fãs do Big Brother Brasil, além de artigos e capítulos abordando,
entre outras coisas, o fenômeno das celebridades; recepção e etnografia mi-
diática; televisão; cultura fã; reality shows; e humanitarismo midiático.

Carla Barros
Doutora em Administração pelo Coppead/UFRJ, especializada em Antro-
pologia Social pelo Museu Nacional/UFRJ e graduada em Ciências Sociais
com concentração em Antropologia Social pelo IFCS/UFRJ. Professora do
PPGCOM e do Departamento de Estudos Culturais e Mídia da Universida-
de Federal Fluminense. Colíder do Núcleo de Estudos em Comunicacão e
Consumo (Nemacs), grupo de pesquisa do CNPq. Publicou o livro Cultura e
experiência midiática, organizado em conjunto com Everardo Rocha e Clau-
dia Pereira. Autora de diversos capítulos de livro e artigos em revistas aca-
dêmicas a respeito de antropologia do consumo e da mídia, seu principal
interesse de pesquisa. Dentro desse campo, tem realizado pesquisas sobre
cultura material em ambientes digitais; consumo e mídia no contexto de
grupos populares; recepção e etnografia midiática e consumo e hierarquia
de classes, entre outras.

Christine Hine
Professora titular do Departamento de Sociologia da Universidade de Surrey.
Foi presidente da Associação Europeia para o Estudo da Ciência e Tecnologia

200 Os autores
de 2004 a 2008. Autora de publicações sobre metodologia de pesquisas vir-
tuais, com um foco particular na etnografia on-line, incluindo os livros Vir-
tual Ethnography e, mais recentemente, Ethnography for the Internet. Sua
pesquisa principal está centrada na sociologia da ciência e tecnologia, in-
cluindo estudos etnográficos da cultura científica, tecnologia da informação
e da internet. Também assumiu um papel de liderança na promoção da dis-
cussão de metodologias para a compreensão sociológica da internet.

Daniela Schmitz
Pós-doutoranda em Comunicação da UFRGS, bolsista PDJ-CNPq. Doutora
pelo Programa de Pós-Graduação em Comunicação e Informação também
da UFRGS. Mestre em Ciências da Comunicação (2007) e graduada em Pu-
blicidade e Propaganda pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (2003). É
membro do Núcleo de Pesquisa Comunicação e Práticas Culturais (UFRGS)
e do Comitê Científico do Colóquio de Moda. Tem interesse em pesquisa
nas áreas de recepção e cultura, moda, juventude, publicidade e identidade
feminina.

Deborah Rodriguez Santos


Graduada em Comunicação Social pela Universidade de Havana, Cuba.
Mestranda na linha de Estéticas e Tecnologias da Comunicação do Programa
de Pós-Graduação em Comunicação da Universidade Federal Fluminense
(UFF), com bolsa CNPq. Investiga temas relacionados a cibercultura, sites de
redes sociais, performance e narrativas virtuais, integrando também o Labo-
ratório de Pesquisa em Culturas e Tecnologias da Comunicação (LabCult/
UFF) desde 2015.

Jair de Souza Ramos


Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(1994), doutor em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de

Os autores 201
Janeiro (2002) e pós-doutor pela École Normale Supérieure, seção Sciences
Sociales, em Paris (2006). Atualmente é professor adjunto do Departamento
de Sociologia da Universidade Federal Fluminense e participa das pós-gra-
duações em Antropologia e Sociologia na mesma universidade. Tem pesqui-
sas ligadas a diferentes temas, incluindo trabalhos que investigam a consti-
tuição de novas sociabilidades em redes virtuais.

Laura Graziela Gomes


Mestre em Antropologia Social pela Universidade Federal do Rio de Janeiro
(Museu Nacional, 1991) e doutora em Ciências Humanas (Antropologia) pela
Universidade de São Paulo (1997), tendo realizado pós-doutorado em ­Paris-X,
Nanterre (2000-2001) e na École des Hautes Études (GSPM, 2011-2012). É pro-
fessora do Programa de Pós-Graduação em Antropologia (PPGA), coorde-
nadora do Núcleo de Estudos da Modernidade (Nemo), pesquisadora asso-
ciada do Instituto de Estudos Comparados em Administração Institucional
de Conflitos (InEAC/INCT) e do LeMetro. Realiza pesquisa em várias áreas,
incluindo antropologia da arte, imagem e comunicação, com os projetos em
cultura digital nas interfaces 3D, mundos virtuais e games.

Nilda Jacks
Pós-doutora em Comunicação na University of Copenhagen (1999) e na Uni-
versidad Nacional de Colombia (2006). Doutora em Ciências da Comunica-
ção pela Universidade de São Paulo (1993). Tem licenciatura em Artes Plásti-
cas pela Universidade Federal de Santa Maria (1975), assim como graduação
em Comunicação Social (1978) e bacharelado em Arte Decorativa (1978) pela
mesma universidade. Cursou mestrado em Ciências da Comunicação pela
Universidade de São Paulo (1987). Atualmente é professora associada da Uni-
versidade Federal do Rio Grande do Sul e bolsista de Produtividade em Pes-
quisa do CNPq – Nível 1B. Investiga os seguintes temas: teoria da recepção,
teoria da comunicação, identidade cultural, metodologia e recepção.

202 Os autores
Raquel Recuero
Doutora em Comunicação e Informação pela Universidade Federal do Rio
Grande do Sul (2006), mestre em Comunicação e Informação pela Universi-
dade Federal do Rio Grande do Sul (2002), graduada em Comunicação Social
com habilitação em Jornalismo pela Universidade Católica de Pelotas (1998) e
em Direito pela Universidade Federal de Pelotas (1999). Atualmente é profes-
sora e pesquisadora do curso de Comunicação Social (habilitações em Jorna-
lismo e Publicidade e Propaganda) e do Programa de Pós-Graduação em Le-
tras, com foco em Linguística Aplicada da Universidade Católica de Pelotas. É
pesquisadora do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da UFRGS,
além de membro do corpo editorial de diversos periódicos. Desenvolve pes-
quisas sobre redes sociais e comunidades virtuais na internet, conversação e
fluxos de informação, data science e métodos de pesquisa para mídia social.
Publicou diversas obras, incluindo o livro Métodos de Pesquisa para Internet,
em parceria com Suely Fragoso e Adriana Amaral, A Conversação em Rede e
Análise de Rede para Mídia Social, com Marco Bastos e Gabriela Zago.

Sandra Rubia da Silva


Mestre em Comunicação e Informação (UFRGS) e doutora em Antropologia
Social (UFSC), com estágio de doutorado-sanduíche no University College
London (UCL), instituição fundadora da University of London. A partir de
uma abordagem antropológica, sua tese investiga as estratégias de apro-
priação e as práticas socioculturais relacionadas ao consumo de telefones
celulares em periferias urbanas. Ganhadora da quarta edição do concurso
Jóvenes Investigadores (2010), promovido pela rede Diálogo Regional Sobre
la Sociedad de la Información (Dirsi), e contemplada com a bolsa de pesqui-
sa Amy Mahan Young Researcher Fellowship in ICT Inclusion Policies pelo
International Development Research Centre (IDRC), do Canadá. Atualmente
é docente do Programa de Pós-Graduação em Comunicação da Universida-
de Federal de Santa Maria e está concluindo seu pós-doutorado pela ECO/
UFRJ.

Os autores 203
Veneza Mayora Ronsini
Mestre em Ciências da Comunicação pela Universidade de São Paulo (1993),
doutora em Sociologia pela Universidade de São Paulo (2000), com bolsa-
-sanduíche (Capes) na University of California (1998) e pós-doutoramento na
Nottingham Trent University (Inglaterra) como bolsa Capes. Professora no
Departamento de Ciências da Comunicação e no Programa de Pós-Gradua-
ção em Ciências da Comunicação da Universidade Federal de Santa Maria.
Desde 2009 integra o Observatório Ibero-americano de Ficção Televisiva. In-
vestiga os seguintes temas: recepção da telenovela; consumo e identidades
juvenis; usos sociais da telenovela em mídias digitais; televisão, classe social
e gênero.

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