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ENSAIOS
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SOBRE -'

CONSCIENCIA EEMANCIPA~AO
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POPULAR
MAURO Lurs 1As1

ENSAIOS SOBRE
CONSCIÊNCIA E EMANCIPAÇÃO
MAuRo Lurs lAsr

ENSAIOS SOBRE
CON SCIÊN CIA E EMANCIPAÇÃO

2ª edição

EDITORA
EXPRESSÃO POPULAR

São Paulo - 20 11
Copyright© 2007, by Editora Expressão Popular SUMÁRIO

Revisão: Miguel Ca11alcanti Yoslúda e Geraldo Martins de Azevedo Filho


Projeto gráfico, diagramação e capa: ZAP Design.
Impressão e acabamento: Graplúum
Arte da capa: Detalhe da obra de Pá11el Filôno11, 1923.

111, l,11·io ...................................................................................................... 7

1 1<1 llcxão sobre o processo de consciência ........................................... 11


Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (CIP)

lasi, Mauro Luis


llle Ensaios sobre a consciência e emancipação./ Mauro Luis lasi. 11 <l probl e ma da emancipação humana ..... .... ...... ........ ........ ................ .47
-2.ed . -São Paulo: Expressão Popular, 2011.
176p.
Indexado em GeoDados - http://www.geodados.uem.br.
ISBN 978-85-7743-031-4 111 Id eologia ... quer uma para viver? .. ..... .. ...................................... .... ... 77
1. Consciência. 2. Emancipação. 1. Título.
CDD21 ed.165
I\ \ se mente do olmo ................................................ ............................ 89
Bibliotecária: Eliane M. S. Jovanovich CRB 9/1250

\ ( l rn nce ito e o "não conceito" de classes em Marx ....... ..... .... ......... 101

\ 1 1·rabalho doméstico e valor ............................................................. 123

\ 11 ( ,'m io r;ui absurdum ........................................................................... 143


Todos os direitos reservados.
Nenhuma parte desse livro pode ser utilizada \ 111 ( :o nsciência e metodologia da educação popular:
ou reproduzida sem a autorização da editora. rn nt ribuição à discussão metodológica .... ......... .............................. 155

2ª edição: fevereiro de 2011


2ª reimpressão: outubro de 2017

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR


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livraria @expressaopopu lar.com.br
PREFÁCIO

É com imenso prazer que apresento esses textos sobre o tema


da consciência e da emancipação humana para a publicação pela
editora Expressão Popular.
O momento no qual esse trabalho é apresentado não poderia ser
mais adequado. Temos_afirmadq que 9 movimento da consciência da
classe _!:rabalhadora não é um processo linear, mas antes constituído
por formas que se superam dialeticamente, de maneira que o_vel_ho
jLtraz elementos do novo que ainda carrega resquícios das formas
sy2eradas. Esse movimento das formas de consciência encontra
sua determinação material no movimento próprio do ser da classe
trabalhadora, ora amoldada à ordem do capital, ora em luta por seus
interesses imediatos, ou, em circunstâncias especiais, se conformando
como uma classe que aponta para além da ordem do capital.
Vivemos hoje um triste momento de amoldamento que exige
de todos nós uma profunda e séria reflexão teórica e prática. Há
E N .S A I OS SOB n. E C O N S C 1 Ê N C I A E E M A N C I P AÇÃO

M AU R O L u 1s ! As 1

os que diante do produto final renegam toda a caminhada e se


perdem em críticas meramente morais, mas há aqueles que buscam grandes iniciativas que os trabalhadores foram capazes de produzir
compreender esses momentos dentro de um movimento maior nesse período.
e, por compreendê-lo dialeticamente, não se surpreendem com A objetividade desse movimento nos obriga a uma reflexão teó-
o balanço do barco que nos leva através dos mares tumultuados rica que seja capaz não apenas de compreendê-lo, mas também de
desses tempos mais próximos da farsa do que da tragédia. agir sobre ele, reencontrar as energias transformadoras que nascem
Quando conhecemos a consciência como processo, sabemos do antagonismo insuperável do sistema do capital e que só tomam
que ela só pode se formar, em um primeiro momento, como con- forma consciente na ação política dos seres humanos dispostos a
formação dos indivíduos a uma determinada ordem societária. agir de forma revolucionária.
No entanto, os meios pelos quais esta sociedade molda as cons- Nessa edição, além dos textos que compunham o livro Processo
ciências são os mesmos que permitem que os seres humanos, na de consciência publicado pelo CPV (1999 e 2001), acrescentamos
continuidade de sua vida, entrem em contradição com os valores alguns novos ensaios que tratam de alguns temas correlatos. No
anteriormente interiorizados podendo, em determinadas situações, texto sobre a "Questão da emancipação humana", tratamos da
produzir alterações qualitativas no processo da consciência. Os diferença que Marx estabelece entre a emancipação política e a
contextos grupais, desde os mais imediatos até os mais abrangentes emancipação humana. No texto sobre o "Trabalho doméstico",
que podem chegar a pertencimento de classe, podem produzir a polemizamos sobre a natureza dessa atividade à luz dos conceitos
situação na qual os indivíduos possam ver nos outros suas próprias de trabalho produtivo e improdutivo. No ensaio "Credo qui absur-
contradições, permitindo as ações coletivas e a emergência da dum", tratamos do debate sobre o papel das motivações subjetivas,
chamada consciência em si. como, por exemplo, a fé (acreditar sem ver) em nossa luta por um
É na dinâmica da luta entre as classes que se combinam ele- novo mundo. Como se trata de uma coletânea de ensaios produ-
mentos objetivos e subjetivos que podem levar a formação do pro- zidos para fins diferentes, como a utilização didática, artigos para
letariado enquanto proletariado, ou seja, mais do que simplesmente boletins ou textos acadêmicos, muitas vezes os padrões de citação e
uma classe da sociedade do capital, uma classe contra o capital a preocupação com a forma variam, fato pelo qual nos desculpamos
que é capaz de anunciar um novo tipo de sociabilidade humana antecipadamente com o leitor.
finalmente emancipada. Cada um desses artigos é produto de debates que emergiram
Ocorre que, nesse movimento, uma classe social que não com- em nossas atividades de formação; por isso, não param de brotar
pleta seu ciclo revolucionário, superando a sociedade antiga, acaba provocativamente duelando com nossas certezas. Por esse motivo,
por voltar a se diluir na sociedade que queria negar, amoldando-se, esta obra parece resistir em assumir uma forma acabada. Assim
fragmentando-se novamente em interesses individuais. Quando como nossa luta, ainda em aberto, ainda à procura da forma que
parte desses textos foram elaborados, o fenômeno que melhor lhe permita mudar revolucionariamente esse mundo antagônico
retratava esse processo era o movimento sindical e a dinâmica dos ao humano e à vida.
movimentos populares; no entanto, hoje vivemos o final de um
ciclo histórico em que a inflexão que se acomoda à ordem atinge São Paulo, 23 de março de 2006
Mauro Luis Iasi
I
REFLEXÃO SOBRE O PROCESSO DE CONSCIÊNCIA

Até que ponto a classe (..) realiza


"conscientemente", até que ponto "in-
conscientemente': até que ponto uma
consciência "falsa", as tarefas que Lhe
são impostas pela história?

Georg Lukács

INTRODUÇÃO
Esse texto foi produzido originalmente para um estudo do
programa de Psicologia Social da Pontifícia Universidade Católica
(PUC) de São Paulo no ano de 1985. Foi baseado numa pesquisa
sobre a história de vida e militância de alguns companheiros e
companheiras, e posteriormente incorporado como texto de apoio
a um seminário do Curso de Monitores do 13 de Maio - Núcleo
de Educação Popular (NEP).
A partir dessa inserção no curso de monitores, esta reflexão foi
ganhando forma com os depoimentos dos diferentes participan-
tes, que contavam como acontecera seu processo de consciência,
a forma de pensar anterior, os passos de sua militância e os im-
passes vividos nas formas de compreender o mundo e a lura dos
trabalhadores.
Partindo de uma compreensão marxista, g_ rocesso de cons-
ciência é visto, de forma preliminar e introdutória, como um
E NSAIOS SOBRE CONSC I ÊNC I A E E M A NC IP AÇÃO M AU R O L u 1 s I As 1

desenvolvimento dialético, em que cada momento traz em si os consigo elementos de fases superadas, retomando, aparentemente,
elementos de sÜa superaç:ão," em que as formas já incluem contra- as formas que abandonou.
dições que, ao amadurecerem, remetem à consciência para novas ~sse rocesso é ao mesmo tempo múlti lo e ~o. Cada in-
formas e contradições, de maneira que o movimento se expressa divíduo vive sua própria superação particular, transita de certas
num processo que contém saltos e recuos. concepções de mundo até outras, vive subjetivamente a trama de
Também é importante ressaltar que esse estudo sobre o pro- relações que compõe a base material de sua concepção de mundo.
cesso de consciência nos deu base para a reflexão de nossa própria Como então podemos falar em "processo" como um todo? Acre-
concepção de formação, nos permitindo um olhar crítico sobre o ditamos que a partir da diversidade de manifestações particulares
patamar das formulações sobre educação popular até então desen- podemos encontrar, nitidamente, uma linha universal quando
volvidos, sobre o da formação e suas relações com o processo de falamos em consciência de classe.
consciência dos trabalhadores. Essa consciência não se contrapõe à consciência individual,
mas forma uma unidade, em que as diferentes particularidades
A CONSCIÊNCIA COMO PROCESSO derivadas do processo próprio de vida de cada um sintetizam
Falamos em processo de consciência e não apenas consciência pois, sob algumas condições, um todo que podemos chamar de
porque não a concebemos como uma coisa que possa ser adquirida consciência de classe. Vejamos, então como se forma a consciência
e que, portanto, antes de sua posse, poderíamos supor um estado e o processo de seu desenvolvimento.
de "não consciência". Assim como para Marx, não nos interessa o
fenômeno e suas leis enquanto forma definida; o mais importante A PRIMEIRA FORMA DE CONSCIÊNCIA ---4> ~L- 1 G N A-(.lv
é a lei de sua transformação, de seu desenvolvimento, as transições Partindo da forma elementar na qual se apresem~ o fenômeno
de uma forma para outra.' de consciência, podemos dizer que toda pessoa tem alguma repre-
Nesse sentido, procuraremos entender o fenômeno da consciên- sentação mental de sua vida e de seus atos. Como afirma Gramsci:
cia como um movimento e não como algo dado. Sabemos que só é Todos são filósofos, ainda que ao seu modo, inconscientemente, porque
possível conhecer algo se o inserirmos na história de sua formação, ou inclusive na mais simples manifestação de uma atividade intelectual, a
seja, no processo pelo qual ele se tornou o que é; assim é também com linguagem, está contida uma determinada concepção de mundo. 2
a consciência: ela não "é", "se torna". Amadurece por fases distintas Como se formaria essa representação que todos possuem?
que se superam, através de formas que se rompem, gerando novas, Parece-nos que é constituída a partir do meio mais próximo, no
que já indicam elementos de seus futuros impasses e superações. espaço de inserção imediata da pessoa. Como nos diz Marx:
Longe de qualquer linearidade, a consciência se movimenta trazendo A consciência é naturalmente, antes de mais nada, mera conexão limitada com
as outras pessoas e coisas situadas fora do indivíduo que se torna consciente. 3
1
"Para Marx só uma coisa importa: descobrir as leis do fenômeno que ele pesquisa. Importa-lhe
não apenas a lei que o rege, enquanto tem forma definida e os liga relações observadas em
dado período histórico. O mais importante de tudo para ele é a lei de sua transformação, de
seu desenvolvimento, isco é, a transição de uma forma para outra, de uma ordem de relações
2
para a outra." (Comentário de um resenhista em relação ao método empregado por Marx Gramsci , A., A concepção dialética da História, p. 11 .
3
contido no posfácio da 2' edição de O capital, Editora Civilização Brasileira, p. 14.) Marx, K. e Engels, F., A ideologia alemã, p. 43.

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E NSA I OS SOBR E C ONSC I ÊNC I A E E MANC I P AÇÃO

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Essa exterioridade da consciência, o processo pelo qual ela


parte de fora até se interiorizar, parece ser confirmado também Outras informações chegam ao indivíduo, não pela vivência
por Freud, que, mesmo buscando compreender o fenômeno pela imediata, che am ·á sistematizadas na forma de ensamento ela-
aproximação psicológica, nos afirma: borado, na forma de_csmhecimento, que busca compreender o~
O processo de algo tornar-se consciente está, acima de tudo, ligado às justificar a natureza das relações determinantes em cada época. Tais
;- [ percepçóes que nossos órgãos sensoriais recebem do mundo externo. 4 manifestações da consciência só agirão na formação da concep~ção-
~ Dessa forma, inicialmente, a consciência seria o processo de h u~ o do indivíduo algum tempo depois e, como tentaremos
re resentação mental (subjetiva) de uma realidade concreta e ~ - argumentar, sob uma base já sólida para que sejam aceitas como
!ema (objey va), formada neste momento, através de seu vínculo válidas.

l de inserção imediata (percepção). Dito de outra maneira, uma Se a consciência é a interiorização das relações vividas pelos..- e
~
1
realidade externa que se interioriza. - - indivíduos, devemos buscar as primeiras relações que aliuém vive
--X imteriãITêfãa.e esse movimento não deve ser buscada apenas ao ser inserido numa sociedade. A primeir · ·tuição que coloca o ,~ ~
no seu aspecto físico/orgânico, apesar de que ninguém ainda tenha indivíduo diante de relações sociais é família Ao nascer, o novo _j
conseguido formar qualquer representação sem cérebro ou um sis- ser está dependente de outros seres humanos, no caso do estágio /
tema nervoso central, mas no fato de que a consciência é gerada a cultural de nossa sociedade: seus pais biológicos. ___J
partir e pelas relações concretas entre os seres humanos, e desses com Lo o a ós o nasciment criaR<ra vive uma fase que, em
a natureza, e o processo pelo qual, em nível individual, são capazes termos psicológicos, é chamada de "pré-objetal", na qual ela nã
de interiorizar relações formando uma representação mental delas. distingue o que seria aja ~ que não seria. Vinda de nove meses de
A questão se torna complexa, na medida em que essa repre- gestação quando se confundia organicamente com o corpo da mãe,
sentação não é um simples reflexo da materiali:!ade externa g_u_e ela percebe ainda precariamente o mundo como um complemento
se busca representar na mente, ~ tes, a captação de um de si mesma. O seio materno é visto como parte da anatomia de
concreto aparente, limitado, uma parte do to o e o m; vimento seu próprio corpo e, logo, o bebê descobre o meio de acioná-lo: o
de sua entificação. 5 choro. Não podemos dizer, nesse mom_ffito, que a criança tenha
O novo indivíduo ao ser inserido no conjunto das relações so- consciê~cia, embora tenha percepções básicas, uma v_ez que pmnão
ciais, que tem uma história que antecede a do indivíduo e vai além conceber algo que seja o outro, não estabelece propriamente uma
dela, capta, assim, um momento abstraído do movimento. A partir "relação". Suas ações são ainda determinadas mais pelo universo
daí busca compreender o todo pela parte - ultrageneralização - o pulsional e orgânico do que social.
que consistirá, como veremos, em um dos mecanismos básicos de Num determinado momento de seu amadurecimento, a criança
sua primeira forma de consciência. percebe que não pode controlar parte do que supõe ser sua própria
.tnatomia. Somente a partir da descoberta da existência de algo

4
Fre ud , S., "Esboço de psica náli se", in Os Pensadores, p. 2 10. '' Q ua ndo fa la mos d a famíli a como determin ação das relações primeiras a serem vive ncia-
5 das pelo indi víduo em fo rm ação, não podemos nos esquecer de q ue essa mes ma fa míli a
Enci ficação é o termo fi losófico que des igna o processo de algo ro rnar-se o que é.
é po r sua vez determin ad a pelo estágio h istó ri co em que se enco ntra , sendo, porra nro,
um a subjetivid ade já educada.

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E NSAIOS SO BRE C ONSC I ÊNC I A E E MANC IP AÇÃO M AU R O L u 1s ! As ,

externo é que passa a fazer sentido a noção de "eu". Dadas essas Acontece que ~ 1!Ll2-çU_le é visto pela pessoa em formação
condições, podemos falar de uma relação. como mundo externo, como objetividade inquestionável, portanto,
:-~, É na interação com o mundo externo que se forma o psiquismo, com-9 realidade, é enas uma forma articular h istoricamente
a estrutura básica do umverso su etivo o i 1 uo. egamos ao de terminada, de se organizarem as relações familiares. No entanto,
-~do m - · ~.12enas , _de_ __
nosso corpo orgânico e de _;us instintos,
ou impulsos básicos (o que Freucf cfiama de ID: instintos que se
esse carát~ particular não é captado pelo indivíduo, que passa a
assumi-lo como natural. 9 ~ , o indivíduo interioriza essas rela-
originam da organização somática). A vivência das relações n.a..família_ ções, as transforma em normas, estando pronto para reproduzi-las
p~rmit;-que e interiorizem essas relações, construindo o universo cm outras relações através da associação.
interiorizado. Freud descreve de maneira~ intética tal proc~s~ Ainda nessa fase ocorre uma passagem decisiva para a formação
Sob influência do mundo externo que nos cerca, uma porção do ID sofre da personalidade: o chamado "complexo de Édipo". Apesar do risco
um desenvolvimento especial (...) que atua como intermediário entre o das generalizações e conclusões nem sempre exatas que derivam
I D e o mundo externo, o EG0. 7 dessa concepção freudiana, podemos considerar que seu mecanismo
\ ~ 1 O mecanismo primordial dessa i~rmediação1-entre o EGO básico representa, em nossa sociedade, um elemento fundamental
1
l e o mundo externo, é o chamado princípio do prazer. Buscando que compõe a personalidade e a consciência dos indivíduos.
o prazer e tentando evitar o desprazer, o EGO busca realizar as Na luta do EGO para administrar as exigências pulsionais do
exigências do ID, levando em conta a realidade que limita as con- ID diante das condições estabelecidas pelo mundo externo, os
dições dessa satisfação. A ação dos pais mediatiza as exigências instintos se diferenciam em dois grupos fundamentais: alimen-
sociais, histórica e socialmente determinadas, apresentando-se ao tação (ligada à sobrevivência imediata e física) e o sexo (ligado à
EGO em formação como uma força a ser levada em conta na sua afetividade e ao desejo, que se vinculam à reprodução). Esses im-
busca de equilíbrio e adaptação. Isso "d~~a atrás de si", diz Freud, pulsos se diferenciam pelo seu grau de maleabilidade. O impulso
"como que precipitado_, _a formação de um agente especial no qual da alimentação é inexorável e pouco maleável, quer dizer, cobra
prolonga-se a influência par~~tál", o SUPEREGO. O externo se sua satisfação imediata e ameaça a continuidade da existência; já o
interioriza, uma relação enfreo EGO e o mundo externo interio- impulso sexual é mais maleável, pode ser deslocado ou reprimido.
riza-se, formando uma parte constitutiva do universo subjetivo do Isso não ocorre sem consequências, às vezes sérias, mas, de qualquer
indivíduo. O que é introjetado não é apenas a conduta dos pais. modo, não comprometem a sobrevivência imediata da pessoa.
Como complementa o próprio Freud: Toda criança elege um objeto de seu desejo e fantasia sua perfeita
Essa influência parental inclu i em seu processo não somente a personali- integração afetiva com ele. Na estrutura triangular da família mono-
dade dos pais, mas também a família, as tradições raciais e nacionais por
eles transmitidas, bem como as exigências do meio socia l imediato q ue '
1
Buscando compreender as relações sociais na velha Grécia, Aristóteles diz: "todo ser vivo
8 se compõe de alma e corpo, destinada uma a ordenar e o outro a obedecer(.. .). O macho
representam.
é mais perfe ito e governa , a fêmea o é menos e obedece. A mesma lei se aplica narural-
mence a todos os homens. Há na espécie humana ind ivíduos tão inferio res a outros como
o corpo o é em relação a alma( ...) são os homens nos quais o emprego da força física é o
7
Freud, S. op. cit., pp. 199-200. que deles melhor se obtém. Partindo de nossos pri ncípios, tais indivíduos são destinados,
8
Idem , p. 200. por narureza, à escravidão". (A política, parágrafos 10, 12 e 13, pp. 15-16)

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M Auno L u 1s I As 1
ENSA I OS SOBRE CONSC I ÊNC I A E E MANC I PAÇÃO

6. na luta entre a satisfação do desejo e a sobrevivência, o indivíduo tende


gâmica (pai, mãe e filho/a), essa ação é interrompida pela presença de a garantir a sobrevivência, reprimindo ou deslocando o desejo;
uma terceira pessoa. A criança, com a mesma intensidade que fan- 7. assim, o indivíduo submete-se às relações dadas e interioriza os valores
tasia seu desejo, fantasia a eliminação do concorrente. No entanto, como seus, zelando por sua aplicação, desenvolvimento e reprodução.
a plena realização do desejo colocaria em risco a sobrevivência da As relações familiares, por maior importância que tenham na
relação, que garante a existência física da criança. Por uma série de formação da personalidade, não têm o monopólio das relações
mecanismos, a criança desenvolve um sentimento de impotência e humanas. As relações lançadas a partir da família são comple-
culpa, que o EGO sente como desprazer e busca eliminar. A foi:_m_a mentadas, reforçadas e mesmo revertidas pela inserção nas demais
encontrada é dada pela própria natureza dos impulsos: reprime-se relações sociais, pelas quais o indivíduo passa no decorrer de sua
o desejo para garantir a sobrevivência imediata. vida: na escola, no trabalho, na militância etc.
- ~ A ca a passo, o novo ser vai crian o a 6ase sobre a qual estru- Essas outras relações são potencialmente diversas das relações
turará seu psiquismo e sua personalidade, ao mesmo tempo em assumidas na formação da personalidade, fundamentalmente pelo
que se amolda à sociedade da qual está interiorizando as relações fato de que agora o indivíduo assume um papel menos dependen-
e formando, a partir delas, a consciência de si e do mundo. te, podendo vir a assumir o papel de sujeito ativo na relação. No
~ Evidente que aquilo que fica interiorizado não são as relações entanto, nem sempre esse potencial se manifesta. Na maioria dos
em si, mas seus valores, normas, padrões de conduta e concepções. casos, essas vivências secundárias acabam por reforçar as bases
Nessa fase, ainda embrionária, cola-se à própria constituição do la nçadas na família.
aparato psíquico uma concepção de mundo. Diríamos que já estão Vejamos se cada nova relação, posteriormente assumida, reverte
presentes aqui todos os principais elementos que constituirão as ou reforça os sete elementos que compõem a primeira forma da
características da primeira forma de consciência. consciência.
Vejamos: Parece-nos que na escola, por exemplo, ao nos inserirmos em
1. a vivência de relações que já estavam preestabelecidas como realidade dada; relações preestabelecidas, não conseguimos ter a crítica de que é
2. a percepção da parte pelo todo, onde o que é vivido particularmente apenas uma forma de escola, mas a vivemos como "a escola". Pas-
como uma realidade pontual torna-se "a realidade" (ultrageneralização); samos a acreditar ser essa a forma "natural" e acabamos por nos
3. por esse mecanismo, as relações vividas perdem seu caráter histórico e submeter. Na escola, as regras são determinadas por outros que
cultural para se tornarem naturais, levando à percepção de que "sempre não nós, outros que têm o poder de determinar o que pode e o
foi assim e sempre será"; que não pode ser feito e nosso desejo submete-se diante da sobre-
4. a satisfação das necessidades, seja da sobrevivência ou do desejo, deve vivência imediata. As normas internas interiorizam-se: a disciplina
respeitar a forma e a ocasião que não são definidos por quem sente, mas converte-nos em cidadãos disciplinados.
pelo outro que tem o poder de determinar o quando e o como; O mesmo ocorre no trabalho . Aqui, de modo ainda mais
5. essas relações não permanecem externas, mas se interiorizam como nor- claro, as relações já se encontravam predeterminadas, out ros
mas, valores e padrões de comportamento, formando com o SUPEREGO, de terminam o que se pode e o que não se pode fazer, o capital
um componente que o indivíduo vê como dele, como autocobrança e não de termina o como, o quando e o que fazer. Vender sua força de
como uma exigência externa;
19

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E NSAIOS SOB RE CON SC I ÊNC I A E E MANC IP AÇÃO M AU R O Lu1 s I As 1

trabalho ao patrão em troca de um salário não é visto como algo Quando, numa sociedade de classes, uma delas detém os meios
absurdo, mas como algo perfeitamente "natural". Sempre foi de produção, tende a deter também os meios para universalizar
assim ... sempre será ... , nosso desejo submete-se à sobrevivência sua visão de mundo e suas justificativas ideológicas a respeito das
imediata ... temos que trabalhar para viver, por isso nos submete- relações sociais de produção que garantem sua dominação econô-
mos. A lógica imposta pelo capital (externa), interioriza-se e nós mica. "As ideias da classe dominante são em cada época as ideias
mesmos nos levamos ao mercado para sermos esfolados ... e nos domin~tes." 10
alegramos quando algum capitalista dispõe-se a comprar nossa Essa universalização da visão de mundo da classe dominante se
força de trabalho. Pregamos alegre e convictamente as ideias do explica não apenas pela posse dos meios ideológicos e de difusão,
capital como se fossem nossas. mas também e fundamentalmente pela correspondência que en-
j, Assim, formada essa primeira manifestação da consciência, o contra nas relações concretas assumidas pelos indivíduos e classes.
indi~íduo passa a compreender o mundo a partir de seu vínculo C omo afirma Marx, não são "simples ideias":
imediato e particularizado, generalizando-o. Tomando a parte pelo As ideias dominantes nada mais são que a expressão ideal das relações
todo, a consciência expressa-se como maceriais dominantes, as relações maceriais dominantes concebidas como
No senso comum, a alienação é tra-ta_ a_ c_o-mo sendo um estágio ideias; porcanto, a expressão das relações que tornam uma classe a classe
de não consciência. Após essa análise preliminar, percebemos que dominance, as ideias de sua dominação .11
ela é a forma de manifestação inicial da consciência. Essa forma
---
será a base, o terreno fértil, onde será plantada a.ideologia como
forma de dominação.
As relações sociais determinantes, baseadas na propriedade
privada capitalista e no assalariamento da força de trabalho, ge-
ram as condições para que a atividade humana aliene em vez de
humanizar. 12 A vivência dessas relações produzem uma alienação
IDEOLOGIA E ALIENAÇÃO expressa em três níveis. 13
~nação não é o mesmo que ideologia e dela difer.s_ncia-se Ao viver o trabalho alienado, o ser humano aliena-se da sua
substancialmente. A alienação que se expressa na primeira forma própria relação com a natureza, pois é através do trabalho que o
da consciência é subjetiva, profundamente enraizada como carga ser humano se relaciona com a natureza, a humaniza e assim pode
afetiva, baseada em modelos e identificações de fundo psicológico. compreendê-la. Vivendo relações em que ele próprio se coisifica,
A ideologia agirá sobre essa base e se servirá de duas características onde o produto de seu trabalho lhe é algo estranho e que não lhe
fundamentais para exercer uma dominação que, agindo de fora µertence, a natureza se distancia e se fetichiza.
para dentro, encontra nos indivíduos um suporte para que se es- Num segundo aspecto, o ser humano aliena-se de sua própria
tabeleça subjetivamente. atividade. O trabalho transforma-se, deixa de ser a ação própria
A ideolo ia não ode ser compreendida a enas como um con- _ da vida para se converter num "meio de vida". Ele trabalha para
junto de ideias que, pelos mais diferentes meios (meios de comu-
111
~ a s s a s , escola, igrejas etc.), são introduzidas na cabeça Marx, K. e Engels, F., A ideologia alemã, p. 72.
" Ibidem.
dos indivíduos. Isso levariuo equívoco de con_ç~a..ação '' Ver: Marx, K., Os manuscritos econômicos e filosóficos.
a_!lti-ideológica como a simples troca de velhas po " @.~ideias. '' Ve r também: lsrván Mészáros, Marx: a teoria da alienação, pp. 16 e seguintes.

20 21
E NSAIOS SOB R E CONSC I ÊNC IA E E M A N C IP AÇÃO

M AURO L u 1 s I As1

o outro, contrafeito, o trabalho não gera prazer, é a atividade im-


posta que gera sofrimento e aflição. Alienando-se da atividade que 1 listória
sobre os comerciantes portugueses, na época das grandes
o humaniza, o ser humano se aliena de si próprio (autoalienação). navegações:
~-- Isso nos leva ao terceiro aspecto. Alienando-se de si próprio O português levanta cedinho e vai para seu armazém vender suas coisas ....,
como ser humano, tornando-se coisa (o trabalho não me torna Ele vende pão, leite, café e outras coisas mais . E quando ele acaba, pega
um ser humano, mas é algo que eu vendo para viver), o indivíduo suas economias, aluga um navio, pega os amigos, e vai de continente em
afasta-se do vínculo que o une à espécie. Em vez de o trabalho continente, descobrindo coisas para comerciar. Só que um dia eles foram
tornar-se o elo do indivíduo com a humanidade, a produção so- pegar o mesmo caminho para comerciar e o caminho estava fechado, então
cial da vida, metamorfoseia-se num meio individual de garantir a eles foram a procura de outros caminhos e encontraram muitas coisas para \
. d 1
própria sobrevivência particular. comerciar como se a, cravo, canela e material de luxo. Levaram de voltJ
Em resumo, podemos descrever assim esses três aspectos da para sua terra e só os mais ricos é que compravam e eles ficaram ricos e im-

alienação: portantes. É a~si_m o diaª. dia do_s portugueses e procurando é que se acha. 15
a) o ser humano está alienado da natureza; Esse texto e ilustrativo nao apenas por evidenciar valores e
b) o ser humano está alienado de si mesmo; noções ideologizadas já presentes na concepção de mundo de um
c) o ser humano está alienado de sua espécie. menino, mas por nos dar uma mostra da forma como sua consciên-
A materialidade dessas relações produtoras da alienação são cia agiu para responder a uma questão, que para ele era desconhe-
expressas no universo das ideias como ideologia. São, nas palavras cida. Em primeiro lugar, ele só pode julgar algo que desconhece
de Marx, relações materiais concebidas como ideias. trazendo para um referencial que ele domina; vai reinterpretar os
.1_ ideologia encontra na primeira forma da consciência uma !atos a partir da realidade e dos parâmetros de que dispõe em sua
base favorável para sua aceitação. As relações de trabalho já têm vivência imediata. É evidente que os artífices da expansão marítima
na ação prévia das relações familiares e afetivas os elementos de dos séculos 14 e 15 não eram padeiros; no entanto, um padeiro
sua aceitabilidade. 14 Antes mesmo que a criança venha a receber é o que de mais real e próximo o menino dispõe para identificar
qualquer informaçã~ sistematizada, já possui um conjunto de um "português".
valores interiorizados que para ela são verdadeiros e naturais, pois Da mesma forma, discorrerá sobre o tema proposto buscando se
estabelece com eles profundos vínculos afetivos e percebe uma referenciar em modelos e por um sistema de valores que ele interiorizou
correspondência com as relações concretas em que está inserida. cm sua formação. Nesse sentido, "pegar as economias", "procurando
Para ilustrar essa constatação, vejamos um trabalho escolar de é que se acha", a relação "vender para os ricos" e ficar também "rico e
um menino de dez anos, que busca responder a uma questão de importante", aparecem como que naturalmente no discurso do meni-
no; ele se espantaria acaso questionássemos se são ideias dele mesmo
14
Numa passagem de sua Crítica da razão dialética, Sartre ironi za algum as concepções ou não. Mais do que isso, são verdadeiras. As relações em que está
mar-xistas que buscam comp reend er o fenômeno da alienação ape nas a partir da s
relações de trabalho. Di z: "O s marxistas de hoj e só se preocupam com os adultos: ao inserido reforçam e aparentemente comprovam a validade dos juízos
lê-los, podia-se crer que nascemos na id ade em que ganhamos nosso primeiro sa lário;
esquecem-se de sua própria infância". (Sa rtre, J. P., Crítica de la razón dialéctica, pp.
56-57) '' Co leta do de um estudante da E.E.P.S.G . Pa lmira Graciotto, em São Bernardo do
Ca mpo, no ano de 1985.

22
23
MAUR O L u,s I ASI

E NSA I OS SOB RE C ONSC I ÊNC I A E E MANC IP AÇÃO

Assim, o indivíduo vai construindo uma visão de mundo que


formulados. Em seu bairro pobre, as pequenas lojinhas e camelôs que só 1t1lga como sendo própria. Apesar de sua uti!i._dade prática, de sua
vendem coisas para pobres não tornam ninguém rico, ao passo que os .t parente coerência, essa visão caracteriza-se, como afirma Gramsci,
grandes shopping centers, com seus sofisticados produtos para ricos, dão por ser ocas10na e esag~ga.9:a. I ; ; ; - s i ~ ~"não c ega a
a impressão de fazer fortunas nas mãos de seus proprietários. 11,rmar um todo unitário e coerente, mas soma seus aspect~ com-
A percepção generalizada da vivência particular não apenas se i ><>nentes de forma arbitrária e biz rra. Essa visãÕacrítica, desistor-
baliza em valores como deforma a realidade pela transposição de 1 iza a, sem um inventário,
18
Gramsci chama de senso c.o.mum. 19
juízos presos à particularidade. Quem chamar para participar de O pensador italiano afirma que todos os seres humanos
uma grande aventura como aquela? Evidente que "os amigos", com 1t1oldam-se a algum tipo de conformismo, não no sentido de
quem mais? Não se poderia imaginar marujos, condenados e escra- passividade, mas pelo fato de se amoldar a algum tipo de forma, e
vos embarcados à força. Como conseguir algo tão grande como um quando isso ocorre de maneira não crítica, a nossa personalidade
navio? Com certeza não às custas da Coroa Portuguesa, da prática .1caba por ser composta de maneira bizarra, encontrando-se nela
secular de expropriar camponeses, ou com guerras de rapina, mas "elementos dos homens das cavernas e princípios da ciência mais
através de "economias" para que se possa "alugar o navio". moderna e progressista; preconceitos de todas as fases históricas
Os valores que aparecem como sendo do menino não foram passadas, grosseiramente localistas, e instituições de uma futura
interiorizados pelo contato perceptivo com as "relações sociais de- filosofia". 20
terminantes" na sociedade onde vive. Os valores são mediatizados Esse conjunto que une desordenada e contraditoriamente
por pessoas que servem de veículo de valores, são modelos. Não se elementos de senso comum e instituições de um pensamento
trata da identificação com "a sociedade", "as relações capitalistas" 1 rítico é a base do que chamamos de primeira forma de consciên-

ou as ideias; são as relações de identidade com os outros seres hu- L ia. Ela apresenta-se como alienação não porque se desvincula

manos, seus modelos, que a pessoa em formação assume valores da realidade, mas pelo fato de naturalizá-la, por desvincular os
dos outros como sendo os seus.
" "Quando a concepção do mundo não é crítica e coerente, mas ocasional e desagregada,
O ser humano é modelo do ser humano. 16 ~..a..co.n.cepção pertence mos simultaneamente a uma multiplicidade de homens-massa, nossa própria
de mundo e de nós mesmos, a formamos a partir do outro. Numa perso nalidade é composta de maneira bizarra: nela se encontram elementos dos homens o
das cavernas e princípios da ciência mais moderna e progressista; preconceitos de todas as
passagem ~ginal de O capital, Marx afir'ína que: · · fases históricas passadas, grosseiramente localistas, e intuiçóes de uma futura filosofia que
O homem se vê e se reconhece primeiro em seu semelhante, a não ser que já será própria do gênero humano mundialmente unificado. Criticar a própria concepção
de mundo significa, portanto, torná-la unitária e coerente e elevá-la até o ponto atingido
venha ao mundo com um espelho na mão ou como um filósofo fichtiniano
pelo pensamento mundial mais desenvolvido. Significa portanto criticar, também , toda
para quem basta o 'eu sou eu'. Através da relação com o homem Paulo, na a filosofia até hoje existente, na medida em que ela deixou estratificaçóes consolidadas
na filosofia popular. O início da elaboração crítica é a consciência daquilo que somo
condição de seu semelhante, toma o homem Pedro consciência de si mesmo
realmente, isto é, um 'conhece-te a ti mesmo' como produto do processo histórico at
como homem. Passa a considerar Paulo - com pele, cabelos, em sua materia- hoje desenvolvido, que deixou em ti uma infinidade de traços recebidos sem benefíci
do inventário. Deve-se fazer, inicialmente, esse inventário." (Gramsci, A. Concepçã
lidade paulina - a forma em que se manifesta o gênero homem. 17
dialética da História, p. 12)
,., Idem, pp. 11-13.
'" Idem.
16 "Quem descobre o quem sou descobrirá o quem é" (Pablo Neruda).
17 Marx, K., O capital, p. 60, nota 72.
25

24
ENSAIOS SO BRE CONS C I ÊNC I A E EMAN C IPA ÇÃO

M AuHo Lu1 s I ASI

elementos componentes da visão de mundo de seu contexto e de


sua história. Uma vez interiorizada uma visão de mundo não se transforma
1111ma inevitabilidade, pois corre em seus calcanhares a contínua
AS CONTRADIÇÕES DA PRIMEIRA FORMA DE CONSCIÊNCIA 11 ,1 nsformação da estrutura produtiva e das relações que a origi-

<- A rela ão dialética entre as relações concretas assumi as e suas 11,11:1 me que lhe servem de base. Essa transforma ão constante

representações ideais per~te-nos superar a visão mecâni~ d,1., condições__mareriais é mesmo vital para os próprios interess;;
Jmsca compreender o universo ideológico como reflexo, caindo- dominantes, e constituem uma das característicasrnarcantes dô
em armadilhas do tipo: é a família que determina a alienação ou ,11odo de produção capitalista. -
as relações de trabalho? Eis aqui uma contradição insolúvel da sociedade capitalista:
..;.:. Como vimos, a família, que antecede, no tempo, sua ação 1·11q uanto as forças produtivas devem constantemente desenvolver-
no indivíduo em relações às atividades econômicas de produção, \ l', as relações sociais de produção, sua manifestação e justificativa

é por sua vez determinada por essas relações, na verdade as me- 11 kológica devem permanecer estáticas em sua essência. Com o

diatiza. Aquilo ue determina ~ deE._erminado. Ao mesmo tempo, desenvolvimento das forças produtivas, acaba por ocorrer uma
nesse âmbito, reproduz e reforça as relações sociais de produção, dissonância entre as relações interiorizadas como ideologia e a
dando a base necessária para que a ideologia frutifique e garanta lorma concreta como se efetivam na realidade em mudança. É o
a reprodução daquelas. germe de uma crise ideológica.
,-t Aqueles que se servem de uma visão mecânica do mundo e Os autores de A ideologia alemã descrevem dessa maneira esse
do processo histórico fecharam aqui o círculo da dominação. A processo:
ideologJa corresponde às relações concretas que comprovam e r~_- Quanto mais a forma normal das relações sociais e, com ela, as condições
forçam essa ideologia ao mesmo tempo em que esta lhes justificã de existência da classe dominante acusam a sua contradição com as forças

e reforça. Não há saída. Isso constitui um dos principais mitos produtivas avançadas, quanto mais nítido se torna o fosso cavado no seio da
de nossos tempos: a dominação ideológica perfeita, assim como própria classe dominada, mais natural se torna, nessas circunstâncias, que
anunciam as ficções de Orwell e Huxley. 21 a consciência que correspondia originalmente a essa forma de relações
·1 Entretanto, o fato é que a ideologia e as relações sociais de sociais se torne inautêntica; dito por outras palavras, essa consciência deixa
produção formam um todo dialético, ou seja, não estabelecem de ser uma consciência correspondente e as representações anteriores, que
simples relações de complementariedade, mas uma união de con- são tradicionais desse sistema de relações, aquelas em que os interesses
trários. Por mais elaborada, sofisticada ou eficiente que seja uma pessoais reais eram apresentadas como interesse geral , degradam-se pro-
ideologia, ela é ainda a representaçao memahieLNt:0 estâgiÕcia-;--- gressivamente em meras fórmulas idealizantes, em ilusão consciente, em
forças produtivas historicamente determinadas. hipocrisia deliberada. 22
Como o indivíduo viveria essa contradição entre ideias e a
realidade em mudança? Sabemos que sua consciência inicial é
21
Aqui, referimo-nos aos livros desses dois autores ingleses que tratam em seus romances
de situações em que a dominação ideológica teria se tornado perfeita. Os romances são
1984, de George Orwell, e Admirável mundo novo, de Aldous Huxley.
-- Marx, K. e Engels, F. A ideologia alemã. Volum e 11, p. 78.
26
27
ENSA I OS SO BRE CONSCIÊNCIA E EMAN C I PA ÇÃO
MAURO L u 1s I As 1

formada pela interiorização de valores, normas, juízos e compor- /\ '>EGUN DA FORMA DA CONSCIÊNCIA: A CONSCIÊNCIA EM SI
tamentos a partir das relações imediatas que estabelece. De posse 1•:m determinadas condições, a vivência de uma contradição
dessa concepção de mundo, o indivíduo segue sua vida e estabelece 1 111 rc a.ntigos_v:aJ.oi;_es..assumidos e...a..realiaade das novas relações
o mecanismo provocador da contradição na primeira forma de \ 1v1das pode' gerar uma inicial superação da alienação. A precon-
consciência, que não é outro senão o próprio que lhe tornou possível ,1,, ,to para essa passagem é o grupo. Quando uma pessoa vive uma
a existência. As novas relações vividas têm o mesmo potencial de 111pmiça solitariamente, tende à revolta, mas em certas circuns-
interiorização que as anteriores, da mesma forma que gera novos 1.111cias pode ver em outras pessoas sua própria contradição. Esse
valores, juízos, e são a base para novas condutas e comportamentos. 1,1111 bém é um mecanismo de identificação da primeira forma,
e :;: O indivíduo vive as novas relações, julgando-as e buscando 111.1s aqui a identidade com o outro produz um salto de qualidade.
compreendê-las, com o mesmo arcabouço de valores que antes Uma mulher, por exemplo, submetida a condições de opressão
orientavam sua vida, de forma que a introjeção de novos valores 1·111 casa, condenada aos trabalhos domésticos, pode viver isso a
!1-cab~provocando uma contradição, que é vivida elo ind1-v-ích:rcr" \'l(la to da como natural, portanto, para ela inevitável. Mesmo o
como l,!-ffi conflito subjetivo. - -- dvs moronar da idealização na família diante das condições reais
:.,, A primeira form d, anifestação dessa contradição não é do cotidiano pode gerar no máximo a revolta, a constatação de
ainda a superação da alienação, é mais uma forma transitória que 11111a terrível "sina". No entanto, essa mesma mulher, num grupo
se expressa de maneira mais nítida, no estado de revolta. r1n que possa ver em outras companheiras a mesma sina, julgada
Alguém, por exemplo, que acreditasse que trabalhando conse- ,omente sua, só sua, pode começar a desenvolver uma ação contra
guiria tudo o que se quer, mas passa a viver uma situação na qual, 1> que considera injusto. 23
apesar de trabalhar muito, não consegue o mínimo para viver, Essa via de superação é ainda mais clara ao tratarmos da classe
vivencia uma contradição que pode levá-lo à revolta. As relações operária: é na greve a sua mais didática manifestação. A injustiça
atuais passam a não corresponder ao valor interiorizado, mas antes vivida como revolta é partilhada numa identidade gr~pal, o que
de fazer saltar, toda a concepção é vivida como um conflito sub- possibilita ação coleti
jetivo, individual, que é compreendido tendo por base a própria A ação coletiva Toloca as r~lações vividas n~p novo patamar.
estrutura da primeira forma da consciência. Vislumbra-se ã-possibilidade de não apenas se revoltar contraã s re-
As relações ode ão_ser mais idealizadas.; são agora vividas lações predeterminadas, mas de alterá-las. Questiona-se o caráter
como injustas e existe a disposição de não se submeter; no en- natural dessas relações e, portanto, de sua inevitabilidade. A açã~
tanto, ainda a parecem como inevitabilidade: "sempre foi assim". dirige-se, então, à mobilização dos esforços do grupo no sentido
Muda-se apenas o julgamento valorativo: "sempre foram injustas", da reivindicação, da exigência para que se mude a manifestação
p~eparando-se a sentença ... "sempre serão injustas". A primeira da injustiça.
forma da consciência pode então ser reapresentada. É apenas em
certas condições que a revolta pode se tornar uma passagem para '
1
Sa rrre d ese nvolve em seu trabalho, Crítica da razão dialética, um estudo sobre a evolução
uma nova etapa do processo de consciência. do _gr ~po qu e se ria útil à compreensão desse processo. Fala de um a eta pa pré-grupo, a
se n a l1d ade e sua passage m pela fu são ao estágio de grupo. Na continuid ad e, 0 grupo,
em seu desenvolvimento, passa pela definição de metas, jura mentos e organização.

28 29
M AURO L u 1s I AS ]

ENSAIO S SOBRE CONSC I ÉN C IA E E MANCIPAÇÃO

lilw1:1I, é de que todos são livres proprietários de distintas mercado-


:::1, É a chamada consciência em si, ou consciência da reivindicação. 1l 1\. O proletariado afirma-se como classe com interesses distintos
A for ma mais clássica de manifestação aessa forma de consciênciã é 1111agônicos ao capital quando se organiza para buscar maiores
a luta sindical, sua forma de organização mais típica é o sindicato, d,11ios ~ ores coriaiço 1 a ra a o.
mas podemos incluir, nessa forma, as lutas populares, os movimen- No entanto, o proletariado, ao se assumir como classe, afirma a
tos culturais, o movimento de mulheres e outras manifestações de , l\1(·ncia do próprio capital. Cobra desse uma parte maior da riqueza
lucas coletivas de setores, grupos e categorias sociais das mais di- 111rnluzida por ele mesmo, alegra-se quando consegue uma parte um
versas. O que há de comum nesses casos particulares é a percepção 11111 1rn maior do que recebia antes. A consciência ainda reproduz o
dos vínculos e da identidade do grupo e seus interesses próprios, 1111 •1, 111 ismo pelo qual a satisfação do desejo cabe ao outro. Agora, ela
que conflitam com os grupos que lhe são opostos. ,,1.111 iÍesta o inconformismo e não a submissão, reivindica a solução de
11111 problema ou injustiça, mas quem reivindica ainda reivindica de
AS CONTRADIÇÕES DA SEGUNDA FORMA E A CONSCIÊNCIA il1•,11<'.· m. Ainda é o outro que pode resolver por nós nossos problemas.
REVOLUCIONÁRIA Além qisso, _~ mos que nos submeter às formas e condiç~es
,- A consciência em si representa ainda a consciência que se bªseia , ,t.1belecidas por o~~~s p~r; ~a~ifestar es--;e inc-o~formTs"mo. A
na vivência das relações imediatas, não mais do ponto de vista 111 ,11crialização desses limites não poderia ter, como um exemplo
do indivíduo, agora do rupo, da cate oria e evoluir até 111,iis adequado, a permanência da estrutura sindical atrelada, em
consciência de classe. "'Ela { parte fundamental da superação da 11,1 essência, desde os anos de 1930 até hoje. Esses não são, como
primeira forma-de cÕnsciência, portanto, da alienação; no entanto, , 1110s, apenas limites de uma certa forma de consciência, mas
seu pleno desenvolvimento ainda evidencia traços da antiga orrria 11111hém o limite dos instrumentos políticos que correspondem a
ainda não superados. 1 \,1 consciência: as greves e o sindicato.

O rocesso de negação de uma parte da ideologia pela vivên- Não se trata de diminuir a importância desses instrumentos
cia particular d ; s""contradições do modo de produção, que pese il, ltna da classe trabalhadora, mas de concebê-los dentro de seus
Í:oda sua importância, não vai destruir as relações anteriormente l1111iics. Não se trata de analisar os limites das greves, por exemplo,
interiorizadas e seus valores correspondentes de uma só vez. Isso ,p1.11 ,do elas não são vitoriosas, quando os militantes mais destacados
significa que, apesar de "consciente" de parte da contradição do 11, identificados, demitidos e não conseguem mais emprego; mas,

sistema (por exemplo, dos baixos salários, da opressão da mulher, l111 ,da mentalmente, quando as greves são vitoriosas é que podemos
de sua identidade étnica etc.), a pessoa ainda trabalha, age, pe~~ 111 t l cber os limites dessa segunda forma de consciência.
sob a influência dos valores anterwrment-e assumidos, qÜe, apesar Quando um setor da classe operária confronta-se com o patrão
de serem p;rt;J;.-mesma contradição, cõnfinuam sendo visto_§. 1gindo, por exemplo, maiores salários, melhores condições de
pela pessoa como naturais e verdadeiros. 11,di.d ho e outras reivindicações, dá mostras de que desvendou
, , Na sua luta contra o capital, o proletariado, num primeiro mo- , 11, parte o caráter da contradição fundamental entre a produção
mento, nega a pretensão do capitalismo em supor uma igualdade 111 i,1 I e a acumulação privada e, sabendo disso, cobra do capitalista

entre capital e trabalho, assumindo-se como uma classe distinta e 11111.1 parte maior daquilo que produziu e que lhe foi retirado. O
particular. A principal afirmação do capitalismo, e sua ideologia
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E NSA I OS SOB ll. E CONS C IÊ N C I A E E MAN C IP A ÇÃO
M AURO L u ,s I As 1

proletariado apercebe-se de sua força, de ser elemento-chave para


I' 1 ,1v,1de forças que não controla, vive uma realidade da qual des-
0 processo de produção, percebe seu poder de barganha e o ~~a
contra O capital, adquire consciência de sua força, de sua urnao ,11d1t·ce es e o esenvo v1mento, acãEãncio-;-ssim submetida
I" ,1 1-l.1, ainda que mantenha na forma~ dementos questiona~--;;-
enquanto classe. Mas, digamos que essa luta atinja seus objetivos,
, 1 1 •,q.1,unda forma de consciência. Vejamos esse depoimento de
que a greve seja vitoriosa. Os trabalhadores retornam ao trabalho
1 i1.1111sci, de 1919, sobre esse fenômeno:
com suas reivindicações atendidas. Estão novamente aptos a re-
validar as relações de exploração, o trabalho alienado, ou seja, o ( >s operários sentem que o complexo da 'sua' organização se transformou
nu m aparelho tão enorme que acabou por obedecer a leis próprias, íntimas
próprio capitalismo. .
.'t sua estrutura e ao seu complicado funcionamento, mas estranhas à massa
, Isso {2Qrque, ao se assumir enq~ classe, o-12roletanadc:> n~ga o
que adquiriu consciência de sua missão histórica de classe revolucionária.
capi~mo a.firmando-o. Organiza-se como qualquer vendedor que
Sentem que a sua vontade de poder não consegue se exprimir, em sentido
quer alcançar um preço maior por sua mercadoria. Portanto, em sua
nítido e preciso, através das atuais hierarquias institucionais. Sentem que
luta revolucionária, não basta o proletariado assumir-se enquanto
também em sua casa, na casa que construíram tenazmente com esforços
classe (consciência em si), mas é necessário se assumir para além de si
pacientes, cimentando-a com sangue e com lágrimas, a máquina trai o
mesmo (consciência para si). Conceber-se não apenas como um grupo
ho mem, o funcionalismo esteriliza o espírito criador e o diletanti smo
particular com interesses próprios dentro da ordem capitalista, mas
bana l e verbalista tenta encobrir em vão a ausência de conceitos precisos
também se colocar diante da tarefa histórica da superação dessa ordem.
f . A verdadeira consciência de classe é fruto dessa du~a ~e a- acerca das necessidades da produção industrial e a nenhuma compreen-
são da psicologia das massas operárias. Os operários se irritam com
/ ção: num primeiro momento, o proletariado nega o ca~1tal~s~o
essas condições de fato, mas são individualmente incompetentes para as
assumindo sua posição de classe, para depois negar-se a s1 propno
modificar: as palavras e as vontades de cada um dos homens são coi sas
\ ~nquanto classe, assumin_do a luta de toda a sociedade por sua
muito pequenas em confronto com as leis férreas inerentes à estrutura
L emancipação contra o capital.
funcional do apa relho sindical. 24
, O mesmo mecanismo pode ser isso em diferentes lutas espe-
cíficas, como as que caracterizam o movimento de mulheres, por Q...erocesso de consciência não é linear, pode e muitas vezes
exemplo, o que leva à diferenciação entre o que podemos chamar regridÊ . ~nteriores. Se analisarmos bem o depoimento de
genericamente de "movimento de mulheres", até um movimento Gramsci, e nem precisaríamos voltar a 1919 para obter um exemplo,
feminista e, daí, a um feminismo socialista. podemos ver que se reapresentam elementos da primeira forma de
No âmbito da consciência individual, essa passagem eviden- consc1enc1a. Outros determinam as normas, o como, o quando: as
cia uma difícil transição, na qual nem sempre o movimento se relações são predeterminadas e individualmente nada podemos fazer
completa com a superação da consciência imediata que levaria a a não ser nos submeter. O mais complicado é que agora uma parte
consciência a um patamar superior. da própria classe passa a ter um status, uma estabilidade e um poder
Quais seriam as consequências de uma estagnação ness~ e_tapa da que não tinha. Antes vivíamos para denunciar a miséria ... hoj e
consciência? São muitas as manifestações, como o corporat1v1smo, o
carreirismo e a burocratização. A co~ciência volta a ser e p.e.c.tadora !4 G ram sci, A ntoni o. "Sindi catos e co nsel hos, L'Ordine Nuovo, 11/9/ 19 19", in Escritos
políticos, vol. 11, p. 41.

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EN SA IO S SOB ll.E CONSC IÊ NC IA E EMA NC IPA ÇÃO MAUR O Lu, s I A SI

vivemos dela. Abrimos mão de nosso desejo para nos rendermos 1 ,111,as. Essa contradição pode levar o indivíduo em seu processo
à satisfação da sobrevivência imediata. Alguns ganham muito ili · umsciência para um novo patamar: a busca da com reensão
bem para isso. il ,1, ca usas, o desvelar das aparências e ; anilise da essência do
A consciência nessa fase é ainda prisioneira das aparências, l1111cionamento da sociedade e suas relações. Buscar saber como
ainda se alimenta da vivência particular e das inserções imediatas l1111 r iona a sociedade para saber como é possível transformá-la. É
e não encontra nesse âmbito os elementos necessários à sua supe- 11,1própria constatação de que a sociedade precisa ser transformada
ração. Cristalizada nessa fase, acabará por reforçá-la aquilo que 111 w se supera a consciência da reivindicação pela da transformação.
inicialmente pensava estar negando. Lukács, em seu estudo sobre ' l indivíduo transcende o grupo imediato e o vínculo precário com
a consciência de classe, afirma que: 111·:t lidade dada, busca compreender relações que se distanciam no
Na verdade, essas hesitações, e até incertezas, são um sintoma de crise da 11 111 po e no espaço, toma como sua a história da classe e do mundo.
sociedade burguesa. Enquanto produto do capitalismo, o proletariado l1,1,sa a conceber um sujeito coletivo e histórico como agente da
está submetido às formas de existência de seu produtor. Essas formas de 11 ,111sformação necessária.
existência são a desumanidade, a reificação. 25 O proletariado é, pela sua
existência, a crítica, a negação dessas formas de vida. Mas, até que a crise /\'l CONTRADIÇÕES DA CONSCIÊNCIA REVOLUCIONÁRIA E O
objetiva do capitalismo esteja consumada, até que o próprio proletariado INDIVÍDUO
t-;;;ha cons~guid~iscernir-completamente~ ~rise da reificação, ~
·como tal, apenas negativamente ascende acima de uma parte do que nega. l loje o movimento se faz imperceptível.
Quando a crítica não ulcrapassa a simples negação de uma parte, quando, ( )s filhos estão mortos.
pelo menos, ela não tende para a totalidade, então não pode ulcrapassar o () povo adormecido.
que nega, como, por exemplo, nos mostra o caráter pequeno-burguês da l'cdro Tierra
maior parte dos sindicalistas. 26
A consciência em si, quando não "ultrapassa a simples negação /:'rnesto Che Guevara é chegada a tua hora
de uma parte", acaba por se distanciar de sua meta revolucionária, 1· o povo ignora se por ele lutavas.
busca, novamente, mecanismos de adaptação à ordem estabe- Ferreira Gullar
lecida. 27 Ela trabalha com os efeitos, com sintomas, e não com
Na etapa anterior, mesmo supondo o sujeito coletivo, o mo-
25
1, 11 básico da reivindicação é a satisfação de algo para o próprio
Reificaçáo é o processo complementar à fetichização. Enquanto a ferichi zaçáo atribui
poderes e características humanas às coisas, a reificação coisifica os seres humanos. l11divíduo. Quem luta por moradia, por exemplo, luta para ter
26
Lukács, G. História e consciência de classe, pp. 91-92. 1111dc morar, se possível no mais curto espaço de tempo. Agora, a
27
Diríamos que a consciência patina no mecanismo da reivindicação. Um exemplo
muito ilustrativo nos foi dado por uma declaração de Lula, então candidato às eleições
11 .111 sformação da sociedade exige um outro sujeito: a classe.
presidenciais de 1989, quando afirmava: "Nós reivindicamos nossos direitos como Na passagem da consciência em si para a consciência re-
trabalhadores, e reivindicamos o direito de se organizar em sindicatos livres. Depois
11l 11cionária, ou para si, abre-se uma importante contradição.
reivindicamos o direito de organizar um partido político que organizasse os trabalhadores
e hoje reivindicamos o direito de ser o presidente do país". \ 11vsar de as alterações da consciência só poderem ser vivenciadas

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ENSA I OS SO BRE C ONSC I ÊN C I A E E MAN C IP AÇÃO M AU RO L u 1s I As 1

em nível individual, o processo de transformação que irá realizá-la Na verdade, a vida cobra da pessoa uma postura para qual não foram
é necessariamente social, envolvendo mais que a ação individual, 11 li •11nJizadas estruturas prévias para a sua realização. Ao contrário, toda

a de classe. O amadurecimento subjetivo da consciência de classe , l1,1g:1gem psíquica, cultural e moral está estruturada para agir contra a
revolucionária, se dá de forma desigual, depende de fatores ligados 1111 11 , ra exigida pela nova consciência, que tenta se impor. O indivíduo
à vida e à percepção singular de cada indivíduo. Coloca-se assim i.1 ,tpto a aceitar a realidade, assumindo sua impotência diante de
a possibilidade de haver uma dissonância, que pode ou não se 11 l.1~·ôcs estabelecidas e predeterminadas. Por isso, o indivíduo que se

prolongar de acordo com cada período histórico, entre o indiví- 111111:1 consciente é, antes de tudo, um novo indivíduo em conflito.

duo e sua classe, surgindo a questão do indivíduo revolucionário (~comum ouvir de militantes que passando por processos se-
inserido num grupo que ainda partilha da consciência alienada. 1111 lh antes, pensam em "cuidar da vida". Produzimos algo como
As mediações políticas consistem, em parte, no esforço de superar 11111:1 tentação de nos rendermos ao princípio do prazer, negando

essa distância. 1 •xigências de uma nova consciência, que se antagoniza com um

~ O isolamento da pessoa dentro de seu grupo de inserção so- 11111ndo e que se recusa a mudar de um SUPEREGO que ainda
cial é acompanhado por um intenso conflito interno. Dentro do 1111.~ impõe velhas normas. "Pensar em mim mesmo" é o grito de
indivíduo, a consciência nova ocupa, por assim dizer, uma área l', 11 •rra do EGO contra o mundo.
liberada, que faz fronteira com setores fortemente ocupados pelo A sociedade capitalista, por mais hipócrita que isso possa pa-
inimigo, ou seja, as antigas relações sociais interiorizadas como 11• ·cr, se autoproclama a sociedade da harmonia. O indivíduo em

valores, juízos e normas. Psicologicamente, o EGO se enfraquece , 1111 Rito é isolado como se não expressasse unia contradição, mas
diante das sempre presentes exigências dos impulsos básicos e de losse ele mesmo a contradição, mais que isso, o culpado por sua
um SUPEREGO que foi criado pela interiorização de normas e •xistência. Enquanto isso, o alienado recebe o rótulo de "normal".
padrões anteriores. O indivíduo afirma algo novo e aspectos de O indivíduo sob essa contradição, com o grau de compreensão
seu próprio universo sub"etivo são ~ontesta os. ,11 ·ançado e diante da realidade objetiva, que não reúne condições
"\o A tomada de consciência, ou o amadurecimento de sua cons- rn :1teriais para uma superação revolucionária, tem diferentes ca-
ciência, nem sempre é acompanhada das condições objetivas de l ninhos a trilhar. P~de buscar mediações políticas que construam

realizar as tarefas que a história lhe impõe. Afirma Lukács: j11 nto à classe os elementos que Lenin denominava de "condições
Essa consciência não é nem a soma nem a média do que pensam, sentem ~ubjetivas", 29 ou, diante de insucessos nessas tentativas, caminhar
etc. os indivíduos que formam a classe, tomados um por um. E, no entanto, para ansiedade e depressão.
a ação historicamente decisiva da classe como totalidade é determinada,
''' "A revolução não surge de toda situação revolucionária, mas somente nos casos em que
em última análise, por essa consciência. 28 as mudanças objetivas (... ) vêm se juntar a uma mudança subjetiva, a saber: a capacidade,
!">1 i A consciência assume uma dimensão que não tem como se no que concerne à classe revolucionári a, de conduzir ações revolucionárias de massa
bastante vigorosas para destruir completamente (ou parcialmente) o velho governo."
realizar dentro dos limites do pensamento, arvorando-se, neces- C onvé m ressaltar que, ao falar em condição ou mudança subjetiva, Lenin não está
sariamente, pelo campo da prática. aludindo a aspectos do indivíduo, mas da classe, ou seja, confrontando elementos da
realidade objetiva (histórica e da luta de classes) a elementos próprios da açáo dos sujeitos
históricos, daí subjetivos. (Lenin, "A fa lência da Segunda Internacional ", ln "A questão
28 Lukács, G., op. cit., pp. 64-65. do partido", Obras Completas, volume XXI , pp. 47-48)

36 37
E NSA I OS SO BR E C O N SC I ÊNC I A E E MAN C IP A ÇÃO M AUR O L U I S I AS I

"'~ Sua consciência retorna a patamares anteriores, como a revolta.. 1 N CIÊNCIA E TEMPORALIDADE

isolada ou mes~ a ..alienação. Evidente que nunca se retorna ao


mesmo ponto, e a eassagem pela consciência de classe dei~ - Sinto que o tempo sobre mim abate
ca_:: como, por exemplo, a justificativa mais elaborada, o discurso Sufl mão pesada. Rugas, dentes, calva ...

e ta~ lgumas posturas. Pode se manifestar, por outro lado, em 1/ma aceitação maior de tudo,
ceticismo, hipocrisia ou outras manifestações. () medo de novas descobertas.
tlJ:lt A primeira fase da consciência guarda correspondência com ( :a rios Drummond de Andrade

a~guns comportamentos infantis. Diante das tarefas que se anun-


ciam para a consciência que busca se assumir como revolucionária Más de una mano en lo oscuro me conforta

o indiví~uo pode trazer ainda esses elementos primários que be~ mas un paso siento marchar comigo
caracterizam essa encruzilhada entre a ansiedade e a depressão, ou, pero si no tuviera, no importa:
como no caso da criança a onipotência e a impotência. Assim, diz é que hay muertos que alumbram los caminos.

Lukács, _"ou a consciência torna-se espectador inteiramente passivo Sílvio Rodriguez


do m~v1mento das coisas, sujeito a leis e no qual não se pode de Aqui entra em questão um importante fator na discussão dos
maneira n~nhuma intervir, ou considera-se como uma força que
1 inites pessoais, diante da tarefa de transformar a sociedade: a
pode dommar a seu bel-prazer, subjetivamente, o movimento das 1 oncepção que o indivíduo tem, ou ainda, aquela que a sociedade
coisas, em si despido de sentido". 3o
1• 1 u-lhe como válida, de sua temporalidade.
<ti& Esses estados psicológicos aparecem interligados de maneira Na sociedade capitalista, o foco e núcleo é um indivíduo, como
que a depressão segue a ansiedade, ou vice-versa. A forma de lidar · '-lula isolada e autossuficiente, em perfeita harmonia com a concep-
] com uma ou outra manifestação guarda relação com os traços de ,·fo de ser abstrato, trabalho alienado e propriedade privada. A vida
j pe~sona~idade de cada um; no entanto, no aspecto que nos interessa, da pessoa dá-se em um campo definido de tempo, quando ela deve
f ,., ev1denc1a a velha contraposição entre a voorade ~ matwa!id . lutar o máximo possível para vencer e acumular para si e sua família.
f .,.,, Os seres humanos fazem sua própriâ história, mas não a fazem da A morte encerra esse ciclo e a vida pode virar matéria para inúmeros
forma como querem, pois agem sob circunstâncias que estão dadas pelo fi lmes e biografias de grandes homens e suas trajetórias individuais.
des~n~olvimento histórico anterior. 31 A contradição entre a intenção A religião entra em cena para solucionar esse final tão sem pers-
~ub~e~1va e~ materialidade na qual essa vontade terá que agir explode no pectivas para o indivíduo da sociedade burguesa. Ele tem muitas
md1v1duo isolado como algo que parece intransponível. O problema é dificuldades em continuar no outro, enquanto vê esvanecer sua
que para a tarefa em questão, e em se tratando de indivíduos isolados mbalagem individual, consumida pela inexorabilidade da morte.
na verdade trata-se de uma barreira intransponível. ' A religião resolve esse problema afirmando que a transcendência
dá-se através da continuação do indivíduo em "sua" alma privada,
30
Lukács, G ., op. cit. p. 92.
31
"Os ho~ens_ fazem sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem sob salvando, assim, o indivíduo burguês do inferno coletivo, ou da
c1rcunstanc1as de sua escolha e sim sob aquelas com quem se defrontam diretamente irreversível decomposição da matéria.
legadas e transmitidas pelo passado." (Marx, K., O 18 Brumário, p. 17) '

39
38
EN S A I OS SO BRE CON SC I ÊNC I A E EMA NC IPA ÇÃO M AURO Lu 1 s I A s 1

'/í:b Como se sentiria uma pessoa diante da enorme tarefa de ,1111


destruir uma sociedade e construir uma nova, na medida em que , 11111 ld ado pelos va ores urgueses e liberais, correspondentes às
esse tipo de ideia sobre a temporalidade se impusesse às cabeças , pi ·, •ncações ideológicas das relações à explorn ão.da..s. · dade
da classe trabalhadora? 1 t 11 t ,11i ta, ou s; ja, o individualisrn..,o pequeno-bQtgY.ês e todas

1<YI Até agora a consciência havia se movido no campo individual. 11 ,1s matizes. E;ssa tarefa exige um novo indivíduo capaz de
Mesmo em se tratando da consciência em si, onde a satisfação do 111111pr ender sua temporalidade além dos limites e s1 r~ r· ,
desejo depende não mais do outro, mas de nossa própria ação, 111 111prcender esse esforço como esforço coletivo de sua classe~
tendemos a procurar soluções para nós. Queremos uma revolução d1 111 dela. A consciência que, ao fazer a segunda negação, expressa
que liberte todo um povo, mas no Íntimo a queremos para nós, 11 111 vimento essencial da classe ao se superar como classe.
queremos estar lá para ouvir os gritos de vitória, beber na grande
festa da libertação, participar diretamente dos fatos, se possível na o meu p a rtido .. .
posição de destaque para ser lembrado na História. 32 me fizeste indestrutível
,~ Quando a consciência era regida pelo princípio do prazer, ela po,-que contigo
queria tudo e já. Quando nos organizamos para reivindicar algo, 11áo termino em mim m esmo.
sabemos que não será de imediato, mas o movimento só se mantém Pablo Neruda
enquanto perdura a esperança de alcançar a vitória o mais cedo
possível. Mesmo quando já se apresenta a consciência da necessi- Aqui, como em outros momentos, a tarefa não é fácil. O
dade de constituir patamares de organização mais permanentés, t· ntido que nossa sociedade e sua cultura atribuem à morte é
imaginamos as possibilidades de realização dentro dos limites de bastante contundente. O que se exige é um esforço do indivíduo
nossa temporalidade. Agora, no entanto, a consciência nos aponta ·apaz de conceber, ao mesmo tempo, a fraqueza da pessoa, seu
uma tarefa que transcende nossa vida individual. ·aráter transitório e a percepção no outro, a continuação da obra
t,ol A partir do momento em que o trabalhador se apercebe do ·oletiva que é a história. Na dificuldade dessa trajetória é natural
caráter das relações sociais em que está inserido, coloca-se a neces- que muitos acabem por recuar, é muito tentadora e reconfortante
sidade de buscar uma transformação. No entanto, nesse momento .1 possibilidade de sedução que a ordem oferece aos que se rendem.
do processo de consciência, já não é suficiente saber que é necessário
mudar a sociedade, destruir o capitalismo, mas como fazê-lo e o Se nesta hora o inimigo te procura
que colocar no lugar. A concepção da potencialidade da c!3sse, recusa o jantar que te oferece.
a consciência da possibilidade de vitória, 33 é earte integ~ da Recusa a paz, a vida que te oferece.
O jantar te daria um assento à mesa da noite.
Esta paz é tua escravidão.
32 "Por que deveri a meu nome ser lembrado ?" é um poema de Bertolt Brecht que ilustra E se agora o inimigo te propõe a vida,
magistralmente essa questão.
33
é chegada a hora de sua morte.
Ernes to C he G ueva ra, "C uba, exceção histórica?" coleção G randes Pensadores Sociais
nº 19, p. 52. Pedro Tierra

40 41
ENSAIOS SOBRE CONSC I ÊNC I A E EMANC IP AÇÃO MA URO L u 1s I AS!

A NOVA CONSCIÊNCIA (~ bem verdade que muito~ confundem esses princípios, que
, 00 Na sociedade capitalista não_P-odemos can ar uma ~ 11 rn srit uem a base da teoria gramsciana de hegemonia, de tal
consciência a não ser de forma embrionári . Somos, no máximo, l,11111a que se perde um valioso tempo tentando ser "dirigente" de
indiv-ícluos daocieaa e burgues; ~ dispostos a destruí-la. É certo 11ossos adversários, enquanto, por diversos meios, tenta-se impor
que já se apresentam em germe, elementos dessa nova consciência; 11 m. "coação" sobre nossa própria classe e os grupos sociais aliados.
no entanto, ela pressupõe uma nova ordem de relações para que A lógica indicada pelo revolucionário italiano, e que deve
tenha a base tornando-a possível. 1·r resgatada, é que toda classe é uma manifestação particular
-icfl Isso não deve levar à compreensão, de q~e ~ transfor~ação d,1sociedade. Nos momentos revolucionários, uma classe reúne
revolucionária se dá materialmente e so depois e que o umverso 1 ondições de expressar, através de sua particularidade, os anseios
das ideias vai se transformando automaticamente. Essas esferas 1111 iversais, sintetizando os interesses particulares de outros seto-
combinam-se, ainda que preservada a determinação material, de 1 •s sociais em luta. Tornar-se "dirigente" desses setores implica
forma que a luta das ideias e a capacidade de uma classe revolu- numa luta de ideias, juízos e valores e, mais, numa luta teórica.
cionária apresentar suas concepções e valores, como os valores do Si nifica dar unidade e coerência a sua concepção de mundo, em
conjunto da sociedade, antecipam-se e preparam o terreno para 1uca contra a do adversário de classe, que tem sua própria unidade

transformações revolucionárias. 1' oerência, que, pelas contradições objetivas com a realidade,
A•o Foi o que de fato ocorreu com a própria revolução burguesa. lorna-se cada vez mais moral e hipócrita.
O pensamento burguês antecipou-se à revolução burguesa. No A questão de fundo aqui não pode ser discutida sem encarar o
entanto, isso não implica no fim da determinação material. As foto de o processo de consciência inserir-se em um momento maior,
ideias revolucionárias burguesas, entre elas a ilustração e o libera- que é a transição de um modo de produção para outro. Na medida
lismo, só puderam se constituir tendo por base a própria gestação ·m que se operem transformações revolucionárias, em que se passe
material das bases objetivas do modo de produção capitalista e, :i estabelecer novas relações, podemos estar iniciando a construção
com elas, o desenvolvimento de novas classes sociais que buscavam d um novo patamar da consciência humana.
expressar. Gramsci, ao tratar da questão, afirma que: A consciência não está para além da evolução histórica real. Não é o filósofo
A supremacia de um grupo social manifesta-se de duas maneiras, como 'domi- que lança no mundo; o filósofo não tem o direito, portanto, de lançar um
nação' e como ' direção intelectual e moral'. Um grupo social domina os grupos olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e de as desprezar. 35
adversários que tende a 'liquidar' ou a submeter valendo-se também da força , , Portanto, a transformação das co11seiê11Eia&-não está além da
armada e é dirigente dos grupos afins e aliados. Um grupo social pode e, aliás, luta política e da materialidade onde esta se insere. É ao mesmo
deve ser dirigente já antes de conquistar o poder governativo (e esta é uma das tempo um produto da transformação material aa socieâade e um
principais coqdiçóes para a própria conquista do poder); em seguida, quando meio políticÕ de alcançar tal transformação.
já está exercitando o poder, e ainda que o mantenha firmemente em suas mãos,
. d 'd º . ,34
0 grupo social torna-se dominante, mas d eve contmuar sen o mgente .

34 Antônio Gramsci, Quaderni del carcere., pp. 20 10-201 1. 11


George Lukács, op. cit., p. 92.

42 43
ENSA I OS SOBRE CONSC I ÊNC I A E E MAN C IP AÇÃO M AURO L u 1s J As 1

CONCLUSÃO
,1<, É muito difícil determinar a linha que separa o velho que J' TELES. A política, Ediouro, São Paulo.
caduca do novo que germina. Brecht dizia, em um poema, que 1,111•V/\ RA, E. Coleção Grandes Pensadores Sociais nº 19, Ática, São Paulo,
as eras não começam de uma vez, nossos avós já viviam em um 1')8 1.
novo tempo e nossos netos ainda viverão, talvez, no velho. Nos 1 li l•l J1 , S. "Esboço de psicanálise", in Os Pensadores, Abril Cultural, São
momentos de passagem, de transição, as consciências captam con- P,1ulo, 1978.
traditoriamente esse momento e os indivíduos repletos de sonhos 1,I M CI, A. Concepção dialética da História, Civilização Brasileira, Rio de
novos, por vezes, perecem "às margens do amanhã". j.1 neiro, 1978.
·~ Não devemos julgá-los. Um comunardo que fugia da Paris 1 , ll /\ MSCI, A. "Sindicatos e conselhos", in Escritos Políticos, volume II, Seara
em chamas, em 1871, vendo seus camaradas sendo fuzilados no Nova, Portugal, 1977.
frio muro de Pere Lachaise, tem o direito de blasfemar contra a 1 ,ll /\MSCI, A. "Quaderni del cárcere", mimeo.
humanidade. Os trabalhadores russos que, com bravura e since- 11J I ÁCS, G. História e consciência de classe, Escorpião, Porto, Portugal, 1978.
ridade, construíram o sonho soviético têm o direito de, diante da 11J I ÁCS, G . Introdução a uma estética marxista, Civilização Brasileira, Rio
barbárie estalinista, acreditar por um momento que a humanidade de Janeiro, 1978.
não merece nosso sacrifício. 1 liN IN , V. I. "Situação revolucionária", in A questão do partido, Kairós, São
~ .. :l- A história segue seu curso indiferente às nossas misérias e Paulo, 1978.
heroísmos. Nossa consciência não pode fazer o mesmo. Estamos MA RX, K. O capital, Civilização Brasileira, Rio de Janeiro, s/d.
atados à vida e a sua teia cotidiana, nela colhemos os materiais que MA RX, K. 18 brumário e Cartas à Kulgelman, 4' ed., Paz e Terra, Rio de
compõem nossa consciência e, nem sempre, esse cotidiano permite Janeiro, 1978.
vislumbrar algo além da injustiça e da indignidade que marcam M /\RX, K. Manuscritos econômicos e filosóficos, Ediçóes 70, Portugal, 1993.
o presente. Temos, então, de recolher a revolta e a inquietação de MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã, Ciências Humanas, São Paulo,
quem não se submete e ousar dar forma às sementes do futuro, 1979.
ainda que em tempos onde o futuro parece ter sido abolido. MARX, K. e ENGELS, F. A ideologia alemã, volumes I e II, Martins Fontes,
Lisboa, Portugal, s/d.
Mas é nelas (bocas e mãos, MÉSZAROS, I. Marx: A teoria da alienação, Zahar, Rio de Janeiro, 1981.
sonhos, greves e denúncias) SARTRE, J. P. Crítica de la razón dialéctica, 3' ed., Losàda, Buenos Aires, 1979.
que te vejo pulsando, 'O ZONNI, J. R. "Família, emoção e ideologia': in O homem em movimento,
•J

mundo novo, Brasiliense, São Paulo, 1981.


ainda que em estado de soluços e esperança.
Ferreira Gullar

44 45
II
O PROBLEMA DA EMANCIPAÇÃO HUMANA*

Toda emancipação
constitui uma restituição
do mundo humano e das relações
humanas ao próprio homem.
Karl Marx

A discussão do tema da "emancipação humana" em contra-


posição aos limites de uma "emancipação política", recoloca uma
~uestão central: os limites da sociedade atual e das instituições da
ordem burguesa representariam a forma definitiva enfim encon-
trada pela humanidade para sua sociabilidade?
Comentando criticamente essa posição, Perry Anderson (1994)
afirma que teria se desenvolvido, a partir da derrota do nazifas-
cismo na Segunda Guerra Mundial e da atual crise da alternativa
socialista, a ideia de que "o progresso da liberdade tem agora um
único caminho" e esse caminho seria a democracia liberal.'

• Esse artigo foi apresentado inicialmente como trabalho final da disciplina Teoria Política
C lássica na FFLCH da USP sob a responsabilidade do professor Dr. Gabriel Cohn, em
2000, e posteriormente publicado pela Revista Plural, Sociologia, USP, S. Paulo, 9, pp.
43-7 1, 2° semestre 2002.
1
"Com a derrocada do socialismo, a democracia libera l ocidental destacou-se como a
forma final de governo humano, leva ndo a seu término o desenvolvimento histórico."
Anderson, 1994, p. 12.
E NSA I OS SO BRE CONSC I ÊN C I A E EMA NC I PA ÇÃO M AURO Lu1 s I AS!

No momento atual, de restauração e crise da alternativa so- 11 11111 prir os deveres religiosos", mas tal fato seria admitido como
cialista acompanhado de uma defensiva teórica do pensamento 1 11nto absolutamente privado".2
de esquerda, seria útil retomarmos o conceito de Marx sobre a Marx, por sua vez, afirma que é nessa forma de Estado que
emancipação humana, não no sentido de um exercício de ortodo- 111 oneramos o limite da emancipação política. Uma fase que não
xia no qual as respostas já estavam desde sempre dadas, mas pelo , ompleta com o mero desenvolvimento e aperfeiçoamento de
fato de que tal conceito pode ser uma importante ferramenta em 11111 E tad"o liberto das convicções religiosas, de um Estado que
nosso esforço de compreender o tempo presente e seus desafios. 1111pliaria progressivamente o espaço de liberdade tornando ine-
A ideia de emancipação humana é apresentada por Marx em 1, v I a emancipação, como acreditava Kant (1985, p. 102). Esse
contraposição ao que chama de "emancipação política" e apare- 1 111 i l C se expressa exatamente naquilo que Bauer afirma como
1
ce com destaque, por exemplo, na crítica ao trabalho de Bruno p1 1blico" e "privado".
Bauer sobre a Questão judaica (Marx, 1993). Para Bauer, a busca orno argumento, Marx cita três situações possíveis: a Alema-
da emancipação dos judeus esbarraria no fato de que, no caso da 11 ha,onde ainda prevaleceria um "Estado cristão"; a França, na
Alemanha, ninguém seria politicamente emancipado. Portanto, q11al teríamos uma "insuficiência da emancipação política", uma
a luta específica por emancipação do judeu deveria de fato se ''/, que ainda subsistia a fórmula de uma religião da "maioria", e
expressar como luta geral pela emancipação política dos alemães. 110 "Es tados livres da América", onde não haveria "uma religião
Afirma Bauer, citado por Marx: 1I • Estado ou uma religião dita da maioria, nem o predomínio de

O judeu não deve ser emancipado por ser judeu, em virtude de poss uir 11111a religião sobre outra", sendo ali o Estado "estranho a todos os
excelente princípio humano e universal moralidade; o judeu deve antes 1 ultos". Para Marx, o limite da emancipação política não poderia
retirar-se para trás do cidadão e ser um cidadão, embora seja e deseje ·r buscado em sua inexistência, como na Alemanha, ou em sua
permanecer judeu (Marx, 1993, p. 37). 111 ompletude, como na França, mas exatamente onde ela estivesse
Marx vai além da crítica de Bauer, afirmando que não basta ·m sua forma mais pura e desenvolvida.
perguntar quem seria emancipado, mas "que espécie de emancipa- Isso porque, segundo Marx, não se trata mais da relação entre
ção está em jogo" (idem, p. 39). Bauer parece centrar sua afirmação :t religião e a emancipação política, mas de algo maior. Sabemos
no fato de que se um Estado realizasse a emancipação política, <-Jue o pensador alemão partilha da crítica à religião realizada por
no tema específico significando não assumir enquanto Estado Feuerbach (1997) e, nesse sentido, concorda com esse filósofo
uma orientação teológica (como Estado cristão, por exemplo), a quando ele afirma que:
questão judaica se resolveria no conjunto das questões relativas à O homem transporta primeiramente a sua essência para fora de si antes de
liberdade. Os indivíduos, sem o constrangimento de uma religião encontrá-la dentro de si. A sua própria essência é para ele objeto primeira-
oficial, assumiriam em igualdade a condição de cidadãos, sem que mente como uma outra essência (Feuerbach, 1997, p. 56).
nenhum código religioso os impedisse de cumprir seus "deveres Portanto, o problema de fundo no pensamento marxiano
para com o Estado e para com os concidadãos" no âmbito da vida encontra-se no fato de o ser humano não se reconhecer como
pública. Nada impediria, ainda segundo Bauer, que "alguns ou
muitos, ou mesmo a esmagadora maioria se sentissem obrigados 2
Bauer, "Die Judenfrage", p. 64. ln M arx, 1993: p. 39.

48 49
M AU R O L u 1s I A s 1
E NSA I OS SO BRE CONSC I ÉNC I A E E MAN C IP AÇÃO

humano, atribuindo sua sociabilidade para algo além de si; não 11111111 ·d iário. O Estado é o intermediário entre o homem e a liberdade
li111,i.1nt1 . Assim como Cristo é o mediador a quem o homem atribui toda
se reconhecer no outro, em sua genericidade, mas através de uma
1 111 li vindade e todo o seu constrangimento religioso, assim o Estado
mediação. A religião seria uma dessas mediações, uma forma
particular que impede que os seres humanos se encontrem a si , 111\NIlt ui o intermediário ao qual o homem confia toda sua não divindade,
111111 1 sua liberdade humana (Idem, p. 43).
mesmos como sujeitos da história humana, 3 deslocando o sentido
da existência para algum tipo de providência extra-humana. Por c•mancipação pela mediação do Estado realizada pelo ciclo
,11111 lo nário burguês produz, assim, uma cisão pela qual o ser
isso, Marx conclui que:
1111111,1110 passa a possuir uma "dupla existência". Essa duplicidade
A questão da relação entre a emancipação política e religião torna-se para
nós o problema da relação entre emancipação política e emancipação 1 11 ,1 d terminada por um mecanismo que está presente no
q 11111,·nt de Bauer, segundo o qual os indivíduos negam sua
humana (Marx, 1993, p. 42).
Voltemos ao exemplo estadunidense e ao argumento de Bauer. • 1I'. ,lc > para se tornarem cidadãos de um Estado na esfera públi-
1, 1111p1anto afirmam suas crenças privadamente. A cisão aqui é
Em um Estado de liberdade religiosa, ou em um Estado "estranho
a todos os cultos", o judeu, o cristão, ou outro qualquer poderia 1111 do que referente à esfera pública e privada, mas diz respeito à
manter sua religião enquanto indivíduo privado, mantendo seu 1l I gt•nérica" em oposição à "vida egoísta", nos termos colocados
caráter genérico através do Estado. Dessa forma, o ser humano I"'' M,1r (idem, p. 45). Uma dupla existência, celeste e terrestre,
11 1 1p1 ,tl os indivíduos vivem "na comunidade política, em cujo
troca uma mediação por outra. Vejamos:
A atitude do Estado, especialmente do Estado livre, a respeito da religião onsiderado como um ser comunitário, e na sociedade civil
constitui apenas a atitude perante a religião dos homens que compõem
11•1•rliche gesellschaft, literalmente "sociedade burguesa"), onde
Estado. Daí se segue que o homem se liberta de um constrangimento 1 , 1111110 simples indivíduo privado" (Idem, ibidem).
0
< l problema é que, assim procedendo, o indivíduo transforma
através do Estado, politicamente, ao transcender as suas limitações, em
contradição consigo mesmo, e de maneira abstrata, estreita e parcial. Além • , 1111 tos seres humanos em meios e acaba por degradar a si mes-
disso, ao emancipar-se politicamente, o homem emancipa-se de modo des- 111111111110 mero meio, transformando-se em "joguete de poderes
viado, por meio de um intermediário. Por fim, mesmo quando se declara
11 111 I10s". A contraposição entre "Estado político" e "sociedade
ateu através da mediação do Estado, isto é, ao proclamar que o Estado é I" (burguesa) faz com que o indivíduo, além de se reconhecer
ateu, encontra-se ainda envolvido na religião, porque só se reconhece a si 111 1 1,1d como ser genérico, cai na ilusão de que se torna genérico
1 11 1~ ,10 Estado. O indivíduo é, nas palavras de Marx, "membro
mesmo por via indireta, através de um intermediário. A religião é apenas o
1111p, 11 , rio de uma soberania imaginária". É coletivo de maneira
reconhecimento do homem de maneira indireta; quer dizer, através de um
, dI d kn." no Estado, enquanto é despojado de seu caráter cole-
i , 1 11 ,t vida material. É expropriado de seu real caráter coletivo
3 O próprio Feuerbach se questiona se a religião impede essa idemidade do humano c~nsigo
mesmo, ou se não seria uma das formas do próprio reconhecimento humano, ia que a 111 11rnn de uma "universalidade irreal". Porém, essa cisão não é
consciência de Deus seria a consciência que o ser humano tem de si mesmo projetada para
t I t ,1 a indivíduo religioso, mas expressa uma dualidade dos
fora. No entanto, conclui que essa consciência religiosa "não deve ser aqui entendida como
se homem religioso fo sse diretamente consciente de si, que sua cons~iên_cia de Deus ~ 11,I duos como burgeois (membro da sociedade civil) ou citoyen
O
a consciência que tem da sua própria essência, porque a falta da consc1enc1a desse fato e
exatamente o que funda a essência peculiar da religião" (Feuerbch, op. cit., P· 56).
1111 v luo com direitos políticos) em relação ao Estado. Podería-

50 51
ENSA I OS SOBR E CON SC I ÊNC I A E EMAN C IPA ÇÃO MAU R O L UIS I AS!

mos estender essa dualidade aos binômios: operário na vida privada/ nssumidas, a forma concreta do intercâmbio material e espiritual
cidadão diante do Estado, mulher/cidadã, empresário/cidadão, sem los seres humanos, produzem uma realidade estranhada (relativo
terra/cidadão, sociólogo/cidadão presidente, e assim por diante. Tal a termo entfrendug) que esconde na vida real o caráter coletivo/
procedimento costuma ser de muita utilidade para aqueles que se genérico para fazê-lo aparecer no Estado.
especializam em esconder seus princípios como seres privados para Não é por outro motivo que a teoria política marxista e, em
negá-los como homens públicos. s u interior, a concepção de Estado assumem a necessidade de
Nesse sentido, essa cisão é mais que um fenômeno constatável, lransformar a sociedade a partir das relações sociais de produção
no caso da sociedade capitalista contemporânea, ela é funcional. ' de propriedade e não, simplesmente, através de alterações na
Expressa no nível político a pretensão de universalidade de uma Íorma do Estado.
classe particular, a burguesia. Os seres humanos particulares só se Marx procura, então, na produção e reprodução material da
tornam genéricos através do Estado como membros da sociedade vida, as bases de tal inversão e as encontra, de forma geral, na pro-
civil (burgeois) ou cidadãos (citoyen), o que, no limite, vem a ser o dução das mercadorias e, de forma específica, na forma capitalista
mesmo. Mas, na esfera das necessidades, para usar uma outra forma de produção de mercadorias. O caráter genérico da humanidade
pela qual Hegel denomina a "sociedade civil ", ou na produção e não aparece como produto de uma ação humana, mas mediado por
reprodução social da vida, nos termos de Marx, as pessoas vivem algo além do humano, ainda que tenha sido ele que o produziu.
relações de intercâmbio (verkher), nas quais assumem posições Na forma mercadoria, elemento mais simples da atual socie-
que de fato as diferenciam no interior dessa igualdade genérica. dade, podemos .ver os aspectos centrais desse fenômeno. A forma
Assumem posição de proprietários dos meios de produção, com- mercadoria tem por base a dualidade entre valor de uso e valor
pradores de força de trabalho, ou expropriados vendedores de (c uja forma de expressão é o valor de troca) de maneira que a
força de trabalho. Nesse sentido, a identidade como cidadãos é utilidade e as propriedades físicas da coisa determinam seu valor
um campo de universalidade possível daquilo que na existência de uso, enquanto que o valor é determinado pela quantidade de
real do intercâmbio material é base de conflito. trabalho humano abstrato socialmente necessário para produzir
Não poderíamos dizer, entretanto, que essa equalização dos uma mercadoria. Esse valor, como sabemos, só se expressa na re-
indivíduos, dos grupos sociais e das classes através do Estado possa lação de troca entre as mercadorias, o que permite a confrontação
ocorrer por uma simples armadilha ideológica. de diferentes trabalhos concretos como expressão daquilo que lhes
O Estado, assim como a ideologia, tem um aspecto de inver- é comum, como quantidade de trabalho abstrato, portanto, valor.
são; no entanto, a imagem invertida ainda é a imagem de uma Dessa maneira, nos diz Marx:
objetividade; assim, o que aparece invertido no Estado nada mais A igualdade dos trabalhos humanos fica disfarçada sob a forma da igualda-
é que relações que, em si mesmas, já apresentam uma determinada de dos produtos do trabalho como valores; a medida, por meio da duração,
inversão. O homem não é "um ser abstrato, acocorado fora do mun- do dispêndio da força humana de trabalho toma a forma de quantidade de
do", mas "o homem é o mundo do homem, o Estado, a sociedade" valor dos produtos do trabalho; finalmente, as relações entre produrores,
(Marx, 1993, p. 77). Os seres humanos produzem as inversões que nas quais se afirma o caráter social dos seus trabalhos, assumem a forma
se expressam no Estado. De alguma forma, as próprias relações de relação social entre os produtos do trabalho (Marx, 1867, p. 80).

52 53
E N S A I OS SO BRE C O N SC IÊN C I A E E MAN C IP A Ç Ã O M AU R O Lu1 s I As 1

O mecanismo descrito, pelo qual uma relação social entre los, o Estado é a expressão política do mercado da mesma maneira
seres humanos assume a forma fantasmagórica de uma relação que os interesses do Estado costumam ser os interesses do capital.
entre coisas, possui o mesmo fundamento presente na base do Entretanto, o capitalismo é mais que uma sociedade produtora
fenômeno que impede a emancipação, pois apresenta o mundo e d ' mercadorias. Com base nessa forma que lhe é anterior (e tudo
as relações humanas, como não humanas: fetichizadas. Mas isso nd ica que pode ir além), o capitalismo é uma sociedade baseada
não é de forma nenhuma uma ilusão ou falsidade. Sob a forma de na produção de mais-valia. Isso implica que a sociedade do capital
mercadorias, o conjunto do trabalho social emerge como síntese pressupõe uma relação social que a torne possível, o que, por sua
das relações de troca entre os produtos do trabalho, sendo que v z, exige certas circunstâncias que não estão simplesmente dadas
os trabalhos privados "atuam como partes componentes" dessa na sociedade produtora de mercadorias. Essas condições são: a
totalidade. Assim, a igualdade completa de diferentes trabalhos, propriedade privada dos meios de produção como capital e a força
que em si mesmos, no seu aspecto concreto, são distintos, só pode 1 trabalho livremente assalariada.
ocorrer "numa abstração que põe de lado a desigualdade existente Diferentes relações sociais podem produzir mercadorias, mas o
entre eles e os reduz ao caráter comum" (Idem, p. 82). ·apital só se produz através do consumo da força de trabalho como
O fato de que o valor se expresse no valor de troca e, portanto, mercadoria. Isso exige que a força de trabalho esseja disponível na
na dependência do trabalho social total e do equivalente com que ~ rma mercantil para ser comprada pelo proprietário de dinheiro e
a mercadoria se confronta para mediar seu valor faz com que o apital. Para que isso ocorra é necessária a existência da liberdade.
movimento de definição do valor na sociedade das mercadorias Alguns acreditam que o capitalismo jamais p~derá realizá-la, mas
seja visto como algo puramente objetivo, fora de qualquer controle na verdade é um de seus pressupostos.
por parte dos produtores. Para esses, diz Marx, "a própria ativi- Para que a força de trabalho possa ser vendida como mercadoria
dade social possui a forma de uma atividade das coisas sob cujo · preciso que os trabalhadores sejam livres, como nos explica Marx:
controle se encontram, em vez de as controlarem." (Idem, p. 83). Trabalhadores livres em dois sentidos, porque não são parte dos meios de
O fetiche, inseparável da forma mercadoria, tem como seu duplo produção, como escravos e servos, e porque não são donos dos meios de
inevitável a reificação, isto é, os seres humanos, ao atribuírem às produção, como camponês autônomo, estando assim livres e desembara-
coisas características humanas, transformam-se a si mesmos em çados deles (Idem , p. 830).
coisas, colocam-se sob o jugo daquilo que produzem. Livres de todo o constrangimento das relações servis e dos
Não é por acaso que, na mesquinha contemporaniedade, no laços corporativos, expropriados dos meios diretos de produção
período de restauração que nos coube viver, a afirmação do caráter e das condições de existência autônoma, os antigos produtores
insubstituível da forma do Estado burguês venha sempre acompa- di retos serão ainda coagidos a vender sua força de trabalho até que
nhada da constatação da impossibilidade de superar o "mercado". o desenvolvimento das relações capitalistas crie uma classe que,
A genericidade abstrata tornada possível apenas através do Estado por "educação, tradição e costume", acabe por aceitar tais relações
composto por seres desiguais, seres que se tornam desiguais por meio orno "naturais".
das relações materiais e espirituais, é a expressão mais que adequada O fato do trabalhador se inserir de forma subordinada ao mundo
das relações de mercado. Na verdade, neste, como em outros aspec- do capital leva a significativas consequências práticas e simbólicas.

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EN SA I OS SO BRE CON SC I ÊNC I A E E MANC I PA ÇÃO
M AU R O L u 1 s I As t

A garantia da vida e a condição da continuidade da existência agora No entanto, diferente de Bauer e outros, Marx não trata a eman-
dependem da inserção do indivíduo nas relações capitalistas. Em cipação da religião à parte da emancipação humana. Para ele, essa
verdade, a subordinação real do trabalho ao capital, naquilo que emancipação particular se insere no esforço geral da emancipação
Marx chamou de "modo de produção especificamente capitalista", humana, como podemos ver claramente nesta passagem:
faz com que o trabalhador se torne um proprietário de força de tra- O reflexo religioso do mundo real só pode desaparecer quando as condições
balho que vende livremente sua mercadoria, assumindo assim uma práticas das atividades cotidianas do homem representem, normalmente,
relação de igualdade com outros proprietários igualmente livres. O relações racionais claras entre homens e entre esses e a natureza. A estrutura
trabalho se transforma em parte constitutiva do capital, na forma . do processo vital da sociedade, isto é, o processo da produção material,
de capital variável, de maneira que sua existência está vinculada à só pode desprender-se do véu nebuloso e místico no dia em que for obra
do próprio capital. 4 de homens livremente associados, submetida a seu controle consciente e
O caráter genérico do ser humano na mediação do Estado, planejado (Marx, 1867, p. 88).
na atual sociedade, é a expressão da universalidade do capital. Ora, essa restituição, para o ser humano, do controle consciente
Dessa maneira, não há contradição nos termos que expressam essa da produção e reprodução material da vida exige, além de um ato
igualdade: somos todos cidadãos, membros da sociedade burguesa de crítica à religião, a superação da forma mercadoria e do capital.
(civil se preferirem), somos todos, portanto, capital. Essa universa- Para que o Estado não reflita a comunidade genérica do capital
lidade esconde o fato de a igualdade exigir que alguns assumam presente na igualdade abstrata do valor, não basta a existência de
o papel de acumuladores de valor e mais-valia, enquanto outros um Estado com a intenção de expressar outra ~niversalidade: mais
se transformam na mercadoria que, uma vez consumida, pode que isto, se faz necessário mudar as relações que produzem e re-
gerar o capital. produzem o fetichismo e a reificação. No caso do Estado, segundo
Por isso, podemos agora afirmar que a emancipação humana - Marx, não se trata de encontrar uma forma nova para o Estado,
tal como pensada por Marx, como a restituição do mundo e das mas de uma sociedade sem Estado.
relações humanas aos próprios seres humanos - exige a superação Esse aspecto, dos mais importantes no interior do pensamento
de três mediações essenciais: da mercadoria, do capital e do Estado. marxiano, fez com que Bobbio (1987), numa inteligente provocação,
Isso porque Marx era otimista e imaginava que a própria ordem afirmasse que não existe uma verdadeira teoria política em Marx.
do capital e da emancipação política através do Estado burguês já Partindo de uma afirmação de Lucio Colletti (apud Bobbio, 1987)
havia dado os passos fundamentais para a superação da religião. s bre as fragilidades e o desenvolvimento fragmentário da teoria polí-
Lica do marxismo (é sempre possível encontrar um marxista que evite
4
Adan Przeworsk i (Przeworski , A. Capitalismo e Social D emocracia, São Paulo, C ia. t penosa e complexa tarefa de dialogar com o próprio pensamento
das Letras, 1989) faz uma interessante relação entre esse faro e o fenômeno político da
social-democracia, no qual a condição para a execução das reformas visando a melhoria
le Marx), o pensador italiano afirma que a ênfase na necessidade de
das condições de vida e trabalho para os operários depende do bom desenvolvimento do 1omar o poder e a afirmação do caráter de transição do Estado no
capital. Já segundo Norberr Elias, a ideia de nação indica que, a par da "consciência e dos
~ocialismo, teria desarmado a teoria marxista de instrumentos que lhe
idea is de classe", a burguesia industrial e o proletariado acabam agindo "parci almente
como sócios e até certo ponto como adversários" (Elias, N . O processo civilizador, Rio permitissem responder a crucial questão do que fazer efetivamente
de Janeiro, Za har, 1990, pp. 228-229). quando de posse de um Estado (Bobbio, 1987, p. 37).

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E NSA I OS SOBRE CONSC I ÊN C I A E E MAN C IP AÇÃO
M AuRo L u 1s I As 1

Ainda que nós, socialistas, tenhamos de nos debruçar sobre


sconcertante que isto possa parecer para Bobbio, Marx afirma
a espinhosa questão do que fizemos quando de posse de um Es-
que a associação entre os seres humanos, portanto a dimensão da
tado, e o porquê do definhamento esperado virar fortalecimento política, pode se expressar fora e contra o Estado.
e cristalização burocrática do aparelho estatal - a maneira como
A emancipação humana, fim da pré-história da humanidade
Bobbio coloca esse ponto obscurece um aspecto central, aliás, que
•xige a superação das mediações que se interpõem entre O human~
é extremamente útil para seus argumentos.
· eu mundo. Para que a humanidade, reconhecendo a história
A teoria política de Marx baseia-se no pressuposto que a atual
·~mo sua própria obra, possa decidir dirigi-la para outro caminho,
forma da associação produzida pelos seres humanos, a sociedade I
d fere~te do beco sem saída para o qual a sociedade capitalista
de classes, exige um aparelho especial que consolide e legalize a
mundial levou a espécie. Nos termos de Marx, assumir de forma
dominação de uma classe sobre outra: o Estado. No entanto, Marx onsciente e planejada o controle do destino humano.
acredita que esta não foi sempre - e nada nos autoriza a acreditar
A humanidade pode alterar o rumo de sua existência ou é
que sempre será - a forma da associação humana. Afirma que tudo
prisioneira de forças que, mesmo tendo colocado em movi~ento
isto não passa da "pré-história" da humanidade. Essa afirmação
não controla? A possibilidade da emancipação humana é apena~
está profundamente relacionada ao nosso tema. Pré-história no
l arte de um delírio que a pretensão humana de ser um sujeito
sentido que as formas de associação constituídas pelos seres huma-
1 tado de uma razão onipotente ousou criar? Não seria a afir-
nos em sua aventura sobre a terra têm sido marcadas pelo traço da
mação marxiana sobre a possibilidade da ema.ncipação humana,
subordinação dos seres humanos a algo colocado fora deles; seja a
mesm o que nos contornos revolucionários e anticapitalistas,
natureza hostil, seja as relações que eles próprios criaram e que se
lima reapresentação da velha tese kantiana do esclarecimento
voltam contra ele como uma força estranha. (n ufklarung)?
No caso da sociedade de classes, essas relações estranhadas t
ES a parece ser, por exemplo, a posição de vários autores con-
se expressam no corpo do Estado, não apenas nas manifestações
1: mporâneos, entre eles destacando-se o pensador francês Michel
transparentes de domínio e violência (que, ao contrário do que
l•oucault (1982), com sua crítica ao que chama de história recor-
pensam os "pós-modernos", ainda constituem realidades tangíveis
r 'nte e à uma visão teleológica da história baseada em um sujeito
e não meras contingências anacrônicas numa ordem onde preva- 5
do conhecimento. Contrapondo-se à ideia de um "sentido" na
111• , .
lece a "legalidade democrática"), mas na cisão descrita na qual os
tona, uma certa pretensão de encerrá-Ia numa totalidade coe-
seres humanos transferem seu caráter coletivo e genérico para algo
' ·nte, Foucault, com base em Nietzsche, afirma que:
além deles, alienando-se de si mesmos enquanto seres genéricos.
As fo rças que se encontram em jogo na história não obedecem nem a
Entretanto, isto não é um mero desvio passível de ser corrigido
uma destinação, nem a uma mecânica, mas ao acaso da luta. Elas não se
pelo aprimoramento das instituições. .
A afirmação de Bobbio acerca da inexistência de uma teona ~e~ª resp eito Fou~ault, M. "Nietzsche, a genealogia e a históri a", in Microfísica do
0
política em Marx, revela que para ele não há política sem Estado, , er, Rw de Janeiro, Graal , 1982, ou, do mesm o autor, As palavras e as coisas São
1aul? '. Ma rtin s Fo mes, 1995 . Para uma visão sintética de conjunto do di álogo : mre
rendendo-se ao princípio aristotélico que identifica a associação as ~n ~'.c~s de Foucault e o pensa men to marxiano, ver Iasi, M . "Fouca ult: general da
0
política, sociedade e Estado numa única determinação. Por mais '.: rica , m O Dilema de H amlet, o ser e o não ser da consciência de classe Viramundo
.Sao Pa ulo, 2002. ' '

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M Au n o L u 1s I As 1
E NSA I OS SO B R E CONSC I ÉNC IA E E MAN C I PAÇÃO

manifestam como formas sucessivas de uma intenção primordial; como No caso de Kant, parece evidente que essa teleologia está di-
também não têm o aspecto de um resultado. Elas aparecem sempre na r ·tamente ligada a um sujeito do conhecimento dotado de razão,
área singular do acontecimento (Foucault, 1982, p. 28). portanto, relacionada ao processo do esclarecimento. Nesse sentido,
Se a crítica tem nitidamente estabelecido o remetente no .1 superação daquilo que Kant denomina de "menoridade" é vista

pensamento nietzschiano, da mesma forma, tem bem definido o ·orno a capacidade do ser humano de "fazer uso de seu próprio
destinatário: Kant. Isso não impede que a mensagem seja encami- •ncendimento" e "servir-se de si mesmo sem a direção de outrem"
nhada para vários marxistas, alguns a acolhem e assinam o recibo. (1 ant, 1985, p. 100).
É verdade que em Kant existe essa visão teleológica baseada num Caso restringíssemos a análise ao que foi até aqui exposto, .
sujeito da razão. É verdade também (ainda que "verdade" seja ou- ·x is te uma evidente correspondência entre a ideia de superação
tro dos alvos da crítica foucaultiana) que essa teleologia kantiana da menoridade de Kant e a emancipação humana de Marx. No
ordena o desenvolvimento histórico num certo sentido progressivo, ·ncanto, sigamos a reflexão.
assim como tal orientação da história se refere a um "reencontro" Na concepção de Kant, é cômodo para a maioria das pessoas
como uma suposta origem essencial. p •rmanecer na situação de menoridade e atribuir aos outros (diretor
Podemos comprovar isso sem grandes dificuldades, apenas nos •s piritual, médico, sábio, diretório nacional e sua executiva etc.) a
remetendo a uma citação do próprio Kant. Depois de afirmar que as direção de suas vidas, assim imagina a superação dessa condição
"ações humanas(...) são determinadas por leis naturais universais", na marcha da "espécie" e não nos indivíduos (de certa maneira,
o filósofo alemão dirá que: Ma rx também acredita nisso). Apesar disso, 'Kant acredita que,
A história, que se ocupa da narrativa dessas manifestações, por mais d ·ixada em condições de liberdade, a sociedade humana chegará
profundamente ocultas que possam estar as suas causas, permite todavia ,IO esclarecimento de maneira "inevitável". Essa contradição, entre

esperar que, com a observação, em suas linhas gerais, do jogo da liberda- ,IS tendências dos indivíduos em se acomodar na menoridade e da

de da vontade humana, ela possa descobrir aí um curso regular - dessa t·s pécie em marchar iniludivelmente para o esclarecimento, levará
forma, o que se mostra confuso e irregular nos sujeitos individuais poderá 1~anc a um raciocínio muito semelhante àquele descrito por Bauer
ser reconhecido, no conjunto da espécie, como um desenvolvimento \Obre manifestações "públicas" e "privadas".
continuamente progressivo, embora lento, das suas disposições originais T odavia, em Kant tal afirmação está relacionada a outro paradoxo: o
(Kant, 1986, p. 9). l,1t de a liberdade estar sempre acompanhada de restrições. Em suas
Na verdade, tais afirmações se inserem na mais clara tradição p:1lavras, por exemplo, o "hábito espalhado por toda a parte de impor
racionalista desde Aristóteles (1998), assim como no princípio 1 ·rtos limites à prática da razão, como o oficial que diz: raciocinai,

segundo o qual a natureza é o fim último de todas as coisas. mas mantenha a disciplina dos exercícios! Do financista que afirma:
Isso fica evidente nesta outra passagem de Kant quando diz que 1,1 iocinai, mas pagai! Do sacerdote que afirma: raciocinai, mas cre-

"todas as disposições naturais de uma criatura estão destinadas 1I •! E, por fim, do soberano que proclama: "raciocinai, tanto quanto

a um dia se desenvolver completamente e conforme um fim", qui erdes, e sobre o que quiserdes, mas obedecei!"' (Idem, p. 104).
chamando tal princípio de "doutrina teleológica da natureza" C omo para o autor é evidente que não se pode prescindir
(Idem, p. 11). d.1d isciplina e do ordenamento hierárquico, sem o qual nossa

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ENSA I OS SOBR E CONSC I ÊNCIA E EMANC I PAÇÃO MAURO L u 1s IA S!

boa e esclarecida sociedade desmoronaria na barbárie apesar da l.r1,cr bom uso de sua razão e colocavam-se sob a direção de outros,
natureza, o paradoxo é resolvido numa afirmação cuja lógica nos 1•ria fundamental a ação de dirigentes esclarecidos.
é bem conhecida. O indivíduo deveria manter a disciplina e sua Diz Kant:
obediência aos preceitos estabelecidos no âmbito de sua função Um príncipe que não acha indigno de si dizer que considera um dever
privada (como soldado, súdito ou jogador de futebol), guardando não prescrever nada aos homens em matéria religiosa, mas deixar-lhes em
seu papel de esclarecido sábio, sujeito racional do conhecimento tal assunto plena liberdade, que portanto afasta de si o arrogante nome
que superou a menoridade, para a esfera pública, na qual pode de tolerante, é realmente esclarecido e merece ser louvado pelo mundo
anunciar livremente e sem restrições seu pensamento, por exemplo, agradecido e pela posteridade como aquele que pela primeira vez libertou
sobre a injustiça da guerra. o gênero humano da menoridade, pelo menos por parte do governo, e
Peguemos um exemplo do próprio Kant: deu a cada homem a liberdade de utilizar sua própria razão em todas as
O cidadão não pode se recusar a efetuar o pagamento dos impostos que questões da consciência moral (Idem, p. 112).
sobre ele recaem; até mesmo a desaprovação impertinente dessas obriga- Sendo assim, o príncipe pode ser a expressão do esclarecimento
ções, se devem ser pagas por ele, pode ser castigado como um escândalo <la espécie, porque em sua manifestação genérica no governo assim
(que poderia causar uma desobediência geral). Exatamente, apesar disso, procede, ainda que os indivíduos súditos possam em sua ampla
não age contrariamente ao seu dever de um cidadão, se, como homem maioria usar a liberdade de sua razão para professar a religião que
instruído, expõe publicatnente suas ideias contra a inconveniência ou os aprouver. Dessa forma, comenta Marx: "o homem não se liber-
injustiças dessas imposições (Idem, p. 106). tou da religião; recebeu a liberdade religiosa" (Marx, 1993, p. 61).
É interessante observar como o raciocínio de Kant expressa a Todavia aparece um aparente paradoxo no pensamento de
mesma estrutura do argumento de Bauer, agora aplicado ao exercí- Kant. Se os seres humanos e sua suposta essência tendem ao escla-
cio fundamental da liberdade e da razão. Os indivíduos, cidadãos, recimento, por que necessitariam de um príncipe ou de um Estado
podem ser na esfera privada judeus, operários, ianomamis, negros, que lhes mostrasse esse caminho que na natureza já estava dado?
empresários, sociólogos ou comunistas, e isso os obriga a respeitar Tal paradoxo se resolve ao analisarmos um pouco mais de perto
hierarquias, disciplinas e hábitos particulares que os condenam à as afirmações kantianas sobre a natureza e a "essência" humana.
menoridade, guardando seu caráter universal genérico para uma Primeiro, devemos lembrar que Kant recupera um princípio de
transcendência sofística. Aristóteles quando afirma que os seres humanos, diferente dos
É nesse ponto que o raciocínio de Kant, com base na sua afir- animais, não esperam apenas viver, mas almejam "viver bem".
mação da diferente postura dos indivíduos e da espécie em relação Por isso, para Kant:
ao esclarecimento, assume um aspecto fundamental. Uma vez que A natureza quis que o homem tirasse inteiramente de si tudo que ultrapassa
a maioria dos indivíduos se acomoda à condição de menoridade, a ordenação mecânica de sua existência animal e que não participasse
é relevante a ação daqueles indivíduos que, em posição de poder e de nenhuma felicidade ou perfeição senão daquela que proporciona a si
influência, espalham a partir de si uma postura esclarecida. Con- mesmo, livre do instinto, por meio da própria razão (Kant, 1986, p. 12).
siderando que não estava numa época esclarecida (aufgekarten), É, portanto, na esfera do nomus e não da phisys que se expressa
visto que a maioria das pessoas ainda não se mostravam capazes de a liberdade humana segundo Kant, assim como para Aristóteles é

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E NSA I OS SO BRE C ONSCIÊNCIA E EM A N CIPAÇÃO M AURO L UIS IA S I

na "amizade", na associação entre os iguais, que os seres humanos Toda cultura e toda arte que ornamentam a humanidade, a mais bela
buscam a autarcia própria apenas dos deuses. Porém, se a ideia ordem social são frutos da insociabilidade, que por si mesma é obrigada
aristotélica de natureza está no fundamento do pensamento kan- a se disciplinar e, assim, por meio de um artifício imposto, a desenvolver
tiano, a sequência de suas afirmações se distancia do velho grego. completamente os germes da natureza (Idem, p. 15).
Enquanto que segundo Aristóteles essa associação para a vida feliz A conclusão do filósofo do esclarecimento é a necessidade
é a confirmação de que o ser humano nasceu para a vida política, insuperável do Estado. Para Kant, os homens quando vivem em
na visão de Kant a existência social é o resultado não de uma har- sociedade "tem necessidade de um senhor" (Kant,1986: 15) que
monia, mas de um antagonismo. Exatamente pelo fato de que os "quebre sua vontade particular e o obrigue a obedecer à vontade
seres humanos deixados ao estado natural tendem à luta de todos universalmente válida de modo que todos possam ser livres" (idem,
contra todos é que se faz necessária a forma social reguladora. O ibidem). Assim, o Estado poderia cumprir o papel que a natureza
caráter social natural dos seres humanos em Aristóteles ass ume lhe conferiu, ou seja, através da coerção forçar os selvagens a "ab-
a reveladora forma de "insociável sociabilidade dos homens" em <licar de sua liberdade brutal e buscar tranquilidade e segurança
Kant. Vejamos em suas palavras: numa constituição conforme leis" (Idem, p. 17).
O meio de que a natureza se se;ve para realizar o desenvolvimento de todas Esse é um bom exemplo de que temos a tentação de acreditar
as suas disposições é o antagonismo das mesmas na sociedade, na medida que as palavras são em si mesmas os valores que representam.
em que se torna ao fim a causa de uma ordem regulada por leis dessa so- Nesse sentido, a sagrada liberdade, aquilo que o sonho humano
ciedade. Eu entendo aqui por antagonismo a insociável sociabilidade dos alimenta e não tem quem a defina e não há quem não a entenda,
homens, ou seja, a tendência dos mesmos a entrar em sociedade que está acaba de se apresentar, desconcertantemente, com dois significados
ligada a uma oposição geral que ameaça constantemente dissolver esta opostos. Afinal, a liberdade é aquela disposição brutal e indolente,
sociedade. Esta disposição é evidente na natureza humana (Idem, p. 13). arrogante e indisciplinada que recusa todo senhor, ou exatamente
Assim, o homem gostaria da concórdia e da liberdade indolente, o que surge da derrota dessa disposição pela obrigação de viver sob
mas a natureza, sábia, quer a discórdia, o que o força à sociabi- leis universalmente válidas, exigindo um senhor?
lidade e à busca da constituição civil e da justiça, permitindo ao Acreditar que as palavras são em si os valores que representam,
ser humano superar o estado natural na criação de uma sociedade além de confundir significado com significante, equivaleria a levar para
humana e racional. Dessa forma, a coerção, limitação da liberdade casa não os produtos que podem satisfazer nossa fome, mas os folhetos
pela disciplina, produz a sociabilidade e realiza na espécie a pleni- que os anunciam. Por esse engenhoso raciocínio devemos entender,
tude do desenvolvimento de suas aptidões. Daí a analogia de Kant portanto, que precisamos abrir mão da liberdade para ser livres!
sobre a árvore, que isolada cresce caótica e retorcida, mas que junto No entanto, isso é mais que um engano singelo. Nesse ponto os
às outras num bosque, cerceada na disputa do espaço com outras, 1iberais precisam resolver um problema que Aristóteles não precisa-
cresce reta, impelida para cima, bela e aprumada. Muito próximo va: de que maneira afirmar a centralidade do indivíduo, sujeito da
da futura compreensão de Freud sobre a cultura, Kant atribuirá a liberdade, e o pressuposto da ordem legal, que institui no Estado a
obra da civilização a esse cerceamento, a esse cerco que é a união norma universalmente válida, na qual se fundamenta a "verdadeira"
civil. Afirma Kant: liberdade? Para Aristóteles, essa é uma falsa questão, pois para ele

64 65
EN SA IO S SO BRE CONSC I ÊNCIA E EM ANC IPA ÇÃO
MAURO L u1s I AS I

não cem o menor sentido o conceito de indivíduo como referência Para Marx, a questão é outra. Não há uma "essência humana"
àquilo que do todo social constitui a última parte, não podendo que dirija a história para a luta e a discórdia, ou para a harmonia e
mais ser decomposta das associações que constituem o todo. O
a lei. É a ação concreta dos seres humanos que cria sua sociabilidade
ser isolado seria uma abstração, cal como uma mão separada do insociável ou sociável.
corpo. A autonomia (ou autarcia), o bastar-se a si mesmo, é um
Podemos agora voltar a nos perguntar: a ideia de emancipação
atributo dos deuses que os seres humanos só podem imitar pela
humana em Marx é a reapresentação das afirmações do esclare-
associação, ou, mais precisamente, pela amizade. Daí, a autonomia
imento? É, ainda que com sinais invertidos, a afirmação de um
só é alcançada, entre os seres humanos, na sociedade política.
sujeito da razão e de uma teleologia histórica?
Mas para os liberais essa abstração individual, o homem egoís-
A resposta é sim e não. A crítica pós-moderna vê com reações
ta, é o centro e o objetivo da ordem social, que só é feliz como
de pânico qualquer afirmação de uma "essência", "determina-
ção", "sujeito", "verdade,, e outras. e ostuma encontrar "provas
resultante da felicidade de cada um. Como então preservá-lo se essa
felicidade só pode ser alcançada no ordenamento do Estado? Se os
contundentes" na literatura marxista para comprovar sua tese
homens vivendo juntos precisam de um senhor, como resolver o
de que esse pensamento se acomoda sem problemas na tradição
problema que teremos que escolher esse senhor entre os próprios
racionalista-iluminista da século 19. O problema é que, ao afir-
seres humanos?
marmos uma história da descontinuidade, a impossibilidade de
A resposta podemos encontrar na afirmação de Kant segundo
construir e afirmar totalidades estruturantes 1 a ausência de um
a qual o "chefe supremo deve ser justo por si mesmo e todavia
sujeito histórico, temos que concordar que Marx não é de fato
ser um homem" (Kant, 1986:16). Já vimos como tal princípio foi
um pensador pós-moderno.
usado para falar do príncipe esclarecido. A resposta dos recém-
No pensamento marxiano, as categorias como sujeito e deter-
liberais (para diferenciar dos neoliberais) é que o Estado deve
minação, totalidade e história são da maior importância. Vimos
ser justo, ou democrático. Sendo assim, a liberdade humana está
que o fundamento da emancipação humana para Marx é a possi-
sempre constrangida por algo fora dela, via de regra contra ela. A
bilidade de os seres humanos assumirem o controle da história de
humanidade se apresentaria na sua expressão política, naquilo que
maneira consciente e planejada. No entanto, como afirma Eagleton:
Kant chamou de staatkorper (corpo político), não tendo exemplo
Marx não nutria outro sentimento que não o desdém pela ideia de que
no passado, embora sendo o fim a que a contínua e progressiva
havia algo chamado História que dispunha de objetivos e leis de moção
marcha da humanidade nos conduz. O propósito supremo da
independentes dos seres humanos. Imaginar que o marxismo seja uma
natureza: "um estado cosmopolita universal, como seio no qual
teleologia neste sentido, como parecem fazer muitos pós-modernistas, não
podem se desenvolver todas as disposições originais da espécie
passa de uma caricatura (Eagleton, 1998: p. 51).
humana" (Idem, p. 22).
Isso não significa que não exista em Marx uma teleologia. Po-
Mais uma vez, fica patente a afirmação de que o caráter genérico
deríamos dizer, a partir das pistas deixadas por Eagleton, que existe
se dá por meio, através do Estado, pulverizando-o na realidade das
uma teleologia, mas não uma concepção teleológica da história em
relações concretas dos indivíduos concretos, esses últimos tendendo
Marx. Vejamos como desembrulhar esse aparente paradoxo, que
a reproduzir a "insociabilidade".
está diretamente ligado ao tema da emancipação humana.

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Em Marx são os seres humanos concretos, inseridos ém suas brilhante crítica de Foucault (1995) contra o "humanismo" das
relações determinadas, que fazem a história, e não nenhuma ma- ciências sociais é de grande utilidade para nossos objetivos, embora
nifestação de qualquer essência. Segundo a concepção marxiana, a não se aplique, ao que parece, a Marx.
história é uma sucessão de gerações que atuam sobre as condições Entretanto, a emancipação humana exige que os seres humanos
deixadas pelas gerações precedentes, sendo assim, ao mesmo tempo, ass umam o controle consciente de sua existência, superando as
continuidade e ruptura. A humanidade não pode escolher as circuns- mediações que impedem a percepção de sua história como fruto de
tâncias e a base material sobre a qual constrói as alternativas de seu uma ação humana. Nesse sentido, se é verdade que o pensamento
desenvolvimento, mas pode agir sobre essa base que não é de sua marxiano nega a visão abstrata e idealista de um sujeito histórico
escolha e alterá-la, deixando-a radicalmente transformada para as como manifestação de uma essência humana que se autorrealiza na
gerações futuras. Daí sua famosa formulação de que são os seres história, afirma o ser humano como sujeito histórico e, portanto,
humanos que fazem sua história, mas não a fazem como querem. capaz de uma teleologia.
Marx e Engels, criticam impiedosamente seus interlocutores que Acontece que esse sujeito é, ao mesmo tempo, determinado
alteravam os fatos através da especulação fazendo "da história recente pelas condições materiais que encontra como objetividade e que
o fim da história anterior" (Marx/Engels, 1976, p. 44). Toda a linha inclui não apenas as condições concretas existentes (entre elas um
central da argumentação dos dois autores de A ideologia alemã é um certo grau de desenvolvimento das forças produtivas materiais),
ataque às noções dos jovens hegelianos que, abstraindo as condições mas também, as relações sociais de produção construídas e esta-
e relações objetivas nas quais os seres humanos concretos constroem belecidas pelos seres humanos das gerações ant~riores e com elas
sua existência, chegam à "autodeterminação do conceito" que se seus valores, ideias, formas jurídicas e políticas, instituições das
desenvolve por si mesmo ao longo da história. Partem da redução mais diversas, às quais correspondem essas relações.
da história à manifestação das ideias, dessa a uma ideia essencial e Como o pensamento pós-moderno tem uma enorme dificulda-
em seguida chegam à ideia de homem. O resultado dessa filosofia de em compreender o método dialético em Marx, passa boa parte
especulativa, como afirmam Marx e Engels, é o seguinte: de seu tempo oscilando entre duas críticas opostas. Ora Marx é
Aos indivíduos já não subordinados à divisão do trabalho, os filósofos determinista, economicista ou reducionista, ora é o mais essencia-
representaram-nos como um ideal a que apuseram a designação de 'Ho- lista dos pensadores, teleológico, herdeiro direto do sujeito como
mem'; e compreendem todo o processo que acabamos de expor como sendo centro da razão iluminista à moda de Kant. Ora é o determinista
o desenvolvimento do 'Homem'. Substituem os indivíduos existentes em que abole o papel do indivíduo, transformando os seres humanos
cada época da história passada pelo 'Homem' e apresentam-no como força em meros espantalhos determinados por condições materiais
histórica (Idem, p. 93). inexoráveis, ora o voluntarista, que espera que a essência humana
Abandonando os indivíduos concretos pela abstração do rompa todas as barreiras e revele o que em germe já estava presente
conceito de homem, a continuidade histórica é atribuída a essa desde a origem.
abstração e, sendo assim, a história se transforma na manifestação Interessante, como bem notou Eagleton (1998), é que, visto em
de uma essência e não no fato de que as gerações passadas deixa- seu conjunto, o pensamento "pós-modernista" acaba apresentando
ram um patamar sobre o qual teremos que agir. Nesse sentido, a em muito maior grau essas duas características que deseja imputar

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ao marxismo. Primeiro, por uma certa rendição às relações existentes própria natureza" (Idem, ibidem). Torna-se um ser que trabalha e
como patamar máximo e insuperável, pela transformação da ordem molda o mundo, enquanto que o mundo modificado pelo trabalho
institucional liberal burguesa no suprassumo da realização humana; transforma-se no patamar objetivo sobre o qual as novas gerações
depois, invertendo a equação, reinventa um culto exarcebado do parti- atuarão. Essa objetividade agora se difere da anterior pelo fato de
cular, do imediato, do corpo, do indivíduo e sua percepção, passando que é uma síntese de uma base material puramente objetiva e da
a acreditar na negação do todo pelo exercício de negação molecular. ação humana. Entretanto, esse aspecto subjetivo se apresenta de
Toda a complexidade da leitura marxiana vem do fato de pro- maneira externada numa realidade objetiva, na forma de objetos,
curar negar essa polarização que tem por base uma certa relação relações sociais, instituições que, apesar de frutos da ação humana
mecânica do binômio indivíduo-sociedade. O sujeito histórico anterior, se mostram aos seres humanos tão objetivas como os
marxiano não é o homem iluminista, nem o indivíduo do liberalis- elementos da natureza. Em certas circunstâncias, essa objetivi-
mo, nem uma história abstraída de sua entificação humana. São os dade social se apresenta além de uma forma objetiva externada;
seres humanos concretos e determinados que moldam o mundo, na apresenta-se como forma que se volta contra o ser humano e o
mesma medida que são moldados por uma materialidade, que, em subjuga, como forma estranhada. Nos termos de Marx, aparece
parte, é objetividade e, em parte, é uma subjetividade objetivada, não como "voluntária", mas como "natural".
por ser fruto da ação anterior dos seres humanos. O trabalho não é um ato individual, mas sim uma ação que o
Essa complexidade pode ser encontrada na ação que constitui ser humano realiza como espécie. É esse trabalho geral que altera
a protoforma da práxis humana: o trabalho. Através do trabalho, o mundo e se externaliza numa nova realidade modificada e não o
o ser humano pode moldar a natureza objetiva dando-lhe formas trabalho individual. Mas isso, por si só, não explica o estranhamen-
úteis à vida humana, criando valores de uso capazes de satisfazer to, pois o ser humano singular pode se reconhecer como espécie.
suas necessidades. O que é especificamente humano nessa atividade Marx procura atribuir o fenômeno do estranhamento ao fato
é o fato de aquele que trabalha projetar em sua mente aquilo que de que passa a existir uma contradição entre o interesse particular
será objetivado; dessa maneira, "no final do processo do trabalho de cada um e o interesse comum, entre os indivíduos singulares
aparece um resultado que já existia idealmente na imaginação do que compõem a sociedade e esta última como forma genérica. No
trabalhador" (Marx, 1867: 202). Nesse sentido, e só nesse sentido, interior de uma divisão social do trabalho, a ação de cada indivíduo
estamos diante de um comportamento teleológico. A visão de contribui para o conjunto da atividade social, que volta a ele como
uma teleologia histórica nada mais é do que a transposição dessa um poder estranho por se apresentar como não humano, mas sim
característica, apresentada na ação singular do ser humano diante "natural". Vejamos, nas palavras de Marx e Engels, como essa "ação
da natureza através do trabalho, para a ação do ser humano en- do homem transforma-se para ele num poder estranho que se opõe e
quanto espécie diante de sua história, embora nada autorize essa subjuga, em vez de ser ele a dominá-la" (Marx/Engels, 1976, p. 40):
transposição mecânica de uma esfera a outra. O poder social, quer dizer, a força produtiva multiplicada que é devida à

No trabalho, o ser humano não apenas interage com a natureza, cooperação dos diversos indivíduos, a qual é condicionada pela divisão

ele próprio se modifica, como diz Marx: ''Atuando assim sobre a do trabalho, não se lhes apresenta como o seu próprio poder conjugado,

natureza externa e modificando-a, ao mesmo tempo modifica sua pois essa colaboração não é voluntária e sim natural, antes lhes surgindo

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como um poder estranho, situado fora deles e do qual não conhecem nem
está diretamente ligada à produção de mercadorias subordinada à
a origem, nem o fim que se propõe, que não podem dominar e que de tal
lógica do capital, para utilizar um conceito de Mészáros (1995), pelo
forma atravessa uma série particular de fases e estádios de desenvolvimento
fato de que o metabolismo do capital subordina a vida. Daí, sua
tão independente da vontade e da marcha da humanidade que é na verdade
superação se liga à necessidade de superação da sociedade produtora
ela quem dirige essa vontade e essa marcha da humanidade (Idem, p. 41).
de mercadorias e de capital.
A ação humana corporificada em algo externo, externada
Entretanto, essas relações se materializam para além das rela-
(entaüsserung), se apresenta como algo não humano, estranhado
ções de mercado e de produção, ganhando corpo em sua expressão
(entfrendug). A questão é saber se, uma vez dado o estranhamento, ele
política, que assume no Estado a forma da universalidade. Essa con-
se torna uma realidade insuperável, estruturalmente inseparável da
tradição entre a ação singular dos seres humanos e o produto total
ação humana. A afirmação da possibilidade da emancipação humana
dessa ação - que, na forma de determinada sociedade, se apresenta
é a constatação de que é possível produzir uma realidade social que
estranhado-, essa cisão do interesse individual e do coletivo, "faz
não se volte como entfrendug, ainda que toda a ação humana tenda a
com que o interesse coletivo adquira, na qualidade de Estado, uma
se cristalizar numa realidade externada e objetivada que depende do
forma independente, separada dos interesses reais do indivíduo e do
conjunto dos seres humanos e não da ação singular dos indivíduos
conjunto, e tome simultaneamente a aparência de uma comunidade
ou dos seres humanos particularmente existentes em cada época.
ilusória" (Marx/Engels, 1976, p. 39).
No entanto, a superação dessa alienação (termo que precaria-
Por isso, podemos voltar a afirmar que a pos.sibilidade da eman-
mente traduziu tanto o entaüsserung como entfrendug) não pode
cipação humana, de restituir o mundo e as relações humanas aos
ser alcançada pela crença na invencibilidade de qualquer essência
seres humanos, passa pela superação das mediações criadas por esses
humana. Se existe uma essência humana, esta só pode ser aquela
mesmos seres em sua ação sobre o mundo. Passa pela superação da
construída pela prática histórica concreta dos seres humanos, e essa
mercadoria, do capital e do Estado.
prática pode construir tanto a emancipação quanto o estranhamento,
A emancipação humana segue em sua ação prática uma rota
como já nos lembrou, com propriedade em várias oportunidades, a
oposta ao desenvolvimento histórico. Ao realizar uma revolução
escola de Frankfurt. 6 A superação dessa alienação, nas palavras de
e quebrar o metabolismo do capital (ou iniciar sua negação) pela
Marx, "só pode ser abolida mediante condições práticas" (Marx/
negação da propriedade privada dos meios de produção e a negação
Engels, 1976, p. 41). Mas quais seriam essas condições práticas?
da força de trabalho como mercadoria, não se quebra a produção de
Uma vez que as relações estranhadas são o produto de uma
mercadorias, prevalecendo ainda o critério do valor como medida
certa ação humana, que se dá em certas condições determinadas, a
do intercâmbio entre o trabalho oferecido e os produtos retirados
possibilidade de sua superação, aqui identificada como emancipação
por cada um do fundo social. Para superar a lógica da mercadoria é
humana, só pode se dar na alteração dessas circunstâncias. No caso
necessário reestabelecer a determinância do valor de uso, chegando,
da sociedade atual, essa materialidade, que se apresenta estranhada,
assim, à famosa equação de cada um segundo sua capacidade e a
cada um segundo sua necessidade (Marx, 1875, in Obras, p. 213).
6
Ver, por exemplo, Dialética do esclarecimento, de Adorno e Horkheimer, Rio de Janeiro, Porém, torna-se necessário não apenas uma ação política, mas
Zah ar, 1997.
também condições materiais, entre elas, a capacidade de produzir

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em abundância os meios necessários à vida, a superação da escra- simpática forma da inevitabilidade da revolução, mudará o mundo se
vizante subordinação dos indivíduos à divisão social do trabalho, os homens concretos não estiverem dispostos a fazê-lo. Lembra-nos
o fim do trabalho como meio de vida, entre outras. A superação que a transição socialista tem por objetivo criar as condições mate-
do Estado pressupõe que todo esse processo acabe por eliminar as riais para extinção das classes e do Estado e não o fortalecimento
bases da existência das classes e que estabeleça relações nas quais os do Estado burocrático. Lembra-nos ainda que a base material para
seres humanos se reconheçam diretamente sem a mediação de um essa transição é o mais amplo desenvolvimento das forças produti-
corpo político colocado fora da sociedade. Pressupõe a sociedade, vas e o caráter mundial das relações sociais de produção, condições
na bela fórmula de Marx, como livre associação dos produtores. "absolutamente indispensáveis, pois, sem as quais, apenas se genera-
Daí a imagem famosa de Marx sobre o Estado se diluir de volta lizará a penúria e, com a pobreza, recomeçará paralelamente a luta
na sociedade. Por isso, é absurdo o moderno culto ao Estado. Não pelo indispensável e cair-se-á fatalmente na mesma merda anterior"
se trata, nessa perspectiva, de democratizar o Estado em nome da (Marx/Engels, 1976, p. 42).
liberdade, pois essa "liberdade"- melhor seria dizermos emancipação Por fim, a afirmação da possibilidade da emancipação huma-
- só é verdadeiramente possível superando o Estado. Nas palavras na nesses termos e à luz da experiência histórica do século 20 nos
de Marx: "a liberdade consiste em converter o Estado de órgão que mostra também que ela pode não ocorrer. A consciência de nosso
está por cima da sociedade num órgão completamente subordinado tempo, ao nos afirmar um novo agnosticismo, ao negar a categoria
a ela" (Idem, p. 220). de totalidade, ao se render aos limites do existente e ao transformar
Todavia, não seria isso um sonho? Ou, pior ainda, essa ousadia o conhecimento humano num pântano de relativismo, pode nos
não teria levado ao pesadelo do autoritarismo e do estalinismo? Tais convencer de que a emancipação humana não passa de um discurso
indagações escondem um grande risco de conservadorismo, porque, em meio a muitos outros possíveis.
no fundo, nos afirmam que é melhor permanecer como estamos do Podemos, enfim, ser convencidos da impossibilidade de mudar
que tentar mudar para algo que pode dar errado. Para aqueles que o mundo, da impossibilidade de assumir conscientemente nosso
encontraram um ponto de inserção um pouco mais adequado à sua destino, criando a livre associação dos produtores livres que, atra-
sobrevivência dentro da ordem do capital, esta é uma alternativa, vés de suas relações, alterem com cautela e autossustentabilidade, a
mas para a humanidade não. natureza, produzindo os meios necessários à continuidade da vida.
As transições socialistas ocorridas graças às lutas e revoluções do Podemos fazer isso, para variar, sem que essa ação nos apareça na
século 20, apesar de seus desfechos, ou em grande medida por causa forma de qualquer mediação sagrada ou profana, sem que a cole-
exatamente desses desfechos trágicos, nada mais faz que comprovar tividade humana precise do precário e ilusório espelho do Estado
algumas das teses centrais do pensamento marxiano, ainda que para se reconhecer em sua genericidade.
muitas vezes contra algumas de suas previsões. Os seres humanos Então, a emancipação humana não ocorrerá e será melhor
continuam eles mesmos fazendo sua própria história, embora não voltarmos a acreditar em Deus e torcer para que exista outra vida,
como desejariam. porque esta, que se apresenta como aventura da espécie, a humani-
Tal fato não nega a possibilidade de emancipação humana; dade dela terá abdicado definitivamente em nome de sua própria
apenas nos lembra que nenhuma essência humana, ainda que sob a historia alienada.

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BIBLIOGRAFIA: III
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Petrópolis, Vozes, 1985. Em nossos cursos de formação pelo NEP- 13 de Maio, por vezes,
Marx e Engels. A Ideologia Alemã. Lisboa, Editorial Presença, 1976. v. 1. 1•sbarramos em temas teóricos da maior importância que aparecem
Marx, K . ''A questão judaica". ln Manuscritos econômicos e filosóficos . Lisboa, pontualmente em uma ou outra atividade. Creio que é o que aconteceu
Edições 70, 1993. m m a polêmica sobre a validade de se falar em "ideologia proletária".
_ __ "Contribuição à crítica da filosofia do direito de Hegel". ln Manuscritos ... Tudo começou quando estudávamos o prefácio da Contribuição
Lisboa, Edições 70, 1993. ,i crítica da Economia Política e notamos que Marx, ao falar da parte
_ __ O capital. Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, s/d. da superestrutura correspondente ao universo das ideias, não uti-
_____ "Crítica ao Programa de Gotha" (1875). ln Obras Escolhidas, São Paulo, lizava diretamente o termo "ideologia" e sim "consciência social". 1
Alfa Omega, s/d. A tradição dos manuais sempre nos levou a falar na superes-
Mészáros, 1. Beyond Capital (Towards a theory oftransition), Merlin Press, Lon- 1rutura política, jurídica e ideológica. Tratávamos quase como
don, 1995. , inônimos ideologia e conjunto de ideias. Tentando solucionar esse
Przeworski, A. Capitalismo e Social Democracia, São Paulo, Cia. das Letras, 1989. problema, nos remetemos a outros textos de Marx, onde encon-
Zizek, S. El espinoso sujeto (el centro ausente de la ontologia política). Buenos Aires/
Barcelona, Paidós, 2001. ' Tex to publicado ociginalmeme no Boletim do Fórum Nacional de Monitores.
1
Marx. K. Contribuição à crítica da Economia Política. Martins Fomes, São Paulo, 1977,
p. 24 .

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tramas pistas dispersas, uma vez que Marx não aborda os temas Apesar do estudo das ideias se confundir com a própria filosofia,
separadamente, mas conjuntamente com vários temas no interior 11 1 •rmo ideologia é bem mais recente. Surgiu, não por acaso, no
de sua superação do pensamento de Hegel e de Feuerbach. 1'111 · so final da Revolução Francesa, quando, em 1795, foi c_ria~o
Uma das pistas parece ser que a noção de ideologia para Marx 11 / 11 titut de France com a finalidade de propagar e defender as 1de1as
está profundamente ligada à divisão da sociedade em classes e a 1 1 1malistas do Iluminismo e os principais valores da revolução. Teria
forma particular que a classe dominante elabora e difunde sua visão do Antoine Destrutt de Tracy o criador do termo "ideologia'', com
de mundo, buscando torná-la universal. Mais que isso, quando 11 •ntido direto de uma ciência das ideias ou teoria geral das ideias.
essas ideias manifestam relações de dominação e subordinação de Aqui, como em outros casos, o nosso senso comum deve ~mito
uma classe em relação à outra. É nesse sentido que perguntávamos: 1 ~ua mãe, a revolução burguesa. O uso cotidiano do termo- 1deo-
existe, então, uma ideologia proletária? lnf.,ia como conjunto de ideias - tem sua origem, portanto, em
Poderia ser apenas mais um dos muitos recursos maiêuticos 1 , trutt de Tracy. Ao que devemos ter atenção é à pretensão de
utilizados em nossas atividades para desconstruir o senso comum, ,1,,· •m ideias gerais ou universais de toda a sociedade.
mas parece que nesse caso acabamos tocando em algo mais profun- A contradição entre ideias gerais e particulares é contornada
do. Os participantes nos olhavam com ar atônito e logo recorriam por Hegel com sua afirmação sobre a existência de um "es_pírito
às citações de Gramsci ou Lenin sobre a ideologia do proletariado, ,1hsoluto", uma essência que se exterioriza nas diversas mamfesta-

faziam referências à importância da "luta ideológica" e nos lembra- ~ o s particulares da matéria e do próprio pensamento. Para _Hegel,
vam que o trabalho de educação popular também era ideológico. 1 a la filosofia particular nada mais é do que a expressão da Filosofia
2
A crítica a esse termo, vinda de uma entidade que se especializou omo manifestação do espírito humano e da verdade. Dessa forma,
em formação, parecia aos participantes como absurda. para ele, ideologia é um çonceito universal, não relativo a classe~
Acontece que, se não estamos enganados, existe uma grande ou grupos sociais; a verdade estava no todo e esse todo se refere a
confusão entre o uso comum de um termo e seu status de cate- humanidade independente de sua manifestação particular de classe.
goria ou conceito integrante de uma concepção teórica unitária e Foi em Marx que o conceito de ideologia ganhou uma dimen-
coerente, como é o pensamento de Marx. Não seria a primeira vez sfio associada à luta entre as classes e a possibilidade de mudança
que uma palavra se confunde, apareceria autonomamente como cial. Vejamos na conhecida citação da A ideologia alemã:
se tivesse um sentido em si mesma. Sabemos que não é assim. As ideias (Gedanken) da classe dominante são, em cada época, as ideias
Trabalhamos muitos conceitos, como o de "valor", por exemplo, dominantes; isto é, a classe que é a força material dominante da sociedade é,
que precisa ser diferenciado de seu uso comum para que seja ao mesmo tempo, sua força espiritual dominante(...). As ideias dominantes
compreendido como um conceito da crítica da economia política. nada mais são do que a expressão ideal das relações materiais dominantes,
No caso do termo ideologia, acreditamos que acontece o mes- as relações materiais dominantes concebidas como ideias; portanto, a ex-
mo, ou seja, existiria uma confusão entre o sentido comumente pressão das relações que tomam uma classe a classe dominante, portanto,
usado como conjunto de ideias e o conceito. Por isso, vamos a uma as ideias de sua dominação. 3
pequena digressão, buscando desvendar os caminhos pelos quais
o senso comum rouba a precisão de um conceito. l Hegel. G. W. F. Introdução à história da filosofia, São Paulo, Hemus, 1983.

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Vemos como a noção de Marx e Engels é inseparável de uma ideologia pressupõe uma relação de dominação, uma relação
relação de dominação. Uma outra dimensão do conceito está na na qual a classe dominante expressa essa dominação em um
afirmação de que essa dominação, expressa nas ideias, apresenta-se conjunto de ideias;
como justificação dessas relações de dominação, inversão, natura- ideologia pressupõe inversão, velamento da realidade, natura-
lização, velamento, falsidade. Isso leva à constatação de que, toda lização das relações de dominação e, daí, sua justificação;
vez que vemos o termo em Marx, ele aparece com uma conotação ideologia pressupõe, finalmente, a apresentação de ideias e
valorativa de negatividade, como na afirmação de que "os ideólogos concepções de mundo particulares como sendo universais.
colocam tudo de ponta cabeça". 4
É nesse ponto que se ergue nosso questionamento sobre uma
Vejamos como isso fica claro na própria introdução de A ideo- uposta "ideologia proletária". Se existe, deveríamos nos perguntar
logia alemã:
sobre qual quadro de dominação de classe, sobre quem recai essa
Até agora, os homens formaram sempre ideias falsas sobre si mesmos, dominação, sobre a base de quais relações sociais se estrutura tal
sobre aquilo que são ou deveriam ser (...). Esses produtos do seu cérebro domínio? O que a "ideologia proletária" busca velar e inverter,
acabam por dominá-los; apesar de criadores, inclinaram-se perante suas justificar e naturalizar nas relações de seu suposto domínio e com
próprias criações (...). Libertemo-los portamo das quimeras, das ideias, dos qual intenção?
dogmas, dos seres imaginários cujo jugo os faz degeneram: Revoltemo-nos Na concepção marxiana, o proletariado lutaria por uma socie-
contra o império dessas ideias. 5
dade sem classes, baseada na livre associação dos produtores, que
Em outra passagem, afirmará que "em toda a ideologia os teria por base a superação da atual subordinação dos indivíduos à
homens e suas relações surgem invertidos". Evidente que essa in- divisão social do trabalho, assim como um desenvolvimento das
versão não é produzida no próprio campo das ideias. As relações forças produtivas e dos indivíduos, em todos os sentidos, para que
capitalistas ligadas ao fetichismo da mercadoria e sua consequente possa ser gerada uma situação capaz de instaurar o lema "de cada
reificação aparecem no campo das ideias correspondendo a uma um segundo sua capacidade e a cada um segundo sua necessidade".
inversão real ocorrida na materialidade, ficando assim justificadas O desenvolvimento dos indivíduos, em todos os sentidos, supõe
e naturalizadas. Quando através da crítica se restabelecem os elos que um novo ser social se expresse numa nova consciência social,
entre as ideias e suas bases materiais, quando "a moral, a religião, novas ideias e uma nova ordem de valores.
a metafísica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de A luta contra o capital não é uma luta para dominar a burguesia,
consciência que a elas correspondem, perdem toda a aparência de mas aponta para que, no curso de sua libertação, os trabalhadores
autonomia", as relações aparecem como são. Assim, grosso modo, eliminarem a própria base da sociedade de classes. Não se trata de
nos parece que o conceito de ideologia em Marx é inseparável dos estabelecer um novo domínio de classe, mas para abolir as classes
seguintes elementos:
a partir de sua base: as relações de exploração e dominação. Nesse
sentido, interessa aos trabalhadores inverter, velar, obscurecer? Não
3
Marx e Engels. A ideologia alemã, Martins Fontes/Presença, Lisboa, s/d. , p. 72. interessa aos trabalhadores, no interior de sua luta contra o capital,
4
Idem, p. 133. revelar o caráter das relações, sua essência, causas e determinações
5
Idem , p. 7.
reais, desnaturalizar essas determinações e apresentá-las como

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produto histórico? Não estaríamos nós, bem acompanhados, é manifestação não orgânica através do senso comum. A tentativa
verdade - na tentativa de justificar a necessidade de uma luta entre da burguesia é conseguir legitimar sua visão de mundo, iniciando
as concepções de mundo do proletariado contra a concepção bur- pelas relações econômicas de dominação, se estendendo à socie-
guesa, na intenção louvável de constituir uma concepção própria dade e às formas de Estado, impondo o que Gramsci denomina
que fosse capaz de autonomia histórica - confundindo o conceito de hegemonia. Daí, para esse autor, a luta revolucionária implica,
marxiano de ideologia com o de Destrutt de Tracy, reduzindo-o também, na disputa de hegemonia. Gramsci chega a chamar essa
a um simples conjunto de ideias? luta de "anti-ideológica", mas não abandona a referência às ideias
Ninguém nega a necessidade da luta das ideias. Marx já dos trabalhadores como "ideologia proletária".
alertava para o fato de que a "arma da crítica" pode e deve ser Qual seria o motivo de esses revolucionários, não apenas Lenin
um complemento necessário à "crítica das armas". No entanto, e Gramsci, mas também Trotski, Rosa e outros, manter a utili-
parece que não encontramos, pelo menos em Marx, a referência zação de "ideologia proletária" em contraste com a conceituação
a essas ideias como ideologia; ao contrário, existe uma clara co- de Marx? Com certeza os problemas da Segunda Internacional e
notação "anti-ideológica" que pode ser apresentada pelo termo a polarização desses revolucionários com as ideias de reformismo
"consciência". Não é o que se passa com Lenin, por exemplo, tal pode ter precipitado a necessidade de uma distinção clara das ideias
como vemos: próprias dos trabalhadores, mas por que chamá-las de "ideologia"?
O problema põe-se unicamente assim: ideologia burguesa ou ideologia A resposta parece ser mais simples do que imaginamos. Apesar
socialista . Não há meio termo (.. .)Por isso, tudo o que seja rebaixar a de rerem escrito os manuscritos daquilo que seria A ideologia alemã
ideologia socialista, tudo o que seja afastar-se dela, significa forta lecer a por volta de 1845 e 1846, esse trabalho de Marx e Engels só foi
ideologia burguesa .. 6 publicado muitos anos depois do período no qual Gramsci, Lenin
Em Gramsci ocorreria o mesmo. No entanto, sua aproxima- e outros escreveram seus estudos. A ideologia alemã só foi publicada
ção culmina num resultado mais próximo da visão originária de pelo Instituto de Marxismo-Leninismo de Moscou no ano de 1932,
Marx. Apesar de supor uma ideologia proletária e uma burguesa, assim mesmo incompleta, pois a primeira parte encontrava-se de-
sua concepção é graduada em níveis diversos de existência das saparecida. A publicação na Íntegra aconteceu entre 1962 e 1966,
ideologias. Supõe as "ideologias historicamente orgânicas", vin- a tradução para o inglês e para o alemão surgiu apenas em 1968
culadas diretamente às exigências de estruturas de dominação e 1969. No Brasil, nunca chegou a ser publicada integralmente,
e poder historicamente determinadas, com força e coerência de contando apenas com a versão portuguesa.
um sistema; e ideologias "arbitrárias" ou "não orgânicas", que se Os revolucionários marxistas da primeira metade do século 20
formam por associação caótica de elementos de cultura, tradição, popularizaram um conceito de ideologia útil à luta que se travava
costumes, experiência cotidiana, e que serão a base do chamado como conjunto de ideias, mas que possui uma contradição, que não
senso comum e do bomsenso. O proletariado viveria sob a influên- é pequena, com o conceito de Marx. Não se trata de uma simples
cia da ideologia orgânica da burguesia, mas na forma de sua opção, escolher entre ideologia como conjunto de ideias ou ideo-
logia como inevitavelmente ligada à dominação de classe. Ao que
6
Lenin. V. I. Que fazer?, São Paulo, Expressão Popular, 2010, pp. 100-101. parece, implica em alguns equívocos teóricos e também práticos.

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Parece-nos extremamente inapropriado falar em "ideologia mpletasse a transição na direção de uma sociedade sem classe
proletária". Acreditamos que as ideias revolucionárias e à cons- - e, portanto, sem Estado - não se efetivaram.
trução de uma nova consciência social devam ser eminentemente O marxismo, ao contrário do que pretendem alguns, ao con-
anti-ideológicas, desveladoras daqueles véus que turvam a com- rrário de se negar, confirma-se tragicamente. Não é a consciência
preensão das reais determinações da vida e do funcionamento que determina a vida, mas a vida que determina a consciência,
da sociedade. nos lembra Marx. A consciência não pode ir além do estágio
Nesse sentido, voltando à pergunta inicial, nos questionamos: material que lhe determina, ainda que, por vezes, arrisque saltos
existiria uma "ideologia proletária"? Somos forçados a responder a partir de condições materiais ainda em germinação. No en-
que ... sim ... infelizmente, existe! tanto, no momento seguinte, a materialidade apresenta a conta
Existe não como esperavam alguns, como conjunto de ideias dessas ousadias.
dos trabalhadores contra as ideias burguesas, mas com toda a dra- A impossibilidade, por motivos estruturais e políticos, de imple-
mática negatividade do conceito original de Marx, verdadeiramente mentar relações sociais de produção plenamente novas, avançando
como uma ideologia. para uma sociedade sem classes, converteu-se na base para o esta-
Como tal, a ideologia proletária inscreveu-se nos marcos de belecimento de novas formas de dominação (ou a reapresentação
relações de dominação que necessitavam ser velados pelas brumas de algumas velhas), como a burocrática. Nesse contexto, passou
enganosas da justificação, naturalização e inversão do que é his- a ser necessário apresentar uma visão de mundo que r,~produz\~se
tórico e socialmente determinado. A forma histórica mais clara e justificasse a dominação, que apresentasse como natural o
de ideologia proletária é o estalinismo, mas não se restringe a ele. domínio de certos setores, investidos de funções ditas especiais,
No curso das revoluções proletárias do século 20, os trabalha- uma visão que procurasse apresentar os interesses desses setores
dores enfrentaram e derrotaram seus inimigos de classe, iniciaram particulares como se fossem universais. Reapresentam-se todos os
transições socialistas e constituíram Estados proletários. Que pese elementos da ideologia.
cada particularidade histórica de cada um desses processos. A pas- Muito além das transições socialistas, no interior da própria socie-
sagem do tsarismo russo para o regime soviético, do mandarinato dade capitalista, as ideias revolucionárias também se convertiam em
chinês para uma República popular, do colonialismo para Estados ideologia, só que em um sentido muito diferente. Não para justificar e
nacionais, vemos que essas transições foram marcadas por con- reproduzir o poder de uma camada burocrática e parasitária que não
dições materiais e políticas que levaram não ao definhamento do tem autonomia nem econômica, nem histórica,7 mas para perpetuar
Estado, como imaginado por Marx e reafirmado por Lenin, mas, a ordem capitalista. As ideias proletárias de transformação radical da
ao contrário, por seu fortalecimento e tendência à burocratização. sociedade, com o objetivo de estabelecer uma sociedade sem classes
Essas foram as circunstâncias que enquadraram as ações e contra e além do capital, aparecem como panaceias distributivistas
decisões políticas das diferentes vanguardas, assim como seus sob a permanência das relações de produção e de propriedade capi-
erros e desvios. O que nos importa aqui é que essas sociedades
pós-capitalistas continuaram abrigando profundas contradições, 7 Trotski, L. "A burocracia é uma classe domin ante ?", in Grande Pensadores Sociais, Ed.
Ática, São Pau lo.
inclusive de classe, nas quais os elementos necessários para que se

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talistas. A base material para essa outra metamorfose não é a vitória inverte, vela, naturaliza a realidade para apresentá-la como inevitabi-
de revoluções proletárias, mas seu fracasso e o impasse da luta de 1idade. Como essa ideologia social-democrata é sócia da principal, a
classes nos países de capitalismo mais avançado. Não é uma maneira burguesa, ela esconde e naturaliza as relações de produção capitalistas,
de se chegar ao socialismo, mas um meio de evitá-lo. apresentando-as como naturais. Entretanto, seus interesses não podem
A ação da classe é moldada para a conformidade; a identidade ser os da acumulação de capital, atividade vetada aos sócios menores
de trabalhadores é substituída por uma de cidadão ou povo; a ação da ordem; estes devem se contentar com postos na institucionalidade,
eleitoral, como via principal e, por vezes, única, desorganiza a classe om a ocupação de pontos subalternos de acomodação no interior do
como classe e a prepara para o consentimento. 8 As ideias proletá- sistema: burocracias sindicais, Parlamento, cargos públicos, adminis-
rias vão se enfraquecendo em um eco empobrecido da Revolução trações municipais e outras maravilhas do mundo democrático.
Francesa. Aos trabalhadores, como uma parte a mais da sociedade Ao lado do pesadelo do socialismo com burocracia, surge a farsa
capitalista, como parte integrante do capital, como capital variável, da burocracia sem socialismo. Os interesses particulares de quem
resta exigir seus "direitos" e cumprir seus "deveres". O horizonte de vivia para lutar contra as injustiças e passa a "viver disso" aparecem
"direitos" é delimitado pela ordem: receber salário pela venda de sua orno os "interesses da classe"; e os limites que impedem o salto
força de trabalho, ter acesso e consumir as mercadorias necessárias à revolucionário são apresentados como naturais e intransponíveis.
reprodução dessa força de trabalho, morar, vestir-se, comer. Às vezes, Diante disso, podemos ver o quanto de hipocrisia existe na
podem até mesmo ousar pensar no futuro desde que não ultrapassem afirmação peremptória sobre o "fim das ideologias". Elas não apenas
a ordem das mercadorias e do capital, e com a condição de que seu não morreram como se reforçaram no disfarce que melhor lhes
sonho poderá ser dividido em prestações de um crediário. abe, como "não ideologias".
Como sócia menor da ideologia burguesa, a nova ideologia Nós, incorrigíveis inconformistas, continuamos dizendo "não"
proletária-cidadã é muito útil quando se faz necessário enfrentar às ideologias, declarando guerra às quimeras e aos dogmas criados
os momentos difíceis da ordem democrática capitalista, como a pelos seres humanos, mas que se voltam contra eles e os degene-
fome, o desemprego, a violência, as guerras, o racismo e outras coi- ram. Continuamos, teimosamente, militando por um mundo sem
sas "ocasionais e eventuais", que acontecem com muita frequência lasses, sem Estado e sem ideologia. Não porque essas ideologias
no melhor dos mundos. Os conflitos sociais devem respeitar as acabarão pelo fato de antigos ideólogos terem sido eleitos e reeleitos
mediações institucionais e, evitando que os trabalhadores entrem para a presidência da República, governadores ou prefeitos. Não
em luta social contra a burguesia, esse conflito pode se dar entre pelo fim da luta pela deposição das amas, mas pelo fato de sermos
comportados, ou até exaltados, discursos do representante dos tra- apazes de abolir a dominação de classe e a exploração, superar
balhadores no Parlamento para seu colega burguês que, sonolento, a pré-história da humanidade e inaugurar uma era na qual seja
aguarda a vez de responder. possível reverter a ideologia novamente em uma consciência social.
Como toda ideologia, esta nova também se assenta sobre relações Pode ser que a materialidade presente nos desautorize, mas
de dominação, apresenta interesses particulares como universais, mudaremos o mundo ou morreremos tentando e, ao morrer, o
faremos denunciando a farsa com seus velhos e novos profetas,
8
Przeworski, A. Capitalismo e Social D emocracia , Cia. das Letras, São Paulo, 1989. om os olhos abertos e limpos de qualquer véu.

86 87
IV
A SEMENTE DO OLMO

Uma das leis da dialética diz que na semente já está contida a


árvore. Nunca um aspecto ficou tão visível como no prefácio de
Marx à sua obra Contribuição à crítica da Economia Política, de
1859. Nesta introdução, que poderia ser chamada de "rascunho
de O capital", o autor alemão consegue sintetizar todo seu estudo
anterior e abrir os caminhos de seus futuros trabalhos teóricos.
Cada vez que lemos este texto em nossas atividades de forma-
ção, nos espantamos com a densidade que podemos encontrar
em apenas um extrato de um simples parágrafo. Sempre salta um
novo aspecto não percebido, uma pista a ser procurada, uma tênue
linha ainda não desenvolvida. Nessa reflexão, com certeza sem a
pretensão de ser conclusiva, vamos-apenas pontuar alguns aspectos
para que possamos registrar reflexões esparsas que emergem da
contínua utilização desse valioso documento, seja nas discussões
sobre o método, seja em outros momentos do programa de forma-
ção do NEP- 13 de Maio.
EN S A I OS SOBRE CONS C I ÊNC I A E E MANC IP A ÇÃO M AU R O L u 1s I As 1

Nessas atividades, acreditávamos estar apenas realizando um Nossas reflexões concentram-se numa passagem extremamente
trabalho de interpretação de texto, um exercício metodológico que densa do prefácio, que se inicia com a síntese da "conclusão geral",
revelava os pressupostos materialistas e a lógica dialética presentes que serviria de "fio condutor" aos estudos futuros do autor.
na engenharia epistemológica do texto. No entanto, tem nos espan- A primeira reflexão, já bastante partilhada em nosso seminário
tado o fato de que algumas conclusões que emergem dessa análise sobre método, é que houve uma enorme confusão entre o método
surpreendem a muitos e acabam questionando versões aparente- propriamente dito e o resultado de sua aplicação. Fica claro, após
mente "óbvias" oriundas de leituras anteriores. Daí a necessidade uma leitura mais atenta, que o método está implícito no caminho
de sistematizarmos algumas dessas reflexões. que levou às constatações expostas e não pode, de forma alguma,
O livro Contribuição à crítica da Economia Política faz parte de ser reduzido a elas. Nesse sentido, a dialética materialista, está
um enorme esforço de Marx que se inicia em 1857 e que compõe contida na "conclusão geral", mas não pode ser reduzida às afir-
o chamado Grundrisses (1857-1858). Seu interesse pela economia mações que transformam categorias como "estrutura econômica"
partiu, como se sabe, de seus estudos sobre Filosofia e Direito, prin- ou "superestrutura" em elementos e leis gerais do método. Essa
cipalmente de sua Crítica à Filosofia do Direito de Hegel (1844), e, percepção aparente levou a interpretações mecânicas e parciais, ao
mesmo assim, apareceu mediado por uma preocupação mais com esquematismo dos manuais que transforma a riqueza do método,
os "interesses materiais" do que com a economia propriamente dita, como disse Engels tempos depois, numa "simples resolução de
mais precisamente a respeito do caso dos camponeses do Mosela, uma equação de primeiro grau".
na província renana, que se chocavam com os preceitos jurídicos A segunda reflexão é de que o pressuposto materialista destaca-
estabelecidos, pelo fato de pegarem lenha em domínios privativos se muito mais facilmente no texto através de passagens explícitas,
dos senhores da região. O próprio Marx afirma que se viu diante como a passagem da determinação do grau de avanço das forças
da "obrigação embaraçosa" de emitir a opinião sobre "o que é produtivas sobre a forma das relações sociais de produção, ou sobre
costume chamar-se de interesses materiais". a determinação do ser social sobre a consciência. A lógica dialética
Na crítica a Hegel surgiu o princípio pelo qual não poderíamos só é captada se superarmos a aparência do texto, se nos remetermos
compreender as relações jurídicas e as formas de Estado em si mes- ao movimento que busca ser descrito. Não se trata de definir como
mas, tornando necessário inserir esses fenômenos no conjunto das funciona uma sociedade dada, mas fundamentalmente como ela
condições materiais de existência, que Hegel chamava de "sociedade se transforma, como amadurecem as contradições que traz em si,
civil", ou "sociedade burguesa". No entanto, "essa sociedade civil" como cada um de seus aspectos se transforma em seu contrário.
teria que ser compreendida através de sua própria base material, Não se trata de definir campos estanques e diferenciados (estrutura/
o que leva Marx à importante constatação de que "a anatomia da superestrutura, ser social/consciência, economia/política etc.) mas
sociedade civil deve ser procurada na economia política". de buscar as determinações e relações complexas que se estabelecem
Interessante como, hoje em dia, muitos se esforçam para fazer entre essas esferas, nas quais o que é condicionado pode agir de
o caminho inverso, buscando explicar a economia pela sociedade forma determinante sem que deixe, por isso, de ser determinado.
civil, produzindo, não por acaso, a difícil transição da volta do O motor essencial desse movimento, que leva a sociedade antiga
socialismo científico ao utópico. à sua transformação em nova, é detectado por Marx na contradição

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entre o avanço das forças produtivas materiais e as relações sociais 'Stéril, Marx rios oferece a possibilidade de uma unidade dialética
de produção, de maneira que certas relações que impulsionam o •ntre aspectos subjetivos e objetivos que compõem o fazer histórico.
desenvolvimento das forças produtivas se convertem em obstáculos Na frase citada, o autor se refere às "circunstâncias" como o
a elas. Presos a uma visão restritiva da determinação material, po- ·ontexto objetivo imediato, a esfera do acontecimento. Podemos,
deríamos ser levados ao equívoco de conceber uma materialidade no entanto, nos remeter ao foco estrutural (que marca o prefácio),
não humana, determinando o rumo da história, um automatismo tomando tal síntese como pressuposto. O desenvolvimento ma-
que independe da ação dos seres humanos em cada período, res- Lerial da sociedade e o grau de amadurecimento da contradição
tando aos seres humanos o papel passivo de espectadores de uma que produz em seu seio é a base real que condiciona a ação dos
luta entre elementos objetivos. seres humanos; mas essa objetividade não se resolve em si mesma,
O que passa desapercebido, até porque não está explícito no só se realiza na ação humana, na luta de classes, que passa a ser
texto, é que a constatação da contradição central é, ao mesmo determinante, sem que com isso deixe de ser determinada pelos
tempo, a mais nítida confirmação do pressuposto materialista e contornos possíveis da materialidade.
a forma pela qual Marx introduz a essência de sua concepção de Por isso, não deveria nos espantar a afirmação contida no
história: a luta de classes. prefácio de que nenhuma formação social desaparece antes que se
Não são as "forças produtivas" que entram em luta com as desenvolvam todas as forças produtivas que ela contém e jamais
"relações sociais de produção". Sempre ironizamos nos cursos di- surgem novas relações sociais antes que amadureçam no seio da
zendo que jamais foram vistos tais elementos entrando em choque velha sociedade as condições materiais para sua existência.
pelas praças e cenários concretos da luta histórica. Essa luta ocorre Toda a polêmica da Segunda Internacional sobre a possibilidade
mediada por agentes históricos que, em cada momento, expressam da revolução, ou a necessidade de um longo período de acúmulo
essa contradição estrutural, ou seja, as classes que, em cada perío- de forças e reformas ainda dentro da ordem capitalista, que hoje
do, representam a necessidade de avanço das forças produtivas e se reapresenta de forma caricatural e sem sentido, está relacionada
as classes que pretendem manter inalteradas as relações sociais de com essa passagem à qual nos referimos. A leitura mecânica do
produção. Esse elemento, que está em germe no prefácio, permite princípio contido no prefácio pode levar à paralisia da ação humana
à Marx superar um dilema crucial que apavora o pensamento diante das determinações objetivas.
mecânico: afinal, são os seres humanos que fazem sua história, ou Lenin irá se apegar a uma passagem que vem logo a seguir nessa
são as circunstâncias objetivas? mesma reflexão, em que se afirma que, uma vez bem analisadas
Ao estudar um fenômeno histórico concreto (golpe de Luis as coisas, a "humanidade só coloca problemas que pode resolver",
Bonaparte, 1851), Marx já havia apresentado de forma acabada sua pois a existência do problema só se verifica quando já existem, "ou
visão sintética desse princípio ao afirmar que "os homens fazem estão em gestação" as condições materiais para sua existência. Não
sua própria história, mas não a fazem como querem; não a fazem se trata da precisão com que podemos detectar o amadurecimento
sob circunstâncias de sua escolha, e sim sob aquelas com que se das condições objetivas, mas da diferença essencial entre a forma
defrontam diretamente, ligadas e transmitidas pelo passado". As- estática de ver o fenômeno e a pretensão de ver o fenômeno em
sim, muito além de um subjetivismo vazio ou de um objetivismo movimento, traço fundamental de quem se pretende dialético.

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M AURO L u 1s I AS !
EN S A I OS S OB R E CONS C I ÊN C I A E EMANC I PA Ç ÃO

'm luta como uma "contraideologia" e a possibilidade de superação


Um aspecto, no entanto, parece contraditório. Se o prefácio é
da sociedade de classes e do Estado como a possibilidade de se re-
tão rico por conter em si os elementos centrais que se desenvolverão
tomar uma "consciência social", que seria por isso "não ideológica".
no corpo dos estudos marxinianos futuros, por que motivo a luta de
Como já discutimos em outra oportunidade (Boletim do
classes como momento essencial não apareceu de forma explícita?
FNM, nº 29, jan./fev. de 1997), poderíamos falar em "ideologia
Pelo fato de que o momento da análise que se expressa no
proletária" na medida em que certas ideias do proletariado fossem
prefácio é o momento "singular" da espiral dialética, ou seja, não
a justificativa de certas relações sociais de domínio, de subjugação,
se trata da forma "particular" de nenhuma sociedade, mas "da
que precisassem ser veladas, apresentadas como naturais e inevitá-
sociedade", do ato singular de os seres humanos estabelecerem
veis, que, através de uma concepção de mundo, de um conjunto
relações para produzir socialmente sua existência, da forma como
de_ valores, apresentassem uma visão particular como se fosse de
interagem com as condições materiais dadas; trata-se de como
toda a sociedade. Podemos falar nesses termos se nos referirmos
a maneira de satisfazer o "primeiro ato histórico" condiciona as
a manifestações como o estalinismo ou outra forma similar em
form~~ d~ organização e decisão, as normas jurídicas e a própria
países que empreenderam a transição socialista sem que estivessem
consc1enc1a. Por ser um juízo singular, isso se aplica tanto à socie-
dadas as condições materiais para o salto em direção à sociedade
dade de classes quanto à sociedade sem classes.
sem classes.
Dessa forma, aspectos particulares da sociedade de classes
Outro aspecto da árvore do pensamento de Marx que podemos
ficam fora da síntese singular, tais como Estado e ideologia. Uma
encontrar na semente é exatamente a reflexão sobre a passagem
~utra reflexão bastante interessante e que deveria ser aprofundada
do capitalismo a uma nova forma de sociedade. Os detratores
e _que ~arx, em nenhum momento, usará o termo "ideologia"
do pensamento socialista se alegram em afirmar que Marx fra-
(zdeologze), mas falará de "consciência (Bewusstsein) social". Em
cassou em suas previsões, exatamente pelo fato de a revolução
nossa interpretação, isso se dá pelo fato de que o autor tem um
ter ocorrido em países onde o avanço das forças produtivas não
definição de ideologia negativa, quer dizer, para ele, ideologia é
estava plenamente dado, onde esse avanço poderia produzir mais
um instrumento de uma classe em seu esforço de dominação, as
claramente a contradição com as relações sociais de produção. O
relações sociais dominantes convertidas em ideias, ideias de seu
desfecho histórico das transições socialistas do século 20 parecem,
domínio que servem de inversão, naturalização e velamento com
no entanto, comprovar a tese de Marx duplamente. Primeiro, pelo
a finalidade de legitimar e reproduzir a ordem estabelecida.
fato de que o desenvolvimento do capitalismo, em nível mundial,
Essa simples constatação nos colocou numa posição bastante
já anuncia contradições que, mesmo em germe, podem colocar a
delicada. Ora, se esse é o conceito originário em Marx, fica muito
classe proletária em marcha e abrir uma "época de revolução so-
difícil transpor o termo ideologia, como normalmente acontece
cial", o que tornou possível as revoluções que se sucederam desde
inclusive em marxistas notórios como Lenin, como se significasse
a Comuna de Paris até as mais recentes. Segundo, pelo fato de que
a~enas "doutrina" ou um conjunto de ideias. Essa concepção poste-
as condições materiais onde se deram tais processos revolucionários
nor a 1;°1_ª~,x gerou uma distorção: a de se conceber uma "ideologia não foram suficientes para a passagem até novas formas de relação
proletana que se ergueria contra uma "ideologia burguesa". Para
social que permitissem, ao caminhar para o desaparecimento das
nós, parece evidente que Marx concebeu as ideias do proletariado
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classes, que o Estado "definhasse". Por isso, dizemos que Marx Não desenvolveremos a crítica a essa ilusão neste artigo, crítica
estava, tragicamente, certo. que tem recebido a atenção de pensadores mais competentes no
Isso nos remete a uma última reflexão que nos parece fun- assunto, como Ricardo Antunes, ou mesmo neste boletim em
damental e à qual só chegamos muito recentemente. O modelo, vários artigos de Emílio Gennari e de Paulo T umolo. Procurarei
no qual Marx se baseia para procurar conhecer o funcionamento aqui explorar o tema sobre um outro aspecto.
da sociedade e a forma pela qual se transforma é a passagem do Por que, na manifestação cada vez mais evidente da contradi-
feudalismo para o capitalismo. É possível ver nitidamente no cor- ção estrutural, a classe proletária se coloca numa posição política
po do texto e em suas conclusões a base histórica na qual Marx tão defensiva? Por que nossa consciência de classe engatinha e
se referencia para construir seus conceitos. É o desenvolvimento tem enormes dificuldades de alcançar a autonomia histórica tão
das forças produtivas, ainda no seio do feudalismo, que permite a necessária ao confronto inevitável com nosso inimigo de classe
emergência da contradição entre esse grau de avanço e a forma das e acaba se diluindo, ainda de forma tão evidente, nos meandros
relações sociais de produção de tipo feudal, que passam a entravá- ideológicos do universo liberal burguês?
lo. Aqui é fundamental o paralelo do prefácio com o Manifesto Evidente que, nesse ponto, intervêm variantes de natureza
comunista (1859/1848); nesse último vemos materializado no pró- política ligadas à correlação de forças e grau de amadurecimento
prio desenvolvimento histórico descrito o "mecanismo" presente da luta de classes, mas aqui nos interessa um aspecto teórico que,
na síntese contida no prefácio. nos parece, pode estar passando despercebido. É verdade que a
De certa forma, Marx projeta para o modo de produção capitalis- burguesia, em seu período revolucionário, representava a classe
ta sorte igual a do seu antecessor histórico. Hoje, seria o capitalismo que· manifestava em si mesma a necessidade de avanço das forças
que estaria colocando em marcha as forças produtivas a tal ponto produtivas; e que hoje essa classe é o proletariado. No entanto, a
que o desenvolvimento dessas se chocaria com a forma das relações posição que ocupava a burguesia no interior das relações feudais
sociais de produção. É possível ver, de forma cada vez mais nítida, é, em certo sentido, qualitativamente diferente da que ocupa o
manifestações que expressam essa contradição. No entanto, a grande proletariado no modo de produção atual.
questão é: qual classe representa, na trama atual, o papel de classe A burguesia se desenvolveu dentro da ordem feudal, mas fora
revolucionária desempenhado pela burguesia anteriormente? do eixo central da relação senhores feudais/servos no qual a classe
Marx deixa evidente no conjunto de sua obra que, para ele, dominante extraía sua fonte principal de riqueza. Sua autonomia
tal classe é o proletariado. Entretanto, esse tem sido atualmente em relação à classe dominante não era uma ambição política, mas
o principal ponto de questionamento que os sempre atentos ini- antes um fato material na autonomia das cidades, do comércio, nas
migos do marxismo procuram explorar. Chega-se a falar do fim corporações e depois nas manufaturas. Ela pode amadurecer seu
do proletariado, da superação do "mundo do trabalho" mesmo poder econômico até poder rivalizar com a nobreza feudal, até po-
dentro da ordem capitalista, de forma que o capital poderia ter der apresentar seus interesses particulares como universais e atrair
encontrado uma forma de desenvolvimento que não trouxesse em as outras classes para a luta revolucionária contra a ordem feudal.
si o fortalecimento da classe que lhe é oposta, um tipo de utopia O proletariado, ao contrário, é uma classe presa à própria
amplamente partilhada de capitalismo sem trabalho. relação fundamental, capital/trabalho, é um polo dessa relação

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E NSA I OS SOBRE CONSC I ÉNC I A E E MANé I P AÇÃO M AU R O L u 1s ! AS I

estando diretamente inserido nela. Sua autonomia é uma possibi- esquerda". E O que seria essa "nova política?" Ela cons~stiria essen-
lidade, mas não uma realidade no corpo das relações dadas. Ele cialmente no abandono de uma orientação de conflito por uma
não pode amadurecer seu poder econômico, que vem do fato de orientação "propositiva". Os trabalhadores deveriam a~resentar
ser a única mercadoria que pode gerar valor ao ser consumida, fora um novo modelo de desenvolvimento, mas, quando mdagado
das relações capitalistas. A unidade de contrários que se estabelece qual seria esse modelo, a resposta é reforma agrá~i~ seguida de
entre trabalho e capital faz com que a crise do capital seja também uma política de desenvolvimento da pequena e media_ empresas,
a crise do trabalho, na forma assalariada. Isso, além da unidade, de apoio a iniciativas cooperativistas e o ~~senvolv1~ento ~a
revela à identidade dos contrários que compõe a forma capitalista. ; c1v
construçao · 1·1. Tudo isso desenvolvendo o mercado mterno ,, .e
A sempre presente disposição das lideranças operárias em salvar convencendo o capital externo a investir "produtivamente , pois
o capitalismo de suas crises, os limites da consciência sindical, a nas próprias palavras de Lula: "os estrangeiros têm intere~se ;em
reforma como primeira opção antes da constatação da necessidade nosso mercado consumidor, afinal somos mais de 160 m1lhoes,
da revolução são provas dessa identidade mal resolvida. mais interesses terão ainda quando nós melhorarmos o poder
A burguesia, ao seu tempo, também produziu movimentos de aquisitivo do nosso trabalhador". .
acomodação em relação à ordem feudal. A grande burguesia comer- Além de demonstrar total desconhecimento do mecamsmo
cial aceitaria de bom grado uma existência política subordinada à próprio do funcionamento do capitalismo, m~i~o ~erros de sua
ordem feudal; no entanto, a burguesia não poderia sobreviver his- fase monopolista e imperialista, o líder operano nao consegue
toricamente senão fazendo saltar as relações feudais e seus entraves. avançar um palmo além dos limites do imedi~to, n_ão conse~u~ se
O proletariado moderno, ao contrário, vê sua própria existência, candidatar a outra alternativa que não seja as mscntas nos hm_1tes
em si mesma, ligada à ordem que o oprime, gerando a ilusão de estreitos da ordem capitalista, dentro dos quais as forças produtivas
que a destruição da ordem capitalista é a sua própria destruição. tendem a se autodevorar e com elas a própria sociedade.
Por isso, Marx apresentou no amadurecimento da consciência A burguesia só conquistou autonomia histórica quando, ~endo
proletária um traço distintivo fundamental. Enquanto classe em por base sua autonomia real, construiu, em luta co~tra o umverso
si, o proletariado não consegue se colocar na devida autonomia ideológico feudal, suas próprias ideias. O proletar_1ado moderno
histórica necessária à mudança revolucionária da sociedade; é so- parece ~sperar fazer a luta contra a burguesia partilhando de seu
mente quando consegue se erguer acima de sua condição imediata universo ideológico como se a humanidade não conhe~esse ~utra
de classe, quando consegue se colocar no papel de sujeito capaz forma de pensar e julgar o mundo que não fosse o hb~rahsmo
de representar uma alternativa histórica autônoma que salva a burguês. Imaginem O que seria do pensamento burgues se Lo-
sociedade e as forças produtivas das amarras da forma capitalista, cke, em. seu Tratado sobre o governo, se rendesse à afirmação que
é que o proletariado pode almejar representar os interesses gerais, a forma monárquica é a única legítima; se Rosseau trocasse,su~s
a partir de seus próprios interesses. ideias de contrato social pelas do imobilismo estamental propno
Enquanto não se conquista essa autonomia, o proletariado do feudalismo. ,.
fica repetindo ideias que não são suas, como ilustra a entrevista de A única alternativa ao proletariado revolucionário é sua critica
Lula ao jornal do Brasil, na qual prega uma "nova política para a contra a forma capitalista, é sua própria superação enquanto classe

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particular, mas ele não encontra base para essa autonomia na sua V
posição no interior das relações capitalistas; por isso mesmo, deve O CONCEITO E O "NÃO CONCEITO"
buscá-la na negação da totalidade do sistema. DE CLASSES EM MARX*
Voltando ao prefácio, podemos dizer que o capital continua
fazendo a sua parte, colocando em movimento forças produtivas
que, dentro da atual forma, não podem se resolver sem precipitar Todo pensamento esmaga-se
a si mesmo enfim com leis
toda a sociedade à beira da destruição. Se o proletariado não fizer
a sua parte, o capitalismo pode inviabilizar não apenas sua forma Nietzsche
histórica de sociedade, mas também a própria sobrevivência da
humanidade.
Uma vez que essa humanidade só se propõe problemas que
pode resolver, acreditamos que estão dadas as condições para sua
solução. Resta saber se seremos capazes de, baseados nelas, libertar
o mundo de sua pré-história, pois, como é sabido, se na semente
já existe a árvore, existem árvores que morrem presas em sementes
que não germinam.

Comentando a concepção habermasiana sobre Estado, Leopoldo


Waizbort 1 reproduz de forma muito clara o atual questionamento
sobre a validade do conceito de classe. Criticamente provoca nossa
reflexão ao colocar a questão que tem se levantado contemporanea-
mente nos seguintes termos:
Pergunta: é a classe, hoje, definidora de identidades coletivas? Em que
medida, ou até onde? Não foram as classes enfraquecidas na sua qualidade
de definidoras por excelência de identidades coletivas? Ou: quais são, hoje,
2
as principais estratégias sociais na definição das identidades coletivas?
Partindo da afirmação de Marx,3 que teria definido as classes
da sociedade capitalista como sendo três (capitalistas, assalariados

* Publicado resumidamente na revista Debate Sindical, ano 15, nº 39 setembro de 2001.


, Waizborc, L. "Classe social. Estado e ideologia". Tempo Social, revista Sociologia, USP,
São Paulo, 10(1), pp. 65-81 , maio de 1998.
2 Idem , p. 67.
Marx, K. O capital, livro 3. vol VI, cap. 52, Civilização Brasilei ra, Rio de Janeiro, s/d.

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E NSA I OS SOB RE CONS C I ÊNC I A E EM ANC I PA Ç ÃO
MA URO Lu ,s I As 1

e proprietários de terra), Waizbort se pergunta se tal definição


para justificar essa afirmação se baseia em cinco pontos que dife-
ainda seria válida. Dizer que "sim", continua o autor, significaria
renciariam essencialmente a relação entre as classes naquilo que
afirmar que consideramos a sociedade atual como uma sociedade
chama de sociedade contemporânea.
capitalista e que o metabolismo essencial do capital, ainda que na
Em primeiro lugar, teria havido, ao contrário do que previa
forma avançada, segue determinando "uma oposição irreconci-
M arx, não uma homogeneização das classes em dois blocos antagô-
liável entre capital e trabalho". Dizer que "não" é supor que esta
nicos, mas uma profunda diferenciação no interior da classe traba-
sociedade atual é distinta essencialmente da capitalista e que seu
lhadora, principalmente na formação de "assalariados qualificados",
desenvolvimento mais recente alterou as relações sociais a ponto de
engenheiros, trabalhadores em escritório e outros. Associado a esse
permitir que a relação entre as classes não seja mais caracterizada
fenômeno, Dahrendorf detecta o fortalecimento de uma "classe mé-
como "irreconciliável", uma vez que no interior dessa nova socie-
dia", que não poderia ser pensado propriamente como uma classe
dade, que alguns chamariam de "industrial", capital e trabalho
social, devido à sua "ambiguidade" expressa em seu comportamento
encontrariam áreas onde seus interesses seriam "comuns", ainda
político, que tende à identidade com a burguesia, ainda que per-
que não se exclua "zonas de conflito".4 Waizbort considerará am-
maneça no campo das relações econômicas como assalariada. Em
bas as respostas insatisfatórias propondo, à maneira de Theodor
terceiro lugar, o sociólogo alemão aponta a "mobilidade social" que
W Adorno, que estaríamos numa sociedade capitalista avançada,
teria se verificado intensamente entre os estratos sociais e mesmo
portanto que se caracterizaria pela permanência do conflito e da
dentro de cada um deles. Isso levaria, segundo Dahrendorf, "pela
irreconciabilidade de interesses entre capital e trabalho, no entan-
primeira vez na história social moderna", às condições ~ara_ ~ue
to, com elementos de uma sociedade "industrial" no que tange à
a "igualdade se efetive na prática". Essa igualdade tornana v1avel
possibilidade de áreas de interesses comuns entre as classes (como
formas políticas, antes impossíveis, que acabam por diminuir a
no caso do Estado do bem-estar social).
5 intensidade dos conflitos de classe, alterando sua substância. O
Sérgio Adorno, ao tratar de outro tema apresenta a posição de
6 resultado disso é que há um deslocamento do centro do conflito
Dahrendorf, que nega a validade atual da análise marxiana sobre
(que não deixa de existir, mas tem alterada sua substância), uma vez
as classes. Segundo Adorno, Dahrendorf "acolhe as concepções de
que, na situação anterior, as classes disputavam recursos escassos
Marx quanto à natureza do conflito de classes na sociedade indus-
e, agora, passam a disputar as ferramentas de representação insti-
trial de seu tempo, isto é, os conflitos predominantes no século
tucional que permitem a gestão de recursos e a sua distribuição,
19; no entanto, discorda que o modelo marxista seja aplicado à
levando à quinta característica que seria, então, "a institucionali-
sociedade contemporânea''.7 O argumento do sociólogo alemão
zação dos conflitos sociais". 8
4
O que há de comum nesses questionamentos sobre o conceito
Waizbon, L. op. cit., pp. 69-70.
5 de classes em Marx, e mesmo, arrisco dizer, em muitos daqueles
Adorno, S. "ConAicualidade e violência: reAexões sobre anomia na contemporaneidade".
Tempo Social: op. cit. , 10(1):19-47, maio de 1998. que procuram afirmar a sua validade atual, é que muitos deles não
6
Dahrendorf, R. As classes e seus conflitos na sociedade industrial. Coleção Pensa mento
Político, 28, Brasília, UnB , 1982. • Toda essa síntese das cinco características apontadas por Dahrendorf para justificar a
7
Adorno, S. p. 20 alteração da natureza do conAico entre as classes é aqui apresentada a partir da sistema-
tização feita por Sérgio Adorno no artigo já citado.

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M AUR O L U I S I AS I
ENSA I OS S O BR E CONSC IÉ NC I A E EMAN C I PA Ç Ã O

captaram de forma totalmente apropriada a forma como Marx ainda será alterado com a introdução da categoria fetiche, mas
trabalhava "conceitos". Dessa forma, alguns chegam a afirmar que, isso não nos interessa no momento.
pelo fato de ter interrompido seu famoso capítulo 52 de O capital, Aquele que se contenta com a primeira forma, ou, mais pre-
seu autor teria deixado por definir melhor o conceito de classe, cisamente, o primeiro momento da definição de mercadoria, como
gerando essa enorme confusão em que vivemos hoje. Concluímos, valor de uso e valor de troca, não estaria percebendo que afirmava,
assim, que o maior erro teórico de Marx teria sido ... morrer. como sendo de Marx, um conceito que não é. E que, portanto,
Em uma das apresentações de O capital, um resenhista afirma pertenceria nada menos, do que a Aristóteles.11 O mesmo ocorre
que, para Marx, não interessa o fenômeno como forma definida, quando vai definir a fórmula do capital e, partindo da afirmação de
mas "o mais importante de tudo, para ele, é a lei de sua transfor- que dinheiro como dinheiro e dinheiro como capital se diferen~iam
mação, de seu desenvolvimento, isto é, a transição de uma forma pela forma de circulação, nos diz que o capital não pode surgir da
para outra, de uma ordem de relações sociais para outra". 9 Dessa circulação simples de mercadoria (M - D - M), mas somente na
forma, Marx não é um pensador do qual podemos esperar concei- forma de circulação onde o dinheiro aparece como início e fim do
tuações bem ao gosto de manuais do tipo "isto é: ..", "aquilo é:.. ". processo (D - M- D) e, dessa forma, conclui, "o dinheiro que se
Vamos a um exemplo. No primeiro capítulo de O capital, seu movimenta de acordo com essa última circulação transforma-se
. ~ , . l" 12
autor parte da categoria de mercadoria e para isso vai construin- em capital, vira capita1, por sua d estmaçao, e capita .
do sua conceituação. No entanto, para os mais apressados por Ora, sabemos que essa fórmula é absolutamente insuficiente
definições, mercadoria seria inicialmente definida como um para descrever O movimento que transforma o dinheiro em capital,
valor de uso que pode ser trocado em certas proporções, reve- é apenas um momento do processo de definição e, enquanto mo-
lando, assim, um valor de troca. Acontece que esse "conceito" mento, não é falsa. O conceito ainda exigirá a afirmação de que o
refere-se ao momento da análise em que o fenômeno é observado capital pressupõe uma valorização que se expressa numa alteração
em sua aparência. Uma análise mais detida revela que o valor do valor final na forma dinheiro (D - M- D '). Mesmo assim, essa
de troca só pode ser a expressão de algo mais substancial que é a definição do capital conforme ele aparece diretamente na circu-
não se revela a princípio e que será, posteriormente, definido lação.13 Mais adiante, a fórmula do capital só pode ser expressa em
como uma certa quantidade de trabalho humano abstrato, seu real movimento de entificação quando incluirmos o momento
socialmente necessário para produzir uma mercadoria, ou, em da produção da mais-valia, o que implica na compra da força de
outras palavras, seu valor. Dessa forma, afirma Marx que as trabalho pelo proprietário privado dos meios de produção e daí
coisas "assumem a feição de mercadorias, apenas na medida em que a fórmula do capital assume a seguinte forma:
que possuam dupla forma, aquela forma natural e a de valor". 10
Mais adiante, com o conceito de mercadoria em movimento,
11 cada coisa que possuímos tens dois usos (... ), o uso próprio do sapato é ca lça r:
"( •• •)

podemos também vendê-lo ou trocá-lo para obter dinheiro ou pão, ou alguma outra
9
Observações de um resenhista russo à obra de Marx citado por ele próprio no posfácio coisa (.. .)".Aristóteles.A política, Martins Fomes, São Pau lo, 1998, p. 23.
da 2' ed. de O capital, vol. I, livro primeiro, p. 14. 12 Marx, K. , op. cit., p. 166.
0
' Marx, K. , op. cit., p. 55 . 13 Idem , p. 175.

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EN S A I OS SOBRE CONSC I ÊN C I A E E MANC I PA ÇÃO

"à primeira vista" assim pareça. O termo-chave é exatamente "à


~MP
primeira vistà', o que remete à aparência, ponto de partida para
D-M ... P... M'-D'.
~FT
um processo de abstração que foi interrompido.
Perdemos, então, a possibilidade de verificar o conceito de
classes em Marx, assim como o fictício romance escrito e perdido
O que estamos tentando demonstrar é que a dialética de Marx não
para todo o sempre de Isaac Babel? Não, pois o conceito de classes
se reduz ao movimento que quer captar no fenômeno, mas que tal
em Marx não está no último suspiro de um capítulo inconcluso
dialética se expressa no movimento próprio dos conceitos, de forma
de O capital, mas em toda a extensão de sua vasta obra.
que eles se referem a momentos de aproximação e aprofundamento
Podemos encontrar no conjunto da obra vários momentos que
da análise que parte da aparência até a essência, da essência menos
indicam as diferentes determinações particulares que constituem
profunda até a mais profunda, por vezes de volta à aparência carre-
a definição do fenômeno de classe. Podemos, nos limites desse
gando os conteúdos conquistados até então. Disso resulta que o leitor
presente esforço, dizer que essas determinações podem ser, em
desavisado pode confundir uma dessas aproximações com "o conceito"
uma primeira aproximação, resumidas nos seguintes momentos:
definitivo de um determinado aspecto ou coisa a ser estudada.
1. classe seria definida, num determinado sentido, pela posição
Creio que, naquilo que diz respeito às classes sociais, muitas
diante da propriedade, ou não propriedade, dos meios de produção;
vezes, se contrapõem vários momentos do processo de construção
2. pela posição no interior de certas relações sociais de produção
do conceito de classes como se fossem construções autônomas e
decisivas. Por exemplo, quando afirmamos que o conceito de classes (conceito que foi quase que generalizado como único);
3. pela consciência que se associa ou distancia de uma posição
da sociedade capitalista engloba apenas os capitalistas, assalariados
e os donos de terra, isso é verdade apenas se tomarmos por refe- de classe;
4. pela ação dessa classe nas lutas concretas no interior de uma
rência o momento de análise a que se refere essa conclusão; é um
absurdo se tratarmos de uma formação social concreta uma vez que formação social.
Em relação à propriedade, no caso da sociedade capitalista,
existem classes que não estariam de forma alguma englobadas nes-
poderíamos chegar ao conceito de burguesia e proletariado, como
sas três categorias. Apenas para dar um exemplo: um trabalhador
aqueles que detêm a propriedade dos meios de produção e os q~e
rural que não seja assalariado e que não seja proprietário de terra
vendem sua força de trabalho. No entanto, isso é insuficiente, p01s
(como um parceiro, meeiro, ou outra forma qualquer).
A primeira coisa a dizer, então, é que o conceito de classes de um latifundiário é proprietário de meios de produção, mas, não
os utilizando como capital e não contratando força de trabalho
Marx não está no lugar mais óbvio: no capítulo 52 ... "as classes".
Esse é um capítulo no qual a grande frase que deveria ser levada assalariada, não se constitui em burguês, formando uma classe à
em conta é a final: "Interrompe-se aqui o manuscrito". Marx está parte. O mesmo poderíamos dizer de um camponês que em si ~
um proprietário de terra, mas não é um latifundiário e nem extrai
montando a afirmação, primeiro momento de um processo de
a renda da terra da mesma forma que esse. Isso implica que anali-
construção do conceito, para negar essa afirmação mais tarde (o
semos mais que as simples relações de propriedade, mas as relações
que não fez). Ele não está dizendo que as classes se definem por
diferentes formas e fontes de renda, ainda que, automaticamente, sociais que se estabelecem, uma vez que a classe é um conceito que

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EN SA IOS SOB RE CONSC I ÊNC I A E E MANC I PAÇÃO

ma pessoa pode ser um assalariado por sua posição no inte-


não pode ser definido pela análise abstraída de um grupo social;
1 111· das relações sociais, portanto, um não proprietário de meios
ao contrário, só se revela na relação com outras classes.
1, pr dução, mas, devido exatamente ao ponto que ocupa ness:s
O proletariado não é em si proletariado a não ser que venda sua 1
•1, - es, ou, por outros motivos, atua e pensa como um burgues,
força de trabalho em troca de salário, e isso implica a classe que a 1 1
• s ma ao partido burguês nas lutas concretas da história e se
compra. Mas só o ato da compra não caracteriza a relação, a força
di spõe a representar essa classe se uma oportunidade lhe apre-
de trabalho deve ser comprada como mercadoria para ser consu-
•ntar, seja produzindo teoria, ocupando um cargo parlamentar
mida em um processo de produção de mercadorias, que produza,
ou participando da gestão de uma empresa. Esse senhor é parte
além disso, 1;1ais-valia, para que estejamos falando de uma relação
orgânica da burguesia, ou, melhor dizendo, compõe, nesse nível
ca~i~alista. E só no interior dessa relação que uns tornam-se pro-
la análise, o burguês coletivo.
letanos para outros tornarem-se capitalistas.
Em um outro caso, uma pessoa que não vende sua força de
Podemos dizer, portanto, que o conceito de classes é relacio-
trabalho (ou porque ninguém quer comprar, ou porque tem sua
nal._ No entanto, não podemos nos limitar a tais determinações.
existência garantida por outra via) não é um assalariado, tem sua
Assar_i como o concreto, as classes são síntese de múltiplas parti-
origem social no interior de outra classe que não os trabalhado-
cularidades. O que foi definido até agora não é falso, apenas é 0
res, mas, por suas convicções e sua consciência, se soma à ação
momento de construção do conceito a partir de sua base material
concreta da classe em sua luta contra o capital, torna-se parte do
ou econômica. No entanto, o fenômeno classe não se restringe a
que poderíamos chamar do proletariado, ainda que enquanto
essa determinação.
Quando pegamos um estudo concreto como o 18 brumário, indivíduo não o seja.
Ferna ndo Henrique (antes de comprar suas fazendas e se
por exemplo, Marx chega a definir os diferentes grupos atuantes
tornar sócio em alguns "negócios") nada mais é do que um mero
naquela intrincada conjuntura muita mais decisivamente pela ação
professor universitário, portanto, um trabalhador assalariado.
que desempenham e pelas concepções de mundo que representam,
M as sua ação e sua consciência o torna parte integrante da classe
do que mesmo pela sua posição no interior das relações sociais ou
dominante, ainda que enquanto indivíduo não seja um burguês.
diante da propriedade. Não que essa dimensão tenha deixado de
Por contraste, Marx não é como indivíduo um proletário (ainda
atuar, mas que, limitando-se à essa determinação, seria impossível
que sua situação de privação e seu desejo em vender sua força de
desvendar a trama dos acontecimentos. Isso significa dizer que
trabalho para o escritório de uma ferrovia quase o tenha trans-
para Marx a forma com que as classes atuam no campo concreto
formado em um), mas ninguém poderia negar a ele um lugar no
da história, a consciência que representam em cada momento, são
coletivo proletário por sua consciência e por sua ação no interior
fatores determinadores de seu caráter. 14
da luta de classes.
Portanto, a consciência e a ação são, também, fatores que cons-
'4 "A s c_I asses de~e m_ ser consid
· erad as co mo efeitos de lucas es truturad as por co ndições tituem a determinação de classe. Ao incluirmos a "ação de classe"
o_bJ envas que sao s1mulca nea mence de ordens eco nômica, política e ideológica(... ). Pre-
c'.sam ence por ser a fo rmação d,e d asses um efeito d e lucas, os resultados desse processo como uma das suas determinações, necessariamente ampliamos
sao, ~m _cad a momento da h1stona, em cerca m edid a indetermin ados". (Przeworski , A. ,
nossa visão para um corte histórico.
Capttalzsmo e SoctaL-Democracia, C ia. d as Letras, São Paulo, 1989, p. 67.

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15
Outra dimensão do conceito de classes em Marx é muito forma concreta de ação histórica. Adam Przeworski, analisando
mais abrangente e complexa. Trata-se da afirmação das classes essa questão, afirma que a leitura ortodoxa realizada por Kautsky
como sujeitos históricos. Como sabemos, para Marx, a história é leva à definição de classes, inevitavelmente, duas respostas. Por um
movida pela luta de classes, mas, nesse âmbito, o próprio conceito lado, a posição de classe leva necessariamente a uma consciência
de classes ganha uma nova e diferente natureza que, ao mesmo de classe correspondente e, mais cedo ou mais tarde "as relações
tempo, está ligada às determinações anteriores e delas se distancia. de classe objetivas espontaneamente encontram expressão na es-
Essa dimensão histórica de classe tem um aspecto que podemos ,
fera da atividade pohtica . • . ,, .16 E ssa sena
e d a consc1enc1a . a re sposta
chamar de "estrutural" e outro que poderíamos chamar de "político". "determinista", segundo Przeworski. A segunda resposta possível
O aspecto "estrutural" se refere à concepção de Marx pela qual uma é chamada de "voluntarista" e se caracteriza pela afirmação de
sociedade entra em processo de superação e mudança, na medida em que as condições objetivas não levam por ~i mesmas,~ um~ :ç~o
que o desenvolvimento de suas forças produtivas materiais alcança histórica revolucionária, no máximo produzmdo uma consc1enc1a
um grau em que estas entram em contradição com as relações so- do proletariado de caráter reformista, sindicalista e burguês". ~s_sa
ciais de produção, dentro das quais havia se movido a sociedade até resposta "voluntarista", ainda segundo o mesmo autor, conclu1na,
então. Essa contradição estrutural é mediada no terreno da história portanto, que a ação da classe como um sujeito só poderia ocorrer
por classes que, em cada momento, representam a necessidade de com a ação de um "agente externo", ou seja, do partido.
desenvolvimento das forças produtivas em um novo patamar e os Essa polaridade mecânica contribui muito para uma visão em-
interesses de manutenção de certas relações sociais de produção. pobrecida da questão da classe e da consciência de classe. Partin~o
É na dinâmica da luta entre essas classes que podemos inserir a remotamente de uma referência mal digerida sobre os termos marx1a-
dimensão política na qual uma classe particular da sociedade reúne nos "classe em si" e "classe para si", concluí-se que os trabalhadores,
condições de representar os interesses gerais, tornando-se o que pela simples posição que ocupam nas relações de produção (classe em
Marx chama de classe revolucionária ou universal. É nesse âmbito si), só poderiam desenvolver uma consciência reformista, ou mesmo
que Marx afirma que o sujeito histórico são as classes. se mostrarem aptos a um conservadorismo inquietante. A "verdadeira
Podemos, então, afirmar que, além de determinações mais consciência de classe" seria aquela expressa não pela consciência da
elementares, como a posição diante de certas relações sociais de "posição", mas da "missão", nos termos de Kautsky, ou seja, da classe
produção, ou da propriedade dos meios de produção fundamentais que assume a luta política contra o capital na perspectiva de uma
17
em cada momento, da consciência e da ação de uma classe em uma superação revolucionária da sociedade.
formação social concreta, Marx vê as classes como sujeitos das
alterações históricas, como mediações históricas das contradições
estruturais que amadurecem no interior de cada sociedade. 15 Przeworski , A., Capitalismo e Social-Democracia, p. 71.
16 Idem, ibidem .
O problema nessa complexa conceituação é que as diferentes 17 D e certa form a, essa visão um tanto simplista ainda persiste em meu primeiro esboço
determinações não se alinham mecanicamente para conformar de estudo publicado com o dtulo O processo de consciência (CPY, Sã? Paulo, 1999). No
entanto, os próprios elementos ali colocados permitiram que a connnu1dade do es tudo
uma classe concreta, isto é, uma classe que ocupa certo ponto nas recolocasse a ques tão em termos m ais precisos como, por exemplo em O dilema de
relações, assumindo, por isso, uma determinada consciência e uma Hamlet, 0 ser e o não ser da consciência de classe, Viramundo, São Paulo, 2002.

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Assim, voltamos às definições estanques e à negação do movi- Atualmente, a ofensiva teórica e ideológica sobre os conceitos
mento. Em um estudo mais recente, 18 afirmo que, se considerarmos marxianos concentra-se além da afirmação do proletariado como
a consciência de classe como movimento, ela não estaria nem na sendo a classe que pode assumir o papel de classe universal no atual
consciência em si, nem na consciência para si, mas no movimento contexto histórico. Passa-se a questionar o próprio pressuposto de
que leva de uma até a outra. Analisando os momentos abstraídos do que as classes sejam sujeitos históricos, pelo fato de que se questiona
processo, os trabalhadores ora seriam "ontologicamente reformis- a existência mesma de um sujeito na história. A moderna reedição
tas", como afirmou Gorender, 19 ora destinados por sua "essência" das noções nietzschianas sobre uma história descontínua, baseada
21
a serem revolucionários. na singularidade do acontecimento, por exemplo em Foucault,
Ao analisarmos os trabalhadores como seres de uma socieda- em nome de uma crítica a uma essência teleológica metafísica,
de concreta, a forma como veem o mundo, sua identidade como acaba por negar a ação de um sujeito histórico que não tem nada
indivíduos, suas formas de vida e de ação cotidiana, suas relações de metafísico.
concretas com o trabalho, captamos o momento em que esse tra- A burguesia ao seu tempo e hoje o proletariado são sujeitos
balhador constrói sua visão de mundo inserido numa sociedade históricos porque podem apresentar alternativas societárias a partir
capitalista, o momento que assume como se fossem suas (e nesse de seus interesses particulares que representam a universalidade,
momento as são) as ideias da classe dominante. Podemos supor a continuidade da espécie contra forças que a ameaçam. Não por
então que a classe trabalhadora, ao contrário de ser um sujeito do nenhuma essência, mas pela ação concreta que são capazes, ou não,
antagonismo contra o capital, procura encontrar um ponto de de implementar no terreno concreto da luta de classes.
adequação favorável dentro da ordem capitalista. É só analisarmos Os argumentos que hoje se levantam contra a afirmação de
um momento de luta, de contradição nas relações de trabalho, de o proletariado ser hoje essa classe universal ou revolucionária são
gestação de uma identidade de classe contra a manifestação de muitos e não cabe aqui reproduzi-los; no entanto, podemos a~rupá-
uma injustiça, que emergem nítidos elementos que indicam a boa los nos seguintes itens:
e velha luta de classes e a constituição de uma classe que tende para • o proletariado, ao contrário de desejar a alteração revolucioná-
uma alternativa de sociedade além daquela do capital. ria da ordem, quer um ponto de acomodação satisfatório no
Ricardo Antunes 20 já alertava sobre esse fato ao afirmar que os interior dessa ordem e age como um "sócio" do capital, uma
estudos que tratam da consciência de classe ou são, "na sua grande vez que seus ganhos dependem da lucratividade do capital;
maioria, descrições ou relatos empíricos" da imediaticidade da ação com as novas formas de produção capitalistas baseadas em intensa
da classe trabalhadora, ou, inversamente, acabam produzindo uma produtividade vindas da crescente utilização de tecnologia, o
"construção idealizada" da história da classe trabalhadora. proletariado não seria mais a classe que mais cresce com o de-
senvolvimento da indústria; ao contrário, o proletariado estaria
18
Iasi, M. , O dilema de Hamlet, p. 195. diminuindo;
19
Gorender, J. , Marxismo sem utopia, Ática, São Paulo 1999, p. 38 .
20
Antunes, R. , "Noras sobre a consciência de classe", in Lukács, um Galileu no século XX,
Ricardo Antunes e Walquíria Leão Rego (org.) , Boitempo, São Paulo, 1996, p. 98 e 21 Foucault, M. , "Nietzsche a genealogia e a história", in Microflsica do Poder, Graal, Rio
seguintes. de Janeiro, 1984. '

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• o proletariado não é mais uma classe propriamente, mas se Duas afirmações de Marx são essenciais para entender essa con-
diversificou em segmentos tão heterogêneos que não se pode cepção. Primeiro, a famosa afirmação segundo a qual "não se trata
mais falar de "consciência" de classe, ou de interesses comuns daquilo que esse ou aquele proletário, ou mesmo a classe em seu
desse bloco; o que se chamava de proletariado seria, hoje, conjunto, assume num dado momento como objetivo. É aquilo que
somente uma parte da classe com interesses concretos que a é o proletariado e aquilo que, em conformidade com o seu ser, será
distanciam do restante; historicamente obrigado a fazer". 22 Toda a ênfase que Marx e Engels
• por fim, o proletariado perderia seu papel nas contradições colocam nessa afirmação levam os críticos a identificar exatamente
contra o capital para outros setores de massa (desempregados, aí uma espécie de teleologia metafísica, uma essência a ser revelada.
excluídos, trabalhadores sem terra etc.), que estariam em situa- Não se trata disso, a ênfase encontra-se no "ser" proletário no interior
ção de melhor visualizar as injustiças e seriam levados à luta de uma lógica do capital em contraste com a percepção imediata
contra o sistema capitalista representando toda a sociedade. desse "ser" pelos indivíduos dessa classe ou mesmo por seu conjunto.
Acredito que exista algumas poucas e boas imprecisões nesses A segunda afirmáção que pode ilustrar essa ideia central da
argumentos. A primeira que salta à vista é uma relação entre classe concepção de classe revolucionária em Marx é a seguinte:
revolucionária e "maioria" que absolutamente não existe em Marx. Onde existe então (...) a possibilidade positiva de uma emancipação? Eis
A classe universal representa os interesses gerais da sociedade, nossa resposta: na formação de uma classe que tenha cadeias radicais, de
mas nada indica que ela deva ser a maioria dessa "sociedade". O uma classe na sociedade civil que não seja uma classe da sociedade civil,
exemplo clássico é a própria burguesia, desde sempre uma classe uma classe que seja a dissolução de todas as classes.23
minoritária, mas que no quadro da crise do modo de produção Primeiro, é preciso esclarecer que o termo "sociedade civil"
feudal logrou representar, com sua ação e interesses particulares, em Marx, assim como em Hegel, é utilizado como sinônimo
o todo da sociedade em movimento. de sociedade "burguesa". Dessa forma, a classe que for capaz de
Quanto ao proletariado desejar ou não a mudança revolu- realizar a emancipação humana deve se encontrar no interior da
cionária, é obrigatório retomar o argumento segundo o qual é sociedade burguesa (não em qualquer ponto, mas em um ponto
necessário definir sobre qual momento estamos falando. O pro- estratégico), mas deve se inserir num ponto onde sua existência e
letariado como classe da sociedade capitalista é parte constitutiva o metabolismo do capital sejam essencialmente antagônicos, como
da dinâmica do capital e essa situação objetiva leva a momentos o é a permanência do capital e a sobrevivência da humanidade.
de clara acomodação à ordem. No entanto, essa inserção na A pergunta então, diante dos modernos questionamentos, é se o
ordem do capital produz o próprio metabolismo que gerará a proletariado é ainda essa classe.
exploração, a opressão, o estranhamento e as contradições que Vejamos. A atual dinâmica do capital, seja ela moderna, con-
podem, em certas circunstâncias históricas, gerar o confronto e temporânea, pós-moderna, globalizada, ou seja qual for o apelido
a possibilidade de desenvolvimento de uma consciência de classe
em um outro patamar. A acomodação do proletariado à lógica do 22
Marx, K. e Engels, F., La sagrada família, Grijalbo, Méx ico, 1967, p. 59.
capital não é a negação da luta de classes, mas uma das formas 23 Mar x, K., "Contribuição à crítica da filo sofia do direito de Hegel", in Man uscritos
de sua manifestação. econômicos e filosóficos, Ed. 70, Lisboa, 1993, p. 92.

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com que a ideologia capitalista se reveste, é ainda uma dinâmica do pode se restringir aos "operários industriais" (como aliás equivoca-
capital, ou seja, ainda existe na extração de mais-valia, de trabalho se Gorender) uma vez que, para Marx, fica evidente que o caráter
vivo. A atual fase de desenvolvimento das forças produtivas levou a produtivo de um trabalho ou serviço não se define por sua natureza,
várias consequências, como a alteração da composição orgânica do mas pela relação que estabelece com o capital, ou seja, produzindo
capital em favor de uma maior concentração em capital constante, ou não mais-valia. Assim, o mesmo trabalho ou serviço pode ou
a uma intensificação da produtividade, a alteração significativa das não ser produtivo. 24 A mesma ação, uma aula por exemplo, pode
formas de gestão; no entanto, não alterou o fato, e nem poderia, ser improdutiva pela manhã, quando o professor dá aulas numa
segundo o qual o capital surge da produção de valor e de mais escola pública, e produtiva à noite, quando o mesmo professor dá
valor e, portanto, do consumo produtivo da força de trabalho. aulas para um empresa de ensino.
O proletariado continua sendo o que fornece ao metabolismo Dessa forma, se o proletariado é composto por aqueles que
do capital essa mercadoria essencial capaz de gerar mais valor que produzem mais-valia, teríamos que incluir aí uma enormidade de
seu próprio valor. · setores, inclusive de serviços, que vendem produtivamente sua força
Mas o que é esse proletariado? Não estaria diminuindo até de trabalho. Poderíamos, de forma mais precisa, dizer que o pro-
ser um setor pouco representativo? Ainda é o "valor trabalho" o letariado é o núcleo produtivo da classe trabalhadora. Esta última
determinante? Não se diversificou em categorias distintas até que o seria caracterizada pelo conjunto daqueles que vendem sua força de
conjunto de certos serviços tornaram-se mais essenciais ao capital trabalho produtiva ou improdutivamente. Se olharmos sob o ponto
do que a produção direta de mercadorias? de.vista da luta política e dos interesses históricos mais gerais, não
Vamos por partes. Primeiro, que no campo das definições ab- haveria nenhum problema em chamar essa classe de trabalhadora de
solutas teremos problemas. O que é o proletariado? não admite proletariado, aliás, como faz Engels no Manifesto comunista.
uma resposta unívoca. Engels, em sua famosa nota de rodapé ao Acontece que, em vista da forma dessa classe, ao contrário de
Manifesto comunista, afirmaria de forma objetiva que são proletários diminuir, estaria aumentando. Segundo dados do Banco Mundial,
todos aqueles que, não tendo outra coisa, são obrigados a vender a força de trabalho entre os países do G7 teria passado de 261 mi-
sua força de trabalho. Essa definição não está incorreta, mas lem- lhões para 321 milhões entre 1970 e 1993; um crescimento ainda
bremos que se refere apenas a uma parte das determinações que maior aconteceu nos 7 países pobres mais industrializados, que, de
constituem uma classe. 716 milhões teria passado para 1,321 milhões no mesmo período.
Do ponto de vista do capital, não basta vender a força de traba- O fato de que essa parcela não constitua a maioria da sociedade
lho, mas vendê-la para um proprietário privado dos meios de pro- não devia, como já vimos, nos inquietar.
dução, que a consumirá produzindo mais-valia, ou seja, consumi-la Mas estaria ainda essa classe numa posição estratégica? Alguns,
no interior de um processo de trabalho "produtivo". Mas, se assim como Gorender, creem que não pelo fato de que hoje cresce em
fosse, proletariado não seriam apenas os trabalhadores "produti- importância um setor de "assalariados intelectuais" responsáveis
vos", confundindo essa categoria com a dos operários industriais? pela produção de tecnologia que seria, por sua vez, a parte mais
Aí está a raiz do erro que identificará o fenômeno da aparente
diminuição do proletariado. Primeiro, que o setor produtivo não 24 M arx, K., O capital, capítulo VI inédito, Ciências Humanas, São Paulo, 1978.

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decisiva na formação do valor. Temos que lembrar que, em primeiro uma massa proletária que continua essencial na transferência do
lugar, o único valor que é aí produzido é a quantidade de trabalho valor morto e criação do valor vivo e da mais-valia no ato de pro-
socialmente necessária para produzir a tecnologia, uma vez que duzir uma mercadoria ou um serviço e que essa massa proletária
ela mesma enquanto tecnologia não produz valor. Uma tecnologia continua mais essencial ao sistema que qualquer outra classe.
entra no processo de produção não como "tecnologia", mas na Além disso, é ela que se confronta com o capital e sua lógica de
forma de um meio de produção que a contém. Afirma Marx que: acumulação privada.
O s meios de produção só transferem valor à nova figura do produto na A acomodação que pode se verificar em períodos de crescimen-
medida em que perdem valor na figura de seus valores de uso originais to, ou pelo fato de o Estado capitalista assumir defensivamente a
durante o processo de trabalho. O máximo de perda de valor que podem forma social-democrata do Estado do bem-estar social, logo se dilui
experimentar no processo de trabalho está evidentemente limitado pela nos momentos de crise, como o que vemos hoje, e a contradição
magnitude do valor original com que entram no processo de trabalho, entre a acumulação privada e a produção social da riqueza coloca
ou seja, pelo tempo de trabalho exigido para a sua própria produção. 25 em movimento uma classe contra o capital e essa classe continua
Dessa maneira, os trabalhadores que produzem tecnologia, sendo o proletariado.
supondo, como é de fato, que esse setor assumiu a forma de uma A diversificação dessa classe em setores e categorias que se
empresa de produção de tecnologia, podem apenas entrar como aproximam e se distanciam do clássico proletariado tem muitos
um setor a mais na composição do valor, como produtores de efeito s na composição real dos blocos de classes no interior da
valor. O restante dos proletários apenas transferiram uma porcen- dinâmica da luta de classes. Como vimos, é possível que setores
tagem maior de trabalho morto em relação ao trabalho vivo por do proletariado assumam de fato uma posição pequeno-burguesa
eles gerado. Se esses trabalhadores recebem salários para produzir e não é necessário recorrer aos "assalariados intelectuais"; os bons
tecnologia que é vendida como mercadoria, são eles produtivos e e velhos operários muitas vezes cumprem esse papel, que já foi
estariam no interior do proletariado e podemos dizer até mesmo descrito em outros termos como "aristocratização operária".
que em um ponto altamente estratégico. No entanto, seus altos No entanto, quando ampliamos a lente da análise para a
salários podem gerar determinações que os distanciem, em vez de perspectiva histórica, esses diversos blocos, segmentos, setores e
aproximá-los do proletariado, podem se considerar privilegiados, mesmo os indivíduos, têm de optar por padrões societários ligados
ter um padrão distinto de consumo e utilizar seus conhecimentos à manutenção da ordem capitalista ou a sua superação e, nesse
como se fossem uma propriedade privada, um capital simbólico nos âmbito, não têm outro destino a não ser gravitar entre os projetos
termos de Bourdieu, 26 e desenvolver um tipo de consciência muito da burguesia e os do proletariado, ou seja, entre a permanência do
mais próximo dos .setores médios ou de uma pequena burguesia. capitalismo ou a opção socialista.
Mesmo considerando a importância desse setor - não tenho O mesmo ocorre com os setores chamados de marginaliza-
dados para afirmar seu peso quantitativo - parece-nos que existe dos. Ainda que constituindo massas significativas com grande
potencial de luta e enfrentamento contra a ordem capitalista,
25
Marx, K. , O capital, Livro I, Vol. I, cap. VI, p. 231. esses setores têm de gravitar em torno dos projetos de classe
26
Bourdieu, P., O poder simbólico, Difel, São Paulo, 1989. e, cedo ou tarde, se colocam a favor ou contra a superação da

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ordem capitalista. Ressaltando que não há nada que impeça que os problemas trocando um conceito por outro, ou eliminando
tais movimentos sirvam como sustentação de massa para pro- o conceito de classes, nós, revolucionários, devemos ajudá-los na
jetos reacionários, a dinâmica das lutas concretas tem colocado medida do possível: superando a ordem capitalista e criando as
muitos deles numa perspectiva revolucionária, por vezes mais condições para eliminar a sociedade de classes. Quem sabe assim
consequente que muitas organizações ligadas diretamente à classe Marx estará finalmente ... superado!
proletária. Porém, isso se dá por dois motivos básicos: pelo grau
explosivo de miséria e injustiça gerado pela lógica capitalista e
pela precariedade de uma clara visão revolucionária na condução
da classe trabalhadora.
Sendo verdade que a classe também se define por sua ação,
ou mais precisamente, que essa ação conforma a classe numa
perspectiva ou em outra, como afirma Przeworski, uma direção
política pode conformar a ação da classe trabalhadora em limites
de acomodação que faz com que a contradição se expresse em
outros polos do todo social. E isso pode acontecer ainda que não
seja na forma de movimentos organizados, como no caso do MST,
mas de forma caótica, como no fenômeno da criminalidade, do
tráfico e outros. Isso não significa, entretanto, que esses setores
passam a ter a possibilidade de apresentar, a partir de seus in-
teresses particulares, uma alternativa universal de superação da
ordem capitalista.
O fato é que a ordem capitalista precisa ser superada antes que
inviabilize a vida humana em nosso planeta. A história e as con-
dições materiais da própria ordem capitalista fazem seu trabalho
cotidiano produzindo contradições e colocando nossa classe em
marcha. Se conseguirmos olhar além dessa espessa cortina de fuma-
ça ideológica repleta de "interessantíssimas" questões acadêmicas,
talvez voltemos a nos dedicar a questões um pouco mais prosaicas
e urgentes: organizar as condições subjetivas de nossa classe na
perspectiva de uma revolução socialista, gerando as condições para
que a ação forme "proletariado enquanto proletariado".
Para aqueles que, afirmando a inadequação dos conceitos
marxianos sobre as classes e a luta de classes, querem eliminar

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VI
TRABALHO DOMÉSTICO E VALOR*

Por ocasião de um encontro da quinta turma de monitores do


NEP - 13 de Maio no conjunto dos estudos sobre O capital, surgiu
uma polêmica em torno do trabalho doméstico. Inicialmente, a
questão centrou-se na afirmação ou não do caráter produtivo desse
trabalho, mas acabou avançando para outras afirmações que per-
mitiram ao debate se arvorar em elementos que podem, acredito,
de maneira mais apropriada, trazer alguma luz na compreensão
desse trabalho particular.
Para localizar a polêmica, devemos, em primeiro lugar, limpar
o terreno de algumas afirmações que, ao contrário de facilitar,
somente obscurecem a verdadeira questão. No curso dos debates,
apresentou-se uma identificação entre o trabalho doméstico e o tra-

* Texto publicado pela primeira vez no Boletim do Fórum Nacional de Monitores (FN M) ,
setembro/outubro de 1993, nº 9, São Paulo: NEP - 13 de M aio.
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balho da mulher. Essa identificação é profundamente inadequada, sua identidade com as afirmações centrais do movimento feminista,
uma vez que não existe em nenhum dos elementos constitutivos do muito ao contrário.
trabalho doméstico algo que determine o sexo de quem o realizará,
homem ou mulher. Além do que a afirmação de que tais tarefas TRABALHO DOMÉSTICO E PROCESSO DE TRABALHO

pertençam ao universo feminino acaba por reforçar a ideia de que Marx distingue três diferenciações ao falar de processo de
a divisão do trabalho por sexo, cabendo à mulher os trabalhos trabalho:
domésticos, é "absolutamente natural e espontânea", como afirma 1. processo de trabalho, no sentido mais geral e comum a todos os modos
Engels em seu livro. 1 de produção, que envolve a relação do ser h~mano com a natureza e a
Na verdade, essa divisão específica se encontra no conjunto simples produção de valores de uso;
de um processo social e histórico de divisão social do trabalho 2. processo de produção de valor, que supõe uma sociedade produtora
(criação de animais, agricultura, produção de instrumentos de de mercadorias;
trabalho etc.), tendo relatos antropológicos 2 que apontam diferentes 3. processo de produção de mais-valia, ou de valorização do valor, ou seja,
padrões de divisão de trabalho por sexo que não correspondem pressupõe uma sociedade capitalista.
ao que foi erigido como padrão, muito mais em respeito à lógica Apesar de corresponder ao amadurecimento histórico da socie-
da sociedade patriarcal e à necessidade de sua justificativa do que dade, essa distinção não é realizada com a intenção de demarcar
por constatação de uma inevitabilidade biológica. fases de desenvolvimento histórico, e sim chamar a atenção para
Para o nosso debate, a identificação do trabalho doméstico o fato de que nem todo processo de trabalho que produz merca-
com o trabalho da mulher acabou levando a discussão para um dorias é um processo de produção de mais-valia, ou um processo
julgamento valorativo, onde qualquer afirmação poderia ser com- capitalista.
preendida como depreciativa, ou como um esforço mais moral É interessante que, a respeito do trabalho doméstico, rea-
que teórico de valorizar "o papel da mulher". Acredito que uma presentaram-se três vertentes de argumentos que correspondem
perspectiva feminista não precisa distorcer valorativamente sua aos três processos de trabalho apresentados, ou seja, para alguns
análise para colocar a questão da mulher e da dominação de gênero companhelros, o trabalho doméstico é um simples processo de
na importância que tem no conjunto de um estudo. produção de valores de uso, não produzindo valor; para outros,
Falarei do trabalho doméstico em uma sociedade capitalista é um processo de produção de valor, pois produz mercadoria (ou
e proponho que o abordemos tendo por base nosso referencial na parte do valor que comporá uma determinada mercadoria - a
crítica da economia política que é o marxismo, pois acredito que força do trabalho) sem ser um processo de produzir mais-valor
tal referencial, além de ser adequado, não contém na essência de (mais-valia); e, finalmente, que é um processo que indiretamente
suas formulações entraves que possam comprometer a análise em contribui com o processo de produção de mais-valia.
De início, parece ficar claro que o processo de trabalho do-
méstico não produz mais-valia, ou seja, não está na relação com o
capital produzindo mais-valor. Não é um trabalho assalariado, ain-
' A origem da família, da propriedade privada e do Estado.
2
Ver por exemplo "Sexo e temperamento", de Margarer Mead. da que tomando como referência que o salário de um trabalhador

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argumentar que é uma atividade que gera valor sem que, com isso,
deva manter toda a família, esse salário no máximo remuneraria
gere mais-valor, ou valorize o capital, sendo, portanto, improdutiva.
o trabalho doméstico, portanto, não é produtivo para o capital.3
Acredito que o trabalho doméstico, numa sociedade capitalista
FORÇA DE TRABALHO E VALOR DA FORÇA DE TRABALHO
·e em se tratando de famílias proletárias, é um serviço que gera
Deixemos o trabalho doméstico confinado no recanto sagrado
parte do valor que comporá a força de trabalho, colocando-o,
do lar para onde foi condenado pela divisão social do trabalho na
portanto, na segunda possibilidade: um processo de produção de
sociedade capitalista. Minha argumentação inicia-se fora dessa esfera
mercadorias.
privada, no mercado onde a força de trabalho se vende como mer-
Aquilo que vai diferenciar os processos de trabalho não diz respeito
cadoria. Para Marx, está fora de dúvida que a força de trabalho seja
ao trabalho concreto, ou seja, à particularidade da ação do trabalho,
uma mercadoria. Uma mercadoria especial, sem dúvida, mas que,
uma vez que o mesmo trabalho pode ser em uma circunstância pro-
nem por isso, deixa de ser uma mercadoria submetida às leis gerais
dutivo e em outra não. Um professor que realiza uma aula de manhã
do valor que regem esse universo. Sendo assim, a força de trabalho
numa escola estadual não é produtivo, mas, à noite, dando a mesma
deve possuir um valor de uso e ser veículo de valor (que se expressa
aula, compondo-se sua ação dos mesmos procedimentos concretos
no valor de troca). Seu valor de uso a transforma na mercadoria
que a anterior, agora numa escola privada, torna-se produtivo para
fundamental do capitalismo, ou seja, sua particular capacidade de,
o capital.4 Uma mesma atividade pode gerar apenas valores de uso,
ao ser consumida, gerar mais-valor do que aquele necessário à sua
mercadorias ou mais-valia, dependendo das relações nas quais se insere.
reprodução. Como toda mercadoria, seu valor de troca não pode ser
O trabalho doméstico é um processo de trabalho. Envolve,
determinado pelas características que lhe conferem particular valor
como todo processo de trabalho, uma atividade adequada a um
de uso; seu valor de troca nada mais é do que a expressão de seu
fim, matéria a que se aplica o trabalho e meios de trabalho. 5 Em
valor. Como seria determinado esse valor? É Marx que nos responde:
sua manifestação concreta, o trabalho doméstico é um conjunto
O valor da força de trabalho é determinado como ,o de qualquer outra
de tarefas realizadas no âmbito de esfera privada e que consiste, no
mercadoria, pelo tempo de trabalho necessário à sua produção e, por con-
geral, em preparar os alimentos, manter níveis de higiene doméstica
sequência, à sua reprodução. Enquanto valor, a força de trabalho representa
e cuidados com os filhos. Esse mesmo trabalho concreto pode, numa 6
apenas determinada quantia de trabalho social médio nela corporificado.
família camponesa, por exemplo, gerar apenas valores de uso, ser uma
Até aí não poderia haver nenhuma dúvida. Se existe um valor,
atividade profissional de uma empregada doméstica, ou ser realizada
ele é a manifestação de um quantum de trabalho corporificado
por um membro da família proletária. Nesse último caso, pretendo
numa mercadoria. Falamos de uma mercadoria peculiar, de uma
mercadoria viva e que se reproduz como espécie. No entanto,
3 "É produtivo para ~ trabalhador que exec uta o traba lho produtivo, e é produtivo 0 vamos restringir essa dimensão à questão da força de trabalho
trabalho_que gera ~1retamente mais-valia, isto é, que valoriza o capital" (Marx, K., O
capital, lmo 1, capnulo VI, inédito, p. 7 1). dada, de onde o capitalista espera a cada dia extrair mais-valor:
4
"Do que _precede resulta que trabalho produtivo é uma determinação daquele trabalho Sendo assim, podemos completar o raciocínio dizendo: "Dada a
que ~m s1 nada tem a ver com o conteúdo determinado do trabalho, com sua utilid ade
pam cular ou valor de uso peculiar no qual se manifes ta. Um trabalho de idêntico con-
teúdo pode ser produtivo e improdutivo." (Marx, O capital, vo!. 1, capítulo VI, inédi to) 6 Idem, p. 191.
5
M arx, O capital, vo!. 1, p. 202.

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MAUR O Lu,s I AS !

existência do indivíduo, a produção da força de trabalho consiste de um texto trazido à discussão com a intenção de colocar a posição
em sua manutenção ou reprodução." 7 "feminista" sobre a relação do tema trabalho doméstico e lei do valor.9
Para não gerarmos qualquer confusão com a reprodução física Albarracin, autor do texto, depois de afirmar que o trabalho
da espécie antes aludida, poderíamos nos referir a esta como repo- doméstico é "uma parte importante do esforço produtivo da huma-
sição da força de trabalho gasta pelo trabalhador na sua jornada de nidade (...) que se move fora dos circuitos do mercado e não se rege
trabalho. A menos que subvertamos toda a lei do valor, devemos pela lei do valor", inclui esse trabalho particular na categoria de um
concordar com a afirmação de que, se a força de trabalho é uma processo de trabalho que produz valores de uso. Mas agrega à sua
mercadoria, tendo, portanto, um valor, esse valor, enquanto ma- definição uma diferenciação entre o trabalho doméstico e outros
nifestação de trabalho humano abstrato, foi produzido por algum tipos de trabalho que produzem valores de uso. Essa diferenciação
tipo de trabalho útil concreto. Nossa pergunta é apenas uma: qual estaria em que, enquanto alguns trabalhos produzem valores de
trabalho concreto produz o valor que corresponde à manutenção uso que podem vir a ser mercadorias, algo diferente ocorre com
e reposição da força de trabalho? os produtos do trabalho doméstico. Vejamos suas palavras:
Quem poderia imaginar que uma pergunta tão simples po- Os produtos do trabalho doméstico são outro caso de valores de uso que não
deria gerar tamanha polêmica. Para qualquer outra mercadoria, a têm valores de troca, mas existe uma diferença fundamental com o auto-
resposta seria simples e com conotações de obviedade: o trabalho consumo dos camponeses: nunca poderiam ter um valor de troca porque no
concreto que produz o valor que se expressa no valor de troca da momento em que no âmbito da família se produzisse algo para ser trocado,
cadeira é o do marceneiro; o trabalho útil que se expressa no valor trabalho dedicado a esta produção deixaria de ser trabalho doméstico. !O
0
do linho é o da tecelã etc. No entanto, a pergunta - qual o traba- O argumento fundamental estaria na afirmação de que é ne-
lho concreto que produz o valor corporificado na manutenção e cessário existir intenção para a troca na produção para caracterizar
reposição da força de trabalho? - gera um cataclismo! A resposta a produção de uma mercadoria. É verdade que os seres humanos
é tão simples como a questão: é o trabalho doméstico. produziram valores de uso para seu autoconsumo e que passaram
a produzir para outros, e que essa produção para a troca é uma
TRABALHO DOMÉSTICO GERA VALOR?
característica fundamental para falarmos do advento da mercado-
A polêmica toda poderia parar por aqui. No entanto, o grau de ria. No entanto, a intenção de produzir para o outro, e não para
resistência a essa constatação é tamanho que nos obriga a prosse- si, não é suficiente para caracterizar uma mercadoria. Vejamos
guir na análise (o que, melh~r dizer desde logo, é muito bom). São em O capital a passagem que pode ter gerado essa incompreensão:
muitas as argumentações que emergiram no debate para contrapor Quem com seu produto satisfaz a própria necessidade gera valor de uso,
essa afirmação. 8 Aquela que mais me surpreendeu veio exatamente mas não mercadoria. Para criar mercadoria, é mister não só produzir valor
de uso, mas produzi-lo para outros, dar origem a valor de uso social. 11
7
Idem, ibidem.
8
O debate aqui mencionado refere-se ao encontro da quinta turma de monitores do NEP- 9 Jesús Albarracin, "El rrabajo domés tico y la ley dei valor", in Imprecar, nº 63, setembro
13 de Maio, realizado em setembro de 1993. O texto-base foi o de Jesus Albarracin e a de 1988, Madrid.
polêmica se es tabeleceu com os argumentos de Luis Carlos Scapi e Paulo Tumolo, que 10
Idem, p. 2.
defendiam que o trabalho doméstico produz simplesmente valores de uso. 11 Marx, K., O capital, vol. 1, capítulo lº, p. 47.

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Aparentemente, ambos os argumentos contrários à afirmação lei da equivalência entre as mercadorias) e esse salário deve m anter
de que o trabalho doméstico gera valor estariam resguardados não só o trabalhador mas também a sua família.
pelas afirmações de Marx. No entanto, meus colegas cometem O segundo equívoco está ligado ao primeiro e na verdade é seu
dois equívocos. O primeiro é o de absolutizar essa intencionalidade fundamento: confunde-se trabalho concreto e trabalho abstrato.
(intenção de produzir para outros = produção de mercadorias). Quando Albarracin afirma que esse tipo de trabalho, ao produ-
No parágrafo seguinte a esse que foi citado, Marx nos alerta que: zir algo que responde à necessidades de outro e é trocado, deixaria
O camponês feudal produziu o trigo do tributo para o senhor feudal , o de ser trabalho doméstico, comete o mesmo erro de alguém que
trigo do dízimo para o cura. Mas, embora fossem produzidos para terceiros, afirmasse que um metalúrgico que faz um portão de ferro para
nem o trigo do tributo nem o dízimo eram mercadorias. O produto, para a sua casa não executa um trabalho de serralheiro, como seria
se tornar mercadoria, tem de ser transferido a quem vai servir como valor se o fizesse o mesmo operário, numa oficina, como empregado.
de uso por meio da troca. 12 Confunde lamentavelmente o aspecto concreto do trabalho, o
Como vemos, não é a "intenção" de produzir para a troca que que o faz um trabalho útil particular, com seu aspecto abstrato,
transforma algo em mercadoria, ou, agregaríamos nós, deixa de trabalho humano em geral, de produzir valor. O mesmo trabalho
torná-lo. O essencial da afirmação é que o valor de uso produzido que produz um objeto útil, como o de serralheiro, produz, ao se
tenha que ser, de alguma forma, transferido por meio da troca para vender para o dono da serralheria, mercadoria.
quem vá se servir desse valor de uso, ou seja, mais precisamente Trabalho doméstico, enquanto trabalho concreto, é uma ati-
que ele não satisfaça apenas as necessidades de quem o produziu, vidade que consiste em preparar alimentos, cuidar da higiene e
mas tenha "valor de uso social". A questão então é a seguinte: a dos filhos, entre outras tarefas. O fato de que parte do valor que
manutenção e reposição da força de trabalho satisfaz apenas a produziu foi agregado a uma mercadoria e trocado no mercado
necessidade dos indivíduos no seio da família ou responde à neces- não altera em átomo a característica de seu trabalho que, portanto,
sidade de mais alguém? Os valores de uso gerados têm um caráter continua a ser trabalho doméstico.
que lhes atribui a condição de valores de uso sociais? Um aspecto desse mesmo equívoco é que se confunde o produto
Parece claro que sim. O capitalista necessita da força de traba- imediato do trabalho doméstico com a parte do valor que ele gera e
lho reposta e mantida, o trabalho que repõe e que gera essa parte do que se incorpora à mercadoria força de trabalho, ou seja, o trabalho
valor que ele compra mensalmente é o trabalho doméstico. Mas a doméstico produziria a comida, por exemplo, esta seria consumida
força de trabalho reposta chegou até quem dela usufruirá por meio no âmbito doméstico e assim se encerraria o ciclo. No entanto, a
da troca? A relação assalariada pressupõe, como fundamento das comida é, neste caso, um objeto de trabalho, uma matéria-prima e
relações capitalistas, o intercâmbio entre "livres proprietários de não o produto. A manutenção da força de trabalho é que é o produto
mercadorias distintas". O proprietário da sua força de trabalho a em questão. Para algumas pessoas, uma mercadoria tem de ser um
vende em troca de seu salário (expressão monetária do valor de sua objeto concreto,13 mas sabemos que uma mercadoria pode ser algo
força de trabalho, ou pelo menos assim deveria ser respeitando-se a
13 A camarada Alexandra Kolontai parece ter caido nesse equívoco quando analisa a dife-
rença entre os trabalhos domésticos de gerações diferentes, onde, em um primeiro
12
Idem, ibidem, pp. 47-48. momenro, vários artigos eram produzidos no âmbito doméstico; além do preparo

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TRABALHO DOMÉSTICO E FETICHE


imaterial, que satisfaz necessidades e que é veículo de valor. O traba-
lho doméstico, para a reposição da força de trabalho, não produz um Esgotada a primeira ofensiva, uma outra ordem de questiona-
objeto, produz um serviço. Não é preciso dizer que existem vários mento se apresentou. A força de trabalho estaria sendo, de maneira
serviços que, ao serem vendidos como mercadorias, revelam valor, fetichizada, considerada uma mercadoria em si mesma, quando na
como, por exemplo, o ensino e o atendimento de saúde privados. verdade não o é. A força de trabalho torna-se mercadoria apenas
quando inserida nas relações sociais de produção capitalistas. Uma
A PRODUÇÃO E A TROCA
vez que o trabalho doméstico estaria vinculado à produção de va-
Se o trabalho doméstico realiza um serviço que agregará um lores de uso para manter o "ser humano" e não a mercadoria força
valor à força de trabalho, resta então o argumento de que não é de trabalho, seria um processo natural, assim como há milhares de
a mulher, ou aquele que realiza o trabalho doméstico, que vai ao anos presencia a humanidade em suas mais distintas formas, mas
mercado trocar aquilo que produziu. De todos os argumentos na essência o mesmo: a produção da subsistência.
Minha análise seria, portanto, fetichista. Somos obrigados a
contidos nesta primeira resistência, esse é o mais frágil. Não existe
nenhuma lei que obrigue a mercadoria a ser levada por aquele que concordar com a afirmação de que o ser humano não é em si uma
a produziu ao mercado. Além do que, falamos de uma mercado- mercadoria: torna-se uma mercadoria quando da sua inserção nas
ria especial, que vai por seus próprios pés até o mercado, para se relações capitalistas de produção. No entanto, não vejo porque
vender. Vamos supor que um operário solteiro trabalhe suas oito essa constatação deva alterar as afirmações antes elaboradas. Vários
horas de trabalho, vá para sua casa, faça sua janta, arrume a casa, valores de uso, bens naturais e excelentes qualidades do espírito
lave suas roupas, durma e retorne ao trabalho. Ele teria realizado humano não são em si mercadorias; somente se tornam mercadorias
seu trabalho doméstico e teria, ele próprio, levado sua força de se inseridos em particulares relações sociais de produção. A ques-
trabalho para vender ao patrão. Eis que desaparece o problema. tão é que, uma vez mercadorias, devem se confrontar no mercado
O fato de esse trabalho sofrer uma divisão social onde outro - na através de seu valor de troca, que nada mais é que a expressão de
maioria das vezes, outra - é que realiza a tarefa de manutenção seu valor. A pergunta é esta: esse valor (quantidade de trabalho
e reposição, e não aquele que vai ao mercado de trabalho, não humano abstrato), que aparece no mercado, foi ali produzido ou
altera em nada a essência do processo, da mesma forma que não já existia antes de sua expressão num valor de troca? Para todas
altera um camponês plantar um tomate e ser o seu irmão que o as mercadorias, saberíamos dar rapidamente esta resposta: o valor
vá vender na feira. de uma mercadoria apenas se evidencia no mercado através do
valor de troca; na verdade, é gerado no momento da produção da
mercadoria e é determinado pelo tempo de trabalho socialmente
dos alimentos, a mulher preprava "múltiplos produtos, como a tela, o fio , a manteiga
necessário para produzi-la.
etc, quer dizer, artigos que podiam ser vendidos no mercado e que, por conseguinte,
constituíam mercadorias e valores". Depois, com o avanço do capitalismo, con- Apesar de clássica, a afirmação não convence os meus interlocu-
tinua Kolonta i, "o trabalho da mulher deixou de ser necessário para o Estado do tores, que voltam à carga: mas não a força de trabalho, pois ela habita
ponto de vista da economia nacional", pois sua atividade agora seria "improdutiva",
uma vez que "não ficará qualquer vestígio material do seu trabalho e suas mãos um ser humano! Isso nos remete à análise do que há de particular
incansáveis não construirão nada que constitua valor no mercado comercial " ("A na mercadoria força de trabalho e o que há de universal nela. Para
família e o Estado socialista", A. Kolontai, in A libertação da mulher, pp. 51-53).

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isso, temos que voltar a definições de trabalho. Para aquilo que aqui de raciocínio pretende responder a um questionament , ai iá. •
estudamos, falamos, não do trabalho concreto, das particularidades única pergunta que continua sem resposta: quem produz o valor da
que distinguem cada atividade humana adaptada a um determinado reposição e manutenção da força de trabalho que compõe seu valor?
fim (alfaiate, metalúrgico, camponês etc.), mas de trabalho humano E a resposta é: ninguém! A força de trabalho traria um valor que é
em geral e, nesse sentido, estamos falando de "dispêndio humano necessário - seria essa uma particularidade da mercadoria força de
produtivo de cérebro, músculos, nervos, mãos etc". 14 Isso consistiria trabalho. Caso levássemos a rigor o argumento de que ela é uma
a base geral de todas as formas particulares de trabalho. Um operá- mercadoria, estaríamos "forçando a barra", dizem nossos críticos,
rio, ao realizar seu trabalho, consome sua força de trabalho, ou, o e nos sentiríamos obrigados a encontrar quem produz esse valor e,
que é dizer o mesmo, gasta sua força vital ao usar seu cérebro, seus mais, teríamos que nos render ao mais puro fetichismo, uma vez
músculos, nervos, enfim, seu corpo. Sem essa força, o trabalhador que estaríamos tratando como coisa algo que não é uma coisa, mas
está impossibilitado de realizar seu trabalho concreto e, dessa forma, um "ser humano".
impossibilitado de gerar valor e mais-valor para o capital. Essa força Vamos supor que essa afirmação esteja correta. A força de traba-
deve ser reposta e, como vimos, será o tempo médio socialmente lho advém de propriedades dos seres humanos, propriedades físicas e
necessário à reposição e manutenção dessa força que determinará naturais. Uma vez que definimos aquilo que se consome no processo
uma parte do valor da força de trabalho, como toda mercadoria, de trabalho como dispêndio de cérebro, nervos, músculos etc., sua
ou seja, não é nesse aspecto que a força de trabalho é particular. A reposição "natural" seria o trabalho das células regenerando-s~, re~rian:
peculiaridade da força de trabalho está em outros aspectos. Primeiro, do suas energias, como no sono. Não há valor no sono, pms nao ha
que ela gera valor ao ser consumida; segundo, que ela é inseparável trabalho. Mas as células não buscam sua regeneração em si mesmas,
do ser humano, portanto, organismo vivo. Em que essas particula- precisam tirar energia e elementos fundamentais dos alimen~os. Nes~e
ridades modificariam o anteriormente dito sobre a lei do valor e as sentido, uma célula não agrega valor à força de trabalho. Senam entao
mercadorias em geral? O fato de o ser humano não ser em si uma os produtos de primeira necessidade. Diria Marx:
Para manter-se, precisa o indivíduo de certa soma de meios de subsistência.
mercadoria, mas um organismo vivo e pensante, não elimina o fato
O tempo de trabalho necessário à produção da força de trabalho reduz-
de que, uma vez transformado em mercadoria, tenha um valor e
se, portanto, ao tempo de trabalho necessário à produção desses meios
que esse valor seja determinado pela quantidade de trabalho social
de subsistência, ou o valor da força de trabalho é o valor dos meios de
médio necessário à sua produção. 15
É exatamente aí, por incrível que pareça, que se localiza uma subsistência necessários à manutenção de seu possuidor.

das principais resistências contra esse argumento. A reposição dessa Por esse raciocínio, a reposição da força de trabalho precisa de
força vital seria um processo natural que se dá de forma biológi- alguns elementos; seu valor seria composto pelos valores desses
ca, "pela ação das células, pela reparação do sono etc". A força de elementos. O processo que transforma esses elementos seria um
trabalho seria em si um valor natural, um valor de uso, que seria processo natural. Perfeito! Apenas um pequeno detalhe: desap~-
apropriado pelo capital e transformado em mercadoria. Essa linha receu o trabalho doméstico! Tínhamos um problema, agora nao

14
Marx, op.cit., p. 51. 1s Marx, op. cit., p. 191.

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E NSA I OS SO B R E CONSCIÊNC I A E EMAN C I PA ÇÃO M AU RO L u 1s I AS I

temos mais, não porque o enfrentamos, mas porque abolimos a aos valores de outras se não forem transferidos. Sabemos também
existência daquilo que motivou a dúvida. que carne crua, feijão e arroz não cozidos não são apropriados à
Entretanto, se olharmos mais atentamente o texto de Marx, alimentação humana; portanto, eles foram preparados para ser-
veremos que ele reproduz um procedimento muito comum à enge- virem de alimentos. Agregamos aí o valor do gás, o desgaste das
nharia metodológica 16 de O capital. É preciso conhecer o fenômeno panelas e do fogão. E a pergunta continua: quem transferiu esses
em sua pureza e, para tanto, o processo de abstração, põe de lado valores ao valor da força de trabalho?
aspectos para que se possa compreender a parte estudada mais O que produz o valor da força de trabalho? Resposta: o feijão,
adequadamente; no entanto, esses aspectos não são abolidos, nem o arroz, a carne, o gás, o fogão, as panelas ... E minha análise é que
deixam de existir por terem sido "colocados de lado". é fetichista?! Essas mercadorias são apenas e tão somente coisas,
Nesse sentido, é fundamental entendermos a passagem quan- não têm capacidade humana de criar e transferir valores. Se esses
do afirma que o valor da força de trabalho "reduz-se" ao tempo valores compõem a força de trabalho, alguém os transferiu. Volta
necessário à produção dos meios de subsistência. Para efeito da então minha pergunta: quem?
análise da mercadoria e do funcionamento do capital, essa redução Um trabalho particular, realizado antes de o ser humano ir ao
se justifica; no entanto, estamos analisando uma particular forma mercado vender sua força de trabalho como mercadoria, produziu
de trabalho no conjunto da divisão social do trabalho. Não pode- e transferiu esses valores, o trabalho doméstico. Por uma divisão
mos concordar que o procedimento teórico mais correto seja o de de trabalho fundada numa divisão de gênero (que implica, além
"pôr de lado" exatamente o aspecto que permitiria compreender do sexo biológico, papéis sociais, culturalmente aceitos e ideologi-
a ligação dessa forma específica com o todo das relações. Isso não camente reproduzidos) um dos personagens desse processo ficou
elimina perturbações, mas, sim, extingue o próprio fenômeno. escondido no lar, distante das relações mercantis capitalistas. A
Por isso, não precisamos de uma citação de Marx para con- análise que quer romper com o fetiche deve, fundamentalmente,
tinuar nosso argumento: temos seu método, que nos é mais útil. revelar o trabalho humano que se esconde por trás das relações
Se apenas o valor dos meios de subsistência compõe o valor da aparentemente dominadas por meras mercadorias. Não teria dito
força de trabalho, falta-nos um elo fundamental nesse processo Marx que uma relação entre seres humanos se apresentaria sob a
de trabalho. Vejamos. forma fantasmagórica de uma relação entre coisas? Pois a análise
Um camponês produziu o feijão, outro o arroz, um operário desfetichizante deve apontar também, nesse caso concreto, a relação
enlatou o óleo, o peão cuidou e abateu o gado que virou carne e humana que se esconde - e essa relação implica no trabalho de
assim temos diversos trabalhos concretos prontos para serem os manutenção e reposição da força de trabalho realizado no âmbito
elementos que reporão a força de trabalho. Esses valores serão in- privado do lar, ou, mais simplesmente, trabalho doméstico.
corporados à força de trabalho. Sabemos, entretanto, que os valores
das mercadorias não passam a fazer parte nem são incorporados 0 DUPLO CARÁTER DO TRABALHO E A TRANSFERÊNCIA E
CRIAÇÃO DO VALOR
16
Ver a esse respeito o excelente texto de lray Carone "A dialética marxista: um a leitura
Sigamos para o último bloco de argumentação dessa resistên-
epistemológica", in Psicologia social - O homem em movimento, pp. 20-30. cia. Tudo bem! Somos obrigados a concordar que é o trabalho

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E NSA I OS SOB R E CONSC I ÊNC I A E E MANC I PAÇÃO M AU R O L u 1s I As 1

doméstico que transfere o valor dos meios de subsistência à força poderíamos falar em valor produzido pelo trabalho doméstico, se
de trabalho, mas nem por isso ele gera valor! Ora, não são duas não nos é possível apontar o tempo médio, socialmente necessário,
espécies de trabalho concreto distintas, mas o mesmo e único para produzir esse trabalho? É preciso lembrar que, para Albarra-
trabalho que, graças a seu duplo caráter (produzir valores de uso/ cin, o trabalho doméstico não produz nada que possa ser levado
trabalho concreto, e produzir valor/trabalho abstrato), atinge ambos ao mercado; sendo assim, o valor desse trabalho não pode se ex-
os objetivos num ato simultâneo e único, apesar de ser composto pressar ou se acompanhar, uma vez que sabemos que os valores só
por elementos distintos. Ao tratar do trabalho de fiar, Marx, em se expressam no corpo de mercadorias e por meio de seus valores
O capital, descreve assim essa questão: de troca. Exatamente nessa distinção entre nossos pontos de vista
O trabalhador não executa dois trabalhos ao mesmo tempo, o de acres- é que se supera essa armadilha em que caiu o companheiro espa-
centar valor ao algodão com seu trabalho e o de preservar o valor dos nhol. O valor gerado no trabalho doméstico se expressa no valor
meios de produção, isto é, transferir ao fio o valor do algodão que serve de da força de trabalho, compara-se com as demais, sendo perfeita-
matéria-prima e o do fuso com que trabalha. Apenas por adicionar valor mente possível medi-lo para que cheguemos ao chamado tempo
novo conserva o valor antigo. O acréscimo de valor novo ao material de socialmente necessário. Afirma ele no seu texto que é impossível
trabalho e a conservação dos valores antigos no produto são dois resultados comparar o tempo necessário entre uma família de um peão e uma
totalmente diversos produzidos pelo trabalhador ao mesmo tempo, embora de um engenheiro, pois são muito distintas. Ora, uma fábrica que
execute apenas um trabalho. 17 produz mercadorias graças à mais alta tecnologia diminui o tempo
Voltemos ao trabalho doméstico. Ao serem manuseadas as socialmente necessário, enquanto outra com baixa tecnologia o faz
mercadorias necessárias à manutenção da força de trabalho no pro- crescer na média. Uma casa com tecnologia doméstica (freezer,
cesso de elaboração do alimento, uma das tarefas que compõem o microondas, máquinas de lavar e secar etc.) faz baixar esse tempo
trabalho doméstico, transfere-se o valor dessas mercadorias à força e uma moradia precária e sem esses equipamentos o faz subir.
de trabalho. Não gera valor? Não é uma quantidade de trabalho que Qual o segredo? Não existiriam regiões onde o valor da força de
gera um valor novo além daquele transferido? Afirmo que sim. Uma trabalho é maior exatamente pela precariedade das condições de
quantidade de trabalho, perfeitamente mensurável, foi despendida sua manutenção?
num certo espaço de tempo e isso tornou possível que uma força de Voltemos à única questão formulada: se a força de trabalho é
trabalho, desgastada por um dia de atividade, fosse reposta. uma mercadoria, sendo seu valor o tempo de trabalho socialmente
Albarracin, do fundo de suas impressões criativas, produz um necessário para sua manutenção e reprodução, quem, ou que tipo de
último argumento: no trabalho doméstico não há nenhum inter- trabalho concreto gera esse valor? A resposta é tão simples quanto
câmbio e, portanto, não há nenhum mecanismo social que defina a questão: o trabalho doméstico.
a hora de trabalho doméstico abstrato.
Cada um dos trabalhos domésticos seria distinto do outro, não FINALMENTE
havendo "nenhuma forma de comunicá-los". Sendo assim, como O trabalho doméstico é um processo de trabalho que não
gera mais-valor, não valoriza o valor produzindo mais-valia. Isto
17
Marx, op. cit. , p. 225. quer dizer que nenhum possuidor de dinheiro contrata o portador

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M AURO L u 1s I AS I
E NSAIOS SOBRE CONSC I ÊNC I A E E MANC IP AÇÃO

do trabalho doméstico e o usa para valorizar o capital iniciante dos trabalhadores, é aquela que desvela o que fica obscurecido
aplicado, portanto, é um trabalho improdutivo. É um serviço que pelas malhas da ideologia. O desvelamento_ de um aspect~ antes
produz parte do valor da força de trabalho, aquele referente à sua velado vale mil vezes mais do que um belo discurso valorat1vo que
manutenção e reposição diária. Sendo assim, gera valor novo, ainda mantenha escondido, aos olhos de quem quer se libertar, um elo
que não gere mais-valor (ou mais-valia). Todos os elementos teóricos das correntes que o oprimem.
necessários a esta constatação pertencem à teoria do valor e são
do conhecimento daqueles que se movem na referência marxista.
No entanto, Albarracin vai afirmar que o trabalho doméstico não
pode ser compreendido pela lei do valor; e outros acreditam ser
necessário moldá-la às suas intenções para que o trabalho doméstico
seja um simples produtor de valores de uso.
Quanto mais avançamos na argumentação mais fica claro que
o problema não é a lei do valor, não é a pergunta, mas aparente-
mente é a resposta: o trabalho doméstico gera valor. Por algum
tipo de resistência, esse tipo de trabalho está proibido de produzir
valor, ainda que para manter essa "lei" precisemos sacrificar toda
a teoria acumulada e a coerência.
Não é casual que exatamente o trabalho doméstico, exercido
majoritariamente pelas mulheres, tenha seu vínculo com o uni-
verso da produção capitalista obscurecido. A cisão entre o mundo
econômico e produtivo para o capital e o universo ideologizado
do lar pressupõe que esse último seja um universo feminino. O
homem trabalha e produz mercadorias, a mulher lhe dá o suporte
para produzir. Seria assim por demais incômodo encontrar-se
cruelmente diante de relações de família que reproduzem o ser
humano como mercadoria e, mais do que isso, aceitar o fato de
que são mulheres, desde muito condenadas a papéis acessórios,
aquelas que participam com o trabalho doméstico na produção
de parte do valor da mercadoria mais importante para todo o
sistema. De nada adianta, mantendo os elos e as relações veladas,
valorizar de mil modos o papel da mulher, seja ideologicamente,
para manter a opressão de gênero, seja para supostamente libertá-la.
A única verdade que interessa à mulher, assim como ao conjunto

141
140
VII
CREDO QUI ABSURDUM*

Quando já se viveu muito tempo numa civilização


específica e com frequência se tentou descobrir quais
foram suas origens e ao longo de que caminho ela se
desenvolveu, fica-se às vezes tentado a voltar o olhar
para outra direção e indagar qual destino que a
espera e quais as transformações que está
fadada a experimentar.

Freud - Futuro de uma ilusão

Toda a imensa polêmica que acabou ocupando uma boa


parte das páginas do boletim do fórum nacional de monitores,
e que contou com importantes contribuições de nossos colegas,
pode se resumir na indagação lançada por Emílio Gennari sobre
a possibilidade de os revolucionários lançarem mão de métodos
sustentados pela fé e pelo senso comum, da mesma forma que
forças conservadoras manipulam a fé para garantir seu domínio.
Emílio resgata, com toda a razão, o fato de que não podemos
tratar a totalidade se a fragmentarmos em esferas absolutizadas,
colocando de um lado os chamados fatores materiais e, de outro,

• Texto publicado no Boletim do Fórum Nacional de Monitores (FNM) nº 5, fevereiro,


São Paulo: NEP 13 de Maio, 1993. O texto foi alterado para a presente publicação.
A expressão que aqui foi utilizada no tírulo é atribuída à Tertuliano para distinguir o
conhecimento daquilo que é perceptível pela razão e o que não é. Aquilo que não fosse
possível explicar pela razão, pela lógica, deveria ser acreditado simplesmente pela fé.
E NSA l OS SOBR E C ONSC I ÊNC I A E E MANC IP AÇÃO M AU R O Lu1 s I As 1

os chamados fatores ideológicos. Basta lembrar aqui as palavras é uma ação histórica; mesmo seus aspectos subjetivos (como a
de Engels: consciência possível em cada momento) são eles próprios também
Segundo a concepção materialista da história, o fator que em última uma objetividade. Na ação histórica independente, a que as massas
instância determina a história é a produção e reprodução da vida real. são "forçadas" a realizar pela crise e pela ação das próprias classes
Nem Marx, nem eu afirmamos, uma vez sequer, algo mais do que isso. dominantes, Lenin incluiu algumas outras condições, que chamou
Se alguém a modifica, afirmando que o fator econômico é o único fator de "subjetivas".
determinante, converte aquela tese numa frase vazia, abstrata, absurda. 1 O fazer histórico da classe, ou seja, sua ação subjetiva, se ma-
Nesse sentido, parece-nos evidente que os aspectos ideológicos terializa em sua "capacidade de conduzir ações revolucionárias de
atuem, até mesmo decisivamente, na produção e reprodução da massa", para as quais são exigidas condições da mais pura concretude,
vida, como argumenta o próprio Engels na sequência da carta. Não como: níveis e formas de organização, capacidade estratégica, projeto
é aí que se encontra a raiz de nossa polêmica, mas na complexa político, unidade da classe, capacidade de ação e de luta. Até mesmo
combinação dos fatores que Lenin chama de objetivos e subjetivos. o nível de consciência não pode ser entendido como simples aspecto
Rosa Luxemburgo dizia, sobre essa questão, que subjetivo, como determinações da vontade ou do desejo.
A vitória do proletariado socialista (...) não pode realizar se de roda a massa Assim, as condições objetivas de nada adiantam em si mesmas
das condições materiais acumuladas pela história não jorrasse a faísca se não forem acompanhadas pela ação histórica da classe; assim,
animadora da vontade consciente da grande m assa popular. podemos dizer que, se for verdade que essa subjetividade só se
Em verdade, seria aqui preferível as menos poéticas e mais realiza em certas condições objetivas, é igualmente verdadeiro
precisas palavras de Lenin quando trata da questão; no entanto, que a objetividade de uma situação revolucionária só se resolve
do que se trata aqui, na essência, é que a história, principalmente a com a ação subjetiva da classe, com o fazer histórico real dos seres
que trata da passagem do capitalismo ao socialismo, ou é produzida humanos em cada período.
pela ação revolucionária ou não se realiza por mecanismos objetivos Como ficaríamos, então, em uma situação em que a objetivi-
independentes da vontade dos seres humanos. Portanto, o mérito da dade histórica projetasse uma "vontade" para a qual as condições
contribuição de Emílio nesse debate é o de estabelecer um patamar objetivas - incluindo aí o grau de desenvolvimento das próprias
teórico por onde devemos desenvolver a polêmica. Então, vamos a ela. condições subjetivas (consciência, organização, projeto estratégico
Sabemos que o sujeito histórico, capaz de produzir transforma- etc.) - não houvessem, ainda, amadurecido plenamente para poder
ções revolucionárias na forma das sociedades são as classes sociais. realizar essa vontade? Assim, como os aspectos da motivação ideal
Nessa dimensão, fica difícil localizar a polêmica sobre a utilização poderiam operar, seja para a manutenção da ordem estabelecida,
ou não dos recursos da fé, exatamente porque dessa forma ela de- seja para o seu questionamento? Qual seria, nesse caso, o papel
saparece. As classes não têm fé ou deixam de tê-la, não acreditam ideológico da fé? Seria ela apenas um meio? - um meio que, apesar
ou desacreditam, não se iludem ou se desiludem. A ação das classes da forma comum, poderia servir a conteúdos distintos de trans-
formação e de conservação da ordem?
1
Emílio se pergunta: "como transformar a possibilidade objetiva
Engels, F., "Cana a Bloch", setem bro de 1890, in Obras Escolhidas, v. III, São Paulo,
Alfa Ômega, s/d. , p. 284. em ato?". E responde: pela práxis revolucionária. Sabemos que a

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E NSAIOS SOBRE CONS C I ÊN C I A E EMANCIPAÇÃO M AURO L u 1s ! As1

crise, em si mesma, não derrotará a sociedade capitalista, cabe a como qualquer um pode ter a religião que lhe interessar ou não
nós fazê-lo. Não seria, então, útil a manipulação de recursos de ter nenhuma. O problema não é esse, mas se devemos tratar nosso
fé para manter os trabalhadores firmes em uma luta que parece, projeto político como religião, ou, ainda, se alguns dos aspectos e
pela objetividade no momento dado, tão distante? Apesar de a mecanismos do pensamento religioso podem nos ser úteis.
resposta estar em si correta, ela nos leva muito rapidamente ao Para responder a essa questão, devemos, mesmo arriscando
fim da conversa e perdemos a oportunidade de desenvolver certos a entrada em uma área bastante complexa que é a sociologia da
aspectos que julgo fundamentais. religião, nos perguntar sobre a natureza desses mecanismos reli-
Quando afirmamos que as classes sociais são o sujeito dessa giosos e por que tais comportamentos tornaram-se tão funcionais
transformação, partimos de um corte estrutural amplo demais para para a dominação.
poder responder com precisão a questão do papel da motivação e Historicamente as religiões evoluíram de sistemas de explicação
da ideologia. A história é feita pelas classes em luta e, nesse âmbito, mítica do mundo, como parte integrante da cultura e da produção
a motivação ou a desmotivação são realidades que se alternam e se da vida dos grupos humanos. O comportamento, inicialmente
apresentam em todo o processo. No entanto, se realizarmos um mágico, não busca a atribuição de sentido, como nos ensina Weber,
corte nesse fluir histórico, se pudermos fazer emergir o momento mas busca sobreviver em um mundo sem sentido. O comporta-
conjuntural da cotidianidade, no qual indivíduos e grupos tecem mento religioso, por sua vez, é a primeira expressão de um processo
com seus atos e opções a teia mais imediata desse fluir, teremos o de racionalização que procura construir uma relação de sentido.
cenário concreto no qual os elementos ideológicos atuam, no qual Com a divisão da sociedade em classes antagônicas, esses sistemas
se produzem a motivação ao conservadorismo ou à revolta. de crenças e religiões passam a se acomodar no terreno da luta de
Nesse âmbito, que um de nossos companheiros chamou de classes, confundindo-se como a própria ideologia, ou seja, como
"crises cíclicas das crenças", é que encontramos o terreno propício forma de dominação destinada a justificar e perpetuar uma certa
para a tentação de utiHzar, como meio de motivação, os instru- ordem, justificando-a e legitimando-a.
mentos utilizados, há milênios, com tanta eficiência, por nossos Não se trata de atribuir à classe dominante o caráter maquia-
inimigos. Afinal, devemos ou não utilizar a fé como motivação vélico de se utilizar da religião para atingir seus fins particulares.
de nosso projeto político? Vejam que não se trata de questionar O que ocorre é que o elemento religioso, que se desenvolveu antes
o poder mobilizador da fé - as guerras religiosas de ontem e de e como espaço próprio, adquiriu uma nova funcionalidade a partir
hoje já nos deram provas mais do que suficientes disso -, mas se da divisão da sociedade em classes. Por quais mediações individuais
devemos ou não nos servir de um comportamento "religioso" para esse fenômeno opera e qual a razão de sua imensa eficiência?
nossos fins de emancipação. Os seres humanos têm em seu psiquismo um elemento básico
Devemos, de início, evitar o pântano enganoso que colocou que busca o prazer e procura evitar o desprazer. As sociedades hu-
em oposição religiosos e revolucionários na América Latina por um manas se organizaram a partir de uma árdua luta contra a natureza,
bom tempo. Parece muito provável que a revolução social em nosso colocando parte dela sob seu aparente controle através do trabalho.
continente - aliás, como a história tem provado - conte em suas No entanto, uma considerável parte da natureza foge ao controle
fileiras com companheiros que professam alguma religião, assim humano, como provam as tragédias naturais, mas principalmente

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EN SA I OS SOB RE CONSC I ÊNC I A E EMAN C I PA ÇÃO M AURO L u 1s I As 1

a inevitabilidade da morte. Isso acaba por provocar nos seres hu- por nós. Sobre cada um de nós vela uma Providência benevolente que só

manos uma enorme sensação de insegurança, como se fôssemos aparentemente é severa e que não permitirá que nos tornemos um joguete
joguetes nas mãos de forças aleatórias, poderosas e sem nenhuma das forças poderosas e impiedosas da natureza. 3
racionalidade aparente. Não é preciso muito esforço para avaliar que tal mecanismo
A primeira forma de defesa colocada em prática é a transfor- psicológico, com indiscutíveis efeitos aliviadores e consoladores,
mação dessas forças naturais em seres conhecidos, como animais acaba por se tornar bastante funcional como instrumento ideo-
e, com o tempo, como seres mais próximos dos seres humanos. lógico. Primeiro, que a condução do destino passa a ser atribuída
Freud em seu Futuro de uma ilusão, nos apresenta esse mecanismo a um ser superior, que o faz em nosso nome e para o nosso bem,
dessa forma: ainda que por caminhos tortuosos que se voltam, muitas vezes,
Contra esses violentos super-homens externos podemos aplicar os métodos contra nós. Segundo, que isso permite que se estabeleça a relação
que empregamos em nossa própria sociedade: podemos tentar conjurá- de amor e ódio que constitui a base daquilo que Hegel denominou
los, apaziguá-los, suborná-los e influenciá-los, assim, despojá-los de uma da dialética do servo e do senhor, que nos leva a nos identificar
parte de seu poder. 2 como protetor aquele que nos oprime.
Agindo dessa maneira, consegue-se um alívio, nas palavras Não é por caso que as primeiras civilizações que emergem da
de Freud, uma espécie de "consolo", mas isso não dá a dimensão sociedade de classes identificam em suas elites o poder econômico
do processo psicológico envolvido. Ainda segundo Freud, devido e religioso fundidos na figura de um patriarca ou rei. Nada mais
à "impressão esmagadora que essas forças causam", aliada ao fato adequado que a classe dominante se considerar representante
de que essa ansiedade diante do desconhecido se vincula a dúvidas desse ente superior e todo poderoso, que nos oprime para o nosso
primordiais sobre nossa origem e destino, fazem com que os seres próprio bem.
humanos projetem uma figura mítica de um pai protetor. O vazio O preço que se paga pelo alívio existencial é a alienação -
de sentido sobre de onde viemos só é suplantado pela ansiedade projetar aquilo que é humano para algo além do humano, nas
sobre o futuro e pelo desconhecido. palavras de Feuerbach. Outro decide por nós, um outro traça os
Ao se produzir um criador mítico, procura-se resolver a in- caminhos e descaminhos que nos conduzirá. A história se fetichiza
quietante sensação de que o destino navega num mar caótico. O e os sujeitos concretos acabam por se tornar espectadores submis-
"criador" teria partido de um plano, de maneira que a realidade sos a uma ordem incompreensível. Resta-lhes crer e esperar por
do mundo, ainda que pareça assustadora e dramática, obedeceria melhores tempos, que virão como recompensa por sua passividade
a uma lógica, a uma teleologia do criador. Esse fenômeno seria e subserviência.
assim descrito por Freud: Nossa polêmica trata da versão moderna desse drama, que
Tudo que acontece neste mundo constitui a expressão das intenções de uma acompanha a humanidade há bastante tempo. Já vivemos o sufi-
inteligência que, ao final, embora seus caminhos e desvios sejam difíceis ciente nesta civilização, pesquisamos suas origens e seu desenvol-
de acompanhar, ordena tudo para o mel hor, isto é, torna-o desfrutável vimento e estamos tentados a olhar para o futuro e adivinhar as

2 3
Freud, S., "Futuro de uma ilusão", in Os p ensadores, São Paulo, Abril Cultura l, pp. 96-97. Idem, p. 98.

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linhas das transformações que nos levarão a um mundo novo. E de "ilusão", enquanto que Marx e Engels, na sequência da mesma
o vislumbramos à luz de nossa práxis, enquanto vivemos no velho citação, afirmarão que quanto mais esse descolamento se processa
mundo que agoniza, exalando muito mais os odores da morte que e as ideias antigas perdem sua correspondência com a realidade
o corrói do que da vida que anuncia. das relações sociais, mais elas passam a ser, paradoxalmente, valo-
A revolução parece distante, as glórias do passado de lutas se rizadas deliberadamente; se tornam "mais hipócrita, mais moral
envelhecem até a esclerose ou morte trágica. O futuro planejado e mais sagrada". Parece claro que a forma encontrada de manter
cede lugar a um presente duro e hipócrita. Reich disse certa vez como aceitas certas ideias que perdem a correspondência que antes
que a humanidade, na encruzilhada entre o socialismo e a barbárie, estabeleciam com a realidade é torná-las mais "sagradas".
escolhe sempre, em primeiro lugar, a barbárie. Parece exatamente No seio dessa crise se torna compreensível que se intensifique
o que está acontecendo hoje. um surto de "espiritualismo" ou "exoterismos" vários, assim como
Um dos produtos da crise objetiva, que nem sempre é anali- inúmeras formas de misticismo e mistificação. Enquanto socialis-
sado como devia, é que nesses períodos ocorre um descolamento tas, temos que tomar todo o cuidado para não incluirmos nossa
das velhas ideias. Mas a crise material não se expressa no campo perspectiva política nesta feira de panaceias místicas. A revolução
das ideias de forma mecânica, ou seja, pode ocorrer que as ideias não pode ser confundida com nenhum elixir milagroso que alivia
dominantes, num primeiro momento de sua crise de legitimação, nossa alma com a incrível sensação da possibilidade de um mundo
venham a ser ainda mais reforçadas. Em períodos normais, a ideo- novo, tornando, dessa maneira, mais suportável nossa precária
logia encontra sua força na correspondência que estabelece com as existência nas entranhas do velho mundo que se recusa a sucumbir.
relações sociais determinantes. A crise desloca essa correspondên- Nesse sentido é que buscamos um sentimento que nos anime
cia, fazendo com que as ideias dominantes percam seu caráter de na luta, mais que necessária, e nos possibilite partir das condições
autenticidade. Nas palavras de Marx e Engels: objetivas dadas para a construção dos elementos subjetivos neces-
Quanto mais a forma normal das relações sociais e, com ela, as condições sários à transformação revolucionária; esse sentimento não é e não
de existência da classe dominante acusam a sua contradição com as forças pode ser confundido com a fé.
produtivas, quanto mais nítido se torna o fosso cavado no seio da própria Quando tudo parece indicar a impossibilidade da revolução,
classe dominante, fosso que separa esta classe da classe dominada, mais nós sentimos a necessidade de defendê-la. Por quê? Uma vez que
naturalmente se torna nestas circunstâncias, que a consciência que corres- os fatos a negam, nossa afirmação se torna mais moral e sagrada,
pondia originalmente a esta forma de relações sociais se torna inautêntica: podendo, em certos casos, quem sabe, se tornar. .. hipócrita? Isso
dito por outras palavras, essa consciência deixa de ser correspondente, e pode ter um efeito positivo momentâneo na mobilização, mas,
as representações anteriores que são tradicionais desse sistema de relações satisfação mística por satisfação mística, os templos do Senhor
(.. .) degradam-se progressivamente em meras fórmulas idealizantes, em continuam ganhando a concorrência.
ilusão consciente, em hipocrisia deliberada. (Marx e Engels , A ideologia Além disso, é necessário indagarmos se os elementos que tor-
alemã, V.II, p. 78) naram funcional o pensamento religioso para a dominação deixam
É interessante a coincidência dos termos de Marx e de Freud de existir pela simples alteração na intenção de quem o manipula.
sobre esse tema. O pai da psicanálise, ao tratar da religião, chama-a Parece-nos que não. A fé é a chamada primeira virtude teologal,

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ou seja, "adesão e anuência pessoal a Deus, seus desígnios e ma- os fatos desmintam e desautorizem nossas convicções, podemos
nifestações", segundo o verbete do dicionário. O mecanismo de se mantê-las pela fé; a convicção política exige de nós uma postura
defender de uma angústia por se encontrar numa posição de perigo bem distinta, qual seja, a de analisar objetivamente a realidade,
entre forças que desconhecemos e que parecem determinar nosso buscar compreender suas contradições e seus movimentos próprios,
destino, através da atribuição a uma força superior de comando, a traçar suas tendências e os caminhos de desenvolvimento que nos
uma Providência benevolente, que ao final nos recompensará como autorizem a revalidar nossas perspectivas societárias, ou a alteração
bons e punirá os maus, não lhes parece um mecanismo conhecido? de nossas ideias e a superação de nossos paradigmas. A primeira
No senso comum, a palavra fé, sempre ligada ao seu conteúdo pode chegar ao credo qui absurdum, pode simplesmente crer pela
inseparavelmente religioso, passou a ser utilizada também para fé, a segunda exige uma postura científica.
significar "firmeza na execução de uma promessa ou compromisso", A fé, assim como a religião, é uma ilusão não porque é falsa,
crença ou confiança, mas o problema não está no uso ou não da mas porque é o desejo que procura alívio, ainda que ao preço da
palavra, mas na compreensão do conceito. alienação e da fetichização do mundo. Nosso pensamento deve ser
Fidel, em seu discurso de 1° de janeiro de 1959, dizia da fé que científico, não porque seja menos produto do desejo, mas porque
sempre teve no povo de Cuba, que era, em suas palavras, mais que partindo dele, não podemos temer a inquietação e o desconforto,
uma fé, uma confiança. Será que Fidel se referia à aceitação e anuên- pois sabemos que apenas a concretude do mundo e nossa ação
cia aos desígnios de Deus? Não seria mais provável que se referia consciente sobre ela poderão realizar nossos sonhos.
ao fato de ter confiança que sua ação revolucionária representava De qualquer maneira, está nos próprios seres humanos a capaci-
os anseios de todo um povo e que esse, por esse motivo, retribuiria dade de sua emancipação, ou da continuidade de sua dominação, não
com a adesão massiva numa fase decisiva de luta? em qualquer outro lugar. Já que iniciamos com Freud, permitam-me
Nós acreditamos que as condições objetivas da sociedade capi- encerrar com um de seus sábios comentários: "Não, nossa ciência não
talista, somadas à capacidade da classe trabalhadora em conduzir pode ser uma ilusão. Ilusão seria imaginar que podemos conseguir
ações revolucionárias, podem nos levar à superação da sociedade em outro lugar, o que a ciência não pode nos dar".
capitalista e ao início de uma transição socialista. No entanto,
não atribuímos essa convicção a nenhum poder que não o nosso
próprio, o que implica que, se não formos capazes como indiví-
duos e como classe de gerar as condições e os meios necessários
para derrotar nosso inimigo, o socialismo não virá e a ordem será
mantida, mesmo que as contradições objetivas a levem a um longo
processo de agonia.
A diferença fundamental que existe entre a necessária motiva-
ção revolucionária e a fé é que, enquanto esta última procura nos
aliviar e nos confortar com a finalidade de suportarmos melhor
uma situação, fazendo com que acreditemos que, mesmo que

152 153
VIII
CONSCIÊNCIA E METODOLOGIA DA
EDUCAÇÃO POPULAR: CONTRIBUIÇÃO
À DISCUSSÃO METODOLÓGICA

INTRODUÇÃO
Uma das características particulares que se destaca no período
atual da luta dos trabalhadores, em especial na América Latina, é a
importância atribuída à educação popular, no conjunto das estra-
tégias de transformação da realidade. Muitas foram as iniciativas
de refletir sobre essa prática educativa buscando, com destacada
atenção, formulações a respeito da concepção metodológica que
embasaria uma educação comprometida com a transformação
revolucionária da sociedade.
Entre essas tantas experiências, inclui-se a do Núcleo de Educa-
ção Popular 13 de Maio, que se formou em 1982 e que acabou de-
sempenhando um importante papel na educação popular no Brasil.
Temos certeza de que esses anos de prática possibilitaram uma
sólida base para refletirmos sobre nossos equívocos e acertos e nos
ofereceram o patamar necessário para buscarmos contribuir neste
importante debate a respeito da concepção metodológica.
E NSA I OS SO BR E CONSC I ÊNC I A E E MANC I P AÇÃO M AU R O L u 1s I AS !

Esse debate, apesar da importância dos passos dados, nem sem- a qualidade; de uma pedagogia de inspi ração filosófica centrada na ciências

pre refletiu um real e saudável confronto de ideias, restringindo-se da lógica para uma pedagogia de inspiração experimental, baseada particu-

por vezes a posições preconcebidas e caricaturais em que, a partir larmente nas contribuições da biologia e da psicologia. Em suma, trata-se

de uma grande linha imaginária, o mundo dos educadores se de uma teoria pedagógica que considera que o importante não é ap render,

dividiria entre os "basistas", que esperariam passivos o conheci- mas aprender a aprender (Saviani, Escola e democracia, 1991 , pp. 20-21).

mento brotar do povo, e os "conteudistas", que, uma vez de posse Uma vez que a corrente que ficaria conhecida como "escola-
do conhecimento elaborado, se contentariam em transmiti-lo aos novismo" partiria da contraposição aos métodos tradicionais, e
trabalhadores. esses demonstravam suas características negativas na evidência da
Sempre presenciamos um esforço muito grande em tentar prática autoritária, amplamente conhecida, e nos resultados mais
encaixar o trabalho do NEP - 13 de Maio no segundo grupo, nítidos da estrutura escolar oficial, acabou-se por gerar um senso
ou seja, dos conteudistas. Felizmente, o mundo é um pouco mais comum no qual a pedagogia nova seria a portadora de todas as
complexo que as caricaturas, e temos a esperança de ter acumulado virtudes, enquanto que a tradicional, de todos os defeitos. Mais
o suficiente para recolocar hoje o debate no patamar das ideias e que isso, ainda no mesmo raciocínio de Saviani, gerou-se a ideia
da reflexão da prática. de que a única maneira de se contrapor à concepção tradicional
era assumindo os princípios da escola nova e seus embasamentos
UM POUCO DA HISTÓRIA DA POLÊMICA liberais.
Acreditamos que a polêmica no campo da chamada educação No campo da educação popular, ou da também chamada
popular insere-se num contexto mais amplo que é a evolução das "formação política", esse embate não aparece dessa forma tão pura.
teorias da educação. Nesse campo, temos um grande embate entre Essa polarização aparecerá mediada naquilo que consensualmente
a "pedagogia tradicional", entendida como a concepção pedagógica reconhecemos como nossa dupla herança: a formação política pra-
centrada no papel do professor e caracterizada pela transmissão ticada pelos partidos de esquerda, fundamentalmente o Partido
de conhecimentos, e a chamada "pedagogia nova", descrita como Comunista, e a concepção de educação dos grupos de base popular
a concepção na qual desloca-se o eixo central para o aluno e na no interior da Igreja católica.
qual mais importante que o conhecimento é aprender a conhecer. De um lado, a verdade oficial a ser transmitida pelo partido
Para ilustrar melhor essa polarização, nos permitimos recorrer na forma da linha justa a ser seguida, em que a formação é conce-
a uma citação de Saviani, apesar de longa, na qual se descreve, em bida como um ato de passagem a um conhecimento científico e,
linhas de gerais, aquilo que diferencia uma e outra concepção: portanto, universalmente válido; e de outro o esforço de partir da
Compreende-se então que essa maneira de entender a educação (a pedagogia vida imediata de uma comunidade, consubstanciado no famoso
nova), por referência à pedagogia tradicional, tenha deslocado O eixo da método de "ver, julgar e agir".
questão pedagógica do intelecto para o sentimento; do aspecto lógico para 0 O tradicional e o novo aqui não se referem ao sistema oficial
psicológico; dos conteúdos cognitivos para os métodos ou processos pedagó- de ensino, mas a experiências educacionais fora da escola. No en-
gicos; do professor para o aluno; do esforço para o interesse; da disciplina para tanto, parece-nos que, na intenção de negar o tradicional, alguns
a espontaneidade; do diretivismo para o não diretivismo; da quantidade para aspectos da chamada escola nova teriam sido incorporados no

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E NSA I OS SOB R E CONSC I ÉN C I A E E MANC I PAÇÃO M A U RO L u 1s l As 1

campo da educação popular de base cristã. Rapidamente, no reino estar atento aos riscos da pedagogia do espontâneo, às concessões
das caricaturas, a tradicional educação dos PCs converte-se na aos princípios liberais do escolanovismo, que acabavam por reduzir
expressão de todos os tipos de verticalismo e autoritarismo peda- a concepção metodológica ao uso de técnicas participativas e que
gógico, enquanto que a educação popular resvala para o basismo e levavam, no limite, à reprodução do senso comum encontrado nos
a esperança passiva e contemplativa do sempre bom conhecimento diferentes grupos populares.
do povo. Na verdade, também nesse campo, as coisas não são tão A superação assim concebida levaria à síntese expressa nos
simples. A tradicional formação dos PCs, ainda que inegavelmen- princípios do que veio a se denominar Concepção metodológica
te dogmática, mostrou-se portadora de uma grande eficácia na dialética. Em linhas gerais poderíamos enunciar dessa forma os
socialização e consolidação de valores revolucionários, expressos elementos principais dessa concepção:
na incorporação do significado de ser comunista, de ser revolu- -A CMD não é senão a aplicação da teoria dialética do conhe-
cionário. Ao mesmo tempo, os grupos de cristãos comprometidos cimento ao processo educativo: "assim como conhecemos, assim
e sua proposta educativa acabaram por propiciar a emergência do devemos educar."
elemento da cultura popular, a preocupação com a mediação das - Dessa primeira afirmação deriva o procedimento básico:
técnicas e da linguagem, o que levou também a resultados bastante 1. partir da realidade imediata, que é produto não só da ação ou experiên-
significativos tanto na organização quanto na motivação política. cia, mas de toda a prática social e histórica;
Essa herança, no entanto, não é uma polaridade de equivalência 2. apropriar-se de conceitos teóricos, para melhor conhecer a realidade
equilibrada entre as partes que a compõem. Para entendermos as além da aparência imediata;
características atuais da prática educativa predominante, é preciso 3. com esse conhecimento mais profundo da realidade e dos conhecimentos
destacar o fato de que a influência da educação cristã (não a tra- teóricos alcançados e construídos no processo educativo, passar à ação de
dicional praticada pela Igreja, mas a proposta pelo movimento de transformação da realidade, daí que o eixo fundamental seria a vinculação
Comunidades Eclesiais de Base - CEBs) é a determinante. entre teoria e prática, o que levaria à famosa formulação P-T-P.
Isso pode ser comprovado não só pela influência direta que
educadores cristãos têm nas práticas e elaborações da atual educação ALGUNS ELEMENTOS DA POLÊMICA
popular, mas também pela natureza das preocupações antiverticalistas, Na época das caricaturas, que esperamos pertencer ao passado, o
na prioridade do aprender a aprender, na importância atribuída aos programa e a proposta educativa do NEP - 13 de Maio era, como
conhecimentos populares, entre outros aspectos. Entretanto, seria vimos, identificada com a herança tradicional e dogmática da
um erro estabelecer uma linha de continuidade a esse processo sem transmissão de conteúdos preestabelecidos. Afirmava-se, ao ver
ressaltar o fato de que a maioria desses educadores busca hoje realizar nosso programa, que parte dos seminários básicos, do tipo "ques-
uma superação em relação àquela primeira fase da educação, de base tões de sindicalismo" ou "como funciona a sociedade", passa por
típica da década de 1970 até meados dos anos de 1980. cursos intermediários ou instrumentais como o "plano de ação e
Essa superação iria no sentido da crítica aos desvios basistas e administração sindical"; até chegar a cursos de aprofundamento
à relativação exagerada do conhecimento humano acumulado. Era como "noções básicas de Economia Política, revoluções e história
necessário partir da negação da prática tradicional, mas também do movimento operário no Brasil"; demonstrava-se a clara intenção

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E NSA I OS SOBRE CONS C I ÊNC I A E E MANC IP AÇÃO M AURO L u , s ! As ,

de apresentar conceitos e categorias previamente selecionados, de- Afirmamos que esse conhecimento é parte do conhecimenc
terminados e hierarquizados e que seriam "simplesmente transmi- humano acumulado e produzido socialmente, é a parte que cons-
tidos" a grupos diferentes e, portanto, com motivações, interesses cientemente selecionamos e buscamos para que possam compor
e realidade distintas. as atividades de formação.
Num primeiro momento, se a "acusação" fosse a de selecio- Não afirmamos que são simples conceitos, são conceitos
nar e hierarquizar conceitos, integrá-los num programa e buscar, históricos, produzidos em determinados contextos concretos
através da prática educativa, fazer com que fossem assimilados por e respondendo a determinadas necessidades contextualizadas
diferentes grupos de trabalhadores e organizações populares, não históricamente. Nesse sentido, selecionamos também conteúdos
teríamos outra alternativa a não ser considerarmo-nos "culpados". históricos que julgamos ser fundamentais para a compreensão
Acreditamos que um dos aspectos da prática educativa - consjdera- não só de certos conceitos, mas do próprio funcionamento da
mos mesmo um aspecto fundamental - é o de "socializar" conceitos sociedade atual.
e categorias que são ferramentas essenciais para a compreensão e Como se vê, nosso perfil tem tudo para se enquadrar na carica-
transformação da realidade. tura de "conteudistas tradicionais". No entanto, é com muito prazer
Esses conceitos são evidentemente selecionados e nesse campo que, ao entrar em contato com as formulações mais recentes e do
intervém, temos ciência disso, a escolha de categorias e conteúdos campo da educação popular, vemos presente, na síntese alcançada,
que têm por base considerações valorativas, posicionamento de a preocupação com o conhecimento universal acumulado, como
classe, visão de mundo e a subjetividade de quem seleciona. Não vemos nesta citação de Marcos Arruda:
consideramos isso um problema, pelo fato de que não concebemos Nossa primeira tarefa é ajudar os trabalhadores a apropriarem-se do conhe-
nenhuma prática educativa que não proceda dessa forma, ainda cimento universal acumulado, ou seja, do conhecimento que a humanidade
que no enunciado de suas intenções afirme o contrário. vem construindo ao longo de sua essência( ... ) (Forma e conteúdo nº 1, p. 25).
Nesse campo da escolha, partimos da concepção fundamental É assim que, para a surpresa de muitos que esperavam encontrar
que buscamos construir um movimento de luta dos trabalhadores, nesse ponto um conflito, encontramos, ao contrário, um campo
que tenha de, como linha geral de princípios, ser anticapitalista, de consenso. Talvez a contradição se abriria entre nós, que ainda
revolucionário, e apontar para a estratégia de construir o socialismo acreditamos em patamares acumulados de conhecimento possí-
como via para se chegar a uma sociedade sem classes (ou, como se vel da realidade, e os novos agnosticistas, que relativizaram a tal
costuma dizer nos enunciados: sem explorados e exploradores). Isso ponto a verdade e o conhecimento, que o único patamar possível
afirmado, impõe-se a nós a tarefa de que os trabalhadores tenham converteu-se na percepção subjetiva de cada indivíduo.
que ter os elementos, ainda que elementos iniciais, para que com- No entanto, não basta considerar necessário partir do conheci-
preendam o que é e como funciona o capitalismo, da necessidade mento universal acumulado, é necessário questionar a forma com a
de superação revolucionária, das vias e formas empregadas histori- qual se pretende socializá-lo. Trata-se do simples ato de transmissão
camente para esse fim, compreendam a noção geral de classes e os desse conhecimento, daí o inevitável verticalismo. ·
meios e instrumentos de classe que se produzem para transformar Nesse ponto, alguns aspectos, segundo nossa reflexão, bastante
ou manter determinada sociedade. relevantes intervêm na polêmica. Seriam eles: a proposição de partir

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E NSA I OS SO BR E C ONSC I Ê NC I A E E M ANC I P AÇÃO M Au n o L u 1s I AS !

da realidade concreta de cada grupo e a questão da produção do concreta e imediata. Como ficaria então a proposta na equação
conhecimento. Prática-Teoria-Prática?
Dizíamos existir um campo de concordância na afirmação Ao nosso ver, aqui intervém uma confusão causada pela
do procedimento anterior que devemos socializar, mas isso apa- compreensão mecânica da fórmula P-T-P. Apesar do cuidado dos
rentemente se choca com a primeira afirmação do procedimento formuladores, ao que parece, acabou por se produzir um reducio-
relativo à chamada concepção metodológica dialética, ou seja: nismo mecânico quanto à relação teoria/prática, no qual a prática
a partir da realidade imediata. Afinal, no mesmo texto citado, se confunde com o resgate da realidade imediata no início da ativi-
Marcos Arruda afirmará: dade de formação. Pedro Pontual parece indicar essa preocupação
O nosso ponto de partida para a educação nova e diferente deve ser aquilo quando afirma que:
que os trabalhadores trazem para os cursos de formação , começando a Me parece que, na tentativa de didatização do que seria essa concepção (a
construir para além do que eles já conhecem, restituindo e recapitulando concepção metodológica dialética) , temos incorrido por vezes em algumas
e integrando todo esse conhecimento no seu próprio processo de crítica simplificações e esquematismos que podem traduzir elementos de distorção
(...). Somente tomando como ponto de partida o próprio trabalhador e na nossa prática(...) (Forma e conteúdo nº 1, p. 14).
seu conhecimento é que podemos valorizar esse conhecimento e fazê-lo Assim no extremo, qualquer afirmação teórica anterior à prática
transfigurar a si próprio (Idem, p. 26). concreta de um certo grupo determinàdo, que vá realizar uma
Dessa maneira, qual seria o verdadeiro ponto de partida, o co- atividade educativa, subverteria a fórmula.
nhecimento universal acumulado ou o trabalhador concreto e seu Ora, mas como afirmamos, seria impossível qualquer atividade
conhecimento? Ao que parece, poderíamos cair numa polarização sem uma preocupação metodológica (que é teórica), sem uma sele-
mecânica e, portanto, em negação da intenção dialética afirmada, ção de temas, sem uma priorização de conteúdos e levantamentos
em que partir do conhecimento negaria o trabalhador concreto de conceitos a serem trabalhados.
e seu conhecimento; e, pelo inverso, partir desse implicaria em Levada a esse ponto de esquematismo, a fórmula perece no seu
relativizar ou relegar o conhecimento sistematizado. primeiro contato com a prática. Esse não seria um problema tão
Preferimos trabalhar com a concepção de que esses são sério caso se restringisse ao campo da compreensão da concepção;
aspectos que compõem a prática educativa e que estabelecem no entanto, Pontual parece deduzir que tal simplificação poderia
uma relação entre si, de forma que o conhecimento universal é "introduzir elementos de distorção na nossa prática". Até que ponto
anterior e constitui a base real pela qual se alavanca o processo a preocupação em resgatar o contexto concreto e as necessidades
educativo e o contexto imediato (incluindo aí o trabalhador, sua e anseios dos grupos específicos, com os quais se vai trabalhar,
cultura, linguagem, valores e percepções) e o meio no qual deverá não teria relativizado por demais os conteúdos e a precisão das
se traduzir o esforço educativo. O conhecimento ganha sentido na categorias a serem trabalhadas?
medida em que se traduz para um contexto concreto, assim como Podemos citar por exemplo, algumas atividades no campo
esse contexto só é compreendido à luz do conhecimento anterior. da CUT e do PT, em que a intenção, louvável, de se estudar as
Mas se isso é assim, o conhecimento sistematizado, portanto teo- formulações e as resoluções de um encontro ou um congresso
ria, estaria numa posição de anterioridade em relação à realidade não oferece nenhum patamar teórico ou histórico que balizasse

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ENSA I OS SOB R E CONSC I ÊNC I A E E MANC I PAÇÃO
M AURO L u , s I AS !

tal reflexão. Como seria possível a um militante compreender prática política geral. A particularidade desse momento está na sua
de fato uma definição pela disputa de hegemonia sem manejar tarefa específica de refletir, superar a aparência das coisas, buscar
relativamente bem o conceito de classe e de Estado? Como seria compreender a realidade (seja da sociedade ou do movimento ou da
possível a um sindicato refletir verdadeiramente sobre "práticas e organização na qual se atua) para transformá-la, produzir saltos de
concepções sindicais" sem conhecer, ainda que de forma geral, as qualidade na eficácia de nossa ação. Segundo, porque seria incor-
lutas sindicais no Brasil? reto conceber um processo que é indicado como um movimento
Aqui há, talvez, em nosso campo de consenso, uma ponta de contínuo e contraditório, de sucessão de síntese de prática e teoria
divergência que a equipe do NEP- 13 de Maio sempre expressou como um esquema abstraído desse movimento e reduzido a três
em relação ao curso de "concepções, estrutura e práticas sindicais momentos: P-T-P.
da CUT". Sendo assim, teríamos que representar a prática política geral
Para nós há, além da compreensão esquemática da fórmula como um fluir dessa fórmula:
P-T-P, um problema anterior que reside na própria derivação
dessa fórmula da concepção dialética geral inicialmente afirmada. ... P-T-P-T-P-T-...
Isso não significa que discordamos da necessária relação prá-
tica/teoria. No entanto, afirmamos que a relação teoria e prática E a prática educativa como um momento desse movimento, é
não ocorre da mesma forma na produção do conhecimento e na exatamente o momento teórico.
prática educativa Agora, voltando ao nosso campo de consenso, ou seja, que nosso
Todo conhecimento deriva de uma prática, de um contexto primeiro esforço nessa prática educativa é propiciar a apropriação
histórico concreto, assim como tanto esse conhecimento quanto de um conhecimento universal por aqueles que, vindo de uma
essa prática são manifestações sociais. Assim, uma prática humana, prática e um concreto, esperam da reflexão teórica a base para
uma ação social concreta, histórica, possibilita uma reflexão, uma superar o patamar anterior e alcançar um novo rumo, para uma
abstração teórica, nela baseada, que será a base para futuras ações prática qualitativamente superior.
transformadoras e novas sínteses teóricas. Portanto, um processo Acontece que a atividade educativa partiu de um conhe-
ininterrupto de ações e sínteses sucessivas. cimento (concepção metodológica, conceitos, conteúdos,
Para nós, a afirmação, na ação política geral, da anterioridade reflexões etc.) e essa atividade se dá na tentativa de traduzir esse
da prática é a confirmação do princípio materialista do método, conhecimento pela realidade concreta daqueles que buscam a for-
ou seja, da antecedência do concreto em relação à representação mação. Se isso desse resultados, chegaríamos a um novo patamar
abstraída desse concreto na forma de teoria. No entanto, nada nos que seria a síntese entre o conhecimento sistematizado e o universo
autoriza a transpor essa equação (P-T-P) para a realidade particular concreto daqueles participantes. Essa é uma análise ainda teórica,
da prática educativa. Acreditamos que para isso deveríamos realizar é apenas no âmbito da atividade formativa um patamar para uma
necessariamente certas mediações. prática, mas ainda não é essa prática. Nesse sentido, teríamos que
Em primeiro lugar, porque a prática educativa é, para nós, e supor que, nesse momento particular, a ação educativa, inserida na
creio aqui haver também uma concordância, um momento da política geral, devesse ser representada graficamente dessa forma:

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Fórmula da Práxis: se apropriar do concreto, de o reproduzir como concreto espiritual. Mas


esse não é de modo nenhum o processo de gênese do próprio concreto
(Marx, Contribuição à crítica da Economia Política, 1877, pp. 218-219) .

... P --Q)- P... Como a intenção maior do autor é contrapor a concepção idea-
lista de Hegel, evidencia-se a afirmação de que na dialética, entre
1' , concreto e pensamento, existe uma determinação do concreto. O
M omento teorico:
que pode passar despercebido é que no meio dessa discordância há
~
T - P-T uma concordância entre Marx e Hegel e esta está exatamente na
forma como o pensamento se apropria desse concreto. Afinal, não
Isso significa que a formação é um momento teórico da prática nos esqueçamos de que Marx supera o materialismo mecânico de
política geral, ou da "práxis", momento que tem por sua particu- Feuerbach, exatamente pelo resgate da lógica dialética de Hegel - e
laridade a tarefa de socializar a teoria acumulada, traduzi-la para o que é a lógica senão uma forma de conceber e organizar o conhe-
um contexto concreto e permitir que seja incorporada como um cimento?
novo patamar para futuras ações. Nesse sentido, aquele concreto imediato, aparente, é uma
Essa compreensão faz com que no âmbito formativo a equação abstração ("uma representação caótica do todo"). Apesar de ser
apareça invertida, em que o concreto aparece como teoria no ponto verdadeiro ponto de partida, ele aparece no pensamento como
inicial do movimento particular. Esse fato não deveria parecer síntese, como resultado. Ele é apropriado pelo pensamento atra-
estranho, ao menos para aqueles que pretendem construir uma vés de uma análise num método que é assim descrito como o de
concepção dialética. "elevar do abstrato ao concreto". Assim, todo o processo transcorre
Quando Marx trabalha a relação entre o concreto e o pen- no campo da abstração, da lógica, o que levaria a ilusão hegeliana
samento, o faz para além da visão mecânica do materialismo de o pensamento produzir-se a si mesmo. Existe assim uma nítida
vulgar, que atribuía a relação simples da matéria como base para diferenciação entre dois processos interligados, mas distintos: o do
o pensamento como reprodução dessa matéria. Ainda que longa e conhecimento e o da gênese do concreto.
árdua, a citação de Marx nos parece fundamental para ilustrar o Pensamos que no âmbito específico da formação, falamos
argumento acima exposto: sempre de um concreto cujo processo próprio de gênese e evolução
O concreto é concreto por ser a síntese de múltiplas determinações, logo, é exterior à prática educativa. O que se materializa na atividade
unidade na diversidade. É por isso que ele é para o pensamento um pro- formativa são mediações desse concreto expressas através de valores,
cesso de síntese, um resultado, e não um ponto de partida, apesar de ser linguagens, condutas, posturas, relatos e pessoas portadoras de
o verdadeiro pomo de partida da observação imediata e da representação concepções, sistematizadas ou não, e que mediatizam nelas relações
(...) Por isso, Hegel caiu na ilusão de conceber o real como resultado do de classes, contextos e conjunturas históricas, vontades e desejos.
pensamento, que se concentra em si mesmo, se aprofunda em si mesmo e se Assim, aquela prática que resgatamos no início de uma ativi-
movimenta por si mesmo, enquanto que o método que consiste em elevar-se dade aparece transformada no seu contrário, aparece teorizada.
do abstrato ao concreto é para o pensamento precisamente a maneira de Mas, para que ela seja teorizada, é necessária uma teoria, uma

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EN S A I OS SOBRE CONSC I ÊNC I A E E MAN C IPA Ç ÃO

preocupação metodológica, a intenção de traduzir conceitos e tudo prática na qual os participantes vivem um dia de trabalho e que
está dado antes do esforço de resgatar a prática. o monitor buscará conduzir um processo de vivência no qual o
Voltemos ao programa de formação do NEP - 13 de Maio, conceito de mais-valia possa fazer sentido para aquele grupo através
no qual a prática poderá nos evidenciar melhor esse mecanismo de sua própria experiência (experiência vivenciada na mediação da
do que o argumento de fundo teórico. Como dissemos, nós, atividade educativa).
conscientemente, partimos da seleção de conteúdos e conceitos O que fizemos? Partimos de um conceito que julgamos ne-
e os hierarquizamos num programa de formação. A primeira cessário de ser compreendido para desvendar o funcionamento
acusação nós, portanto, assumimos. A segunda é que isso levaria da sociedade capitalista e buscamos traduzi-lo para a realidade
a transformar a atividade formativa numa mera transmissão do concreta do grupo que se propunha à atividade de formação. O
conhecimento preestabelecido. Essa acusação nós negamos e uma conceito, a partir daí, é vivenciado pelo grupo, passa a fazer sentido
descrição da prática pode evidenciar o porquê. para ele - e esse é o passo para ser incorporado, apreendido.
Peguemos um seminário básico: Como funciona a sociedade. Para nós, então, de forma sintética, a realidade concreta é a
Nele pretendemos trabalhar, no essencial, a noção de como se dá nossa matéria-prima, é o ponto de partida de todo o conhecimento
a exploração através da compreensão do conceito de mais-valia. e é, também, o ponto de partida efetivo da atividade de formação, é
A simples transmissão seria feita se chegássemos e recitássemos o o nosso instrumento de superação das aparências e de compreensão
conceito: a diferença entre o valor produzido pelo trabalhador e o da realidade. A atividade de formação é o momento de encontro
valor pago na forma de salário. Evidente que não é isso que fazemos. entre a vida e a teoria, quando o esforço pedagógico se expressa
Começamos por uma atividade chamada "Que país é esse?", na na tentativa de traduzir a teoria em vida, vivenciá-la.
qual, através de uma série de recursos, procuramos resgatar a forma Poderíamos afirmar que o eixo central da proposta consiste
imediata como aquelas pessoas veem a sociedade, procuram explicar em vivenciar o conceito, ou seja, traduzir a teoria através de me-
seu funcionamento e buscam soluções. Nesse primeiro momento, diações que a tornem apreensível e com significado para o grupo
expressam-se uma série de valores, concepções e comportamentos que a procura.
que permitem ao monitor mediar seu discurso, seus exemplos, e a Diante dessas afirmações, como ficaria a questão da produção
condução do seminário. coletiva do conhecimento? Pelo que foi exposto, fica implícito que
Esse é o primeiro ato que ocorre na atividade, mas não é o todo esforço vai no sentido de vivenciar o significado do conceito
verdadeiro ponto de partida. Não se pretende resgatar indiferente que se espera socializar. Nesse sentido, o conceito é algo novo, que
o senso comum, que leva a vivenciar uma dúvida, a produzir uma passa a ser incorporado àquele conhecimento do trabalhador, é
questão específica sobre o conhecimento da sociedade. Nesse sen- recriado para outro contexto. Ele, assim, foi socializado de forma e
tido é que a atividade é extremamente participativa e, ao mesmo por meio de técnicas coletivas, mas não foi no âmbito do seminário.
tempo, conscientemente direcionada. Acreditamos que existe um risco em procurar identificar o
A partir daí, o educador conduz a atividade de forma a que, espaço da socialização com o da produção do conhecimento.
através de uma dinâmica, os participantes vivenciem o surgimento Talvez esse seja um elemento da escola nova mal superado na
de um conceito explicativo. No caso, a dinâmica reproduz uma síntese realizada. Preocupa-nos a ambição de produção de novos

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conhecimentos sem a incorporação e real apreensão dos conceitos Para nós, o produto da formação é algo mais complexo e di-
e conteúdos já sistematizados e, além disso, nos indagamos se dessa fícil de medir no curto prazo, como seria o gosto da consciência
forma não nos distanciamos das intransferíveis tarefas de pesquisa imediatista e sindical predominante em nosso movimento. Seria
e elaboração que exigem outras condições que não as que normal- algo a ser medido na qualidade efetiva da ação militante, em sua
mente se apresentam em nossos espaços formativos. capacidade crítica diante de deformações que vão se produzindo,
Voltando a Saviani e à sua escola nova, que, como sabemos, bus- a constatação, no quadro de militantes, da socialização de novos
cava priorizar o processo do aprender a aprender, encontramos uma valores e preocupações, no número de quadros com capacidade
reflexão sobre a intenção dessa linha pedagógica incoerente com seus de elaboração de políticas de ação e organização. Um produto que
princípios, relativizar a diferença entre ensino e pesquisa. Diz Saviani: deve ser construído cotidianamente, mas que somente se expressa
A escola nova acabou por dissolver a diferença entre pesquisa e ensino, ao final de processos relativamente longos.
sem dar conta de que, assim fazendo, ao mesmo tempo que o ensino era No entanto, não queremos afirmar, com isso, que não se deve
empobrecido, se inviabilizava também a pesquisa (Saviani, op. cit., p. 58). estabelecer um vínculo entre a formação e a organização. Muito
Esse empobrecimento e essa inviabilização, ainda na argumen- ao contrário, procuramos sempre, em cada atividade, indicar a
tação do autor, se daria porque na prática acabava se praticando necessária reflexão que deve se estender à organização e à prática
uma simulação de pesquisa no momento em que o educando militante. Temos certeza de que o desafio da relação entre orga-
necessitava de apropriar conceitos que o instrumentalizassem para nização e formação é uma realidade que fica presente para aqueles
as investigações. Assim argumenta que "o desconhecido só se de- educadores que atuam diretamente na CUT, nos sindicatos ou
fine por confronto com o conhecido, isto é, se não se domina o já no PT.
conhecido, não é possível detectar o ainda não conhecido." (Idem). No entanto, o que nos preocupa é que, na tentativa de buscar
No campo da formação popular e política, essa intenção por uma relação entre a prática formativa e a organização, por vezes, a
uma produção coletiva, ao nosso ver, levou ainda a uma ansiedade educação popular acaba por perder sua especificidade. O que ocorre
por um produto concreto no final da atividade de formação. Con- então é a submissão da formação à organização, ou seja, a educa-
cordamos que a formação deva conduzir à prática e ter um resultado ção vira um mero instrumento para atingir fins pragmáticos. Está
sobre ela. No entanto, a materialização disso num produto pode aberto o caminho para uma relação utilitarista com a formação.
levar a distorções que são conhecidas por nós em nossas práticas. Ela aparentemente se preocupa em dar respostas mais imediatas e
Nos últimos anos, temos presenciado uma relação utilitarista concretas, mas acumula muito pouco para criar patamares críticos
das organizações para com a formação. Há uma cobrança, que à própria estrutura que apresenta essas necessidades.
só na aparência é positiva, de integração prática e de resultados
concretos da formação para a ação sindical, partidária ou popular. CONCLUSÃO
Cobra-se, na verdade, mais filiados, uma melhor campanha salarial, Acreditamos que está se abrindo um período importante para
uma melhor organização, em que atuam determinantes que, via a reflexão e o debate entre aqueles que persistem no caminho da
de regra, fogem à área de ação da formação, embora no discurso transformação social. Na área da educação popular, desarmam-se
ela acabe levando a culpa. velhos preconceitos e produzem-se patamares nos quais a polêmica

170 171
E NSA I OS SO BR E C ONSC I Ê NC I A E E MANC IP AÇÃO

pode se estabelecer e levar a trocas e contribuições mútuas que só


beneficiarão nossos propósitos libertadores.
Esperamos ter iniciado uma contribuição ao debate que não
deve se encerrar aqui, porque temos a convicção de que é no de-
bate franco de ideias e na avaliação crítica de nossas práticas que
aperfeiçoaremos nossa caminhada.

172
aceitam os limites da ordem do
capital, da mercadoria e do Estado,
reafirmando que o movimento
da consciência corresponde ao
processo de formação de nossa
classe, primeiro como classe em si,
depois como a possibilidade de se
constituir como um sujeito histórico,
como classe para si.
Os temas tratados vão desde o
estudo do processo de consciência
propriamente dito, até temas
associados como a questão da
ideologia, o conceito de classes
sociais, o papel da fé e das
motivações ideais nas lutas sociais,
até reflexões sobre a metodologia
na educação popular. Apesar da
diversidade dos temas, eles acaban
encontrando um eixo central na
reflexão sobre a consciência e a
pretensão humana de resgatar o
mundo que lhe pertence.

Mauro Luis lasi é Professor da


Escola de Serviço Social da UFRJ,
educador do Núcleo de Educação
Popular 13 de Maio e membro do
Comitê Central do PCB. Autor de
vários livros, entre eles, Dilema
Impresso por :
de Hamlet, o ser e o não ser da
consciência de classe (Viramundo,

~
2002), Metamorfoses da
Consciência de classe (Expressão
Tcl.:11 2769-9056 Popular, 2006).
A questão de fundo aqui não pode ser discutida sem encarar o fato de o
processo de consciência inserir-se em um momento maior, que é a tran-
sição de um modo de produção para outro. Na medida em que se operem
transformações revolucionárias, em que se passe a estabelecer novas
relações, podemos estar iniciando a construção de um novo patamar da
consciência humana.
A consciência não está para além da evolução histórica real. Não é
o filósofo que lança no mundo; o filósofo não tem o direito, portanto,
de lançar um olhar arrogante sobre as pequenas lutas do mundo e
de as desprezar. (Lukács)
Portanto, a transformação das consciências não está além da luta política
e da materialidade onde esta se insere. É ao mesmo tempo um produto
da transformação material da sociedade e um meio político de alcançar
tal transformação.

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