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“Capoeira é de Deus?

”: perspectivas de diálogo entre o fundamentalismo religioso


neopentecostal e a Pedagogia da Autonomia

Jóvirson J. Milagres

Resumo: “Professor, capoeira é de Deus?” A pergunta, feita por um aluno ao professor de


capoeira em uma escola pública de tempo integral, sintetiza uma situação cada vez mais
recorrente em que profissionais da educação têm que se posicionar frente à suposição de que
haveria um componente religioso subjacente a um determinado tema ou conteúdo curricular.
Esta resistência, por parte de alunos pertencentes a denominações religiosas neopentecostais e
seus familiares, está associada a uma atitude de intolerância frente às manifestações da
religiosidade afro-brasileira, quase sempre, vinculada à acusação de que determinado
conteúdo não seria “de Deus”. Tal posicionamento emerge em um contexto social permeado
de preconceitos e desinformação que perpassa o cotidiano de pais e alunos de muitas escolas
brasileiras e sobre o qual as próprias escolas são forçadas a se posicionar, muitas vezes sem
subsídios teóricos suficientes para tentar promover um ambiente de diálogo e conscientização
de seus alunos, visando o exercício da tolerância étnico-religiosa. No Brasil, a significativa
expansão do movimento neopentecostal favoreceu o recrudescimento de um tipo
característico de fundamentalismo religioso que rechaça veementemente a possibilidade do
diálogo inter-religioso, principalmente no que se refere à aceitação de práticas comuns à
religiosidade afro-brasileira, contra a qual o movimento neopentecostal trava uma peculiar
“batalha espiritual”. A partir de uma perspectiva pedagógica que, na concepção de ensino de
Paulo Freire (1983), considere o universo dos educandos como uma fonte primordial de
conteúdos a serem abordados nas escolas, a religiosidade se apresenta como um tema
relevante e imprescindível no panorama atual ao se definir qualquer projeto pedagógico. Além
da valorização do “universo significante” do aluno, o autor propõe também o exercício de
uma pedagogia da autonomia, que desperte o senso crítico em relação à sua própria existência
histórica. Mas, como conciliar uma iniciativa pedagógica libertária nos moldes propostos por
Paulo Freire com a orientação dogmática própria de denominações evangélicas com as quais
muitos alunos convivem em seu ambiente familiar? Esse é o desafio de uma práxis
pedagógica voltada para a conscientização de cada membro da comunidade escolar - alunos,
familiares e agentes educacionais – que se atente para os conflitos decorrentes de discursos
Mestre em Antropologia, Doutorando em Ciência da Religião na Universidade Federal de Juiz de Fora –
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UFJF. jovirson@gmail.com.
religiosos fundamentalistas que eclodem no ambiente escolar e que busque a mediação desses
conflitos através do diálogo, da valorização da liberdade de pensamento e de um
posicionamento humanista, laico e includente.

Palavras-chave: Currículo Escolar; Fundamentalismo Religioso; Pedagogia da Autonomia.

Introdução
O presente trabalho se propõe a refletir sobre como alguns temas relacionados à
religião se fazem presentes no cotidiano de escolas públicas brasileiras e quais as implicações
desse fenômeno para o entendimento das relações contemporâneas entre religião e sociedade
em uma perspectiva mais ampliada. A pergunta apresentada no começo do título, feita por um
aluno ao professor de capoeira em uma escola pública de tempo integral, sintetiza uma
situação cada vez mais recorrente em que profissionais da educação têm que se posicionar
frente à suposição de que haveria um componente religioso subjacente a um determinado
tema ou conteúdo curricular.

Esta resistência, invariavelmente embasada por discursos de alunos pertencentes a


denominações religiosas neopentecostais e seus familiares, está associada a uma atitude de
intolerância frente às manifestações da religiosidade afro-brasileira, quase sempre, vinculada
à acusação de que determinado conteúdo não seria “de Deus”. Mas afinal, quais as visões de
mundo envolvidas em um questionamento desse tipo? Os argumentos utilizados para justificar
uma interdição de caráter religioso voltada para uma atividade devidamente legitimada por
uma proposta pedagógica da escola, e inclusive respaldada pelos parâmetros curriculares de
instâncias institucionais superiores, de certo modo podem ser entendidos como sendo de
cunho fundamentalista, na medida em que partem de critérios absolutos e irrefutáveis que
definem o que “é ou não é de Deus”.

Além disso, tais posicionamentos se aproximam do fundamentalismo religioso quando


consideram as determinações da denominação religiosa de origem como prerrogativas que se
sobrepõem aos deveres prescritos pelo regimento escolar. Dessa forma, o pressuposto
republicano de laicidade do Estado e, consequentemente das escolas públicas, se esvai,
abrindo brechas pelas quais se questiona e se ensaia uma intervenção no projeto político
pedagógico da escola, ou então se busca uma condição especial de não participar de
determinada atividade escolar alegando motivações religiosas.
Tal posicionamento emerge em um contexto social permeado de preconceitos e
desinformação que perpassa o cotidiano de pais e alunos de muitas escolas brasileiras e sobre
o qual as próprias escolas são forçadas a se posicionar, muitas vezes sem subsídios teóricos
suficientes para tentar promover um ambiente de diálogo e conscientização de seus alunos,
visando o exercício da tolerância étnico-religiosa.

Dinâmica do Campo Religioso Brasileiro e seus Reflexos nas Escolas

No Brasil, a significativa expansão do movimento neopentecostal favoreceu o


recrudescimento de um tipo característico de fundamentalismo que rechaça veementemente a
possibilidade do diálogo inter-religioso, principalmente no que se refere à aceitação de
práticas comuns à religiosidade afro-brasileira, contra a qual o movimento neopentecostal
trava uma peculiar “Guerra Santa” (CAMURÇA, 2009). Os argumentos que tentam legitimar
posicionamentos desse tipo refletem um movimento de afirmação do mundo evangélico que,
nas últimas décadas, tem buscado ocupar um maior espaço simbólico na sociedade, em
conformidade com o aumento da representatividade demográfica desse segmento no mesmo
período.

Esse movimento se volta também contra alguns elementos do catolicismo


tradicionalmente presentes na escola, sintoma da crescente quebra de hegemonia católica na
sociedade brasileira. Esse fenômeno sem dívida pode vir a representar um ganho no sentido
de estimular discussões mais radicais sobre a representatividade religiosa no país, rompendo
com modelos já naturalizados, que acabam por reproduzir uma peculiar “laicidade à
brasileira” (MARIANO, 2011). Entretanto, a forma com que essas questões vêm sendo
levantadas no ambiente escolar exige, por parte do corpo docente, dos coordenadores,
supervisores pedagógicos e corpo administrativo destas instituições de ensino, uma
fundamentação teórica consistente, além da elaboração de estratégias de mediação de
conflitos e promoção do respeito amplo às diversas orientações religiosas.

Porta-vozes de um discurso evangélico mais alinhado á vertente fundamentalista,


muitas vezes associado à discriminação de aspectos fulcrais da cultura afro-brasileira (ritos,
instrumentos musicais de percussão, religiosidade) e a mistificação de elementos da cultura
popular (saci, devoção aos santos católicos, festa junina, etc.), alunos e de escolas públicas e
seus familiares que questionam a abordagem de determinados conteúdos curriculares,
intencionam fazer com que valores éticos e estéticos compartilhados pelo seu grupo de
devoção tenham prerrogativa sobre as propostas pedagógicas pautadas por valores
intrinsecamente associados à escola pública.

A pluralidade étnica, cultural e religiosa do povo brasileiro é compreendida como uma


das instâncias que deveria direcionar o projeto político pedagógico das escolas públicas. Esse
posicionamento não interfere absolutamente nos princípios laicos que deveriam nortear essas
instituições, associados a valores humanistas e universais.

Entretanto, é cada vez mais comum nos depararmos com um aluno, ou com algum dos
seus familiares, julgando uma determinada representação alegórica presente na escola como
“imprópria” ou “feia” - seja um presépio natalino, uma música de quadrilha que homenageia
os santos juninos, ou uma imagem do saci Pererê. Esses julgamentos se pautam por valores
éticos e estéticos definidos por critérios estritamente religiosos e que deveriam, em princípio,
não extrapolar os limites do grupo de devoção que os compartilha. A partir do momento em
que esses critérios são tomados como referência para se reivindicar abstenção de uma
atividade escolar por parte de alguns alunos, surgem então oportunidades que possibilitam o
desencadeamento do diálogo, visando uma melhor compreensão do fenômeno religioso e a
necessidade de um caminho de respeito pela crença “do outro”.

Privar qualquer aluno do direito a ter acesso aos conteúdos definidos pelo Projeto
Político Pedagógico da escola por motivações religiosas é um contrassenso, pois ao serem
pensados, tais conteúdos são entendidos como relevantes para todos os alunos,
indiscriminadamente. Esses conteúdos visam, acima de tudo, uma educação plural e um
reconhecimento amplo do contexto cultural ao qual a comunidade escolar está vinculada.

Historicamente, as diferentes religiões professadas no Brasil são acolhidas no espaço


público de forma bem distinta e, apesar dos instrumentos normativos existentes, o tratamento
que o Estado dispensa a uma ou outra dessas religiões difere drasticamente, tanto no que se
refere à mobilização de políticas, quanto à efetivação de práticas que garantam o direito à
diversidade (GOMES, 2016). Investigar as possibilidades de abordagem da religiosidade
enquanto temática curricular - temática essa quase sempre negligenciada ou tratada de forma
superficial para se “evitar conflitos” - nos leva necessariamente a repensar questões correlatas
como, por exemplo, a polissemia do conceito de laicidade, a oferta precária e a matrícula
facultativa na disciplina Ensino Religioso, mas, sobretudo, a dificuldade de se tratar
especificamente a religiosidade enquanto o elemento da cultura afro-brasileira.
A partir de uma perspectiva pedagógica que, na concepção de ensino de Paulo Freire
(1983), considere o universo dos educandos como uma fonte primordial de conteúdos a serem
abordados nas escolas, a religiosidade se apresenta como um tema relevante e imprescindível
no panorama atual ao se definir qualquer projeto pedagógico. Além da valorização do
“universo significante” do aluno, o autor propõe também o exercício de uma pedagogia da
autonomia, que desperte o senso crítico em relação à sua própria existência histórica. Mas,
como conciliar uma iniciativa pedagógica libertária nos moldes propostos por Paulo Freire
com a orientação dogmática própria de denominações evangélicas com as quais muitos alunos
convivem em seu ambiente familiar? Esse é o desafio de uma práxis pedagógica voltada para
a conscientização de cada membro da comunidade escolar - alunos, familiares e agentes
educacionais –, que se atente para os conflitos decorrentes de discursos religiosos
fundamentalistas que eclodem no ambiente escolar e que busque a mediação desses conflitos
através do diálogo, da valorização da liberdade de pensamento e de um posicionamento
humanista, laico, plural e includente.

Considerando que as diferentes tradições religiosas são instituições historicamente


construídas e de inegável representatividade social, a escola pública, em princípio laica, se
apresenta como um espaço potencial de produção e difusão do conhecimento referente à
religião em sua dimensão mais humanística, universalista e, sobretudo, existencial. Um
conhecimento desse tipo produz subsídios para uma reflexão crítica mais apurada sobre a
religião, que se confunde com a própria cultura de forma tão orgânica que, muitas vezes, não
nos atentamos para sua real relevância na determinação de comportamentos, atitudes, visões
de mundo e julgamentos de valor.

O desenvolvimento de um projeto pedagógico que considere essas questões


contempla uma demanda que se apresenta sobremaneira de forma complexa no contexto atual.
Vivemos um momento em que o processo de secularização iniciado com a modernidade
parece ter chegado a uma encruzilhada, quando o recrudescimento de fundamentalismos
religiosos em várias partes do mundo se torna evidente. No Brasil, a crescente representação
de denominações pentecostais na politica se impõe de forma categórica, reivindicando
intervenções na esfera pública pautadas por uma moral religiosa muitas vezes sectária.

Conclusão
Refletir sobre como esse panorama sócio-político repercute no ambiente escolar, tendo
como referência uma práxis pedagógica orientada a partir dos caminhos traçados por Paulo
Freire, contribui para a conscientização da comunidade escolar sobre o tema, de uma forma
dialógica e interativa. Entretanto, o fundamentalismo religioso é um componente discursivo
que restringe a aplicação de uma pedagogia nesses moldes por ser, em princípio, refratário à
possibilidade de desenvolvimento de uma consciência crítica construída através do diálogo e
da capacidade das pessoas em interpretar o mundo de forma reflexiva e autônoma.

Esse é um conflito ideológico a ser enfrentado por propostas educacionais que


estimulem a autonomia dos indivíduos enquanto sujeitos históricos e desenvolvam um
posicionamento crítico desses indivíduos em relação à realidade que se lhes apresenta. Não se
pode perder de vista que a religião e o sentimento religioso, especialmente aqueles expressos
por algumas denominações neopentecostais contemporâneas, constituem o universo
significante dos alunos e devem ser reconhecidos pelos agentes educativos como geradores de
sentido para a vida desses alunos e de suas famílias.

A partir do reconhecimento dessa condição sui generis conferida à religião por uma
parcela significativa do público nessas instituições de ensino, é preciso que a escola se
posicione como um espaço de discussão o mais isento possível, exercendo o pressuposto da
laicidade em seu sentido mais estrito. Esse posicionamento deve considerar, inclusive, a
abertura para uma apreensão mais compreensiva do fenômeno religioso, que venha a superar
uma concepção crítico marxista de que a religião seria alienante, ou então um fenômeno
menor, visto por uma perspectiva científico-positivista. Talvez, na busca de uma prática
dialógica, a “forma” de abordar determinados conteúdos possa ser repensada levando em
consideração as restrições e interdições religiosas da população atendida pelas escolas
públicas, não suprimindo conteúdos, mas abordando-os com sensibilidade e se atentando para
as animosidades que certos temas possam suscitar.
Referências
CAMURÇA, Marcelo Ayres. “Entre Sincretismo e Guerras Santas”: dinâmicas e linhas de
força do campo religioso Brasileiro. Revista USP, São Paulo, n.81, p. 173-185, março/maio
2009.

FREIRE, Paulo. Educação como prática de Liberdade. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

GOMES, Jorge Helius Scola. Marcos Legislativos de Regulação do Religioso no Brasil: do


Estatuto da Igualdade Racial à Lei Geral Das Religiões. In.: WYNARCZYK, Hilario;
TADVALD, Marcelo; MEIRELLES, Mauro (organizadores). Religião e Política ao Sul da
América Latina. Porto Alegre: CirKula, 2016.

MARIANO, Ricardo. Laicidade à Brasileira: católicos, pentecostais e laicos na esfera pública.


Civitas, Porto Alegre, v.11, n.2, p.238-258, maio-ago. 2011.

_________________. Neopentecostais - Sociologia do Novo Pentecostalismo no Brasil. São


Paulo: Edições Loyola, 1999.

SANCHIS, Pierre. A Religião dos Brasileiros. HORIZONTE. Belo Horizonte. v. 1, n.2. p. 28-
43, 1997.

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