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A HISTÓRIA ORAL E SUA RELAÇÃO COM A EDUCAÇÃO E DOCÊNCIA

Luiz Guilherme de Lima e Souza1

RESUMO

O presente paper é um esforço de compreender a relação da História Oral com a


Educação e Docência, buscando evidenciar a complexidade, profundidade e riqueza
dessa discussão. Para isso, são reunidas algumas aproximações teóricas das
definições acerca da História Oral como metodologia, técnica, fonte e movimento.
Em seguida, são descritos os elementos que constituem essa trama que dá título ao
paper. Conclui-se que o debate acerca da História Oral, Educação e Docência é
extremamente relevante dada a sintonia que os conceitos possuem.

Palavras-chave: História Oral. Educação. Docência.

1 INTRODUÇÃO

A História Oral (HO) originou-se na Sociologia de Chicago nos anos 20 e percorreu


um longo caminho sendo definida como metodologia, técnicas e fonte para a
pesquisa social, fundamentada na oralidade (TEIXEIRA; PRAXEDES, 2006). Por
focar nas questões humanas, a HO transcende fronteiras disciplinares e ainda assim
adquire forte dimensão psicológica (THOMPSON, 2002) e grande afinidade com as
questões pertinentes à Educação (TEIXEIRA; PRAXEDES, 2006; FONSECA, 2003).

1
Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação da PUC Minas. E-mail:
luizsouza92@gmail.com.
O objetivo do presente paper é fazer uma breve discussão acerca das articulações
entre História Oral, Educação e Docência, passando pela fundamentação da
metodologia, que preconiza a relação dialética do individual com o coletivo.

2 HISTÓRIA ORAL

De acordo com Thompson (2002, p. 9), a História Oral é uma metodologia definida
pela “interpretação da história e das mutáveis sociedades e culturas através da
escuta das pessoas e do registro de suas lembranças e experiências”. O autor
afirma que o método é uma forma fundamental de interação humana essencialmente
interdisciplinar que demanda uma sensibilidade às questões abstratas. Isso se dá
pois é necessário perceber as dimensões subjetivas e sócio-culturais no que está
sendo expresso pela oralidade. Thompson (2002) afirma também que as melhores
pesquisas de história de vida abordam tanto aspectos de vidas individuais quanto
aspectos macrossociais, articulando evidências de pesquisa qualitativa e
quantitativa.

Segundo Fonseca (2003), as pesquisas em História Oral de vida, no Brasil, se


articulam com a discussão acerca da memória, realizada pela psicologia social. A
autora chama atenção para o contexto e função social da memória, uma vez que as
instituições sociais como família, igreja, escola e trabalho influenciam profundamente
o conteúdo e a forma da memória. Ainda, o processo de recordação é visto como
uma ação construtiva e dependente da situação presente. O seu registro permite
acessar não os fatos exatamente como aconteceram mas sim a sua reconstrução de
acordo com a forma singular em que foram memorizados e recordados (FONSECA,
2003).

Fonseca (2003) também discute sobre a memória coletiva, produzida por grupos
sociais e comunidades, e sua relação com a memória pessoal:
Cada memória individual é um ponto de vista sobre a memória coletiva, e
este ponto de vista muda conforme o lugar que ali ocupo, e que este lugar
mesmo muda segundo as relações que mantenho com outros meios... A
sucessão de lembranças, mesmo daquelas que são mais pessoais,
explica-se sempre pelas mudanças que se produzem em nossas relações
com os diversos meios coletivos, isto é, em definitivo, pelas transformações
desses meios, cada um tomado à parte e em seu conjunto. (HALBWACHS,
1990, apud FONSECA, 2003, p. 34)

É a partir da lembrança que Teixeira e Praxedes (2006) associam a HO com a


educação, evidenciando que esta torna-se aprendizado quando articulada à
reinterpretação das experiências individuais e coletivas. Nessa ótica, a HO vai além
do seu uso como metodologia, técnica ou fonte e se constitui como movimento:
Na entrevista, seus sujeitos, sobretudo os entrevistados, se colocam em
ação, em movimento, através do pensamento que flui, que elabora,
laborando a vida. Tal como se estivessem a lavrar, a lapidar, a remodelar a
si mesmos, as suas histórias. Nestas cenas e cenários, os sujeitos
entrevistados se movimentam em direção às suas vidas, buscando os
movimentos da vida que neles flui, colocando-se e deslocando-se, o
movimento na vida e a vida no movimento. A entrevista é como uma pausa
que ao mesmo tempo movimenta, move as lembranças, reinventando a vida
na narrativa. Em meio ao turbilhão e aos ritmos intensos dos tempos
modernos, a entrevista é a pausa, o repouso que é também vigília.
(TEIXEIRA; PRAXEDES, 2006, p. 165)

3 METODOLOGIA

A HO configura-se como estudo qualitativo que compreende que os sujeitos são


seres de memória, cultura e história que falam, e não precisam ser falados “por”,
apenas falados “sobre” (TEIXEIRA; PRAXEDES, 2006). Reunindo e propondo uma
construção teórico-epistemológica que sustenta e direciona a pesquisa dos
fenômenos da vida humana e social, a HO tem sido definida como uma metodologia
(TEIXEIRA; PRAXEDES, 2006).

Segundo Teixeira e Praxedes (2006), a HO também é definida como técnica por


propor estratégias para o trabalho investigativo, sempre centrado na oralidade, e
como fonte, por produzir os próprios documentos para pesquisa. Essa produção se
dá pelas transcrições que comumente são realizadas. Freitas (2006), recomenda
que o conteúdo das entrevistas seja integralmente transcrito, seguido por uma leitura
minuciosa e conferência do material. Após esta etapa, o entrevistado deverá revisar
e conferir o texto e solicitar as devidas correções como nomes próprios, termos
técnicos e complementações de frases.

Considerando que a tradição científica de creditar maior confiabilidade a fontes


documentais, é de fundamental importância a discussão da questão da “verdade”
nos depoimentos, uma vez que o(s) sujeito(s) de pesquisa podem distorcer a
realidade, intencionalmente ou não. Por um lado, o testemunho oferece uma
considerável variedade de informações factuais válidas de serem ampla e facilmente
comprovadas, como “onde a pessoa viveu, suas estruturas familiares, tipos de
trabalho, etc.” (THOMPSON, 2002, p. 22). Por outro, há de se considerar que os
depoimentos exprimem os processos de funcionamento da memória e da
consciência individual e coletiva.

O autor exemplifica que existem silêncios que expressam indícios de sofrimentos


profundos e repressões de atrocidades vivenciadas. Acontece também a
transformação ativa da memória para dar sentido às experiências vividas ou até
mesmo para conexão com sonhos perdidos, conforme já evidenciado em pesquisas:
Portelli relata também como um velho comunista, que teve que superar a
revolução que nunca aconteceu, contou sua história de um passado que
poderia ter sido: quando os comunistas tomaram a decisão crucial de
participar das primeiras eleições pós-guerra ao invés de lutar como
Partisans armados, ele próprio conversou com o líder nacional, Togliatti, e
alertou-o contra a perda de oportunidade do momento, dizendo a Togliatti:
“Como diz Marx, quando o pássaro está voando é o momento de atirar”. Na
realidade, ele nunca teve a chance de ter essa conversa pessoal com o
líder, nem Marx disse qualquer coisa parecida sobre pássaros voadores; ele
estava se pautando num provérbio camponês tradicional na Itália central.
Mas embora em ambos os exemplos as lembranças coletadas por Portelli
não fossem factualmente verdadeiras, em cada caso eles fornecem –
precisamente através da maneira como eles deturpam ou inventam
memórias da experiência – evidência viva de como a consciência dos
ativistas comunistas locais desenvolve-se em resposta a eventos, e também
como eles foram capazes de entrelaçar seu marxismo com a cultura popular
mais antiga de sua região. (THOMPSON, 2002, p. 22)

Em outras palavras, o que está expresso nos relatos vai muito além da factualidade
objetiva e até as distorções fornecem ricos dados para análise da situação subjetiva
e cultural que está sendo relembrada. Nesse sentido, a história oral possui uma
dupla força por fornecer fortes elementos objetivos e subjetivos.

A leitura das entrevistas como narrativas é um dos desafios da HO que vale a pena
destacar. Quando o narrador está acostumado a falar em público, por exemplo,
existem diferenças na linguagem e no estilo de história de vida (THOMPSON, 2002).
Observa-se também distinções marcantes nas narrativas entre homens e mulheres:
“os homens apoderando-se do ativo ‘eu’, colocando-se no centro do palco, enquanto
as mulheres muito mais frequentemente enfatizam o grupo, usando o pronome ‘nós’
ou os pronomes neutros” (THOMPSON, 2002, p. 24).

Além dessa sensibilidade para os aspectos característicos das narrativas, Thompson


(2002) adverte os historiadores que se aprofundam excessivamente em ler o que foi
coletado no formato de narrativa e acabam deixando em segundo plano o cuidado
em realmente compreender o que os entrevistados querem dizer, abdicando as
potencialidades e propósitos originais da História Oral.
Considerando essas e outras questões técnicas que precisam ser levadas em conta,
a construção e aplicação dos roteiros para as entrevistas ganha ênfase:
A aplicação dos roteiros nas entrevistas não é feita de forma rígida, uma vez
que muitas questões vão surgindo naturalmente no discurso do depoente no
transcurso da entrevista e, essas, às vezes, nos suscitam outras. Cada
entrevista tem a sua própria dinâmica, e cada entrevistado mostra-nos
diferentes interesses na abordagem de determinadas questões (FREITAS,
2006, p. 89).

Nesse sentido, mais importante que a pergunta será a forma de perguntar. Segundo
Thompson (1992), as perguntas devem ser realizadas de maneira simples, direta e
não-diretiva, evitando duplo sentido ou dando margem para interpretações
complexas. É importante ir além de generalizações estereotipadas ou evasivas para
chegar em lembranças detalhadas. Freitas (2006) adverte para a dificuldade que é
conduzir uma entrevista nessas premissas, não obstante, quanto melhor aplicadas,
melhores são os resultados.

4 EDUCAÇÃO E DOCÊNCIA

A História Oral possui um papel na formação da identidade numa era global


homogeneizada que paradoxalmente cria a necessidade por fortalecimento das
raízes locais: “Um sentido de raízes, de identidade comum e de comunidade pode
ser crucial para permitir a ação social local. A História Oral pode sem dúvida dar sua
contribuição para isso” (THOMPSON, 2002, p. 27). Não obstante, a abordagem
pode gerar também a compreensão entre diferentes nações acerca da sua unidade
enquanto humanidade, uma vez que busca traduzir questões humanas, culturais,
singulares e abstratas em palavras. O trabalho de pesquisa com História Oral
potencializa esferas ocultas acerca do tema que pretende debruçar-se,
transcendendo a história oficial registrada (THOMPSON, 2002).

Nessa linha, Antônio da Silva (2003, p. 9) destaca a riqueza e especificidade das


histórias orais de vidas de professores:
(...) a experiência do ensino se articula com a formação acadêmica e os
quadros institucionais (legislação, relações com superiores hierárquicos,
situações políticas gerais), mas assume uma configuração específica na
situação de sala de aula e em seus desdobramentos de planejamento
execução, recepção dialógica e avaliação, definindo uma cultura escolar
que não se reduz aquelas outras instâncias. Daí a necessidade de, na
análise do ensino de história (e das demais disciplinas escolares), ir além de
uma perspectiva reprodutivista para poder entender que lecionar é inventar
saberes próprios à sua situação de trabalho.

Teixeira e Praxedes (2006) defendem que a HO é uma experiência pedagógica e


que possui caráter formativo, uma vez que ela, além de interrogar e registrar,
também “potencializa a condição e ação dos sujeitos no mundo” (p. 162). As autoras
esclarecem que ao estimular o resgate das memórias e a sua reconstrução para
estruturação de uma narrativa, os sujeitos produzem conhecimentos e criam
processos de identificação e subjetivação. Nessa perspectiva, a formação de
professores ocorre mesmo que prescindindo das entrevistas:
Nos projetos de Formação de Professores, na perspectiva da História Oral,
os professores falam de suas vidas, contam suas histórias, relatam suas
experiências de trabalho, em tempos / espaços de formação. Eles e elas
fazem História Oral, ainda que não se utilizem de entrevistas. Ao ser
convidado a falar de si, do que pensa e do que vive e outras situações
discursivas em que os docentes trocam experiências, fazem relatos, dá-se o
processo formativo pela via da narrativa (TEIXEIRA; PRAXEDES, 2006, p.
164).

Teixeira e Praxedes (2006, p. 167) afirmam que “A História Oral se faz Educação e a
Educação se faz História Oral”, revelando íntimas ressonâncias como um trabalho e
como movimento de subjetivação e reconstituição de identidades. As autoras
evidenciam também o ato político constituído por ambas:
Como processos e práticas capazes de subverter o esquecimento, fazer
emergir as lembranças e de contribuir para a construção de sociedades e
subjetividades democráticas. Por que em sua origem e finalidade maiores,
ambas dizem respeito e se comprometem com os destinos humanos (p.
167).

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

A História Oral é uma metodologia, fonte, técnica e movimento que possui fortes
articulações com a Educação. Seja para aprofundar a compreensão acerca do
campo educacional ou para provocar processos formativos, a relação entre ambas
merece ser amplamente discutida.

O fato é que quando se fala em HO necessariamente está se falando de formação,


mesmo que sem se dar conta disso. Enxergar a dimensão educativa dessa
metodologia, assim como valorizar o seu potencial para os estudos em Educação,
se faz essencial dada a riqueza das suas contribuições.

No entanto, para dar conta da utilização da HO, há de se compreender as suas


nuances e complexidades como metodologia, fonte, técnica e movimento que busca
investigar fenômenos profundos e ocultos assim como questiona padrões vigentes
de pesquisa e validação do conhecimento científico e social.
REFERÊNCIAS

ANTÔNIO DA SILVA, Marcos. In: FONSECA, Selva Guimarães. Ser professor no


Brasil: história oral de vida. 2. ed. Campinas: Papirus, 2003.

FONSECA, Selva Guimarães. Ser professor no Brasil: história oral de vida. 2. ed.
Campinas: Papirus, 2003.

FREITAS, Sônia Maria. História Oral: possibilidades e procedimentos. 2. ed. São


Paulo: Associação Editorial Humanitas, 2006.

TEIXEIRA, Inês A. C.; PRAXEDES, Vanda Lúcia. In: VISCARDI, Cláudia M. R;


DELGADO, Lucília A. N. (org.). História Oral: teoria, educação e sociedade. Juiz de
Fora: Editora UFJF, 2006.

THOMPSON, Paul. História oral e contemporaneidade. História Oral, 5, 2002, p.


9-28.

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