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1993+ +Blade+Runner+e+a+Estetica+Do+Androide
1993+ +Blade+Runner+e+a+Estetica+Do+Androide
23 - 25,
1993.
"Blade Runner" é um filme que reinventa estilos. Combina o clima "noir" com a
trilha tecno-áurica de Van Gelis; o policial, com a ficção científica; a violência, com o
drama subjetivo. No entanto, é curioso que ele tenha se transformado numa espécie de
Casablanca de nossa geração. O interesse reavivado por Bogart e seu estilo talvez
ganhem em Blade Runner uma nova dimensão. Ao ver "Casablanca", interessava vê-lo
com os olhos daquela época, onde o desenraizamento do herói o fazia único. Bogart,
assim como Harrison Ford, são alheios a qualquer forma de engajamento subjetivo : sem
partido, sem ideais, nem do lado da lei, nem contra ela. O tédio, a paixão moderna por
excelência, é o elemento central dessa existência estetizada. O tédio, vivido num estilo de
desprendimento, de "desterritorialização", constitui uma certa subjetividade modelar de
nossa época. Mesmo para eles, a aventura da transgressão parece ser ocasional.
O filme certamente não teria o mesmo êxito se fosse exibido na sua versão
original. Nela, está ausente a voz que expressa o pensamento do herói, quebra-se aquilo
que tornava o estilo assimilável. O efeito da versão original é angustiante. O herói se
torna impenetrável, a suspeita de que ele próprio é um replicante paira sobre o enredo. Os
olhos do espectador hesitam em se reconhecer ou não num possível andróide. Na versão
"amputada", a voz dá suporte para uma posição que o espectador acompanha. Um ser
sem lugar; sem instituições; sem ideais; liberto da temporalidade que estes imprimem. É
difícil dizer a que espaço pertence este personagem, talvez à cidade onde lixo e
tecnologia se combinam, mas certamente a nenhum prédio desta cidade. É mais seguro
afirmar que ele pertence à névoa que a envolve.
Note-se como os replicantes matam suas vítimas apertando os dedos contra seus
olhos. Escute-se a fala do replicante chefe : "Você fez meus olhos, mas não pode
imaginar o que vi com eles". O olhar da coruja caolha, os olhos da suspeita fervendo na
água do café, índices de um desejo de reconhecimento, de serem como quaisquer outros e
ao mesmo tempo únicos na memória de suas experiências. Nesse sentido, Harrison Ford,
o herói sem nome, definido por sua função, é a melhor representação do replicante. O
que o faz herói é ser escutado na alma, e não visto. Este olhar do Outro os põe como
objeto de uma suspeita; é um olhar que diz : sem morte, sem desejo, sem estilo. Bem
poderia ser o olhar que recai como um imperativo de beleza sobre os corpos
contemporâneos. Que corpo quer este olhar? Mais magro, mais alto, sem estrias ou rugas,
um corpo exato; um corpo de replicante é o que assedia nossas madames. É este olhar, e
o corpo suposto que ele engendra, o olhar que mata a anoréxica.
Finalmente, Rachel, a replicante que não sabe. Diante de um passado que não
lhe pertence. O registro de experiências e o seu acúmulo na memória talvez façam dela a
mais fantástica máquina já produzida pelo capitalismo subjetivo. Experiências
negociáveis na bolsa de valores humanos. Fatos brutos, consumidos, resistentes à
interpretação, televisionados para o Aqui e Agora do presente eterno e sem lugar. Talvez
nada seja, atualmente, mais sartreano do que a imagem jornalística da violência bruta .
Contrariando Nietzsche : só fatos, sem interpretações. Rachel é sujeita a uma súbita
retirada de todos os fatos. Eles não são mais "subjetiváveis", não fazem mais histórias.
Não se trata de saber se ela sente ou não, não é isso que diferencia o homem da máquina.
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DUNKER, C. I. L. - Blade Runner: a estética do andróide. Revista Viver Psicologia. , p.23 - 25,
1993.
Mas, uma vez sem as pseudodeterminações desta história, o que poderia ela desprezar, do
que ela teria a se desfazer tediosamente, do que poderia se libertar? Subitamente viu-se
sem ter nada a perder, sem poder perder nada mais.
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DUNKER, C. I. L. - Blade Runner: a estética do andróide. Revista Viver Psicologia. , p.23 - 25,
1993.
seria o filme que vimos no cinema pela primeira vez um replicante do segundo, um
impostor que nos promete um final feliz onde há somente a indeterminação do desejo e
sua angústia correlativa? Fico com Nietzsche : não há fatos, só interpretações.
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