Você está na página 1de 10

DILEMAS ENTRE A ALFABETIZAÇÃO E O LETRAMENTO

Josemar Martins Pinzoh


Pedagogo, com habilitação em Educação de Adultos
Mestre e Doutor em Educação
Professor Adjunto da UNEB/DCH III
Professor do Mestrado em Educação, Cultura e Territórios Semiáridos (PPGESA)

1. Da urgência da discussão

A discussão sobre alfabetização – e, claro, sua interface com o letramento – no Estado da


Bahia é sempre urgente, considerando que o Estado ainda apresenta uma das mais altas taxas
de analfabetismo do país, na população de 15 anos ou mais – mesmo que o programa TOPA,
versão baiana do Brasil Alfabetizado, venha atuando no Estado e atenuando esses índices
desde 2007.

Em termos absolutos, em 2010, segundo o IBGE, a Bahia tinha uma população residente de
14.016.906 pessoas. Dessas, 10.424.460 frequentava escola, enquanto outras 3.592.446 não a
frequentavam. A população residente de 15 anos ou mais era, em 2010, de 10.424.550.
Dessas, as que nunca frequentaram uma escola ou creche totalizavam 1.008.396 pessoas,
equivalente a uma taxa de analfabetismo de 10,51 % da população residente, na faixa etária
dos 15 anos ou mais.

Esses são os analfabetos jovens e adultos, sujeitos de direito de políticas de alfabetização na


modalidade EJA, ou destinatários de programas como o TOPA e o Programa Brasil
Alfabetizado. Do quantitativo de 1.008.396 de pessoas de 15 anos ou mais que nunca
frequentaram uma creche ou escola, apenas 146.669 estavam sendo atendida pela EJA em
nível de alfabetização na rede regular de ensino, em 2010. Isso representa um atendimento de
apenas 14,79 %, do contingente em questão. Mas o problema mesmo é que, na verdade, é
notório que o sistema de ensino não vem atuando coerentemente esse contingente, nem do
ponto de vista quantitativo, nem do ponto de vista qualitativo, considerando os dados oficiais
e a participação da Bahia no ranking nacional.

Na Bahia, cuja nota mínima para aprovação é 5,0, não temos avançado significativamente nas
avaliações nacionais. As notas do IDEB no Ensino Fundamental maior, saíram de 2,7 em
2007, para 3,1 em 2013. No Ensino Médio, saiu de 2,8 em 2007, foi a 3,1 em 2009, e voltou
para 2,8 em 2013. Esta, aliás, foi a razão pela qual o Governo do Estado criou, em 2012, o
Programa Ensino Médio em Ação, para fazer reforço escolar em Língua Portuguesa e
Matemática, com alunos de graduação. Mais recentemente, o último índice criado no Brasil, o
Índice de Oportunidades da Educação Brasileira (IOEB), lançado em 07/10/2015 pelo Centro
de Liderança Pública (CLP), apresenta a Bahia na vigésima quinta posição entre os Estado
brasileiros, com um indicador de 3,6, no antepenúltimo lugar, na frente apenas do Maranhão e
do Pará.

Este cenário aponta uma grande urgência em discutir alfabetização e letramento no Estado,
para não continuarmos nos orgulhando apenas por estar na frente do Piauí, do Maranhão ou
do Pará, como andamos fazendo ultimamente. Sobretudo, poderíamos começar a pensar, por
exemplo, se a nota 5,0 para aprovação no Sistema Estadual de Ensino está nos servindo para
alguma coisa.

2. Sobre o know-how da UNEB nesta discussão

A Universidade do Estado da Bahia (UNEB) é a maior instituição pública de ensino superior


multicampi das regiões Norte, Nordeste e Centro-Oeste do Brasil. Estruturada em 29
Departamentos, instalados em 24 campi, ela cobre praticamente todo o Estado da Bahia,
estando presente em todas as regiões do Estado. Mais do que isto, ela é a principal instituição
de formação de professores no Estado da Bahia, e está, portanto, diretamente implicada nas
questões que dizem respeito ao posicionamento da Bahia na estatística educacional nacional.

Do ponto de vista da Educação de Jovens e Adultos, a UNEB está inserida nas principais
discussões nacionais e internacionais sobre EJA e sobre alfabetização de jovens, adultos e
idosos. Além de contar com um Núcleo de Educação de Jovens e Adultos (NEJA) –
atualmente em situação pendente, por razões político administrativas internas – tem
participado, principalmente através do NEJA, de vários processos na área de EJA, incluindo o
processo de criação do Fórum Estadual de EJA, o FÓRUM EJA, iniciado em 1999, como
parte da mobilização proveniente do Encontro Nacional de Educação de Jovens e Adultos
(ENEJA), e concluído em setembro de 2002, completando 13 anos agora em 2015.
Através do NEJA, a UNEB também participou dos processos e discussões preparatórias para
a V e a VI CONFINTEA (Conferência Internacional de Educação de Adultos), que são
conferências que vêm sendo promovidas pela UNESCO desde 1949, e que, em 2009, pela
primeira vez ocorreu no Hemisfério Sul, precisamente em Belém do Pará, Brasil, de 1º a 4 de
dezembro. Esta conferência foi antecedida de intensa mobilização nacional de preparação,
que foi desde as discussões estaduais até a discussão nacional e se estendeu até a Conferência
Regional da América Latina e do Caribe sobre Alfabetização, também preparatória para a VI
CONFINTEA, processos dos quais a UNEB participou sob a liderança do NEJA.

Além da participação nesses e noutros processos, a UNEB também criou recentemente um


Mestrado Profissional em EJA, o MPEJA, sendo este já um processo de amadurecimento e
ampliação das formações em EJA, iniciadas em cursos de especialização em EJA, oferecidos
pela Universidade em vários de seus campi da capital e do interior, e até mesmo de cursos em
nível de graduação, como foi o caso do curso de Pedagogia da extinta Faculdade de Filosofia,
Ciências e Letras de Juazeiro (FFCLJ), cuja graduação era uma habilitação em Educação de
Adultos, criada em 1985, experiência pioneira nacionalmente – onde fiz minha formação em
nível de graduação.

Todas essas inserções da UNEB no campo da EJA – incluindo sua participação nas oito
etapas ocorridas até agora do Programa Todos Pela Alfabetização (TOPA), e em programas
anteriores como o Programa de Aceleração da Aprendizagem (ACLERAÇÃO) ou o Programa
de Alfabetização de Jovens e Adultos (AJA BAHIA) – e também sua participação em outros
programas de alfabetização e formação de professores, a exemplo do Pacto Nacional pela
Alfabetização na Idade Certa (PNAIC), e os cursos de gradação da Plataforma Freire
(PARFOR), habilitam esta Universidade a discutir Alfabetização e EJA. No entanto, tudo isso
ainda nos mantém num estado de consumidores de discursos e de recursos sobre esses tema
que são produzidos por outros agentes e instituições. Neste caso, sequer conseguimos
construir uma identidade própria nesses ramos de prática, porque nos restringimos à atitude
adesista e reprodutora dos enunciados e dos discursos que, por exemplo, se produzem em
centros como o IEL e o CEFIEL da UNICAMP, muito mais respaldados do que nós na
produção do “discurso legitimo” sobre alfabetização e letramento, por isso mesmo integrantes
da Rede Nacional de Centros de Formação Continuada do Ministério da Educação.
Nós ainda estamos longe deste protagonismo do IEL/CEFIAL, por exemplo. Assim, quando
assumimos um programa de alfabetização de jovens e adultos, como o TOPA, baseamos toda
a nossa prática institucional e pedagógica em discursos e recursos que nós não produzimos e
que são emanados desses outros centros, perante aos quais assumimos uma atitude meramente
laudatória. De qualquer modo, é urgente que a UNEB, com o know-how que tem e pela
quantidade de professores que forma, se sinta parte tanto dos problemas – os indicadores
educacionais da Bahia – quanto parte da solução.

3. Alfabetização e letramento no discurso predominante

A minha hipótese é que pelo menos parte dos problemas que enfrentamos deve-se ao
arcabouço teórico que utilizamos para amparar nossas práticas. Neste caso, a relação nem
sempre pacífica entre a alfabetização e o letramento, é parte dos resultados que logramos em
nossas ações neste campo. Embora a UNEB seja consignatária do Marco de Ação de Belém
(CONFINTEA VI, 2009), que declara que a alfabetização é um pilar indispensável que
permite que jovens e adultos participem de oportunidades de aprendizagem em todas as fases
do continuum da aprendizagem em suas vidas (p. 7) e para o qual o direito à alfabetização é
parte inerente do direito à educação e ao letramento, na maior parte de nossas justificativas
pedagógicas nós já colocamos a alfabetização numa zona de menor prestígio, diante do
prestígio crescente do termo letramento, de uso corrente hegemônico.

E, diante disso, neste exato momento no Brasil, não temos tanta concordância sobre o que é o
processo de alfabetização, seja de crianças, seja de adultos. Desde os anos 80 do século XX,
somos majoritariamente influenciados pelas premissas oferecidas pela Psicogênese da língua
escrita (FERREIRO; TEBEROSKY, 1986) que, no Brasil, primeiramente virou
construtivismo e influenciou a mudança da prática pedagógica de uma ponta a outra do país,
sem produzir os resultados que foram prometidos, e depois, recentemente, ampara toda a
discursividade do letramento, como um prosseguimento do que foi o construtivismo.

A confusão e a má tradução e uso das referências teóricas de Emilia Ferreiro e Ana Teberosky
(op. cit), especialmente do capítulo 6 da referida obra – na qual há uma clara afirmação da
estrutura alfabética e silábica de nossa língua escrita – nos levaram até mesmo a fazer a crítica
ao sistema silábico que constituiu o método Paulo Freire, no modo como ele foi praticado em
sua origem e logrou, assim, alfabetizar em 40 horas, feito que não conseguimos entender até
hoje, dada a complexidade que hoje constitui a noção de alfabetização e letramento.

A modernidade da abordagem – no construtivismo ou agora no letramento – logrou um


profundo abandono das características alfabéticas e fonéticas da nossa língua escrita e
proporcionou que professores de variadas partes do país tenham entendido (depois de tantos
cursos de formação continuada, pois são em número cada vez maior) que “não se pode
trabalhar as sílabas, que isso é só decodificação”. Disso resultou não apenas uma confusão
conceitual e de procedimentos, mas, especialmente, um desaprendizado operacional nas
práticas de alfabetização: escolas e professores desaprenderam a alfabetizar.

O resultado dessa confusão foi a abertura, no âmbito do Congresso Nacional, de uma


discussão sobre os métodos silábicos e não-silábicos, globais ou sintéticos, que resultou, no
âmbito do MEC, no reconhecimento da incapacidade da escola em cumprir as exigências
formais de alfabetização e, em razão disso, criou, recentemente, o PNAIC. No capo da EJA e
da alfabetização de jovens, adultos e idosos, a coisa parece ainda pior, uma vez que
geralmente misturamos mal tantos as “premissas não-silábicas” – decorrentes de deturpações
de interpretação da psicogênese da língua escrita – quanto a referência de Paulo Freire, e
ainda por cima, nos baseamos, não raras vezes, na mesma estrutura do desenvolvimento
cognitivo proposto por Piaget, que fundamenta a Psicogênese da Língua Escrita.

Ora, se Paulo Freire – cujo método praticado baseava-se tanto numa sistemática de ação,
reflexão social e politização, quanto na estrutura silábica e fônica da língua – se ele tivesse
ficado no bojo dessa complexificação da alfabetização, ele jamais teria alfabetizado em 40
horas. Qual é o resultado disso? É a nossa dificuldade em alfabetizar. E o que isso tem a ver
com a noção corrente de letramento? Eu sei que letramento” é um conceito criado para
referir-se aos usos da língua escrita não somente na escola, mas em todo lugar. Porém, na
Europa, onde ela tem origem (literacia, numeracia) ele mantém um vínculo com as
capacidades individuais de leitura e escrita, cujo primeiro nível se obtém com a alfabetização.

Aqui no Brasil isso ganhou contornos de complexidade crescente, e hoje temos que lançar
mão de especialistas no termo para obter uma tradução razoável dele. Se, na origem, ele dizia
respeito à aquisição da leitura e da escrita pelo sujeito e sobre o uso social que faziam disso,
sua apropriação no Brasil o levou para outro lugar em que não está mais em questão a
competência individual de ler e escrever. É isso que nos diz Kleimam (1995): “letramento
significa uma prática discursiva de determinado grupo social, que está relacionada ao papel da
escrita para tornar significativa essa interação oral, mas que não envolve, necessariamente, as
atividades específicas de ler e escrever” (p. 19-20). Então, nossos alunos de graduação e pós-
graduação estão mais interessados, em suas pesquisas de TCC, dissertações e teses, nessa
performance que não envolve mais capacidades individuais de ler e escrever, mas se basta
com uma imersão difusa nas práticas mediadas pelo escrito. Aceitamos tranquilamente que
uma mulher que recebe Bolsa Família e que, tendo um cartão para receber o benefício, não
sabe sequer digitar a senha no caixa eletrônico sem a ajuda de outras pessoas, que ela seja
admitida como letrada, apenas por participar (de modo muito precário) de relações mediadas
pelo escrito. Mais do que isso: aceitamos que, se uma pessoa sabe para que serve a função da
escrita, seja ela admitida como letrada, como se pode ver no texto Preciso “Ensinar”
Letramento?, de Kleiman (2005).

Ora, isso, de certo modo, trai, por um lado, a história da proposta de alfabetização para todos,
cuja origem pode ser exemplificada na perspectiva já! anunciada na aurora do século XVI,
com a Reforma Protestante, quando Lutero e Melanchton defendiam a educação universal e
pública, capaz de tornar cada pessoa apta a ler e interpretar por si mesma a Bíblia (NUNES,
1994), como uma expressão de autonomia, mas trai também, por outro lado, os nossos
próprios ideais de emancipação, que figuram em nossos discursos.

4. Algumas premissas baseadas na prática

Na minha prática como educador e pesquisador, atuando em cursos de graduação de formação


de professores e alfabetizadores, sobretudo quando sou obrigado a visitar escolas e
acompanhar a prática docente, tenho me especializado em ver como essas confusões
reverberam na sala de aula. Tenho ouvido frase curiosas sobre não poder trabalhar mais as
sílabas, como se uma autoridade suprema tivesse decretado isso. Do mesmo modo tenho
testemunhado crianças e jovens que saem do ensino fundamental e médio com sérias
dificuldades de manejo da língua escrita e do sistema de escrita alfabética, quando não tem
sido amenizado nem mesmo cm a chegada das formações do PNAIC. Diante disso, tenho
realizado um trabalho de pesquisa, que venho chamando de “pesquisa-criação” (PINZOH,
2012), através do qual tenho recolhido estórias curiosas, a partir das quais estruturei os pontos
seguintes.
A. Ler o mundo é uma coisa; ler a palavra, é outra
Muitos de nós utilizamos a famosa frase de Paulo Freire (FREIRE, 1995), “a leitura do
mundo antecede a leitura da palavra”, que no fundo é uma frase óbvia, para fazer uma
imensa confusão sobre o sentido da palavra “ler”. Uma pessoas que vai a um curso de
alfabetização, já lê o mundo, pelo simples fato de viver nele. Ela não vai ao curso porque é
idiota, vai porque quer aprender a ler e a escrever palavras. Quer ter autonomia de escrita e
de leitura. Assim, o que interessa, em primeiro lugar, num curso de alfabetização, é ajudar
as pessoas a aprenderem a ler, em sentido estrito, a mensagem escrita no sistema de escrita
alfabética (SEA). Claro que, como Paulo Freire demonstrou, este aprendizado, por si só,
repotencializa a capacidade de ler o mundo, em sentido amplo. Mas, adicionalmente, deve
também se constituir em processo de qualificação desta capacidade de leitura ampla, sem
esquecer o sentido estrito de ler o escrito e de escrever, que passa pelo conhecimento e
domínio do código alfabético e suas operações. Se não sabemos o que é ler, afirmo que
qualquer pessoa na rua ou no mato saberia dizer o que é uma pessoas que não sabe ler. É
uma pessoa que nem lê, nem escreve. Ponto. Não sabe como fazer o registro escrito de
uma palavra que ela mesma está velha de conhecer e significar e lhe é até de uso comum,
cujos significações todas ela já domina. O que ela não sabe é como criar uma unidade num
conjunto de letras arrumadas coerentemente, de modo que resulte na escrita exata desta
palavra.

B. Alfabetizar não é uma coisa difícil


Temos reunido depoimentos de muitas pessoas que se alfabetizaram, ainda quando
crianças ou já quando jovens e adultas, sem ir a uma escola ou sem a assistência de um
profissional professor-alfabetizador. No geral, essas pessoas foram alfabetizadas em
poucos dias (muito diferente dos vários anos que as pessoas passam hoje na escola e não
conseguem se alfabetizar) e foram ajudadas por uma pessoa geralmente semi-escolarizada
ou semialfabetizada, comumente um parente próximo ou uma pessoa da comunidade que
dominava os rudimentos da leitura e da escrita, e que, não apenas não portavam níveis
elevados de formação, como também não dominavam os recursos teóricos e retóricos que
hoje amparam nossas práticas e nossos discursos sobre a alfabetização. Sequer ouviram
falar algum dia – sem desmerecer a teoria ou os níveis mais elevados de formação – em
Piaget, Emilia Ferreiro ou Paulo Freire. Mas as pessoas estão ai para contar essas estórias.
Meu próprio pai se alfabetizou em 30 dias, com um preceptor contratado, e tendo
aprendido a ler, a escrever e a contar, continuou aprendendo sozinho, até se tornar um
escrevedor de cartas de sua comunidade e alfabetizar 4 dos seus 5 filhos.

C. As pessoas que se alfabetizam de fato, se “letram” e usam o que aprenderam


O enunciado “alfabetizar na perspectiva do letramento” quando constatamos que as
pessoas que aprendem a ler a escrever de fato ganham uma outra autonomia de
participação no mundo, e passam a fazer uso do que aprenderam. Se não usam é porque
não se alfabetizaram, de fato. Quem aprende usa. Escreve e lê. Nem que seja trocando
letras, invertendo as formas das letras, como é comum ver em muitas placas e anotações
por ai. Isso significa que só aprenderam até ali, mas usam o pouco que aprenderam.
Embora a palavra “decifrar” tenha se tornado uma palavra pouco recomendada, a leitura
implica, sim, algum nível de deciframento, e é essa capacidade que possibilita que as
pessoas façam uso social do SEA, em suas práticas sociais de ler ou escrever. Pensando
assim – e articulando isso como o item número um desses preceitos – alfabetizar,
especialmente no caso de uma programa como o TOPA (ou como o PNAIC, também) é
garantir essa competência básica ligada à palavra escrita, à ciência e à mágica de ler e
escrever qualquer coisa. Todas as pessoas que, de fato, se alfabetizam, usam a escrita e
leem. Leem e escrevem. Escrevem e leem. Fazem uso social disso. Há muitos casos de
pessoas que viram escrevedores de cartas nas comunidades onde vivem, que fazem bilhetes
e placas e anotam em cadernos etc. Em outras palavras, as pessoas de fato tiram o máximo
do mínimo, ou seja, do pouco que aprendem do SEA elas conseguem fazer uso social,
escrevem bilhetes, fazem anotações, se viram. E se assim agem (sem que nunca os gêneros
carta, bilhete ou placa tenham sido deliberadamente ensinados – como é proposto agora –
sendo isso parte do aprendizado social mais amplo), também elas escrevem na ausência de
escrita e leem quando a escrita lhes aparece. Ora, nesta mesma sentença do uso social da
escrita e da leitura, já inclui o sentido da emancipação, do empoderamento e, portanto, do
letramento. O problema é que, ultimamente, queremos dar toda a consciência do uso social
da escrita, sem que o domínio técnico do código tenha sido devidamente ensinado-e-
aprendido. Há quem brigue contra a decodificação, como se isto não fizesse parte do
aprendizado.

D. Nossa língua escrita é alfabética e fônica


Essa afirmação, em certos ambientes, é suficiente para inflar uma discussão nervosa e
amparar disputas acadêmicas, políticas e econômicas. Mas, apesar disso, a tecnologia
básica do nosso sistema de escrita é o código alfabético, tecnologia social que resultou de
um longo processo de aperfeiçoamento, até restarem 26 grafemas e mais uns poucos sinais
gráficos, com os quais escrevemos qualquer coisa, a partir de uma infinidade de
combinações não aleatórias. Além disso, esse código está na base de outras tecnologias
contemporâneas, incluindo as digitais, feitas com códigos de fonte alfanuméricos. Há
regras e padrões no interior desse código e na extensão do seu uso. Há uma ciência
específica dele e uma história milenar, uma lógica, um modo de funcionamento. A
alfabetização não pode prescindir de fazer com que as pessoas se apoderem desse saber. E
ele passa pela estrutura fônica da nossa língua escrita – por isso o conceito importante de
reflexão fonológica. Sem isso, vamos continuar malhando em ferro frio.

E. Todos os escritos sobre alfabetização não constituem uma bíblia


Muitos de nós tomamos os escritos sobre alfabetização (ou sobre qualquer outra coisa)
como uma espécie de texto sagrado, cujos temas não devem mais ser remexidos, baseando-
se na suposição de que “a ciência já sabe tudo a respeito”. Quem assim pensa, acaba por
converter um enunciado (da ciência ou da academia) numa espécie de “palavra sagrada”, e
assim, tomamos os enunciados de modo acrítico. Uma parte de nossos fracassos se deve ao
fato de tratarmos as teorias da educação, da aprendizagem ou da alfabetização, como
verdades dadas, o que redunda numa formidável relação de colonialidade. Se quisermos
avançar, temos que nos fazer novas perguntas sobre essas verdades que manipulamos, do
mesmo modo que temos que buscar novas respostas.

F. Os teóricos não são autoridades inquestionáveis, nem mesmo Paulo Freire


Associada à questão anterior, também temos uma atitude de referência e de reverência
estranha em relação aos autores ou aos chamados “pais de narratividade”, como é o caso
de Emília Ferreiro e Paulo Freire (ou Piaget, Foucault etc.), cujo encontro se dá no terreno
da alfabetização. Em certos casos, nos tornamos veneradores de uma obra ou autor e não
conseguimos fazer avançar determinadas ideias, que se cristalizam com nossa ajuda
intelectual.

G. Podemos e devemos avançar na constituição do sentido da alfabetização.


Estamos num momento em que o conceito, o sentido e as formas de operacionalização da
alfabetização, para crianças, jovens, adultos ou idosos, está exigindo novas abordagens,
novas pesquisas, novas sistematizações, novas perguntas, novas problematizações, a partir
daquilo mesmo que praticamos e conhecemos, das práticas que testemunhamos ou
promovemos e dos indicadores e estatísticas que logramos. Somos parte dos problemas e
das soluções. Uma instituição como a UNEB, com o potencial que tem, precisa sair de sua
condição de consumidora de discursos dados e ampliar sua capacidade crítica e de criação
para não termos que festejar os últimos lugares no ranking da educação nacional. Não só
por isso, mas porque temos que melhorar nossa capacidade de autoria e crítica, para não
sermos apenas os repetidores. Por outro lado, se utilizamos um educador e seu método
como referência de nossas práticas – como é o caso de Paulo Freire e Emília Ferreiro, por
exemplo, – devemos nos debruçar sobre esses autores e suas obras, sobre as premissas das
obras originais e dominá-las com maior propriedade, conhecê-las e encaminhá-las à
orientação de nossas práticas. No caso de Paulo Freire, por exemplo, é triste perceber que
tanto o citamos e muitas vezes nem conhecemos direito suas obras fundamentais, que a
Pedagogia do Oprimido (FREIRE, 1987) e a Educação como Prática da Liberdade
(FREIRE, 2001).

Referências

CONFINTEA VI. Marco de Ação de Belém. Brasília: UNESCO, 2010. Disponível em:
http://www.unesco.org. Acessado em 16/04/2014.

FERREIRO, Emilia.; TEBEROSKY, Ana. Psicogênese da língua escrita. Porto Alegre:


Artes Médicas, 1986.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. – 17ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1987.

_____. A importância do ato de ler. – 30ª ed. – São Paulo: Cortez, 1995.

_____. Educação como prática da liberdade. – 25ª ed. – Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2001.

KLEIMAM, Angela. Preciso “ensinar” letramento? – Campinas: Cefiel/ IEL/UNICAMP,


2005.

NUNES, Antonieta D’Aguiar. A Tentativa de Universalização do Ensino Básico na Bahia


com a Proclamação da República. In: Revista da FACED, nº 0 (out. 1994). Salvador:
FACED/UFBA, p. 91-105.

PINZOH, Josemar Martins. Pesquisa-Criação: uma experiência com escrita docente


autobiográfica. Salvador, BA: EDUNEB, 2012.

Você também pode gostar