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Tal exclusão radical da humanidade ilustra, pelas vias do terror, o horror dos
campos de concentração e do extermínio de povos ao longo da história, genialmente
analisado pela filósofa alemã Hannah Arendt e descrito por ela assim, nas Origens
do Totalitarismo: “O conceito de direitos humanos, baseado na suposta existência de
um ser humano em si, desmoronou no mesmo instante em que aqueles que diziam
acreditavam nele se confrontaram pela primeira vez com seres que haviam
realmente perdido todas as outras qualidades e relações específicas – exceto que
eram humanos. O mundo não viu nada de sagrado na abstrata nudez de ser
unicamente humano (...)”. (ARENDT, 2012, 332).
Ora, justamente porque os desalmados Tethered vivem numa espécie de
quase morte, sem reconhecimento da sociedade que os produziu, eles não têm, de
fato, qualidades sociais que os diferenciem entre si, como por exemplo profissão,
situação civil ou classe social. De fato, os Tethered não são “nada mais que
humanos”, exceto, como nos diz Red em sua primeira aparição, que eles sejam
“americanos”. Tanto na cena em que se confrontam pela primeira vez, como na cena
de perseguição que resultará no último confronto, Red insiste na sua dignidade
humana em seu diálogo com Adelaide. Na primeira, o marido de Adelaide pergunta
a Red: “What are you people?”, ao passo que Red responde com um sorriso
retorcido: “We’re americans”; na segunda cena, a voz de Red sobrevoa sobre a
superfície da tela enquanto ela se esconde e persegue sua cópia, dizendo-nos:
“How it must have been to grow up with the sky, to feel the Sun, the wind, the trees,
that your people took for granted?! We’re humans too, do you know? (…) Exactly like
you. And yet, it was humans that built this place…”
Por meio desse raciocínio se torna nítido como até mesmo o mais “pop”
discurso cinematográfico é capaz de atualizar teorias já há muito trabalhadas no
campo da escrita, inclusive escritas filosóficas. O diálogo de Red com Adelaide
revela aos poucos, como parte do cinema antirracista de Jordan Peele, de forma
ainda insipiente, todavia acessível para qualquer público, alguns dos
questionamentos mais profundos feitos por Arendt e outros estudiosos da
sociedade, como veremos a seguir.
Sobre a trágica situação dos judeus em campos de extermínio, dos refugiados
e outros grupos excluídos, cuja ilustração nesse caso é a projeção cinematográfica
de Red e os Tethered, Arendt nos diz o seguinte: “Só conseguimos perceber a
existência de um direito de ter direitos (e isto significa viver numa estrutura onde se
é julgado pelas ações e opiniões) e de um direito de pertencer a algum tipo de
comunidade organizada, quando surgiram milhões de pessoas que haviam perdido
esses direitos e não podiam recuperá-los devido à nova situação política global. O
problema não é que essa calamidade tenha surgido de alguma falta de civilização,
atraso ou simples tirania, mas sim que ela não pudesse ser reparada, porque já não
há qualquer lugar incivilizado na Terra. (...) Só com uma humanidade
completamente organizada, a perda do lar e da condição política de um homem
pode equivaler à sua expulsão da humanidade. ” (ARENDT, 2012, pg. 333) (Grifo
nosso)
Assim ele coloca: “Uma partilha do sensível fixa portanto, ao mesmo tempo,
um comum partilhado e partes exclusivas. Essa repartição das partes e dos lugares
se funda numa partilha de espaços, tempos e tipos de atividade que determina
propriamente a maneira como um comum se presta à participação e como uns e
outros tomam parte nessa partilha. O cidadão, diz Aristóteles, é quem toma parte no
fato de governar e ser governado. Mas uma outra forma de partilha precede esse
tomar parte: aquela que determina os que tomam parte. O animal falante, diz
Aristóteles, é um animal político. Mas o escravo, se compreende a linguagem, não a
‘possui’”. (RANCIÈRE, 2005, p. 16)
Como assegura Arendt, “Aquilo que hoje devemos chamar de ‘direito humano’
teria sido concebido como característica geral da condição humana que nenhuma
tirania poderia subtrair. Sua perda envolve a perda da relevância da fala (e o
homem, desde Aristóteles, tem sido definido como um ser que comanda o poder da
fala e do pensamento) e a perda de todo relacionamento humano (e o homem,
desde Aristóteles, tem sido concebido como o ‘animal político’, isto é, por definição
vive em comunidade), isto é, a perda, em outras palavras, das mais essenciais
características da vida humana (ARENDT, 2012, p. 330).
Em seu livro “The Ticklish Subject”, Zizek nos diz em certa altura, numa nota
de rodapé: “The case of Antigone, of course, is more complex, since she puts her life
at stake and enters the domain 'in between the two deaths' precisely in order to
prevent her brother's second death: to give him a proper funeral rite that will secure
his eternalization in the symbolic order.” Alguma ajuda pode ser necessária para
entender a diferença entre essas “duas mortes”, a morte simbólica (social) e a morte
real (biológica), visto que se trata de um filósofo lacaniano. Na enciclopédia online e
gratuita de termos lacanianos, “No Subject”, encontra-se o seguinte sobre o limbo
entre duas mortes:
“The subject can die not once, but twice. We will suffer a biological death in
which our bodies will fail and eventually disintegrate. This is death in the real, of our
material self. We can also suffer a symbolic death. This is not the death of our actual
bodies. This death entails the collapse of the symbolic order and the destruction of
our subject positions. We can suffer a death in which we are excluded from the
Symbolic and no longer exist for the Other. This can occur in psychosis. We still exist
in the Real but not in the Symbolic.”
RANCIÈRE, Jacques. Who Is the Subject of the Rights of Man?. The South
Atlantic Quarterly, vol. 103 no. 2, 2004, p. 297-310. Disponível em PROJECT MUSE
<muse.jhu.edu/article/169147>. Acessado em 05/03/2021.
ZIZEK, Slavoj. The Ticklish Subject: The Absent Centre of Political Ontology
(London: Verso, 1999, 409 pp.).