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Sombras

a nossa tristeza é uma imensa alegria


Poema

Faz-se luz pelo processo


de eliminação de sombras
Ora as sombras existem
as sombras têm exaustiva vida própria
não dum e doutro lado da luz mas no próprio seio dela
intensamente amantes loucamente amadas
e espalham pelo chão braços de luz cinzenta
que se introduzem pelo bico nos olhos do homem

Por outro lado a sombra dita a luz


não ilumina realmente os objectos
os objectos vivem às escuras
numa perpétua aurora surrealista
com a qual não podemos contactar
senão como os amantes
de olhos fechados
e lâmpadas nos dedos e na boca

Mário Cesariny
In Pena Capital. Lisboa: Assírio & Alvim, 2004, p. 44.
Sombras Produção TNSJ tempo – Teatro Municipal O Rio das Lágrimas pos a caminho, como nuvens, formas antropomórfi-
A nossa tristeza é uma imensa Em co-produção com Centro de Portimão cas que sugerem cavalos, presságios, crimes e casti-
alegria Cultural Vila Flor, Teatro Viriato, 26 Fevereiro 2011 Desde Saudades: Um Hetero-Cabaret-Erosatírico gos, desejos castiços – desenhos identitários de um
São Luiz Teatro Municipal Sábado 21:30 (1978) que Ricardo Pais iniciou uma muito auto- património autobiográfico em movimento. O corpo
Uma criação de Ricardo Pais Colaboração OPART -rizada poética de espectáculos músico-teatrais, autocitacionista e cativo do autor, ampliado pelos
Duração aproximada 1:45 Teatro Micaelense (Açores) distantes dos estereótipos formais dos “musicais ecos de outros tantos duplos expressivos, organi-
Vídeos Fabio Iaquone, Luca Attilii Classificação etária M/12 anos 19 Março 2011 digestivos” de importação, cruzando linguagens, zando uma nova dramaturgia fantasmática e simbó-
Música original e direcção Sábado 21:30 criadores e intérpretes – músicos, bailarinos, ac- lica, com pudor, limpeza e ordem: bilhetes-postais,
musical Mário Laginha Um agradecimento especial tores, mágicos, coreógrafos, compositores, realiza- telegramas, cartas, coplas e murmúrios, a confirma-
Coreografias Paulo Ribeiro a André Dourado, Jacinto Lucas Théâtre de la Ville (Paris) dores, cenógrafos, figurinistas e iluminadores –, rem o regresso dos amores por vir e outras perdas.
Cenografia Nuno Lacerda Lopes Pires, Joaquim Santana, José 11/12 Abril 2011 até à exposição pessoal e a solo em Grátis (2003), Resta-nos agradecer o regresso do desejante portu-
Figurinos Bernardo Monteiro Alberto Sardinha, Teresa Madruga, Segunda e Terça-feira 21:00 irrepreensível concerto das (suas) canções de uma guês que nos vai dando notícias da sua peregrinação
Desenho de luz Rui Simão Mario Rossi e Stefano Sacconi. vida. Eis, pois, mais uma rêverie. ficcional.
Desenho de som Francisco Leal Digressão Brasil Sombras: Sons, Músicas e Palavras resgatadas à me-
Voz e elocução João Henriques Teatro Nacional São João (Porto) (São Paulo/Santos/ mória imperativa de um Corpo Colectivo, objecto Nuno Carinhas
Consultor musical (fados) Diogo 18/28 Novembro 2010 Belo Horizonte) onírico de imagens indeléveis projectadas pelos cor- Director Artístico do TNSJ
Clemente Terça-feira a Sábado 21:30 Junho/Julho 2011
Guião e encenação Ricardo Pais Domingo 16:00
Assistência de encenação Manuel * Imagens do registo do espectáculo
Tur Centro Cultural Vila Flor Ninguém: Frei Luís de Sousa, enc. Ricardo
(Guimarães) Pais, realizado por Hélder Duarte para
Interpretação José Manuel 4 Dezembro 2010 a RTP (Teatro da Trindade, 1978). Nos
Barreto, Raquel Tavares Sábado 22:00 excertos figuram também João Perry,
(fadistas); Emília Silvestre, Pedro José Eduardo, Glicínia Quartin, Luís
Almendra, Pedro Frias (actores); Teatro Viriato (Viseu) Santos, Leonor Pinhão, entre outros.
Carla Ribeiro, Francisco Rousseau, 13/15 Janeiro 2011
Mário Franco (bailarinos); Mário Quinta-feira a Sábado 21:30
Laginha (piano), Carlos Piçarra
Alves (clarinete), Mário Franco Teatro Municipal São Luiz (Lisboa)
(contrabaixo), Miguel Amaral 28/30 Janeiro 2011
(guitarra portuguesa), Paulo Faria Sexta-feira e Sábado 21:00
de Carvalho/Diogo Clemente Domingo 17:00
(viola); Albano Jerónimo, António
Durães, João Reis e Teresa Teatro Aveirense (Aveiro)
Madruga* (participação especial 19 Fevereiro 2011
em vídeo) Sábado 21:30

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Sombras Episódio I Cruzou toda a Madragoa
Guião do espectáculo Olhos turvos Satisfeito a assobiar
Uma marcha popular
Marginalia Ricardo Pais (Escuro em cena. Raquel Tavares sozinha, Do Santo António em Lisboa
acompanhando-se à guitarra, canta.) Nisto pensou: como é boa
A minha mãe e, contudo,
Uma narradora solitária glosa o inevitável Como a engano, a iludo
amor de mãe, contando-nos a história do filho. E lhe minto, coitadinha
Gente simples do nosso bairro. Entre o sorriso Gramo tanto essa velhinha
Para o Paulo Eduardo Carvalho, que conseguiu escrever um sentido para a minha vida e os olhos marejados. Insinua-se o ruído Quem tem uma mãe tem tudo
e perdeu a sua antes de me ajudar a esclarecer o que se segue. branco do motor de uma rotativa de jornal.
Nesse calão repelente
Ardinita Da gíria da malandragem
Letra João Linhares Barbosa Existe um quê de homenagem
Música Popular (Fado das Horas) Nessa boquita inocente
Marcha prò jornal, contente,
Oh minha mãe, minha mãe Sempre d’alma levantada
Oh minha mãe, minha amada E como o calão lhe agrada
Quem tem uma mãe tem tudo Repete, como eu a gramo
Quem não tem mãe, não tem nada Tanto lhe quero, tanto a amo
Quem não tem mãe, não tem nada
O ardinita, o João,
Levantou-se muito ledo (Raquel Tavares senta-se no final do fado.
Porque tinha de estar cedo Prossegue com os harpejos, que se vão tornando
À porta da redacção esparsos. Emília Silvestre inicia o monólogo da
Trincou um naco de pão Corcunda, lendo uma carta de luz. Os “capítulos”
Que lhe soube muito bem – entrecortados pelas guitarras – marcam movi-
Antes de partir, porém, mentos progressivos de apropriação do público,
Beija a mãe adormecida de transformação da sofredora em performer.
Dizendo, cá vou à vida Abandona a carta e avança pelo cais, enquanto
Oh minha mãe, minha mãe o microfone sobe lentamente. É durante este texto
que surge, pela primeira vez, o tema musical
A mãe com todo o carinho “Sombras”.)
Deitou-lhe a bênção, beijou-o
E depois aconselhou-o Uma segunda mulher, solitária e compulsiva, guincha
Sempre muito juizinho a aridez do seu drama. Ao fundo escorrem fagulhas
Toma conta no caminho pelo meio das pernas de um serralheiro em contraluz.
Não fumes, não jogues nada
Pode ficar descansada
Diz ele, prà iludir
E tornou-se a despedir
Oh minha mãe, minha amada

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A Carta da Corcunda más, mas eu nunca quis mal a ninguém. Além tava no retrato onde está a Rainha de Inglaterra, Eu estou à janela todo o dia e vejo toda a gente
para o Serralheiro disso sou doente, e nunca tive alma, por causa eu às vezes me envergonha de não saber, porque passar de um lado para o outro e ter um modo de
Fernando Pessoa da doença, para ter grandes raivas. Tenho 19 estive a ver coisas que não podem ser e que eu vida e gozar e falar a esta e àquela, e parece que
anos e nunca sei para que é que cheguei a ter não posso deixar que me entrem na cabeça e me sou um vaso com uma planta murcha que ficou
Senhor António: tanta idade, e doente, e sem ninguém que tivesse dêem alegria para eu depois ainda por cima ter aqui à janela por tirar de lá.
pena de mim a não ser por eu ser corcunda, que vontade de chorar. O senhor não pode imaginar, porque é bonito
O senhor nunca há-de ver esta carta, nem eu a é o menos, porque é a alma que me dói, e não o Depois todos me desculpam, e acham que sou e tem saúde o que é a gente ter nascido e não ser
hei-de ver segunda vez porque estou tuberculosa, corpo, pois a corcunda não faz dor. tonta, mas não me julgam parva, porque ninguém gente, e ver nos jornais o que as pessoas fazem,
mas eu quero escrever-lhe ainda que o senhor o Eu até gostava de saber como é a sua vida com a julga isso, e eu chego a não ter pena da desculpa, e uns são ministros e andam de um lado para o
não saiba, porque se não escrevo abafo. sua amiga, porque como é uma vida que eu nunca porque assim não tenho que explicar por que é outro a visitar todas as terras, e outros estão na
O senhor não sabe quem eu sou, isto é, sabe mas posso ter – e agora menos que nem vida tenho – que estive distraída. vida da sociedade e casam e têm baptizados
não sabe a valer. Tem-me visto à janela quando o gostava de saber tudo. Ainda me lembro daquele dia que o senhor pas- e estão doentes e fazem-lhe operações os mesmos
senhor passa para a oficina e eu olho para si, por- Desculpe escrever-lhe tanto sem o conhecer, mas sou aqui ao Domingo com o fato azul claro. Não médicos, e outros partem para as suas casas aqui
que o espero a chegar, e sei a hora que o senhor o senhor não vai ler isto, e mesmo que lesse nem era azul claro, mas era uma sarja muito clara para e ali, e outros roubam e outros queixam-se, e uns
chega. Deve sempre ter pensado sem importância sabia que era consigo e não ligava importância o azul escuro que costuma ser. O senhor ia que fazem grandes crimes e há artigos assinados por
na corcunda do primeiro andar da casa amarela, em qualquer caso, mas gostaria que pensasse que parecia o próprio dia que estava lindo e eu nunca outros e retratos e anúncios com os nomes dos
mas eu não penso senão em si. Sei que o senhor é triste ser marreca e viver sempre só à janela, tive tanta inveja de toda a gente como nesse dia. homens que vão comprar as modas ao estrangei-
tem uma amante, que é aquela rapariga loura alta e ter mãe e irmãs que gostam da gente mas sem Mas não tive inveja da sua amiga, a não ser que o ro, e tudo isto o senhor não imagina o que é para
e bonita; eu tenho inveja dela mas não tenho ninguém que goste de nós, porque tudo isso é na- senhor não fosse ter com ela mas com outra qual- quem é um trapo como eu que ficou no parapeito
ciúmes de si porque não tenho direito a ter nada, tural e é a família, e o que faltava é que nem isso quer, porque eu não pensei senão em si, e foi por da janela de limpar o sinal redondo dos vasos
nem mesmo ciúmes. Eu gosto de si porque gosto houvesse para uma boneca com ossos às avessas isso que invejei toda a gente, o que não percebo quando a pintura é fresca por causa da água.
de si, e tenho pena de não ser outra mulher, com como eu sou, como eu já ouvi dizer. mas o certo é que é verdade. Se o senhor soubesse isto tudo era capaz de
outro corpo e outro feitio, e poder ir à rua e falar Houve um dia que o senhor vinha para a oficina Não é por ser corcunda que estou aqui sempre de vez em quando me dizer adeus da rua, e eu
consigo ainda que o senhor não me desse razão de e um gato se pegou à pancada com um cão aqui à janela, mas é que ainda por cima tenho uma gostava de se lhe poder pedir isso, porque o
nada, mas eu estimava conhecê-lo de falar. defronte da janela, e todos estivemos a ver, e o espécie de reumatismo nas pernas e não me posso senhor não imagina, eu talvez não vivesse mais,
O senhor é tudo quanto me tem valido na minha senhor parou, na esquina do barbeiro, e depois mexer, e assim estou como se fosse paralítica, o que pouco é o que tenho de viver, mas eu ia mais
doença e eu estou-lhe agradecida sem que o olhou para mim para a janela, e viu-me a rir e riu que é uma maçada para todos cá em casa e eu feliz lá para onde se vai se soubesse que o senhor
senhor o saiba. Eu nunca poderia ter ninguém também para mim, e essa foi a única vez que o sinto ter que ser toda a gente a aturar-me e a ter me dava os bons dias por acaso.
que gostasse de mim como se gosta das pessoas senhor esteve a sós comigo, por assim dizer, que que me aceitar que o senhor não imagina. Eu às A Margarida costureira diz que lhe falou uma vez,
que têm o corpo de que se pode gostar, mas eu isso nunca poderia eu esperar. vezes dá-me um desespero como se me pudesse que lhe falou torto porque o senhor se meteu
tenho o direito de gostar sem que gostem de mim, Tantas vezes, o senhor não imagina, andei à atirar da janela abaixo, mas eu que figura teria com ela na rua aqui ao lado, e essa vez é que
e também tenho o direito de chorar, que não se espera que houvesse outra coisa qualquer na rua a cair da janela? Até quem me visse cair ria e a eu senti inveja a valer, eu confesso porque não
negue a ninguém. quando o senhor passasse e eu pudesse outra vez janela é tão baixa que eu nem morreria, mas era lhe quero mentir, senti inveja porque meter-se
Eu gostava de morrer depois de lhe falar a pri- ver o senhor a ver e talvez olhasse para mim e eu ainda mais maçada para os outros, e estou a ver- alguém connosco é a gente ser mulher, e eu não
meira vez mas nunca terei coragem nem maneiras pudesse olhar para si e ver os seus olhos a direito -me na rua como uma macaca, com as pernas à sou mulher nem homem, porque ninguém acha
de lhe falar. Gostava que o senhor soubesse que para os meus. vela e a corcunda a sair pela blusa e toda a gente que eu não sou nada a não ser uma espécie de
eu gostava muito de si, mas tenho medo que se Mas eu não consigo nada do que quero, nasci a querer ter pena mas a ter nojo ao mesmo tempo gente que está para aqui a encher o vão da janela
o senhor soubesse não se importasse nada, e eu já assim, e até tenho que estar em cima de um ou a rir se calhasse, porque a gente é como é não e a aborrecer tudo que me vê, valha-me Deus.
tenho pena já de saber que isso é absolutamente estrado para poder estar à altura da janela. Passo como tinha vontade de ser – e enfim porque lhe Adeus senhor António, eu não tenho senão dias
certo antes de saber qualquer coisa, que eu mes- todo o dia a ver ilustrações e revistas de modas estou eu a escrever se não lhe vou mandar esta de vida e escrevo esta carta só para a guardar no
mo [sic] não vou procurar saber. que emprestam à minha mãe, e estou sempre a carta? peito como se fosse uma carta que o senhor me
Eu sou corcunda desde a nascença e sempre se pensar noutra coisa, tanto que quando me per- O senhor que anda de um lado para o outro não escrevesse em vez de eu a escrever a si. Eu desejo
riram de mim. Dizem que todas as corcundas são guntam como era aquela saia ou quem é que es- calcula qual é o peso de a gente não ser ninguém. que o senhor tenha todas as felicidades que possa

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desejar e que nunca saiba de mim para não rir (Raquel Tavares entra em cena e sobe ao cais. Quando eu era pequenino enquanto Carla Ribeiro permanece em morte
porque eu sei que não posso esperar mais. Pedro Almendra e Pedro Frias evocam uma Popular expressionista.)
Eu amo o senhor com toda a minha alma e toda lembrança.)
a minha vida. Aí tem e estou a chorar. Quando eu era pequenino Os meus olhos
Pedro: Uma vez ofereci um ramo de gerúndios Acabado de nascer Letra António Botto
Maria José brancos a uma mulher. Ela olhou pra mim e fez Ainda mal abria os olhos Música José Joaquim Cavalheiro (Fado Menor do Porto)
“oh”. Só “oh”. Não a vi nem nunca mais. Já eram para te ver
Primeiros sinais de outros fados. Mário Laginha Jacinto Lucas Pires – Figurantes Acabado de nascer Meus olhos que por alguém
e orquestra numa primeira insinuação musical Deram lágrimas sem fim
sobre a ambiguidade de solidões que se (Raquel Tavares canta “Rapariga do Cais”, com Quando eu já for velhinho Já não choram por ninguém
confessam. guitarra de “Ardinita” como um objecto luminoso, E estiver para morrer – Basta que chorem por mim
coberto de swarovskis.) Olha bem para os meus olhos
(Emília Silvestre avança para o fundo do cais. Qu’ainda estão para te ver Arrependidos e olhando
Cruza-se com Pedro Almendra e Pedro Frias, Uma terceira solitária confunde olhos e lágrimas Acabado de morrer A vida como ela é
que entram dançando um fandango. e mares. O homem que lhe ensinou o amor foi de vela. Meus olhos vão conquistando
Comentários em tom de compère.) É o costume. Voltará quando ninguém se lembrar dele. (Raquel Tavares senta-se no último barrote Mais fadiga e menos fé
do cais. Carla Ribeiro, Mário Franco e Francisco
É o contrário da irmã Rapariga do cais Rousseau entram e dirigem-se ao cais. Momento Sempre cheios de amargura
esse rapaz. Isso é, Letra Fernando Santos de “fandango letal”: a Morte da Castro.) Mas se a vida é mesmo assim
Porque ele é José Maria Música Frederico Valério Chorar alguém – que loucura
E ela é Maria José. Assassinato prematuro da rainha morta, – Basta que chorem por mim
Fernando Pessoa Não sei que língua falava antes mesmo de ter sido viva.
Não sei o que me dizia O contrabando dos choros. As lágrimas não celebram,
Fernando Pessoa encontra Henrique Mendes. Sei que quando me beijava castro: Rege tu, minha ama, este meu peito. nem redimem – reclamam os olhos do outro. Negócios.
É para esquecer, claro! Eu nem sei o que sentia O súbito prazer engana, e erra.
(Raquel Tavares sai. Cruza-se com Emília Silvestre,
(Emília Silvestre desce o cais e sai. Pedro Não sei que barco o levou Ama: Encobre teu segredo. que vem ocupar o seu lugar.)
Almendra e Pedro Frias, mais informais, Não sei em que mar navega
cumprimentam-se e apresentam “Rapariga Sei que foi e não voltou Castro: N’alma o tenho.
do Cais”. Procuram uma memória perdida.) Sei que esta dor não sossega António Ferreira – Castro Episódio II
Tráfico
Dois momentos. A força, a fragilidade, a falta, Diz-me onde te perdes para te ir lá buscar (Pedro Almendra faz uma evocação que plana
a paralisia, a continuidade… Conclui-se que Meus olhos tão verdes de olharem para o mar sobre o momento da morte.) (Uma cegada sebástica: o episódio começa com
a realidade é infinitamente maior que o sonho. Sou barco ao sabor das ondas perdidas intenso ruído, redundando em pesadelo. Entram
É realmente assim como vimos e ouvimos. Belas Achei o amor mas perdi a vida Castro morre de olhos abertos, secos. Alguém Pedro Almendra e Pedro Frias, munidos de apetre-
canções que ouvimos enquanto o tempo passa, os fechará, lá mais para o fim. chos ruidosos. A sua entrada faz-se sob o som
respectivamente… E voltamos à realidade e fica (Breve suspensão entre o final de “Rapariga de cascos de cavalo: enuncia-se uma ponte entre
convosco e connosco mais uma voz, uma do Cais” e o início de “Quando eu era pequenino”. infante: Ó Castro, Castro, meu amor constante! o fandango e a batalha de Alcácer-Quibir. Estacam
panóplia de uma voz… Federico… Fellini! Pedro Frias canta.) Quem me de ti tirar, tire-me a vida. no fundo do cais. Dizem.)
Valério. Fernando Santos. Rapariga do Cairo. António Ferreira – Castro
Rosa púrpura do Cairo. Rapariga do Cais… Os olhos que se abrem e fecham, sem traição nem Os apresentadores e o seu Carnaval. Como numa
poder, à coisa amada. O amador é pastor. Talvez (Mário Franco e Francisco Rousseau saem. cegada, provocam quem está, ameaçando revelar-lhes
desmaie sem rebanho. Raquel Tavares canta “Os meus olhos”, os pecados cometidos na última temporada. Vão sendo

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possuídos do demónio guerreiro que usaram como morro de vergonha… morro, morro de vergonha…­ mas receio a fortuna que mais possa D. Sebastião: Já mastigaste areia?
disfarce. Escapam ao desejo por entre invocações Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa (adaptado) com seu furor, que tu com teu amor brando. Já provaste pedras? Arrima-te à ideia que estás
e brumas. Assexuam-se. Incorporam mediunicamente Por estas minhas lágrimas, por esta quase a ter de mim. Que eu sairei em corpo
os grandes amores pátrios. Actuam na companhia (Num gesto de resistência, Pedro Almendra mão tua, que em sinal de fé me deste, inteiro do teu sonho para o teu desejo palpável.
suave e areosa de outros actores da sua pátria paralela e Pedro Frias espantam os assombramentos, pelos doces amores, doce fruito, Como o lacrau do deserto espero debaixo da pedra
– o teatro. Jacinto Lucas Pires infiltra gerúndios na retomando a cegada.) que deles tens diante: se me deves a minha vez. Mil guitarras despentearam-se
correspondência de guerra. amor igual ao meu, ou se algü’ hora e gemeram no areal por mim. Agora são
Pedro: Capitão Furillo. Gina Lollobrigida. fui a teus olhos vista alegre, e doce, mil bandulhos cheios de pedras e areia.
Pedro: Uma vez ofereci um ramo de gerúndios Rosa púrpura do Cairo. Federico Fellini. Cuore me segures, me guardes, me conserves O que houve de Bastião ficou no vento,
brancos a uma mulher. Ela olhou pra mim e fez mio. Super-oito. Nikki Lauda. Michael Jackson. contra os duros mandados de teu pai, o que houver virá pelo sonho. Com este S saberás
“oh”. Só “oh”. Não a vi nem nunca mais. Amazónia. C.E.E.! contra importunas vozes dos que podem sempre se sou eu ou se são supostos sinais de
Jacinto Lucas Pires – Figurantes Jacinto Lucas Pires – Figurantes (adaptado) mudar acaso teu constante peito. mim os que te sejam sugeridos sabe-se lá por
Ou quando minha estrela, e cruel génio que embustes.
(Retomam a cegada. Avançam, proferindo (Enquanto Carla Ribeiro sai, novo assombramento, te puder arrancar dest’alma minha, Alexandre O’Neill – in Ninguém
expressões soltas.) por Pedro Frias.) com teu armado braço envolta em sangue
m’arranques deste corpo, que não veja (José Manuel Barreto entra em cena, vestido com
Pedro: Capitão Furillo. Gina Lollobrigida. Infante: Ó Castro, Castro, meu amor constante! tão triste dia, tão cruel mudança: um casaco azul de militar. Está de costas para o
Rosa púrpura do Cairo. Federico Fellini. Cuore Quem me de ti tirar, tire-me a vida. eu tomarei por doce a minha morte, público. Fuma. Do vídeo emerge a imagem equívoca
mio. Super-oito. Nikki Lauda. Michael Jackson. António Ferreira – Castro por piadoso amor tal crueldade. do seu rosto, como se visto num espelho. Canta.)
Amazónia. C.E.E.! António Ferreira – Castro
Jacinto Lucas Pires – Figurantes (adaptado) (Último acto de resistência, regresso da cegada.) Pântano
(Pedro Frias, com uma coroa, inicia a sua jura.) Letra Pedro Homem de Mello
(Pedro Frias algo apneico ou asmático, no micro- Pedro: Capitão Furillo. Gina Lollobrigida. Rosa Música Franklin Godinho (Fado Franklin)
fone da frente.) púrpura do Cairo. Federico Fellini. Cuore mio. Os compères sublimam a sua própria fantochada.
Super-oito. Nikki Lauda. Michael Jackson. Auto-encenam-se num voto matrimonial secreto. Amar por amar não posso.
D. Sebastião: Venho, quase como veio à outra Amazónia. C.E.E.! No coro pairam fantasmas de outros actores. Um Amar por amar não sei.
Maria o Emanuel. Nem véus, nem nevoeiros, nem Jacinto Lucas Pires – Figurantes (adaptado) adeus, uma lágrima. A impotência do amor anónimo, Amar por amar não posso.
o hidromel que haveis provado, relva abaixo, escuro e ilícito, sem remissão ou poder. Incorporação Amo aquilo só que é nosso,
relva acima, na fabulosa Ilha dos Amores, oh (Momento coral de vídeo: vozes e rostos dos final num voodoo sebástico. Amando à margem da lei.
expectantes, especados. Bastião, Sebastião e ensombramentos. Pedro Almendra, estático
Basta. Uma ideia, um sopro, uma levedura quase e ofegante.) Castro: Nesta tua mão te ponho firme, e fixa Amar por amar não posso.
imperceptível de tão espiritual. Querias mão minh’alma; por infante te nomeio, Amar por amar não sei.
aberta, mão fechada, músculos no braço, Maria? Castro: O medo ousa do meu amor senhora, e do alto estado
Mas eu convoco-te para outros regressos, para às vezes mais que o esforço. Tomo os filhos que me espera, e teu nome me faz doce. Quem compra, compra e não paga,
outros areais. co’as lágrimas nos olhos, rosto branco, O grande movedor dos céus, e terras Vende o que nunca lhe dão.
Alexandre O’Neill – in Ninguém a língua quasi muda, em choro solta invoco, e chamo aqui: o alto céu me ouça, Quem compra, compra uma chaga.
ant’ele assi começo: – Meu senhor, e meu intento santo aprove e cumpra. Quem compra, compra e não paga,
(Projecção vídeo do rosto dos nossos actores, soam-me as cruéis vozes deste povo, António Ferreira – Castro Compra ou vende uma ilusão.
envoltos em nevoeiro: os ensombramentos. vejo del-rei a força, e império grave
Emília Silvestre declara.) armado contra mim, contra a constância (Pedro Almendra e Pedro Frias, em uníssono, Quem compra, compra e não paga,
que em meu amor tégora tens mostrado. incorporam D. Sebastião. Depois, saem.) Vende o que nunca lhe dão.
É aquela voz, é ele, é ele! São eles… São eles... Não receio, senhor, que a fé tão firme
Minha mãe, meu pai, cobri-me bem estas faces, que queiras quebrar a quem tua alma deste;

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Ninguém me faça perguntas! Episódio III Madalena: Que fazes?... que fizeste? Oh, meu Prece
Trago o coração já frio... Fogo-fátuo Deus! Letra Pedro Homem de Mello
Ninguém me faça perguntas, Música Joaquim Campos (Fado Tango)
Que as minhas lágrimas juntas (Vozes fantasmas. Realização de dobragem, que Manuel: Ilumino a minha casa para receber
Davam para encher um rio... decorre paralelamente à projecção vídeo. Emília os muito poderosos senhores governadores destes Talvez que eu morra na praia
As minhas lágrimas juntas Silvestre, Pedro Almendra e Pedro Frias.) reinos. Suas Excelências podem vir quando Cercado em pérfido banho;
Davam para encher um rio! quiserem. Por toda a espuma da praia
Revelação sintética da gesta nacional. Como um pastor que desmaia
Choram agora os homens? O negócio está Toda a revolta acaba em trambolhão. Que limpe Madalena: Meu Deus, meu Deus!... Ai, o retrato No meio do seu rebanho
selado – “siga para bingo!” o trânsito quem o atrapalhou. O inimigo difunde-se, de meu marido!... Salvem-me aquele retrato!
perdoa. O pai queima-se em efígie. A filha D. Sebastião: Bastião, Sebastião e Basta. Talvez que eu morra dum tiro
(Francisco Rousseau toma Carla Ribeiro nos (aqui Alexandre O’Neill) sublima a virgindade Uma ideia, um sopro, uma levedura quase Castigo de algum desejo
braços. Cruzam-se, ao fundo do cais, com José (que nunca perderá…) numa hemoptise sebástica. imperceptível de tão espiritual. Querias mão E que à mercê desse tiro
Manuel Barreto, no momento em que este sai.) Tudo se desculpa a uma heroína solitária, condenada aberta, mão fechada, músculos no braço, Maria? O meu último suspiro
que esteja a morrer antes de um primeiro orgasmo. Mas eu convoco-te para outros regressos, para Seja o meu primeiro beijo
Que nada perturbe a carga de um corpo outros areais. Com este S saberás sempre se sou Talvez que eu morra entre grades
finalmente morto! Cumpra-se a lenda. Manuel: Meu pai morreu desastrosamente eu ou se são supostos sinais de mim os que te No meio duma prisão
caindo sobre a sua própria espada. Quem sabe sejam sugeridos sabe-se lá por que embustes.* E que o mundo, além das grades
se eu morrerei também nas chamas ateadas por Venha esquecer as saudades
Entreacto minhas mãos? Seja. Mas fique-se aprendendo em Maria: Voz do povo, voz de Deus, minha Que roem meu coração
Traição Portugal como um homem de honra e coração, senhora mãe […]. Mas ora o que me dá pensar
por mais poderosa que seja a tirania, sempre lhe é ver que […] ninguém nesta casa gosta Talvez que eu morra no leito
(Pedro e Inês: fandango silencioso. Francisco pode resistir, em perdendo o amor a coisas tão vis de ouvir falar em que escapasse o nosso bravo Onde a morte é natural
Rousseau e Carla Ribeiro.) e precárias como são esses haveres que duas faís- rei, o nosso santo rei D. Sebastião. Meu pai, As mãos em cruz, sobre o peito
cas destroem num momento... Como é esta vida que é tão bom português, que não pode sofrer Das mãos de Deus tudo aceito
Pedro com Inês nos braços: um corpo que não pode miserável que um sopro pode apagar em menos estes castelhanos, em ouvindo duvidar Mas que eu morra em Portugal
salvar e de que, ao mesmo tempo, não se consegue tempo ainda! da morte do meu querido rei D. Sebastião […]
libertar. Uma coreografia para ouvir. põe-se logo outro, muda de semblante, fica (Durante a variação das guitarras, ouvem-se
Nem todo o arfar é indiscreto. Maria: Jardim, meu lugar de mim, para mim, pensativo e carrancudo; parece que o vinha Emília Silvestre e Pedro Frias, enquanto saem.)
restituo-te uma a uma as flores, aquelas a que afrontar, se voltasse, o pobre do rei. Ó minha
Castro: Rege tu, minha ama, este meu peito. arranquei os nomes para as rebaptizar comos no- mãe, pois ele não é por D. Filipe de Espanha, A Corcunda que se confunde com Maria de Noronha.
O súbito prazer engana, e erra. mes que tenho: Hora clara, Hora escura, Amantina, não é, não? Uma teatrice irresistível, este recurso ao desdo­
Malmaria, Sofrência, Olhos Pisados, Benquerença, Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa bramento dos actores, tão a gosto do público.
Ama: Encobre teu segredo. Mansanoite, Jubilouca, Bastião dos Sonhos, essa *Alexandre O’Neill – in Ninguém As incorporações mediúnicas são só um tique,
a que chamam o cravo vermelho. Bastião dos um truque ou uma pontuação consciente
Castro: N’alma o tenho. sonhos, essa que é sangue aflorado à boca ou (José Manuel Barreto entra, senta-se à boca do espectáculo?
António Ferreira – Castro derramado nas areias, essa que está em oposição às do cais e canta.)
minhas queridas dormideiras, que dá sonhos como Maria: E eles, os tiranos governadores, ainda
vigílias, e solta, cor, sabor, perfume, num quadrado estarão muito contra meu pai? [...] Meu nobre
de pano ou de terra a sua estridência. A ti as pai! Passar os dias retirado nessa quinta tão triste
entrego, jardim, canteiro da memória. Voltarão, dalém do Alfeite e não poder vir aqui senão de
por um breve crepitar, a ter os nomes que têm. noite, por instantes, e Deus sabe com que perigo!
Os nomes que lhes dei, esses, levo-os comigo.*

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Telmo: Perigo nenhum; todos o sabem e fecham se solta de nós, se fantasmiza. Um travelling gélido, Como eu recordo as tuas mãos Nas minhas mãos o teu perfume
os olhos. Agora é só conservar as aparências aí por entre paredes de porcelana branca, avança para Letra L. Lauer, A. Amaral, V. Sequeira, Nas minhas mãos o teu cabelo
mais uns dias, e depois fica tudo como dantes. uma máquina ancestral, obsoleta, ao fundo. Caminho F. de Brito (adaptado) Música Frederico Valério O meu ciúme, o meu queixume
Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa aberto para o deserto luso. Nas minhas mãos um triste apelo
Tenho saudades, ando quase louca As tuas mãos estão mais frias
Para que se queimam terras lavradas e palácios Nós portugueses somos castos Faltam-me as tuas mãos brutais, senhor Estão vazias de meus beijos
frouxos? Para esquecer? Não surpreende Pedro Homem de Mello Que me queimavam, sem qualquer pudor As minhas mãos talvez não sintas
a amnésia de que sofrem os compères. Mais que os teus olhos Estão famintas de desejos
Nós, portugueses, somos castos. Mais que a tua boca Nas minhas mãos a despedida
(José Manuel Barreto retoma a última estrofe Ninguém nos peça o que não somos. Nas tuas mãos a minha vida
de “Prece”. A quadra é altamente performativa: Por isso, em nós, andam, de rastos, Como eu recordo as tuas mãos
os equívocos patrióticos são exacerbados.) Árvores de oiro com mil pomos. Oh mãos de escultor Miltinho, Maysa e as coisas que nós aprendemos,
Em nossos olhos moram lutos. Que me tocaram toda apesar deles. Como cantar o que parece estar cantado
Talvez que eu morra no leito Os pomos de oiro estão nos ramos. Me perderam toda para sempre? Como fadista, que é sempre mais do que
Onde a morte é natural Às vezes tentam-nos os frutos. D’um perdido amor isso ou menos do que isso, ou como actor, que é de
As mãos em cruz, sobre o peito (Os pomos de oiro estão nos ramos!) palavras só.
Das mãos de Deus tudo aceito Como eu recordo as tuas mãos
Mas que eu morra em Portugal Nós, portugueses, somos castos. Mãos fortes, morenas (Pedro Almendra canta.)
Ninguém nos peça um rosto alheio. De toque tão frio
A Pátria que me sobra de um mundo de aventuras, Árvores de oiro andam, de rastos, O leque de penas As suas mãos
ficcionadas ou breves, como fagulhas de serralharia. Partidas todas pelo meio. Do meu arrepio Letra Antônio Maria Música Pernambuco

(José Manuel Barreto sai. Pedro Almendra (Saem Emília Silvestre e Pedro Frias. Com a entra- Como eu recordo as tuas mãos As suas mãos onde estão?
volta-se para nós, com os olhos postos no chão da dos bailarinos, Pedro Almendra abandona o seu De falsa poesia Onde está o seu carinho?
e auscultadores na mão.) lugar. Momento de chorus line.) Que só escrevem versos Onde está você?
Para os deixar impressos Ah... se eu pudesse buscar
Pedro: Estamos onde o lugar este lugar é. Fechemos, mudos, a porta do país à chave. Nesta carne fria Se eu soubesse onde encontrar
Jacinto Lucas Pires – Figurantes Vêm aí as férias. Seu amor, você...
No vídeo, realmente, nada é o que parece, nem nada Um dia há de chegar
Num rasgo de dislexia, uma epígrafe do país. do que parece, é. Dos faróis de um desfile militar faz-se Quando ainda não sei
Episódio IV a iridescência das luzes de um cabaré. Maravilhas do Você vai procurar
Quando a gente vai “lá fora” digital. Dedos por mãos. A cada um a sensualidade que Onde eu estiver
Entreacto merece. Frederico Valério, genialmente sórdido em 1937. Sem amor, sem você
Pátria (Momento de cabaré internacional: algo que As suas mãos onde estão?
avança na direcção do musical, mas fica patetica- (Suspensão. Pedro Frias canta.) Onde está o seu carinho?
(Emília Silvestre e Pedro Frias juntam-se a Pedro mente parado. No fim do chorus line, os bailari- Onde está você?
Almendra. Nas mãos têm auscultadores que nos saem, dançando. Desce uma cortina ao fundo Poema das mãos Um dia há de chegar
trazem as suas próprias vozes. Ouve-se um poema, do cais. Raquel Tavares canta. Pedro Almendra Letra Miltinho Música Luiz Antônio Quando ainda não sei
aparente ou literalmente saído dos auscultadores. e Pedro Frias sentam-se no cais. Olham-na.) Você vai procurar onde eu estiver
A voz de Pedro Almendra autonomiza-se.) Nas tuas mãos deixei meu sonho Sem amor, sem você
Mãos que nos segurassem, nos guardassem, Nas tuas mãos deixei bondade As suas mãos onde estão?
O exercício de dobragem resolve-se agora no que nos conservassem, ao menos. Mas sendo Musical, Alegre sonho, ficou tristonho Onde está o seu carinho?
sempre pretendeu ser: uma voz que se empresta, é turismo. Voltamos a casa quando cair a noite. Nas tuas mãos virou saudade Onde está você?

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(Raquel Tavares, Pedro Almendra e Pedro Frias, me dizia chorando, ali chorando o silêncio de um instante de poesia… Conclui-se Os “olhos garotos” que Pessoa escondeu por detrás
deitados, rematam o cabaré.) mas tornava a dizer. E eu o detinha que a realidade é infinitamente maior que dos óculos, mascarilha de Carnaval da sua intraficável
apertado em meus braços, senão quando o sonho. É realmente assim como vimos e ouvi- literatura. António Ferreira já passeia Inês pelos
Boa noite! acordava abraçada só comigo. mos. Textos que ouvimos, páginas que nos leram, corredores da casa do Alfeite. Garrett começa a bater
Aqueles meus enganos me sustinham enquanto o tempo passa, respectivamente… à porta.
(A cortina sobe. Carla Ribeiro está ao fundo das noites para os dias. E esta noite E voltamos à realidade e fica convosco
do cais e avança, enquanto Raquel Tavares canta perdia estes enganos com a vida. e connosco mais uma voz, várias vozes… Comunicado pelo Engenheiro Naval
um pregão, distendido como um chamamento António Ferreira – Castro Sr. Álvaro de Campos em estado
da Beira Baixa.) (Início da “Casa Portuguesa”. Momento festivo. de inconsciência
(Raquel Tavares, Pedro Almendra e Pedro Frias Os bailarinos dançam. Raquel Tavares canta.) Alcoólica.
Trânsito, crossover, fusão, e outras frivolidades. saem. A cavalgada intensifica-se. No final do solo, Álvaro de Campos – “Ai, Margarida”
A alegria dos simples – a lua quando nasce é para Emília Silvestre dirige-se a Carla Ribeiro e fala- Apoteose. Prepara-se o cruzamento final entre
todos. -lhe, intimamente, ao ouvido. Pedro Frias e Pedro o arraial fadista – fumo, sardinhas e tudo e tudo Ai, Margarida
Almendra regressam para se juntarem ao Coro.) e tudo – e a repetida memória das guitarras Letra Álvaro de Campos
Ó luar da meia-noite portuguesas abandonadas em Marrocos. Música Mário Laginha
Alumia cá pra baixo Coro: Fuge, coitada, fuge; que já soam
Que eu perdi o meu amor as duras ferraduras, que te trazem Limão Ai, Margarida,
E às escuras não o acho correndo a morte triste. Gente armada Letra e Música Arlindo de Carvalho Se eu te desse a minha vida,
correndo vem, Senhora, em busca tua. Que farias tu com ela?
[…] Ó luar da meia-noite – Tirava os brincos do prego,
Episódio V Ó príncipe tão cego! Alumia cá pra baixo Casava c’um homem cego
Quando a gente volta “a casa” Ó príncipe tão duro! Que eu perdi o meu amor E ia morar para a Estrela.
[…] E às escuras não o acho
(No plano sonoro, episódio atravessado por uma Tu dormes, ou passeias, Mas, Margarida,
cavalgada. Solo dançado, de Carla Ribeiro, à boca e pelos campos vem Ó limão, ó verde limão Se eu te desse a minha vida,
do cais.) do Mondego correndo Solteirinha sim… casadinha não Que diria tua mãe?
a cruel morte em busca Ó limão, ó verde limão – (Ela conhece-me a fundo.)
Castro, de olhos blindados, fecha D. Pedro a cadeado da tua doce vida, Amor da minh’alma... dá-me a tua mão Que há muito parvo no mundo,
entre as suas pernas. Fala sozinha, dorme sozinha, do teu amor tão doce. E que eras parvo também.
claro. Delira. António Ferreira – Castro Os olhos do meu amor
São grãozinhos de pimenta E, Margarida,
Castro: Não sei que hei. (Pedro Almendra e Pedro Frias retomam o discurso Namorei-os na igreja Se eu te desse a minha vida
Não sei que peso é este, que cá tenho dos apresentadores.) Ao tomar da água benta No sentido de morrer?
assi no coração, que me carrega. – Eu iria ao teu enterro,
Soía ser que, quando só ficava, Há pessoas profundamente curiosas. Pessoas (Actores, fadistas e bailarinos fora de cena. Tema Mas achava que era um erro
como agora me vejo, em meu senhor infinitamente curiosas. Eu soube de um indivíduo “Fado” acompanhará orgia de vídeo. Regressam Querer amar sem viver.
eram todos meus sonhos tão alegres, que um dia procurou saber a razão do êxito. Emília Silvestre, José Manuel Barreto, Raquel
que desejava a noite, pera nela Foi mais longe até, tentou descobrir o segredo… Tavares, Pedro Almendra e Pedro Frias para a Mas, Margarida,
me lograr dos enganos, que com ele Eu tenho fraca memória, mas posso, ainda, preci- celebração da “Casa Portuguesa”. Pedro Almendra Se este dar-te a minha vida
se me representavam. Ali o via, sar algumas palavras que esse indivíduo escreveu: anuncia, José Manuel Barreto canta.) Não fosse senão poesia?
ali cria que o tinha, e que falava primeiro, nos seus olhos que guardam segredos – Então, filho, nada feito.
comigo, e eu com ele: e muitas vezes inescrutáveis; segundo, nos seus cabelos que Mário Laginha e os clássicos. O fado no seu mais Fica tudo sem efeito.
muitas palavras, que ele em se partindo gritam revolta; terceiro, na sua boca que guarda nobre. Subtil duelo entre temas “populares”. Nesta casa não se fia.

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(Raquel Tavares canta.) Tal qual aquele dia em que chegaste Abraçada c’os filhos a mataram, […]
Tal qual aquele dia, meu amor que inda ficaram tintos do seu sangue. Teu pai, com gente armada
Olhos garotos Para quê cantar António Ferreira – Castro foi hoje salteá-la. A inocente,
Letra João Linhares Barbosa Se longe já não ouves que tão segura estava, não fugiu.
Música Jaime Santos (Fado Jaime) O nosso canto ainda está na fonte Não lhe valeu o amor com que te amava;
E o nosso sonho nas estrelas do horizonte Episódio VI não teus filhos com quem se defendia;
Diz aos teus olhos garotos Olhos cerrados não aquela inocência, e piedade,
Vivos marotos, pretos rasgados Ainda nasce a lua nos moinhos com que pediu perdão aos pés lançada
Que não andem pelas esquinas Ainda nasce o dia sobre os montes (José Manuel Barreto canta.) del-rei teu pai, que teve tanta força
Feitos traquinas e malcriados Ainda vejo a curva do caminho que lho deu já, chorando. Mas aqueles
Ainda o mesmo som, as mesmas fontes Volta atrás vida vivida cruéis ministros seus, e conselheiros,
Que não sigam as meninas Letra João de Freitas contr’aquele perdão tão merecido,
Simples, ladinas dos olhos meus Sabes, meu amor, não estou sozinho Música Filipe Pinto (Fado da Meia-Noite) arrancando as espadas se vão a ela,
De tudo acho capazes Pelas salas do silêncio em que te escuto trespassando-lh’os peitos cruelmente.
Os maus rapazes dos olhos teus Abro as janelas ainda cheira a rosmaninho Volta atrás vida vivida Abraçada c’os filhos a mataram,
Olho-me ao espelho, ainda vejo luto Para eu tornar a ver que inda ficaram tintos do seu sangue.
Teus olhos amendoados Aquela vida perdida
São comparados a dois cachopos (Fim da “Casa Portuguesa”. Pedro Frias traz Que nunca soube viver Eis Pedro, sobre quem construímos o templo da nossa raiva
Que quando topam meninas, a notícia da morte da Castro.) e da nossa impotência. A crueza das nossas vinganças e os
Pelas esquinas, dizem piropos Voltar de novo quem dera nossos amores esvaziados de respon­sabilidade ou sentido.
A fala do Mensageiro desdobrar-se-á em dois tons: A tal tempo – que saudade
É preciso que lhes digas o trágico, que interrompe despropositadamente Volta sempre a Primavera Infante: […] Como poderei ver aqueles olhos
Que as raparigas nem todas são a festa, e o político, que acicata o que de mais Só não volta a mocidade cerrados pera sempre? Como aqueles
Como as pedras que há nas ruas subterrâneo há em D. Pedro. cabelos já não de ouro, mas de sangue?
Gastas e nuas, sem coração O tempo vai-se passando Aquelas mãos tão frias, e tão negras,
Mensageiro: Ó triste nova, triste mensageiro E a gente vai-se iludindo que antes via tão alvas, e fermosas?
Diz-lhes tudo sem ralhares tens ante ti, senhor. Ora rindo, ora chorando Aqueles brancos peitos trespassados
Sem te zangares, tem mil cuidados […] Ora chorando, ora rindo de golpes tão cruéis? Aquele corpo,
Sim, que para entristecê-los É morta Dona Inês, que tanto amavas. que tantas vezes tive nos meus braços
Prefiro vê-los nos seus pecados […] Meu Deus, como o tempo passa vivo, e fermoso, como morto agora,
Teu pai, com gente armada Dizemos de quando em quando e frio o posso ver? Ai como aqueles
Não quero os teus lindos olhos foi hoje salteá-la. A inocente, Afinal, o tempo fica penhores seus tão sós? Ó pai cruel,
Correndo abrolhos, livre-nos Deus que tão segura estava, não fugiu. A gente é que vai passando tu não me vias neles? Meu amor,
Que causassem tais ruínas Não lhe valeu o amor com que te amava; já me não ouves? Já não te hei-de ver?
Estas meninas dos olhos meus não teus filhos com quem se defendia; (Pedro Frias retoma, ao ouvido de Pedro Almen- Já te não posso achar em toda a terra?
não aquela inocência, e piedade, dra, a “triste nova”. Seguir-se-á a imprecação Chorem meu mal comigo quantos me ouvem,
(José Manuel Barreto canta.) com que pediu perdão aos pés lançada de D. Pedro, enquanto Raquel Tavares trauteia chorem as pedras duras, pois nos homens
del-rei teu pai, que teve tanta força a melodia de “Olhos Garotos”.) s’achou tanta crueza. E tu, Coimbra,
Arraial que lho deu já, chorando. Mas aqueles cubre-te de tristeza pera sempre.
Letra e Música João Ferreira-Rosa cruéis ministros seus, e conselheiros, Mensageiro: Ó triste nova, triste mensageiro Não se ria em ti nunca, nem se ouça
contr’aquele perdão tão merecido, tens ante ti, senhor. senão prantos, e lágrimas: em sangue
Acabou o arraial arrancando as espadas se vão a ela, […] se converta aquela água do Mondego.
Folhas e bandeiras já sem cor trespassando-lh’os peitos cruelmente. É morta Dona Inês, que tanto amavas. As árvores se sequem, e as flores.

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Ajudem-me pedir aos céus justiça Como trazer à tona da água, inteiro, entr’os homens reinar, e sempre os olhos O que pedi não foi a expressão langue
deste meu mal tamanho. Teu corpo de beleza e de segredo? de todos a verão com melhor nome. De sofredoras almas silenciosas.
Eu te matei, senhora, eu te matei. Ó meu amor, amor feito de medo,
Com morte te paguei o teu amor. Um de nós dois tem de partir primeiro! Real amor lhe dará real nome. Ah! não! o que pedi, pedia rosas...
Mas eu me matarei mais cruelmente E o mar? Ó que coroa lhe aparelha a morte! Ah! não! o que pedi, pedia sangue.
do que te a ti mataram, se não vingo E o vento? Depois que lhe cerrou os claros olhos
com novas crueldades tua morte. E a Lua? indignos d’ante tempo irem à terra, Pedi-lhe amor... Pedi-lhe, de mãos postas,
Para isto me dá, Deus, somente vida. E esse veleiro sem quem só fica, e desarmado Amor; Que tudo me trouxesse. Tudo ou nada.
Abra eu com minhas mãos aqueles peitos. A que o Poeta chama “Coração”? sem quem quão triste, Infante, a tua vida! Pedi-lhe a minha mão, ressuscitada,
Arranque deles uns corações feros, No vinco, longo e azul, das tuas costas!
que tal crueza ousaram: então acabe. Separarmo-nos? Tu és o que morreste, aquela vida
Eu te perseguirei, Rei meu imigo. Nós? era tua; já agora aquele nome Pedi-lhe a madressilva junto à fonte,
Lavrará muito cedo bravo fogo Não! que tão doce te fez sempre o amor, E, mais adiante, o aroma dos pinheiros.
nos teus, na tua terra; destruídos Ainda não! triste to tem tornado a cruel morte. Pedi-lhe, firmes, pálidos, inteiros
verão os teus amigos, outros mortos, Um de nós dois tem de partir primeiro? Chorando a andarão sempre na terra Dois ombros de marfim, por horizonte.
de cujo sangue s’encherão os campos, té que nos Céus a vejam esses teus olhos.
de cujo sangue correrão os rios, Ó meu amor, amor de que me abeiro,
em vingança daquele. Ou tu me mata, De olhos azuis à noite prometidos! Nem haverá já nunca no mundo olhos, Episódio VII
ou fuge da minh’ira, que já agora Amor! Ó perdição dos meus sentidos que não chorem de mágoa de üa vida Ressurreição
te não conhecerá por pai. Imigo Um de nós dois tem de partir primeiro! assi cortada em flor. E quem a terra
me chamo teu, imigo teu me chama. for ver, em que estiver escrito o nome (As vozes de Raquel Tavares e Emília Silvestre
Não m’és pai, não sou filho, imigo sou. (Emília Silvestre retoma o Coro da Castro. dela, dirá: – Aqui está chorando a Morte fundem-se neste passo do Frei Luís de Sousa.)
Tu, senhora, estás lá nos céus; eu fico Vai fechando os olhos a todos os que estão em de mágoa do que fez, aqui o Amor.
enquanto te vingar; logo lá voo. cena.) A partir daqui: lugar à concupiscência dramatúrgica,
Tu serás cá rainha, como foras. Amor, quanto perdeste nuns sós olhos, à libertinagem formal, à comoção, à indigestão do
Teus filhos, só por teus serão infantes. Coro: Já morreu Dona Inês, matou-a amor; que debaixo da terra pôs a morte, nosso amor-próprio, à infinita liberalidade do palco,
Teu inocente corpo será posto Amor cruel! Se tu tiveras olhos, tanto eles mais terão de vida, e nome. à recusa dos sentimentos, à troca com a indigente
em estado real; o teu amor também morreras logo. Ó dura morte, António Ferreira – Castro inteligência erótica, à perplexidade perante a estupi-
m’acompanhará sempre, té que deixe como ousaste matar aquela vida? dez da vida e a grandiosidade insignificativa da morte.
o meu corpo c’o teu, e lá vá est’alma Mas não mataste: melhor vida, e nome (O solo de piano evolui de algo sem tempo para algo Lugar ao tempo que persiste em sobreviver, límpido,
descansar com a tua pera sempre. lhe deste do que cá tinha na terra. com tempo do fado. Raquel Tavares inerte, de olhos à descrença dos corpos, a esta solidão africana,
António Ferreira – Castro fechados, a luz toda nela, canta. Tudo quieto.) ao nevoeiro no deserto, ao desalento de ser igual aos
Este seu corpo só gastará a terra, nossos pares, à luxúria ascética de se construir sobre
(Emília Silvestre enuncia um poema sobre o pano por quem estará chorando sempre o Amor, Nocturno o desejo de nada ou ninguém…
de fundo do Fado Lágrima.) honrando-se somente do seu nome. Letra Pedro Homem de Mello
Mas quem a quiser ver com outros olhos, Música Alfredo Marceneiro (Fado Versículo) Madalena: Este amor, que hoje está santificado
Drama outro nome, outra glória, outra honra, e vida e bendito no Céu, porque Manuel de Sousa é meu
Pedro Homem de Mello lhe achará, contra a qual não pode a morte. Pedi à noite não a sombra e a Lua marido, começou com um crime, porque eu amei-
Nem as palavras trémulas do vento. -o assim que o vi… e quando o vi, hoje, hoje…
Como inventar palavras ou dinheiro Aqueles matas tu somente, ó morte, Como quem pede o próprio pensamento foi em tal dia como hoje! D. João de Portugal
Para deter o Sol em nossa mão? cujo nome s’esquece, e a quem na terra Pedi-lhe carne, carne ardente e nua. ainda era vivo. O pecado estava-me no coração;
Ó meu amor, amor de escuridão, fica de todo sepultada a vida. a boca não o disse… os olhos não sei o que fize-
Um de nós dois tem de partir primeiro! Mas esta viverá, enquanto o amor ram, mas dentro da alma eu já não tinha outra

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imagem senão a do amante… já não guardava a Romeiro: Oxalá! Padeci muita fome, e não a sofri Romeiro: Quereis lembrar-me que estou abusan- um homem que muito bem lhe quis... aqui está
meu marido, a meu bom… a meu generoso mari- com paciência; deram-me muitos tratos, e nem do da paciência com que me têm ouvido? vivo... por seu mal... e daqui não pôde sair nem
do… senão a grosseira fidelidade que uma mulher sempre os levei com os olhos n’Aquele que ali mandar-lhe novas suas, de há vinte anos que o
bem nascida quase que mais deve a si do que ao tinha padecido tanto por mim... Queria rezar e Madalena: Deixai, deixai, não importa, eu folgo trouxeram cativo”.
esposo. Permitiu Deus… quem sabe se para me meditar nos mistérios da Sagrada Paixão que ali de vos ouvir: dir-me-eis vosso recado quando
tentar?... que naquela funesta batalha de Alcácer, se obrou... e as paixões mundanas e as lembran- quiserdes... logo, amanhã... Madalena: Deus tenha misericórdia de mim!
entre tantos, ficasse também D. João… ças dos que se chamavam meus segundo a carne E esse homem, esse homem... Jesus! Esse homem
Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa travavam-me do coração e do espírito, que os não Romeiro: Hoje há-de ser. Há três dias que não era... esse homem tinha sido... Levaram-no aí
deixavam estar com Deus, nem naquela terra, que durmo nem descanso, nem pousei esta cabeça, donde?... De África?
(Os actores em cena. Momento de teatro, acom- é toda sua. nem pararam estes pés dia nem noite, para chegar
panhado por uma trama musical repetitiva, aqui hoje, para vos dar meu recado... e morrer de- Romeiro: Levaram.
obsessiva.) D. Sebastião: Nem véus, nem nevoeiros, nem o pois... ainda que morresse depois; porque jurei...
hidromel que haveis provado, relva abaixo, relva faz hoje um ano... quando me libertaram, dei jura- Madalena: Cativo?...
Jorge: Que é precisa muita cautela com estes acima, na fabulosa Ilha dos Amores, oh expectan- mento sobre a pedra santa do Sepulcro de Cristo...
peregrinos! A vieira no chapéu e o bordão na mão tes, especados. Bastião, Sebastião e Basta. Uma Romeiro: Sim.
às vezes não são mais do que negaças para armar ideia, um sopro, uma levedura quase impercep- Madalena: Pois éreis cativo em Jerusalém?
à caridade dos fiéis. E nestes tempos revoltos... tível de tão espiritual. Querias mão aberta, mão Madalena: Português?... cativo da batalha de...
fechada, músculos no braço? Mas eu convoco-te Romeiro: Era; não vos disse que vivi lá vinte
Maria: E ele vem aí… É aquela voz, é ele, é para outros regressos, para outros areais.** anos? Romeiro: De Alcácer-Quibir.
ele! São eles… São eles... Minha mãe, meu pai,
cobri-me bem estas faces, que morro, morro de Romeiro: Oh! eu não merecia estar onde estive: Madalena: Sim, mas... Madalena: Meu Deus, meu Deus! Que se não abre
vergonha…* bem vedes que não soube morrer lá. a terra debaixo dos meus pés?... Que não caem
Romeiro: Mas o juramento que dei foi que, antes estas paredes, que me não sepultam já aqui?...
Jorge: Entrai, irmão, entrai. Esta é a senhora Jorge: Pois bem; Deus quis trazer-vos à terra de de um ano cumprido, estaria diante de vós e vos
D. Madalena de Vilhena. É esta a fidalga a quem vossos pais; e quando for sua vontade ireis morrer diria da parte de quem me mandou... Jorge: Calai-vos, D. Madalena! A misericórdia
desejais falar? sossegado nos braços de vossos filhos. de Deus é infinita. Esperai. Eu duvido, eu não
Madalena: E quem vos mandou, homem? creio... estas não são coisas para se crerem de
Romeiro: A mesma. Romeiro: Eu não tenho filhos, padre. leve. Oh! inspiração divina... Conheceis bem esse
Romeiro: O seu nome, nem o da sua gente, nun- homem, Romeiro, não é assim?
Jorge: Sois português? Jorge: No seio de vossa família... ca o disse a ninguém no cativeiro.
Romeiro: Como a mim mesmo.
Romeiro: Como os melhores, espero em Deus. Romeiro: A minha família... Já não tenho família. Madalena: Mas, enfim, dizei vós...
Jorge: Se o víreis... ainda que fora noutros
Jorge: E vindes?... Madalena: Sempre há parentes, amigos... Romeiro: As suas palavras trago-as escritas no trajes... com menos anos, pintado, digamos,
coração com as lágrimas de sangue que lhe vi conhecê-lo-eis?
Romeiro: Do Santo Sepulcro de Jesus Cristo. Romeiro: Parentes!... Os mais chegados, os que chorar. Ninguém o consolava senão eu... e Deus!
eu me importava achar... contaram com a minha Vede se me esqueceriam as suas palavras. Romeiro: Como se me visse a mim mesmo num
Jorge: E visitastes todos os Santos Lugares? morte, fizeram a sua felicidade com ela; hão-de espelho.
jurar que me não conhecem. Jorge: Homem, acabai!
Romeiro: Não os visitei; morei lá vinte anos Jorge: Procurai nestes retratos, e dizei-me se
cumpridos. Jorge: Bom velho, dissestes trazer um recado Romeiro: Agora acabo; sofrei, que ele também algum deles pode ser.
a esta dama: dai-lho já, que havereis mister de ir sofreu muito. Aqui estão as suas palavras:
Madalena: Santa vida levastes, bom Romeiro. descansar... “Ide a D. Madalena de Vilhena e dizei-lhe que Romeiro: É aquele.

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Madalena: Minha filha, minha filha, minha rico! Federico Fellini! Supra-sumo! Tom Sawyer!
filha!... Estou... estás... perdidas, desonradas... Coconuts! Astronave...
infames! Oh! minha filha, minha filha!...
Quero ser da vida dela se ela é da vida. Davidavi-
Jorge: Romeiro, Romeiro, quem és tu? davidavida.
Jacinto Lucas Pires – Figurantes (adaptado)
Romeiro: Ninguém!
Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa Madalena: Minha filha, minha filha, minha
*Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa (adaptado) filha!... Estou... estás... perdidas, desonradas...
**Alexandre O’Neill – in Ninguém infames! Oh! minha filha, minha filha!..

(Pedro Almendra faz uma fuga para a frente.) Jorge: Calai-vos, D. Madalena! A misericórdia
de Deus é infinita. Esperai. Eu duvido, eu não
Pedro: Ohhhh!.... (Pausa.) Hum. Pedrão, peç... creio... estas não são coisas para se crerem de
Peço perdão. (Pausa.) Eu ia, sim, de facto e leve. Oh! inspiração divina... Conheceis bem esse
gravata. Tinha-me vestido a pronto, mesmo. Era homem, Romeiro, não é assim?
uma noite até já bastante pacífica, tudo parecia
encaminhar-se. Não conhecia os meandros. Ela – Romeiro: Como a mim mesmo.
toda a gente à volta dela, sorrisos caídos, mãos
com pastilhitas de cores, oh. Estava pela prima Jorge: Se o víreis... ainda que fora noutros
volta tão romântico. Para me acalmar dizia para trajes... com menos anos, pintado, digamos,
dentro “Federico! Federico! Federico Fellini!” Re- conhecê-lo-eis?
sultava um pouquinho. Trazia-lhe, bem, um ramo
de gerúndios brancos. Disse-lhe “Por vapor... Por Romeiro: Como se me visse a mim mesmo num
favor.” […] E ela: “Oh.” espelho.
Jacinto Lucas Pires – Figurantes
Jorge: Procurai nestes retratos, e dizei-me se
(Passos de Figurantes e Frei Luís de Sousa algum deles pode ser.
sobrepõem-se nas vozes de Pedro Almendra
e Pedro Frias.) Romeiro: É aquele.

Pedro: Nem disse mais nada. “Oh.” Recusando- Madalena: Minha filha, minha filha, minha
-me. Quase sem me olhar. Cheirou-lhe que eu não filha!... Estou... estás... perdidas, desonradas...
era da laia dela e despejou-me assim na rua. Sem infames! Oh! minha filha, minha filha!...
contempracções, sim. Desde esse dia não mais quis
sair da rua. Quero ser da vida dela se ela é da vida. Jorge: Romeiro, Romeiro, quem és tu? A versão do guião que aqui se publica corresponde à versão em Frei Luís de Sousa, de Almeida Garrett, dramaturgia de Ricardo
uso no dia 26 de Outubro de 2010, no primeiro ensaio de palco Pais e António Cabrita (TNSJ, 2006); e Ninguém: Frei Luís de
Capitão Furillo. Gina Lollobrigida. Rosa púrpura Romeiro: Ninguém! no TNSJ, podendo, em alguns pontos, diferir da versão final. Sousa, com textos de Almeida Garrett, Maria Velho da Costa
do Cairo. Federico Fellini. Capitão Furillo. Gina Almeida Garrett – Frei Luís de Sousa (adaptado) e Alexandre O’Neill (Produções Cine-Teatro/Os Cómicos, 1978).
Lollobrigida. Rosa púrpura do Cairo. Federico O guião integra excertos das versões cénicas de Castro, de
Fellini. Federico Fellini! Cuore mio, Super-oito, …ao vazio absoluto do espectáculo e à comoção António Ferreira, texto fixado por Frederico ­Lourenço, em As intervenções dos Apresentadores nos Episódios I e V glosam
Nikki Lauda. Michael Jackson, Amazónia, C.E.E.! única que ele provoca, do fundo do seu esquecimento, colaboração com Carlos Mendes de Sousa e Ricardo Pais (TNSJ, o discurso de apresentação de Henrique Mendes no programa
Plimplezas! Ternura! Superavit! Federico! Fede- da sua insignificância. 2003); Figurantes, de Jacinto Lucas Pires (TNSJ, 2004); da rtp Convite Para Ouvir Maysa, realizado por Fernando Frazão.

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uma estética da desencarnação (Castro, Frei Luís de Sousa…). A própria divisão em
Bruno Di Marino* capítulos (sete episódios, dois entreactos) procura
sistematizar um espectáculo que – obstinadamente
A multimedialidade – conceito que é hoje, na era – reivindica uma fragmentariedade estrutural, e a
do hipertexto e das novas tecnologias, especial- sua densa tessitura de associações, reenvios, sobre-
mente abusado – é uma forma antiga na história posições e dissoluções não chega nunca a fechar-se
do espectáculo, muito provavelmente contem- (não por acaso, o último alicerce da sua construção
porânea do nascimento do teatro. A recitação, a dramatúrgica é um falso final, que sublinha o facto
dança e a música são três elementos que sempre de Sombras ser um fluxo, figurativamente capaz de
se fundiram desde o fim da Antiguidade Clássica. voltear sobre si mesmo e recomeçar de novo, pre-
A estes junta-se agora o vídeo, enquanto disposi- cisamente porque não tem princípio nem fim).
tivo tecnológico capaz de fundir estas formas ex- E, no entanto, a dispersão fantasmática destas som-
pressivas num diálogo gerador de novos significa- bras que encarnam mitos e sentimentos da cultura
dos, criando uma estrutura visual no interior da lusitana, personagens que vagueiam entre a dimen-
qual os elementos recitados, performativos e mu- são real (o palco) e virtual (os ecrãs onde Fabio
sicais possam encontrar uma outra dimensão espa- Iaquone e Luca Attilii projectam as suas criações
cial e uma maior respiração narrativa. Ainda que, vídeo), articula-se no interior do contentor cénico,
como sublinha Ricardo Pais na entrevista publica- cuja quarta parede é um ecrã negro de tule que,
da nestas páginas, Sombras seja “um espectáculo para além de conter músicos, actores e bailarinos no
escrito. Pouco interessa em que parte do corpo. espaço da representação e da fábula, os desmateria-
É dramatúrgico, técnica e disciplinadamente”. liza, tornando-os ainda mais sombras, fundindo-os
A cenografia concebida por Nuno Lacerda Lopes di- com as imagens em movimento. Graças ao DVT (Di-
vide o espaço cénico em duas partes. À esquerda, gital Versatile Theatre), teorizado e praticado por
os músicos dirigidos por Mário Laginha, entre os Fabio Iaquone, as imagens electrónicas ganham cor-
quais se encontram duas outras figuras que – para po no espaço cenográfico a partir de uma modelação
além do próprio compositor – participaram já em realizada com uma precisão milimétrica: o virtual
espectáculos de Ricardo Pais: Diogo Clemente, o redesenha a arquitectura física de uma cena inten-
jovem guitarrista que assegurou a direcção musi- cionalmente estilhaçada, à semelhança dos vários
cal de Cabelo Branco é Saudade [2005], e o clari- fragmentos que compõem o texto escrito de Som-
netista Carlos Piçarra Alves, que tomou parte em bras. O teatro, como a realidade, é tridimensional,
Figurantes [2004] e D. João [2006]. À direita, os mas sabemos que, como no cinema, o espectador
performers (fadistas, bailarinos e actores), sobre assiste ao espectáculo a partir de um único ponto
um estrado de madeira que sugere a plataforma de vista; assim, a representação teatral é com efeito
de um porto: o cais é um lugar simbólico da cul- bidimensional. E, todavia, através da projecção so-
tura portuguesa, de onde se parte (Quando a gente bre superfícies de várias dimensões – dos painéis
vai “lá fora”) e a que se regressa (Quando a gente verticais que permitem jogar com diversos níveis de
volta “a casa”). De resto, o tema da separação, profundidade de campo a outros elementos ceno-
sobretudo da separação amorosa, atravessa todo gráficos, acabando no grande ecrã quadrado que de-
o espectáculo, revelado neste contraste paradoxal limita o fundo do palco – a cena adquire um relevo
entre a aparente fixidez da cena e um contínuo concreto e convida o espectador para uma experiên-
movimento conceptual, estilístico, cronológico cia “imerssiva”, no sentido literal da palavra.
que contamina o mito musical (o fado) com o Não faz sentido pensar em Sombras – adverte Ri-
literário (Fernando Pessoa), histórico e teatral cardo Pais na entrevista – como um espectáculo

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circunscrito à portugalidade. Temas, motivos, per- diluição de fronteiras entre actores, performers e ta pessoana da corcunda – como um atributo sexu- A Terra, por fim, como último elemento. A Terra é
sonagens, situações e referências assumem uma músicos nas duas metades do espaço cénico (Mário al do serralheiro: as fagulhas parecem sair da bra- Portugal, as visões fugazes da sua paisagem, resti-
dimensão universal, partilhável com espectadores Franco assume o duplo papel de contrabaixista e guilha das suas calças, o fogo da paixão dissolve-se tuídas por imagens em movimento. Imagens quase
de outras latitudes. Sombras representa antes uma bailarino), a pulverização de qualquer limite físico nas grades que aprisionam a jovem mulher (as pa- descoloradas que mantêm apenas alguns elemen-
viagem às raízes culturais de Portugal, numa os- que alude naturalmente à pulverização de todas as lavras da corcunda são lidas de um fôlego por Emí- tos cromáticos e que remetem um pouco para o
cilação contínua entre tristeza e alegria, amor e fronteiras entre géneros, numa lógica que torna lia Silvestre, quase como um mantra), condenada universo do cinema mudo, apesar de manterem o
morte, sonho e realidade, fado e fandango, drama ainda mais labiríntica a arquitectura dramatúrgica a uma deformidade que conduz à morte; um mo- grau de estilização dos signos. Mas a Terra é o pró-
e cabaré; mas também pode ser lido como uma e a encenação de Ricardo Pais. mento visualmente paródico, que atenua e torna prio teatro, o chão do palco pisado pelos intérpre-
excursão pessoal de Ricardo Pais ao seu imaginário Em Sombras, o luto (a imagem de grãos de milho parcialmente grotesca a tragédia da sua condição. tes. É difícil subtrairmo-nos a uma leitura meta-
teatral: o encenador, na verdade, revisita e reinter- cobertos por um oleado negro) reveza-se com a E depois, naturalmente, o Ar, ou antes, o nevoeiro -artística de Sombras, lá onde as “sombras” não
preta fragmentos de alguns dos seus espectáculos festa (os caixotes de peixe fresco do mercado que que invade fisicamente a cena através de fumos, são senão imagens, representações, figuras alegó-
de um passado recente ou mais longínquo. À in- invadem a cena como uma prateada textura abs- o nevoeiro que recobre não apenas os corpos dos ricas e arquétipos de uma tradição literária e mu-
fância e ao crescimento histórico da cultura portu- tracta), e esta alternância traduz em cena, numa músicos, actores, cantores e bailarinos mas, ideal- sical que se transmuta em escrita cénica; são ecos,
guesa sobrepõe-se assim a vida artística de Ricardo espécie de reverberação visual, o esclarecedor mente, de toda a equipa criativa deste espectácu- reverberações, reflexos da existência e da História.
Pais, a sua poética, a sua estética, as suas paixões, subtítulo do espectáculo: “A nossa tristeza é uma lo, como demonstram os retratos feitos por João E pegando uma vez mais nas palavras do Blanchot
as suas obsessões. E estas duas linhas entrelaçam- imensa alegria”. “A arte é sobretudo a consciência Tuna para o programa de sala. O nevoeiro é outro de L’espace littéraire, poderíamos concluir: “O re-
-se continuamente. Integrado no fluxo de imagens da infelicidade”, escreveu Maurice Blanchot, “não dos topoi da história portuguesa, elemento concre- flexo não parece sempre mais espiritual do que o
criadas para o espectáculo, assoma também um uma sua compensação”. to da paisagem, para além de dispositivo natural a objecto real? Não é desse objecto a expressão ide-
momento de found footage, isto é, uma sequên- partir do qual se realiza o Mito: o desejo que num al, a presença liberta da existência, a forma sem
cia filmada do espectáculo Ninguém: Frei Luís de Sombras abre com a imagem de um motor, mas dia de nevoeiro regresse o Rei D. Sebastião, desa- matéria? E os artistas que se exilam na ilusão das
Sousa, encenado por Ricardo Pais em 1978, um todo o espectáculo está repleto de manómetros, parecido na batalha de Alcácer-Quibir, onde tam- imagens, não têm eles como missão idealizar os
documento de época que revive numa dimensão roldanas, cadeias de montagem, visões que reme- bém foi dado como desaparecido D. João de Portu- seres, elevá-los à semelhança desencarnada?”
live, num confronto entre os fantasmas de ontem tem iconograficamente para o ideário futurista- gal. O sentido da espera – espera do amor e espera Sombras poderia ser lido como o poema desta desen-
e os fantasmas de hoje, personificados por Emília -construtivista típico das vanguardas históricas. da morte – é outro motivo, congénito à separação, carnação.
Silvestre, Pedro Almendra e Pedro Frias. O imaginário industrial, que aparentemente con- que invade Sombras. O nevoeiro demarca um limite
Sombras é naturalmente atravessado pelo fado, o trasta com o lirismo de certas situações, eviden- incerto, aquele entre a vida e a morte (a paisagem * Ensaísta italiano, curador e investigador de media art
género musical por excelência, e pelas suas can- cia na realidade o conflito entre um Portugal ain­ nebulosa do Hades), a realidade e a representação. Trad. João Luís Pereira
ções. O fado, a que as vozes de José Manuel Bar- da apegado às suas raízes rurais, aos valores da
reto e Raquel Tavares dão esplendidamente corpo, tradição, e a inevitável atracção pela vertigem da
é definido com perspicácia por Ricardo Pais como modernidade. A própria coreografia de Paulo Ri-
“flamengo impotente” e, acrescentaríamos nós, beiro, de grande eficácia e essencialidade, atinge em
exangue, literalmente dessangrado: nas imagens alguns momentos um nível quase schlemmeriano de
projectadas, duas das personagens-intérpretes vo- geometrismo e estilização: um corpo a corpo entre
mitam sangue (alusão à figura da jovem Maria de os bailarinos e o espaço que se inscreve perfeita-
Frei Luís de Sousa, tuberculosa). Imagem de uma mente na arquitectura video-cenográfica; atente-
“beleza convulsa”, diriam os surrealistas, simboli- mos na portentosa sequência da morte da Castro,
za a doença da paixão ou a paixão como doença e impregnada de uma trágica sensualidade, dançada
restitui de um modo perfeito o mood contaminado por Carla Ribeiro e Francisco Rousseau.
de Sombras, uma mistura de romântico e gótico a Os elementos naturais sucedem-se e sobrepõem-
deslizar em direcção ao grand guignol e, por fim, ao -se em Sombras: a Água, antes de mais, seja sob a
cabaré, naturalmente metafísico, isto é, sem corpo, forma do mar que invade e quase submerge a cena
mas pleno de ironia. Intensifica-se um contí­nuo ou de uma chuvada que cai à luz de um lampião.
intercâmbio de atributos entre as personagens, a O Fogo aparece num dos primeiros quadros – a car-

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“Armamos uma ratoeira ao nosso coisa que correspondesse, na medida do possível, à
imaginário” encomenda brasileira: uma incursão no território da
nossa língua, aí incluindo o fado. Pensando nisso,
Entrevista com Ricardo Pais ocorreu-me que seria engraçado brincar um pouco
Por Pedro Sobrado às nossas próprias histórias, ao nosso próprio sis-
tema lendário, com remissões para a Castro, para a
Pode falar um pouco sobre a génese deste espec- mitologia sebástica, etc.
táculo, ou ela é tão longínqua que exigiria um
grande esforço genealógico? As sombras que dão nome ao seu espectáculo
A génese talvez seja, de facto, um tanto longín- começam por ser, portanto, os assombramentos
qua… Mas valerá a pena dizer que, quando há um daquilo a que se convencionou chamar “portuga­
ano estivemos no Brasil a apresentar o Turismo lidade”.
Infinito, me perguntaram porque é que nós não São as coisas – temas, figuras, referências – que
fazíamos um espectáculo de fado “a sério”. Ao que fantasmizam o nosso ideário e o nosso imaginário,
respondi: “Mas já fizemos várias coisas de fado a nomeadamente o meu imaginário teatral. Temos,
sério!” Referia-me não só àqueles felicíssimos cru- enquanto portugueses, um problema de auto-
zamentos que fizemos com o Mário Laginha nas -identidade de que a melhor metáfora é o jogo de
Raízes Rurais. Paixões Urbanas [1997] – e que me retratos do Frei Luís de Sousa… Mas reconheçamos
parecem fazer a redenção daquilo a que miseravel- que alguns dos mitos ditos fundadores do nosso
mente se chama “música de fusão” –, mas também imaginário popular ou colectivo configuram uma
ao Cabelo Branco é Saudade [2005]. Seja como for, realidade algo artificial. O próprio fado é uma
essa proposta dos nossos amigos brasileiros aconte- espécie de fenómeno mantido artificialmente.
ceu porque a identificação do público de São Paulo A mitologia do fado, as referências do fado – do Ma-
com o Turismo Infinito e com o Fernando Pessoa foi rialva à Severa, passando mais recentemente pelas
absolutamente fascinante. E boa parte do fascínio femininas espigas do Alentejo ou pelos masculinos
decorreu do facto de as pessoas ouvirem portu- cacilheiros do Tejo… –, tudo isso não diz efectiva-
gueses a dizer Fernando Pessoa. Portanto, quando mente nada a ninguém. Já ninguém olha para as
apresentámos o Turismo Infinito com a “escola” que gaivotas com enlevo ou comoção. Há muito tempo
é a do Teatro São João – há que reconhecer que não que os nobres foram para a sacocha, como acontece
é um grupo qualquer de actores que granjeámos no Ubu, e os que voltam são uns tesos pindéricos.
para levar ao Brasil; é um conjunto de pessoas que Quem os representa são uma espécie de cantores
tem vindo ao longo dos anos a exercitar como se de blazer, mais parecidos com agentes bancários
diz e porque se diz e quanto se diz –, foi uma coisa do que com monárquicos de Sintra. Tudo isto é, de
completamente hipnótica. Pela minha parte, acho facto, um fenómeno mantido artificialmente. Mas
que se fazem poucas coisas “a sério” sobre o fado, a verdade é que propicia uma forma de canto que
porque não há muito por onde fazer: o fado são três é nossa. Conseguiu o prodígio de convergir em Lis-
ou quatro coisas; depois, é a imensa variedade da boa e, naquela cidade-cais, transformar-se na única
interpretação. Ele tem os seus próprios circuitos e forma de canção urbana genuinamente portuguesa,
meios e lugares. Mas a verdade é que fiquei a pensar mantendo-se ao mesmo tempo um território aberto
naquilo muito seriamente. Como um projecto que o à experimentação musical, nomeadamente no que
Fabio Iaquone tencionava fazer sobre mim (e que diz respeito à interpretação vocal. Nesse sentido,
curiosamente começou por se chamar Sombras) foi sempre achei que, por muito que se fale do pathos
suspenso, propus ao Nuno Carinhas fazermos uma do fado, do ritus do fado, do xamanismo do fado e

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da incorporação do sofrimento que o fado encena coisa convivencial, “antropológica”. De algum modo, apelam à virilidade, etc. Há ali uma vitalidade ibéri- que fez em 1978 ao Figurantes, de Jacinto Lucas
nos seus lugares, o que na verdade importa é a vi- é um bocadinho como as coisas ciganas na Andalu- ca, algo ancestral, nomeadamente quando se assiste Pires, em 2004…
talidade com que se canta. O cantar – como, aliás, zia: é fácil vender gato por lebre. Mas se se continua às pegas de touros, que – apesar de estar apoiada O título evoca, de facto, os meus fantasmas re-
o dizer – é uma forma de expurgação… a gostar de ouvir as pessoas cantar é porque o fado no aparelho teórico mais idiota e de ser normal- correntes. Nos anos 70, tive a ousadia de fazer o
é uma forma peculiar de canto, tem semelhanças mente veiculada pelos mais cretinos e analfabetos Frei Luís de Sousa, peça de que então nem gostava
Uma forma de espantar os males. com poucas coisas. Claro que há traços de união com praticantes das artes tauromáquicas –, na verdade, especialmente. Pensei que iria agitar os fantasmas
As sombras. Digamos que se canta para que o dia a música judia, a música árabe, coisas dos Balcãs não deixa de ser uma coisa altamente expressiva. do nosso Portugal. Estava muito motivado pelo livro
nasça. Realmente, o fado é cantado noite fora, e é inclusive. Ouve-se também muita coisa na canção da Quando falamos de fandango, estamos já a falar do Eduardo Lourenço, O Labirinto da Saudade, aca-
como se se cantasse para que o dia nasça mais claro Beira Baixa que remete para o fado, o que, de resto, de uma forma de dança que, tendo sido exercitada bado de publicar, que falava do Frei Luís de Sousa
e para que possamos assistir a essa nascença ainda é frequente acontecer com formas de arte popular em muitos sítios do país desde o século XVIII, foi como a teatralização de Portugal como “povo que
de goela aberta. E isso é um sinal de vida, porque que são objecto de transmissão oral. Mas o fado é codificada – e um pouco espartilhada, sobretudo já só tem ser imaginário (ou mesmo fantasmático)”.
tem que ver com o empréstimo do corpo à arte, que mais qualquer coisa porque traz agarrado a si uma pelo Estado Novo – na sua versão ribatejana, na Nessa altura, achei que tínhamos de ir à procura de
é afinal do que trata o teatro. espécie de expansão cultural portuguesa, que não versão em que, no fundo, o homem é metade cavalo. qualquer coisa de que toda a gente pudesse dizer:
pode deixar de estar personalizada na Amália, é Curioso é o facto de o fandango se ter transforma- “É nosso”. E, realmente, o passo do teatro portu-
Isso poderia levar-nos ao paradoxo que escolheu evidente. Porque não se trata de uma fadista; trata- do numa coisa diabolicamente viril e agressiva en- guês que toda a gente sabe de cor é o “Romeiro,
para subtítulo do espectáculo: “A nossa tristeza -se de um génio. Quando a Amália diz “Na gelada quanto despique e, ao mesmo tempo, ser uma arte Romeiro, quem és tu? Ninguém”. Ao mesmo tempo,
é uma imensa alegria”. solidão que tu me dás coração…”, ninguém diz de imensas subtilezas. Refiro-me em particular às era a época “áurea” do teatro independente, de
De uma dor qualquer pode nascer uma alegria “solidão” tão expressivamente, tão onomatopeica- improvisações com os pés, dançadas entre bailador mil mistificações à volta do teatro ideologizado,
grande. E não é o princípio romântico de que o mente como ela o faz. E isto leva-nos directamente e bailador. Não é que a alegria do Ribatejo com- das chamadas técnicas de comunicação do teatro
sofrimento e a separação são necessariamente mo- ao teatro, à nossa velha luta por encontrarmos uma pense a tristeza de Lisboa. Não há sequer “cidades engagé. Muitas delas não eram técnicas nenhumas
tivo de missão, não é da alegria sofrida que falo. verdade para cada actor, em que o texto se trans- tristes” e “cidades alegres”, embora sejamos, neste e o tempo veio provar que estavam completamente
É mesmo da alegria como aquilo que resulta de forma numa espécie de implante físico, de implante momento, segundo as estatísticas, o país da União erradas: não há hoje brechtiano que não chore como
termos destapado finalmente a tristeza. E destapar cardíaco, ao mesmo tempo que se desenvolve uma Europeia com o maior potencial para a infelicidade. uma Madalena numa cena de funeral de telenovela,
a tristeza é aquilo que a gente faz de cada vez que técnica precisa para controlar esse texto que está Eu acredito que no mais recessivo pode estar o mais tentando fazê-lo o mais stanislavskianamente que
sobe o pano, não é? implantado e para o modificar, de forma a dar dele progressivo. Acredito sinceramente que ao receder, pode! O teatro parecia uma coisa cada vez mais
a imagem do inesperado comportamento humano. ao cair para dentro de si próprio, ao convocar o reservada, uma espécie de coutada, como de alguma
Disse que não há muito por onde fazer coisas passado, não se tem forçosamente de ser autocom- forma acabou por se manter ao longo destes anos
sobre o fado, mas fez o Fados, no âmbito da Em Sombras conjuga a tristeza do fado com a placente. E uma forma precisamente de se vencer a todos, e achei que devíamos tentar uma coisa que
Lisboa‘94; o Raízes Rurais. Paixões Urbanas em alegria do fandango, a introspecção de um com autocomplacência é pelo esforço da interpretação, e desbloqueasse essa relação e nos reconciliasse. Na
1997, pouco tempo depois de chegar ao TNSJ; o a extroversão do outro? uma das explosões interpretativas mais interessan- altura, pretendia reunir uma espécie de palmarés
Regressos em 2004, que juntava a D. Argentina Sempre achei que o fado é uma espécie de flamenco tes na música folclórica portuguesa é o fandango. de actores maduros que tivessem a experiência e
Santos e o Camané ao Rabih Abou-Khalil; e o impotente, porque é uma coisa que faz espiral para Donde falei com o “internacional” Paulo Ribeiro a memória dos vários Frei Luís de Sousa, incluindo
Cabelo Branco é Saudade no ano seguinte, um dentro, não faz espiral para fora. Não abre como o sobre esta hipótese de trabalharmos a partir do o do filme de António Lopes Ribeiro. E que pudes-
espectáculo que foi apresentado em importantes flamenco, não irradia e portanto não exige o corpo fandango, que, como verá, começa logo na cena dos sem agitar essa memória teatral portuguesa, pro-
palcos europeus… e a dança. No flamenco, há um momento em que o “Apresentadores” a ser um leitmotiv do espectáculo. curando um pouco freudianamente o que estava
Na verdade, eu gosto de fado. Acho o fado uma canto inevitavelmente conduz à explosão do corpo. por detrás de tudo aquilo… Pretensão absurda. Não
forma nobre de cantar. E acho que raramente tem E nós, essa explosão não a temos connosco. Curio- “como se lá fora o povo dançasse enquanto um tinha meios técnicos, nem domínio de linguagem,
espaço para ser bem produzido, isto é, para as pes- samente, quando fizemos o Raízes Rurais. Paixões drama ocorre aqui…” nem os actores estavam suficientemente à-vontade.
soas estarem no seu melhor, à procura do melhor e Urbanas, já então com o Mário Laginha, fiquei muito O espectáculo tinha ideias geniais e foi um fracas-
relacionando o seu melhor com o melhor dos outros. fascinado pelo fandango. No Ribatejo há um regis- Quando falamos das sombras deste espectáculo, so. Lembro-me agora que o Carlos Zíngaro comprou
O fado é esporádico, são pequenas canções, levanta- to de extroversão grande, porque – como estamos não falamos apenas das sombras da “portuga- propositadamente uma guitarra portuguesa para o
-se um, que é brilhante, e canta, levanta-se outro sempre a ouvir – a lezíria é uma alegria, porque o lidade”. Falamos também das sombras do seu Ninguém e que o espectáculo incluía já harpejos
a seguir, que é péssimo, e canta também… É uma milho é muito bonito, porque os cavalos e os touros próprio percurso como encenador, do Ninguém de guitarra portuguesa. Originalmente, tinha pen-

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sado fazer um espectáculo com a banda da Guarda pai, contra a política, contra tudo, e o reconheci- seda muito reles, impressos normalmente com a mais complexa do que a desgraça da rapariga que
Nacional Republicana no Coliseu dos Recreios, uma mento de que finalmente (e digo “finalmente” com fotografia de uma criatura qualquer que tinha as- ama um homem em silêncio. Lido que foi o texto,
coisa “verdiana”… Daí em diante, por uma razão toda a perfídia) o corpo da Castro está morto – é sassinado a mulher ou coisa parecida, ali colocada era já um fado.
ou por outra, voltam sempre algumas coisas. “Volta uma coisa extraordinária. Pensei que esse momento para fazer crer que a história era verídica. O fado
sempre a Primavera, só não volta a mocidade”, como deveria conter um pico de arte popular porque, no com que o espectáculo abre – é mais uma litania, Os fados de tipo narrativo, o fandango, os textos
canta a D. Argentina! [risos] A visita ao Aquilino fundo, no fundo, toda a gente se compraz naquele praticamente – e que a Raquel canta, por assim di- pessoanos escolhidos… Sombras faz um tributo
Ribeiro [Teatro de Enormidades, 1985] foi um mer- sofrimento. Do que nós gostamos na lenda não é zer, na sua solidão absoluta, faz parte desse tipo de a um certo espírito popular português?
gulho directo na Beira Alta e num país-país, segu- apenas do facto do príncipe se ter vingado e posto fados. Fui criado a ouvir à quinta-feira, no mercado Sempre me comoveu muito a maneira como as pes-
ramente um que eu conhecia muito bem… Penso Inês lugubremente, como rainha morta, como lhe da Maceira-Liz, pares de cegos a cantar estes fados. soas conseguem fazer bem a partir do simples, da-
também na maneira como na Castro [2003] se foi chamou Montherlant, a ser saudada com beijos de Quando vim de Inglaterra, descobri em casa do meu quilo que não tem qualquer pretensão de ser arte.
lentamente infiltrando a ideia de uma relação com mão pela Corte. Ao propor esse “ensombramento” do pai, em Viseu, um folheto com o fado da história do Quando há dias estávamos a mostrar aos bailarinos
o fado, que tinha presumido teoricamente quando texto pelo fado, estava a pensar nesta propensão tão Amor de Perdição. Tinha uns 8 ou 9 anos quando o as danças do rancho folclórico de Riachos no vídeo
li a peça, e que, francamente, não pensei que vies- portuguesa que é a de desatarmos a dançar o vira ouvi pela primeira vez, e ainda sei a primeira qua- do Raízes Rurais, eles estavam sempre a repetir:
se a tornar-se tão pacata e minimalmente óbvia, em cima da maior tragédia. Tratou-se de justapor dra de cor. É um fado típico de folheto, com verso “Mas isto é espantosamente bem dançado!” Aquela
como se torna no fim do espectáculo. O próprio um fado corrido, popular e repetitivo, que serve de pé quebrado, não é propriamente um Linhares gente trabalha arduamente! Depois, quando se per-
Dom Duardos [primeira encenação de Ricardo Pais uma letra totalmente narrativa, e pôr esse modo, Barbosa, que era um grande poeta popular, ou um cebe, por exemplo, a imensa elegância do olhar do
no TNSJ, 1996] era curiosamente uma coisa muito que é um modo extrovertido, um modo maior, con- Henrique Rêgo. Eram coisas mais simples ainda, mas Sr. Joaquim Santana sobre a dança ou se via dançar
portuguesa, tratando-se de um romance de cava- tra o modo menor do texto de D. Pedro, e ver como foi também com essas formas de narração que cres- o Veríssimo Gomes – que era uma pessoa positi-
laria de origem saxónica. Os ensombramentos são as coisas se relacionam. E como viu, relacionam-se cemos. Mas devo dizer que não me move nenhuma vamente tocada pelo espírito da dança –, quando
essas coisas: vestígios, sobras, restos de imaginário bem. Talvez se relacionem bem porque as vemos preocupação com as questões históricas do fado. estas coisas ocorrem, comovem-me imenso. Nessas
que se vão infiltrando aqui e ali… ambas como nossas. Mas, essencialmente, estava a Na verdade, no momento em que um óvni chamado alturas, acho infinitamente mais vulgar ser actor
tentar uma justaposição que perspectivasse aquele Amália Rodrigues aterra em Portugal, para o bem de teatro, e penso naquela gente que pratica as
Logo na sessão de apresentação do projecto, pe- sofrimento para o exterior, como se lá fora o povo e para o mal a história do fado pulveriza-se, assim formas ditas cénico-dramáticas e não tem metade
diu à Raquel Tavares que experimentasse ensom- dançasse enquanto um drama ocorre aqui. Depois, como se pulverizou a história da canção francesa da sensibilidade nem põe metade do esforço que, às
brar uma fala do D. Pedro da Castro trauteando o ao ensaiar estas justaposições, a gente descobre quando apareceu a Piaf. vezes, uma pessoa de um rancho folclórico investe
fado “Olhos Garotos”. Sombras designa também imediatamente uma série de coisas de que não es- no seu vira. É preciso lembrar que a minha geração
um programa, um método de encenação? tava à espera. E isso é o que pode chamar-se parte Está a falar dos fados narrativos e estou a lem- reagiu muito a estas coisas da cultura popular por
Isso sim. O espectáculo vive desse método, confia- da minha metodologia: experimentar o impensável brar-me da “Carta da Corcunda para o Serra- causa da intoxicação dos Bailados Verde Gaio e da
-se ao seu próprio método. Em princípio, tudo pode para ver se o inesperado ocorre. E ocorre muitas lheiro”, que figurou no Turismo Infinito e que propaganda do SNI [Secretariado Nacional de In-
sombrear ou assombrar tudo o mais. Uma coisa pode vezes. retoma aqui… formação]. Mas, enquanto a maior parte dos meus
nascer da outra. Os próprios fados podem prolongar- De facto, nunca mais me esqueci de que, quando li colegas se estava a borrifar para essas coisas, eu
-se, ou retomar-se mais adiante. Podem nunca co- “Conforme se canta assim o folheto o indica”, o monólogo da corcunda, a sensação que tive foi a estava masoquisticamente preso a elas. Ficava em
nhecer um acorde final, como acontecia no Cabelo lembrava ontem o José Manuel Barreto. De onde de que estava perante um daqueles folhetos. Parece frente da televisão a odiá-las, a odiar tudo aquilo
Branco é Saudade. Idealmente, as cenas não termi- vem este gosto pelo fado de tipo narrativo? a história da ceguinha, a história da desgraçadinha. que nos apequenava, intuindo, todavia, que por
nam: esvaem-se. É o esbatimento da fronteira – na Preferiria não entrar por aí porque, desde a publi- Claro que se trata de um texto que está comple- detrás podia estar qualquer coisa. Esse “qualquer
verdade, das fronteiras entre nós todos, entre os cação do livro de José Alberto Sardinha [A Origem tamente minado. Não é nada disso, é uma coisa coisa” só a maturidade é que me explica. Acho que
intérpretes, entre os criadores – que me interessa. do Fado], que veio incomodar o status quo do fado infinitamente mais misteriosa. Tem que ver com isto nasce de um grande respeito pelas pessoas.
Em relação ao caso que cita (e que não posso ga- e a blindagem eventualmente científica a que al- conseguir ou não aceitar-se a si mesmo, e se se vai Qualquer pessoa que tem um talento e consciente-
rantir que ficará no espectáculo), aconteceu que na guns o submeteram, a questão está envolta nalguma viver sem corpo até à morte. Está-se no apogeu da mente o cultiva, e tem coragem para abrir a boca e
noite anterior estava a ler o guião e perguntei-me: polémica. “Canta-se como o folheto manda” porque idade, a morte está cerca e, no momento em que o o fazer ouvir, ou para se mexer e dançar, torna-se
mas como é que este desabafo se vai relacionar, e os fados eram transmitidos por cegos e cantores corpo poderia celebrar-se finalmente, ele não vai para mim objecto imediato de respeito máximo.
com o quê? Aquela explosão de D. Pedro no final ambulantes, e o que eles ganhavam era o que se sequer ser reconhecido como corpo, e nem sequer é Quando estive em Londres no final da década de
da Castro – a imprecação contra Coimbra, contra o pagava pelos folhetos, uns folhetos em papel de masculino ou feminino. É uma coisa infinitamente 1960, o meu programa dilecto era o Come Dancing

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da BBC, um concurso de dança gravado em salões nos pusemos quando a fizemos. Os motivos aqui são principalmente quando se está realmente a falar Raquel Tavares fala, fala porque já não pode fazer
de baile de província que tinha uma grande final no muito mais o corpo, a carne, as mãos, os olhos… No de amor, que é quase sempre aquilo de que ele outra coisa. De algum modo, se as célebres três
Empire Ballroom de Leicester Square. Eu não perdia fundo, é entre o abrir e o fechar de olhos que este fala. Queria, de resto, ter visitado mais poetas. Li frases de diálogo entre a Ama e a Castro, no final
o Come Dancing a preço absolutamente nenhum. espectáculo está. Acho que um recital de fado ou o António Botto. Andámos a ler outras coisas, mas, da primeira cena do I Acto da Castro, são ditas pela
Tenho ainda em Viseu três cibachromes lindíssimos um recital de coisas portuguesas, que podem ir de na maior parte dos casos, não eram propriamente Carla Ribeiro, pelo Francisco Rousseau e pelo Mário
que o Paulo Nozolino fez sobre as imagens televisi- António Ferreira a Jacinto Lucas Pires, de Linhares cantabile, ao contrário dos poemas, por exemplo, Franco, é porque nesse ponto, não se enunciando
vas do Come Dancing. É verdade que caía do sofá a Barbosa a Pedro Homem de Mello, será sempre uma do José Luís Gordo, de outros poetas, populares e aquelas palavras, não chega a haver proferição – a
rir, mas ao mesmo tempo comovia-me a precisão e coisa entre abrir e fechar olhos. É sempre uma coisa não só, que são feitos para música. A ideia era arejar proferição ritual do crime que dá origem àquela
a codificação foleira daqueles olhares, toda aquela entre o aceitar que vivemos uma realidade e o fe- um bocadinho o nosso ideário. Fadistas com grandes tragédia e àquela lenda. Aqui, é preciso que as pa-
coisa que não tem razão nenhuma de ser, mas que char os olhos para não pensarmos nela, e podermos repertórios como a Amália, a Beatriz da Conceição lavras irrompam a determinada altura, para que
para eles obedece a uma lógica porventura análoga à poetizar à vontade. Não é por acaso que os fadistas ou a D. Celeste Rodrigues cantaram muitas coisas e reponham o texto no lugar litúrgico certo. Se, nesse
de quem decora a casa. Como temos de ter um terno fecham os olhos para cantar. Não é só para se con- cantaram-nas de maneiras muito díspares. Se qui- ponto, é um bailarino quem assume a cena, é a ele
de sofás na sala, também temos de pôr a cabeça centrarem, como se diz. É porque o fado tem tudo sermos fazer uma coisa um bocadinho original e que cumpre o desígnio de falar. Se é uma fadista,
desta ou daquela maneira, conforme é tango ou que ver com o quebra-luz, com o fecho da realidade. lembrar “isto também pode ser assim”, temos de é uma fadista. Não é mais do que isso.
fox-trot. Faz parte dos códigos. Faz tudo parte dos A tragédia da Castro acontece por falta de noção trabalhar. Fui então pela obra do Pedro Homem de
códigos de sublimação do que é mais vulgar e triste da realidade: D. Pedro ausenta-se, Inês ilude-se, Mello, ao encontro de coisas que se escrevessem Teve em tempos a ambição de fazer um espec-
no quotidiano. Tenho estas coisas comigo, não sei pensando que vai ser rainha e é assassinada no IV bem com estes outros textos que compõem o guião. táculo sobre a música de Frederico Valério, que
explicar. Nunca foi propriamente o gosto do kitsch, Acto. E, ao ser assassinada, empresta finalmente a Um dos poemas que escolhi segue-se ao monólogo está representada neste espectáculo. Por estas
sabe? Penso é que o mau gosto se sublima precisa- dimensão de Deus ao amor e ganha um nome para do Infante, por exemplo. Houve outra coisa: senti, Sombras perpassa a melancolia do nacional-
mente quando o investimento anímico é especial, sempre. Esta passagem pelos temas mais próximos a dada altura, que o Pedro Homem de Mello tinha -cançonetismo?
e investimento anímico nestes casos – nos casos do do corpo tem que ver com o acordar e adormecer, poemas para todos os momentos. E, sobretudo, que Não há nada do nacional-cançonetismo no espectá-
palco – é sempre um investimento na superação do tem que ver, naturalmente, com o nascer e morrer e, oferecia poemas para todas aquelas vozes. culo! Boa música é boa música. A “Rapariga do Cais”
corpo. Em tornar o corpo mais belo, melhor do que depois, com a nossa capacidade de nos libertarmos não se pode considerar uma nacional-cançoneta,
nós o vemos, e portanto devidamente autorizado a e vivermos felizes com o que temos. “Os actores cantam!” era o subtítulo de um ou- de todo. É uma coisa infinitamente mais liberta
ser gozado pelo público. tro espectáculo seu. Agora, não só os actores e poética, muito pouco doméstica e muito pouco
Foram estes temas que ditaram uma preferência cantam, como também os cantores representam codificável. Primeiro, porque é um poema muito
“as variedades são metafísicas, o cabaré é meta­ pela poesia de Pedro Homem de Mello, que foi (o que não acontecia propriamente com Cabelo aberto; depois, porque concatena metáforas sim-
físico.” classificado como “o maior dos poetas menores”? Branco é Saudade) e os bailarinos tocam e di- ples e coerentes entre si; finalmente, porque é um
É um poeta que versa recorrentemente o desejo zem. É um contrabando lucrativo? poema curto, que não tem pretensões de se abrir e
Ao ler o guião, ocorreu-me pensar que, para proibido, a liberdade ou não de amar… Os poemas Não houve qualquer programa prévio de pluridisci- fechar como unidade dramática, que fica em aber-
um espectáculo que versa sobre uma alma – a que escolhemos do Pedro Homem de Mello andam plinaridade, de pôr toda a gente a fazer tudo, para to. Não há incursões no nacional-cançonetismo. Há
putativa “alma portuguesa” –, há precisamen- à volta da supressão, à volta do inalcançável. Da se dizer que somos muito “modernos”, ou porque talvez qualquer coisa desse universo nas magníficas
te demasiado corpo: olhos, mãos, “carne nua e supressão do desejo, ou da felicidade inalcançável, temos alguma coisa à venda. Sombras é um espec- cançonetas brasileiras, que, quando era adolescente,
ardente”… ou da felicidade oculta. A imagética dele é brutal. táculo escrito. Pouco interessa em que parte do invadiram a rádio portuguesa. Nos próprios palcos
Essencialmente, fui pelo lado menos celebratório da Ele é aquilo que o Ary dos Santos gostaria de ter corpo. É dramatúrgico, técnica e disciplinadamente. da Revista, tínhamos grandes saisons das compa-
“carne portuguesa”. [risos] Ou antes, fui pelo lado sido quando fosse grande. Não é nenhum sub-Llorca, nhias brasileiras, convém lembrar.
mais pudico dos portugueses – “Nós portugueses nenhum sub-Eugénio. É um poeta de uma veemên- Essa pretensa pluridisciplinaridade a que se re-
somos castos” está lá pelo meio –, tentando dar a cia rara. Normalmente, ficamo-nos pelo “Povo que fere é uma coisa que, normalmente, o irrita… Os compères evocam, pelo menos, a memória
entender que, no fundo, mesmo nas entrelinhas lavas no rio” e escapa-nos o que seja “Pedi-lhe, Muito. Mas aqui não se trata de dizer que sim, que das variedades…
da poesia renascentista se esconde uma profusa firmes, pálidos, inteiros / Dois ombros de marfim, tudo se cruza: a dança, a fala, a música, o vídeo, Sempre tive um fascínio kitsch, altamente repro-
sensualidade. A Castro ressoa corpo e sexo por toda por horizonte”, ou o “vinco, longo e azul, das tuas etc. Se aqui os fadistas ou os bailarinos dizem, é vável, pelas variedades. Sempre achei graça àquela
a parte, ao contrário do que a forma arcádica possa costas”. São imagens de uma sensualidade e ao apenas para permitir que, em determinados momen- coisa de agora entrar uma criatura e fazer uma
fazer pensar, e essa foi uma importante questão que mesmo tempo de um classicismo surpreendente, tos, o intérprete faça a derradeira coisa. Quando a coisa, e, em seguida, vir uma outra e mostrar uma

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diferente; agora, vem o ilusionista, depois a patina- cipação em Turismo Infinito. O facto de ser um a humildade fantástica de um grande artista e de por exemplo, a minha reacção imediata não é a
dora… Aliás, sempre achei que Portugal é um país criador italiano, apesar de tudo distante dos um grande amigo. de dizer: “É D. Pedro de Portugal”. A densidade da
de apresentadores. O país são os apresentadores. lugares-comuns do nosso imaginário, revelou- última cena do II Acto do Frei Luís de Sousa, que
Alguns políticos são verdadeiros compères. Anun- -se importante? Sombras é um espectáculo sobre coisas de Portu- é um absoluto prodígio de escrita dramática, seria
ciam a entrada desta vedeta e depois daquela, que A escolha do Fabio Iaquone teve que ver, antes gal. Mas, ao lermos o guião, encontrámos remis- fascinante em qualquer dramaturgia, em qualquer
infalivelmente nunca chegam a horas: os achados de mais, com a espantosa novidade que ele trouxe sões ao cabaré alemão, canções brasileiras, refe- parte do mundo. Qualquer pessoa que tenha o dra-
económico-sociais, os choques tecnológicos, as fu- à Castro, que era um espectáculo aparentemente rências aos Current 93 e a Kurt Weill, sugestões ma minimamente enunciado perceberá que é uma
sões, os aviões low-cost, etc. São rapazes treinados denso, fechado sobre o seu próprio idioma. Depois, de variações judaicas… Retomando uma célebre cena brutal, e reconhecerá a força verdiana que é a
para estar ao microfone. Este borrão que era o “acto foi a necessidade de criar uma dimensão em que não máxima de Goethe, pergunto-lhe: quem não co- dela. É verdade que implica com Alcácer-Quibir, com
de variedades” funcionava normalmente como um ficássemos à mercê dos corpos numa plataforma, nhece outra “língua” nada sabe da sua própria? D. Sebastião, com um marido tipicamente teimoso
escape altamente alienatório, sem qualquer critério em que a visualidade pudesse ser mais fluida, de Claro. Arriscamo-nos, aliás, a falar demais de Portu- que nunca conseguiu despertar desejo na mulher,
intrínseco, possuindo um capital de auto-esvazia- maneira a não impor um desenho, um perfil tão per- gal nesta entrevista, porque o espectáculo vai valer mas que, mesmo assim, vinte e um anos depois, re-
mento muito significativo. E o esvaziamento é uma manente e ritualizado como, por exemplo, acontecia e falar por si. Os materiais que o compõem são, de gressa pensando que vai dar finalmente a queca do
coisa que me seduz. Esta coisa do apresentador que no Cabelo Branco é Saudade, em que os intérpretes resto, vistos por um olhar, mesmo que apesar de século. Isso será português. [risos] Mas toda a gente
vem para fazer nada diz-me imenso. Há algo do ficavam inscritos quase graficamente contra aquele mim próprio, profundamente cosmopolita. O que captará a tensão que a cena é capaz de desencade-
teatro do absurdo nesta minha memória, não sei fundo e ali actuavam. Apesar de tudo, o espectá- inevitavelmente acontecerá é um espectáculo mui- ar por si. Começamos com coisas portuguesas, por
explicar-lhe bem. Tenho uma compulsão de trazer culo sublinhava o ritus tanto quanto a alegria e a to pouco português no seu estilo. O que ele tem razões de programa. Eu queria, de resto, fazer uma
aquelas criaturas de volta, não sei porquê, não sei comunicação. Aqui, estamos a tentar que isso não é muita coisa portuguesa, o que é bem diferente. última incursão no fado, indo por outras palavras,
realmente para quê. Foi engraçado ver, no ensaio de aconteça, que haja uma espécie de território outro Nunca achei que valesse a pena pensar sequer em pelo Pedro Homem de Mello, pelo Fernando Pessoa.
ontem, o Pedro Almendra e o Pedro Frias a fazer os no qual estas coisas depois entram. Não estão lá nós próprios se não pensarmos nos outros. Desde E achei que era altura de cruzar o fado com os gran-
apresentadores, porque, a dada altura, ensaiámos antes: acedem a ele. É como se tivéssemos montado miúdo, desde os caramelos de Badajoz, que acho que des textos dramáticos que trabalhámos, em vez de
um exercício de perda de memória: entram em cena, o dispositivo todo com o Fabio, antes mesmo de não conseguimos existir dentro das nossas próprias o cruzar apenas, como antes fizemos, com outras
começam a apresentar, mas esquecem-se do que ensaiarmos essas coisas. portas, a não ser com alguma dor e alguma infe- formas de expressão popular. O que se tenta aqui
têm para dizer, já não sabem bem quem foi o autor, licidade. Aliás, temos no espectáculo aqueles dois é uma espécie de nivelamento, no melhor sentido,
não se recordam do ano da canção, e desaparecem.Ao contrário do que sucedeu em muitos dos seus episódios – “Quando a gente vai ‘lá fora’” e “Quando da palavra. Depois de todos estes anos, podemos fi-
É preciso ver que tudo o que neste espectáculo éespectáculos, a cenografia não comporta pro- a gente volta ‘a casa’” – que, por si, já dirão alguma nalmente sentar-nos todos à mesma mesa. De facto,
óbvio é completamente metafísico. As variedades priamente uma metáfora cénica, como acontecia coisa. Sombras é, afinal, um espectáculo em várias é um espectáculo à mesa, mas o menu pode muito
com o D. João ou o Turismo Infinito. Pretende-se
são metafísicas, o cabaré é metafísico. Não no sen- línguas. Quando ouço aquelas passagens da Castro, bem ser nouvelle cuisine.
sobretudo um dispositivo mais neutro de acolhi-
tido filosófico da métaphysique, mas no sentido eti-
mológico: caminha-se para uma corporização que mento ou recepção? Acolhimento da “orquestra”,
dos bailarinos, recepção das projecções vídeo…
realmente nunca se quis. Digamos que a realização
física e pluridimensional do “acto de variedades”, dos
Acho que vai reflectir muito mais do que nos parece
apresentadores, ou desta ou daquela coisa em parti-
à primeira vista. Não há nada de neutro naquela
cular, acaba por ser um exercício perdido à partida.
plataforma (que é uma espécie de pontão, de cais),
É uma espécie de ratoeira que armamos ao nosso nem naquele ecrã, nem naquela cortina. Acho até
imaginário. “Vê se te lembras que sentido é que isto
que vai ser uma coisa entre o negrume e o flashy.
fazia…” E nunca fez… Estou certo de que nunca fez.
O que se pretendeu foi que houvesse, por um lado,
espaço para a imagem electrónica viver e respirar
“ sombras é , afinal , um espectáculo em várias sem constrangimento, mas também sem exibição;
línguas.” por outro, que se gerasse aquela espécie de cosiness
de palco que nos permite ainda estar em convivên-
Volta agora a contar com Fabio Iaquone, depois cia com aquelas personagens. Foi esse equilíbrio
de se ter gorado a possibilidade da sua parti- que o Nuno tentou encontrar, e encontrou-o com

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Ricardo Pais com que as imagens “evanescentes e Manu Katché, Dino Saluzzi, Julian Ar- em atelier próprio, no âmbito da ar- trabalhado especialmente com os en- de Buenos Aires, de Piazzolla/Horacio
Nasceu em 1945. Foi Director do Tea- fantasmáticas” (Lara Nicoli) se articu- güelles e Django Bates. Trabalhou com quitectura, design, cenografia e mul- cenadores Nuno Carinhas – refiram- Ferrer (2006), e O Castelo do Duque
tro Nacional São João entre 1996 e lavam com a encenação, funcionando Ricardo Pais em Raízes Rurais. Paixões timédia. Tem participado em inúmeras -se os recentes Tambores na Noite de Barba Azul, de Béla Bartók (2007).
2009, com um interregno de dois como “um formidável mecanismo me- Urbanas (1997). “Mário Laginha não exposições individuais e colectivas, Brecht (2009) e Antígona de Sófocles
anos. Do seu percurso de encenador, tafórico” (Bruno Di Marino). Ganhou, tem já nada a provar a ninguém. Com com trabalhos que lhe valeram vários (2010) – e Nuno M Cardoso. Colaborou Diogo Clemente
iniciado em Londres em 1972, fazem entre outros prémios, o Pixel Movie elegância, tem vindo a desenvolver prémios e destaques em diversas pu- pela primeira vez com Ricardo Pais ao É integralmente fadista: toca viola,
parte mais de 50 espectáculos tea- Award. uma carreira feita de verdade, rigor blicações nacionais e internacionais. desenhar a luz do concerto de Rabih compõe e escreve fados. Começou a
trais e criações cénicas. Sem progra- e uma rara sensibilidade musical” Trabalhou pela primeira vez com Ri- Abou-Khalil Group com Ricardo Ribei- tocar viola de fado em 1998, com 13
mar, acabou por se ocupar da mais Luca Attilii (Público, 21Jun2010). cardo Pais há vinte anos (Minetti, de ro e Tânia Oleiro (2007). anos apenas. Desde então, tem co-
alta literatura em língua portuguesa, Artista plástico e videasta italiano, Thomas Bernhard, Teatro Nacional laborado com grandes intérpretes do
trabalhando autores como Fernando formou-se em Design Gráfico e Indus- Paulo Ribeiro D. Maria II, 1990). Entre outras cola- Francisco Leal fado: Argentina Santos, Beatriz da
Pessoa, Padre António Vieira, Almeida trial e tornou-se especialista em com- Iniciou a sua carreira em França e na borações com o encenador, destaque- Responsável pelo Departamento de Conceição, Carlos do Carmo, Mariza,
Garrett, António Ferreira e Gil Vicen- posição digital e novas tecnologias. Bélgica, nos anos 1980. Compôs obras -se o espectáculo Mandrágora, que lhe Som do TNSJ, tem assinado múltiplos entre tantos outros. Tem também
te. A palavra, a língua e a literatura Trabalhou com encenadores como Al- para diversas estruturas de renome, valeu em 1993 o prémio para Melhor trabalhos de sonoplastia em peças de trabalhado com músicos estrangei-
tornaram-se, aliás, o eixo ético de fredo Arias e Lorenzo Mariani, com as nacionais e internacionais: Ballet Cenografia, atribuído pela Associação teatro ao longo de mais de 20 anos, ros de grande projecção, como Chico
toda a sua acção, quer como encena- cantoras Antonella Ruggiero e Ivanna Gulbenkian, Nederlands Dans Thea- Portuguesa de Críticos de Teatro. a par de espectáculos de música. Em Buarque, Dominic Miller ou Concha
dor quer como Director do TNSJ. Vê-se Gatti, entre outros. Especialmente im- ter, Grand Théâtre de Genève, Ballet 2003 – ano em que assinou o desenho Buika. Entre os palcos em que tem
como “encenador de música”, tendo portante revelou-se o encontro com de Lorraine, entre outras. Fundou a Bernardo Monteiro de som de espectáculos como Castro actuado, contam-se o Carnegie Hall,
nela encontrado uma fabulosa capa- Fabio Iaquone, em 2004, com quem Companhia Paulo Ribeiro em 1995, Colaborador permanente da ASSé- e um Hamlet a mais, encenações de Walt Disney Concert Hall, Paulau de
cidade de libertação de imaginários fundou o IaquoneAtilli Studio, crian- para a qual já assinou quase duas DIO, concebeu os figurinos da quase Ricardo Pais –, foi-lhe atribuída uma la Musica, Royal Albert Hall, Barbi-
cénicos: citem-se os casos de Raízes do objectos de video-arte, video-clips, dezenas de coreografias, e dirigiu o totalidade dos seus espectáculos a Menção Especial pela Associação Por- can, etc. Na altura em que assegurou
Rurais. Paixões Urbanas, um retrato instalações, performances e espectá- Ballet Gulbenkian entre 2003 e 2005. partir de 2000. Desde 2006, colabora tuguesa de Críticos de Teatro, “um a direcção musical de Cabelo Branco
melódico de Portugal encomendado culos, como Matematico e Impertinen- Tem sido galardoado com múltiplos regularmente com o Ensemble. Tem prémio para distinguir a contribuição é Saudade (2005) de Ricardo Pais, o
pela Cité de la Musique, com direcção te, com o célebre matemático e lógico prémios. Das suas colaborações com assinado os figurinos para múltiplas sensível e inovadora de Francisco Leal crítico João Lisboa observou: “Diogo
musical de Mário Laginha (1998), e de italiano Piergiorgio Oddifreddi. Ricardo Pais, destaque-se a participa- produções do TNSJ. Em 2010, pelo tra- para o desenvolvimento e renovação Clemente. Dezanove anos. Na realida-
Cabelo Branco é Saudade (2005), onde ção em Fados (1994). No final do ano balho realizado para Tambores na Noi- das linguagens cénicas em Portugal”. de, com a idade inteira do fado que
deu a ver o Fado tal como era cantado Mário Laginha passado, a crítica francesa saudou o te e Breve Sumário da História de Deus continuamos sem saber exactamente
antes de se ter tornado espectáculo. A sua casa é o jazz, mas recusa en- “regresso triunfante” do coreógrafo a – encenações de Nuno Carinhas –, João Henriques qual é”.
cerrar-se lá dentro. Na sua música po- Paris, destacando o facto de as suas foi-lhe atribuída uma Menção Especial “Um colaborador de luxo, profundo
Fabio Iaquone demos encontrar quase tudo, porque peças “não terem uma única ruga”, da Associação Portuguesa de Críticos conhecedor da voz e do canto, amante Manuel Tur
Videasta italiano, formou-se no Cen- não fecha as portas a quase nada. Com bem como “o seu talento para uma de Teatro, que assim distinguiu um letrado de todos os géneros teatrais.” Nasceu em 1985. Licenciado em
tro Sperimentale di Cinematografia de mais de uma dezena de discos, o duo geometria coreográfica atravessada percurso que se “tem vindo a afirmar Foi assim que Ricardo Pais descreveu Teatro/Interpretação pela Escola
Roma. Opera na cena artística inter- com a cantora Maria João resultou por fulgurações”. “Ver em grande, mas de forma segura no panorama do tea- João Henriques, com quem, em 2004, Superior de Música e das Artes do
nacional desde os anos 1980, distin- num dos casos mais originais da ac- também atentar nos detalhes, é uma tro português, muito particularmente dirigiu Sondai-me! Sondheim. Forma- Espectáculo, estreou-se profissio-
guindo-se como um dos mais inventi- tual música portuguesa. Gravou discos das suas especialidades” (Le Monde, desde a criação dos figurinos de UBUs, do em Canto pela Escola Superior de nalmente como actor em 2003, num
vos pioneiros da arte multimédia e do com Bernardo Sassetti e Pedro Bur- 30Nov2009). na encenação de Ricardo Pais”. Música de Lisboa e pós-graduado em espectáculo de Luís Mestre. Dos es-
uso do vídeo em teatro. Tem trabalha- mester, e criou o Trio Mário Laginha Teatro Musical pela Royal Academy pectáculos em que tem participado,
do com destacados encenadores, em com o contrabaixista Bernardo Mo- Nuno Lacerda Lopes Rui Simão of Music (Londres), trabalha no TNSJ refira-se That Pretty Pretty, ou a Peça
especial com Giorgio Barberio Corset- reira e o baterista Alexandre Frazão. É doutorado em Arquitectura pela Fa- Nasceu em Lisboa, em 1971. Direc- desde 2003, assegurando a preparação de Violação, de Sheila Callaghan, en-
ti, Robert Wilson e Ricardo Pais. Dos Tem tocado e gravado com músicos culdade de Arquitectura da Universi- tor de Palco do TNSJ, realizou para o vocal e elocução de múltiplas produ- cenado por Nuno M Cardoso (Teatro
vídeos criados para Castro (2003), a excepcionais, como Wayne Shorter, dade do Porto. Divide a sua actividade ciclo de concertos O Piano Agarrado ções. Assinou, nos últimos anos, a di- Oficina/O Cão Danado e Companhia,
crítica italiana destacou o “equilíbrio Wolfgang Muthspiel, Trilok Gurtu, profissional entre o ensino na FAUP e pela Cauda o seu primeiro trabalho recção cénica de várias produções do 2009). Tem assinado trabalhos de
perfeito” e a “precisão milimétrica” Gilberto Gil, Lenine, Ralph Tower, o trabalho criativo que desenvolve, de desenho de luz (TNSJ, 2006). Tem TNSJ e da Casa da Música, como María encenação para a companhia A Tur-

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ma, de que é co-fundador. Sombras 2007, o Prémio Revelação. Defensora participou em A Bela e o Paparazzo, Francisco Rousseau Jazz um dos melhores discos de jazz seus repertórios. Dos concertos que
assinala a primeira colaboração com do fado na sua forma mais tradicional, de António-Pedro Vasconcelos. Em Foi durante duas décadas bailari- de 2006: “De onde quer que esta mú- realizou, mencione-se o recital a solo
Ricardo Pais. tem por principais referências Lucília 2009, co-fundou a Bastidor Público, no do Ballet Gulbenkian. Trabalhou sica venha, faz-nos querer ir lá – e na Casa da Música, em Outubro de
do Carmo e Beatriz da Conceição. estrutura de investigação, formação com vários dos mais importantes ela simplesmente arrebata-nos”. 2009, a propósito do qual a crítica
José Manuel Barreto e criação artística. coreógrafos da cena internacional, lhe destacou a “superioridade de
O fado apresentou-se cedo a José Emília Silvestre como Hans van Manen, Jirí Kylián, Carlos Piçarra Alves execução” e o “ousado repertório”.
Manuel Barreto, quando ainda pe- Licenciada em Línguas e Literaturas Pedro Frias Paul Taylor, Nacho Duato, William É director artístico do Festival Inter- Desde 2007, estuda Composição com
queno, na casa da avó, ouvia pelo Modernas pela Faculdade de Letras do Nasceu no Porto, em 1980. O seu Forsythe, entre muitos outros. No nacional de Música de Paços de Bran- Dimitris Andrikopoulos. É licenciado
rádio os fadistas que foram talvez a Porto, é um dos elementos fundado- percurso é híbrido: bacharel em Jor- panorama nacional, destaque-se a dão, solista da Orquestra Nacional do em Direito pela Universidade Católica
sua primeira inspiração. Com apenas res do Ensemble – Sociedade de Acto- nalismo pela Escola Superior de Jor- colaboração com Vasco Wellenkamp Porto, professor de clarinete e mem- Portuguesa.
13 anos, foi convidado a actuar na res. Para além de um vasto percurso nalismo do Porto, estudou teatro na e Paulo Ribeiro, bem como com a bro da Direcção Artística da Escola
Grande Noite do Fado, realizada no teatral, em que se destaca a parti- Escola Superior de Música e das Artes Companhia Olga Roriz. Paralelamen- Superior de Música e Artes Aplicadas Paulo Faria de Carvalho
Coliseu dos Recreios. Nos anos que cipação em diversos espectáculos de do Espectáculo; é actor, trabalhando te, tem desenvolvido uma carreira de Castelo Branco. É também artis- Nasceu em 1971, no Porto. Aos 13
se seguiram, percorreu várias casas Ricardo Pais, tem trabalhado em te- especialmente com o TNSJ e as com- nas artes plásticas como pintor, ex- ta e professor convidado da Arizona anos começou os seus estudos de
de fado de Lisboa, uma deambula- levisão e exercido funções docentes. panhias ASSéDIO e Mau Artista (de pondo regularmente o seu trabalho State University. Actua nas princi- viola; aos 19 iniciou a sua carreira
ção que lhe permitiu conhecer de Em 2008, após as “prestações me- que é co-fundador), mas trabalha em galerias nacionais e estrangeiras. pais salas de concerto portuguesas e profissional. Tem actuado nas casas
perto Fontes Rocha, Francisco Pe- moráveis” em O Cerejal de Tchékhov também como cantor, participan- Volta a participar num espectáculo desenvolve uma intensa carreira in- de fado do Porto e participado em
rez “Paquito”, Pedro Leal e Alfredo (enc. Rogério de Carvalho) e Turismo do em produções musicais e discos de Ricardo Pais, depois de na déca- ternacional, solística e de música de concertos por todo o país, acompa-
Marceneiro. Em meados da década Infinito de Ricardo Pais, a Associação infantis. No cinema, destaque-se a da de 1980 ter integrado o elenco de câmara. No disco Recital in the West nhando muitos fadistas de renome,
de 1980, decidiu, por fim, gravar o Portuguesa de Críticos de Teatro atri- participação em Une Nuit de Chien, Só Longe Daqui (Vasco Wellenkamp/ (2010), gravado nos EUA com Caio entre os quais se contam Fernando
disco de estreia: Amor Presente. O se- buiu-lhe uma Menção Especial, des- de Werner Schroeter (2008). Traba- Ricardo Pais) e Presley ao Piano (Olga Pagano, a imprensa norte-americana Maurício, Fernando Machado Soares,
gundo disco, Fado de Santa Luzia, foi tacando “a desenvoltura, a inequí- lhou pela primeira vez com Ricardo Roriz/Ricardo Pais). encontrou “a melhor interpretação Beatriz da Conceição e António Pinto
editado em 2001. Mantendo intacta voca versatilidade, o domínio vocal Pais em 2008, integrando o elenco de da primeira sonata de Brahms […]. Bastos. Das salas de concerto em que
a sua ligação às casas de fado, deu ímpar, a plasticidade” e “um apurado O Mercador de Veneza. Mário Franco Carlos Alves extrai do clarinete um actuou, mencione-se o Palácio dos
concertos em grandes eventos, como sentido de composição que dá à ac- Bailarino, contrabaixista e compo- som belíssimo e perfeito. O som pre- Congressos de Estrasburgo. Actua
a Expo‘98 e o Porto 2001, e em salas triz o recorte vibrante dos gigantes”. Carla Ribeiro sitor. É bailarino da Companhia Na- cioso e elegíaco que inspirou Brahms regularmente no restaurante O Fado.
de concerto em Nova Iorque (World Iniciou os seus estudos de dança cional de Bailado desde 1986, tendo a compor música para clarinete até ao
Music Institute) e na Broadway. Pedro Almendra clássica e moderna com Igor Ivanoff trabalhado com grandes mestres de final da vida” (Arizona Republic, Ju- Albano Jerónimo
Nasceu em 1976. Licenciou-se em Tea- e Madalena Victorino e formou-se na dança clássica. Dançou grande parte lho de 2010). Trabalhou com Ricardo Formou-se na Escola Superior de Tea-
Raquel Tavares tro pela Escola Superior de Música Escola Superior de Dança. Entre 1995 do repertório da CNB, onde se des- Pais, musicando ao vivo D. João de tro e Cinema e estreou-se profissio-
A mãe é do Bairro Alto, o pai da Moura- e das Artes do Espectáculo. Encon- e 1998, trabalhou com a Companhia tacam coreografias de George Ba- Molière e Figurantes de Jacinto Lucas nalmente em 2001. Desde então, tem
ria. Nasceu num outro bairro típico de tra-se ligado ao TNSJ desde 2003, Olga Roriz, participando em quase lanchine, Kenneth MacMillan, Lar Pires. trabalhado com encenadores como
Lisboa: o Bairro do Alto do Pina. Vive trabalhando especialmente com os uma dezena de criações coreográfi- Lubovitch, Michael Corder, Robert Fernanda Lapa, Cristina Carvalhal,
agora onde o Fado mora – Alfama –, encenadores Ricardo Pais e Nuno Ca- cas. Destaca-se ainda a colaboração North, Olga Roriz, entre muitas ou- Miguel Amaral Diogo Infante, Isabel Medina, John
onde canta na Casa de Linhares. Aos rinhas, entre outros. Dirigido por Ri- com companhias como a Pigeons tras. Como músico, opera em vários Nasceu no Porto, em 1982. Estudou Retallack, Tiago Guedes, João Mota,
12 anos, venceu a Grande Noite do cardo Pais, protagonizou D. João, de International, O Útero, A Torneira e âmbitos e géneros. Compõe também guitarra portuguesa com Samuel Ca- Nuno Carinhas e Rui Mendes. É pre-
Fado de 1997. Quase uma década de- Molière (2006), espectáculo que lhe O Bando. Entre os criadores com para teatro e dança: mencione-se a bral e José Fontes Rocha. Em 2005, sença regular na televisão, partici-
pois, edita o seu primeiro disco, com granjeou amplos elogios na imprensa quem tem trabalhado, contam- colaboração com o encenador Nuno iniciou-se profissionalmente como pando em várias séries e telenovelas.
produção de Jorge Fernando, e em italiana, e integrou o elenco de ou- -se Nuno Carinhas, Paula Massano, Carinhas e os coreógrafos David Fiel- guitarrista acompanhador de fados. Estreou-se no cinema em 2003, com
2008 lança o álbum Bairro, produzido tros tão emblemáticos como Turismo Susana Vidal, entre muitos outros. ding, Cláudia Nóvoa ou Rui Horta. O Tem-se dedicado à vertente solista Luís Fonseca, tendo depois trabalha-
por Diogo Clemente. A crítica desta- Infinito (2007). Em cinema, prota- Paralelamente à actividade artística, seu disco This Life, em que partici- da guitarra portuguesa, trabalhando do com os realizadores José Fonse-
cou “a maturidade na voz e no estilo” gonizou a curta-metragem Acordar, lecciona em várias instituições, no- pou o saxofonista David Binney, foi com Ricardo Rocha e Pedro Caldeira ca e Costa, João Farinha, Francisco
e a Casa da Imprensa atribuiu-lhe, em de Tiago Guedes e Frederico Serra, e meadamente no Forum Dança. considerado pela revista All About Cabral e dedicando-se ao estudo dos Manso, Gonçalo Galvão Telles, Miguel

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Gaudêncio e Marco Martins. No TNSJ, são (TNSJ, 2006) e A Cantora Careca Teresa Madruga teatro nacional são joão, e.p.e. Joaquim Ribeiro, Júlio Cunha, Cristina Carvalho Imprensa Ana
trabalhou primeiro com Ricardo Pais, (TEUC, 2008). Estreou-se como actriz em 1976. Tra- Abílio Barbosa, Carlos Coelho, José Almeida Promoção Patrícia Carneiro
em O Mercador de Veneza (2008), e balhou com Ricardo Pais no final da conselho de administração Pêra, Manuel Vieira, Paulo Rodrigues Oliveira Centro de Documentação
depois com Nuno M Cardoso, em Emi- João Reis década de 1970 e princípio da déca- Francisca Carneiro Fernandes Técnicas de Limpeza Beliza Batista, Paula Braga Design Gráfico João
lia Galotti (2009). Estreou-se como actor em 1989. Com da de 1980. O seu desempenho em (Presidente), Salvador Santos, Bernardina Costa, Delfina Cerqueira Faria, João Guedes Fotografia
um muito expressivo percurso teatral Ninguém: Frei Luís de Sousa mereceu José Matos Silva Assessora da e Realização Vídeo João Tuna
António Durães (destaque-se a relação mantida com o elogio da crítica: “Teresa Madruga Administração Sandra Martins direcção de palco Rui Simão Relações Públicas Luísa Corte-Real
Actor profissional desde 1984, é pro- o TNSJ e encenadores como Ricardo – Maria, pois o espectáculo é quase Secretariado da Administração Paula Adjunto do Director de Palco Assistente Rosalina Babo Frente
fessor de teatro na Escola Superior Pais e Nuno Carinhas), tem traba- só ela. […] Domina a cena com auto- Almeida Motoristas António Ferreira, Emanuel Pina Assistente Diná de Casa Fernando Camecelha
de Música e das Artes do Espectá- lhado igualmente em cinema e tele­ ridade e poder dramático” (O Jornal, Carlos Sousa Economato Ana Dias Gonçalves Departamento de Cena Coordenação de Assistência de Sala
culo. Desde 1998, trabalha regular- visão. Estreou-se na encenação em 19Jan1979). Trabalhou com muitos Pedro Guimarães, Cátia Esteves, Jorge Rebelo (TNSJ), Patrícia
mente no TNSJ. Destaque-se a sua 1999, no TNSJ, experiência que reto­ outros encenadores e companhias, direcção artística Nuno Carinhas Ricardo Silva Departamento Oliveira (TeCA) Coordenação
recente interpretação de Shylock em mou em 2009, no Teatro Municipal com destaque para Luis Miguel Cin- Assessor Nuno M Cardoso de Som Francisco Leal, António de Bilheteira Sónia Silva (TNSJ),
O Mercador de Veneza, encenado por Maria Matos. O crítico e investigador tra e o Teatro da Cornucópia. Tem Bica, Joel Azevedo, João Carlos Patrícia Oliveira (TeCA) Bilheteiras
Ricardo Pais (2008), e de Creonte na teatral Paulo Eduardo Carvalho assi- uma expressiva carreira no cinema, pelouro da produção Oliveira Departamento de Luz Fátima Tavares, Manuela
Antígona de Sófocles, encenada por nalou: “Os seus extraordinários tra- tendo participado em filmes de An- Salvador Santos Filipe Pinheiro, Abílio Vinhas, Albuquerque, Sérgio Silva
Nuno Carinhas (2010). Tem colabo- balhos de 1998, o Professor em As Li- tónio-Pedro Vasconcelos, Manoel de coordenação de produção Maria José Rodrigues, António Pedra, Merchandising Luísa Archer Fiscal
rado com muitos outros encenadores ções e o Bobo Festa em Noite de Reis, Oliveira, João César Monteiro, João João Teixeira Assistentes Eunice José Carlos Cunha, Nuno Gonçalves de Sala José Pêra Bar Júlia Batista
e companhias (ASSéDIO, Ensemble, a que se poderiam juntar as suas Mário Grilo, João Botelho, entre Basto, Maria do Céu Soares, Mónica Departamento de Maquinaria
Companhia de Teatro de Braga, Tea- interpretações das personagens de outros. Protagonizou Dans la Ville Rocha Filipe Silva, António Quaresma, pelouro do planeamento

tro da Rainha, etc.), bem como com os Hamlet [2001 e 2004] e de Dom Ubu Blanche, filme realizado por Alain Adélio Pêra, Carlos Barbosa, Joaquim e controlo de gestão

realizadores Paulo Rocha e Saguenail. [2005], ficarão certamente como al- Tanner que lhe trouxe amplo reco- direcção técnica Carlos Miguel Marques, Joel Santos, Jorge Silva, Francisca Carneiro Fernandes
Estreou-se na encenação em 1995, guns dos mais inolvidáveis exercícios nhecimento internacional. Trabalhou Chaves Assistente Liliana Oliveira Lídio Pontes, Paulo Ferreira Coordenação de Sistemas
e tem assinado espectáculos tea- de composição e versatilidade do tea- em rádio, para programas da RDP, e Departamento de Cenografia Teresa Departamento de Vídeo Fernando de Informação Sílvio Pinhal
trais, músico-cénicos e óperas. Des­­ tro português das últimas décadas” participou na dobragem de desenhos Grácio Departamento de Guarda- Costa Assistente Susana de Brito
taquem-se Variações Sobre a Perver- (Ricardo Pais: Actos e Variedades). animados. -roupa e Adereços Elisabete Leão Informática Paulo Veiga
Assistente Teresa Batista Guarda- pelouro da comunicação e relações

-roupa Celeste Marinho (Mestra- externas José Matos Silva direcção de contabilidade

-costureira), Isabel Pereira, Nazaré Assistente Carla Simão Relações e controlo de gestão Domingos

Fernandes, Virgínia Pereira Adereços Internacionais José Luís Ferreira Costa, Ana Roxo, Carlos Magalhães,
Guilherme Monteiro, Dora Pereira, Assistente Joana Guimarães Edições Fernando Neves, Goretti Sampaio,
Nuno Ferreira Manutenção João Luís Pereira, Pedro Sobrado, Helena Carvalho

Retratos pela seguinte ordem Ricardo Pais, Fabio Iaquone, José Manuel Barreto, Raquel Tavares,
Luca Attilii, Mário Laginha, Emília Silvestre, Pedro Almendra,
Paulo Ribeiro, Nuno Lacerda Lopes, Pedro Frias, Carla Ribeiro, Francisco
Bernardo Monteiro, Rui Simão, Rousseau, Mário Franco, Carlos
Francisco Leal, João Henriques, Piçarra Alves, Miguel Amaral e Paulo
Diogo Clemente, Manuel Tur, Faria de Carvalho

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ficha técnica tnsj agradecimentos edição Departamento de Edições

Coordenação de produção Maria Teatro Municipal de Almada do TNSJ


João Teixeira Mr. Piano Coordenação Pedro Sobrado
Assistência de produção Eunice Pianos Rui Macedo Documentação Paula Braga
Basto, Maria do Céu Soares, Direcção Regional de Agricultura Design gráfico FBA.
Mónica Rocha de Entre-Douro e Minho Fotografia Fabio Iaquone/
Direcção técnica Carlos Miguel (Eng. Costa Leme, Eng.a Zulmira Luca Attilii (imagens de vídeo),
Chaves Lopes, Carolina Teles, Maria Emília João Tuna (retratos)
Direcção de palco Rui Simão Oliveira, Joaquim Ferreira) Impressão Gráfica Maiadouro
Direcção de cena Pedro Guimarães Museu da Rádio (Dr. Paulo
Cenografia Teresa Grácio (Coor­de­ Figueiredo, Manuel Lopes) teatro nacional são joão

nação); Josué Maia (Construção) Papelaria Progresso Praça da Batalha


Guarda-roupa e adereços Docapesca (Dr. Vasco Fernandes, 4000-102 Porto
Elisabete Leão (Coordenação); Dr.a Elisabete Almeida e Silva, T 22 340 19 00
Teresa Batista (Assistência); José Adriano) F 22 208 83 03
Celeste Marinho (Mestra-costurei- Junta de Freguesia de Vairão,
ra); Adelaide Marinho, Esperança Vila do Conde (Serafim Fernandes) teatro carlos alberto

Sousa, Nazaré Fernandes, Maria Alina Maria Pontes, Unipessoal Lda. Rua das Oliveiras, 43
Alice Vale, Virgínia Pereira (Alina Pontes, Lurdes Azevedo, 4050-449 Porto
(Costureiras); Isabel Pereira Patrícia Azevedo, Conceição Bela, T 22 340 19 00
(Adereços de guarda-roupa); Dora Albertina Oliveira, São Faria, Maria F 22 339 50 69
Pereira, Guilherme Monteiro José Gomes, Emília Costa, Delmira
(Adereços); Ana Novais (Pesquisa Trindade, Susana Almeida, Fátima mosteiro de são bento da vitória

de materiais) Serra, Alice Silva) Rua de São Bento da Vitória


Luz Filipe Pinheiro (Coordenação), Hotel D. Henrique (João Moreira) 4050-543 Porto
José Carlos Cunha, José Rodrigues Assírio & Alvim T 22 340 19 00
Maquinaria Filipe Silva (Coorde- Polícia de Segurança Pública F 22 339 30 39
nação), Joaquim Marques, Paulo
Ferreira Não é permitido filmar, gravar www.tnsj.pt
Som Francisco Leal (Coordenação), ou fotografar durante o espectáculo. geral@tnsj.pt
Joel Azevedo, Nuno Correia O uso de telemóveis, pagers ou reló-
Vídeo Fernando Costa gios com sinal sonoro é incómodo,
Maquilhagem Marla Santos tanto para os intérpretes como para
Fotografia João Tuna os espectadores.

parceiros media apoios à divulgação apoios

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O vendedor de peixe transportava. Mas pareceu-me que ele acrescenta-
Ernst Jünger va a esta palavra qualquer coisa em voz bastante
baixa; e assim aproximei-me tanto dele que era
Ponta Delgada como a sua sombra.
Os Açores – uma cadeia de vulcões que se eleva no Na realidade, depois de ele ter acabado de lançar
bordo extremo da Europa. Desde manhã cedo que o seu apelo sonoro, ouvi-o murmurar ainda num
ando – pelos jardins, nos quais o olhar descobre sussurro qualquer coisa que era talvez uma jacula-
as flores de um mundo novo, pelos campos que tória ou praga de cansaço. Pois ninguém saía das
são circundados por muros de lava escura, e pela casas, nem nenhuma janela se abria.
floresta alta de loureiros. Só quando o sol se en- Andámos assim pelas ruelas escaldantes durante
contrava a pique é que regressei ao porto. bastante tempo, para oferecer peixes que nin-
As ruas encontravam-se silenciosas à luz do meio- guém queria. E durante muito tempo, escutei as
-dia; só ao longe ouvi um chamamento cheio de suas duas vozes, aquela que ressoava ao longe,
alegria, frequentemente repetido, e senti vonta- exuberante e apregoadora, e a outra, o monólogo
de de o seguir. Em breve vi um homem andrajoso, baixo e desesperado. Segui-o deste modo com uma
que trazia uma carga de peixes já completamente curiosidade ávida, pois sentia bem que aqui já não
inertes pelos altos e baixos das ruelas estreitas e se tratava de peixes, mas sim que ouvia sobre esta
adormecidas, que mal tinham uma sombra apesar ilha perdida o canto do homem – a sua canção
de um dragoeiro e de uma araucária. Aproximei-me simultaneamente em voz alta, vangloriando-se, e
por detrás, sem que ele me visse, e senti prazer em voz baixa, suplicando.
em escutar o seu apelo magnífico e musical. Ele
gritava uma palavra portuguesa que me era desco- In O Coração Aventuroso (1938). Trad. Cristina Pontes.
nhecida, talvez se tratasse do nome dos peixes que Lisboa: Cotovia, 1991, p. 186-187.

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