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Programa de Pós-Graduação em Letras/Estudos Literários – PPGL

Disciplina: Representações da Alteridade na Literatura Brasileira.

Professor: Antônio Wagner

Análise Comparativa das Obras “Morte e Vida Severina de João Cabral de Melo
Neto e A Aldeia do Silêncio de Freei Betto”.

Aluna: Maria de Lourdes Lima

A mais famosa obra de João Cabral de Melo Neto, Morte e Vida Severina,
aborda a temática da seca nordestina por meio da visão dos retirantes que fazem o
percurso entre o rio Capibaribe e Recife. O livro foi escrito em 1955, período em que
Juscelino Kubitschek havia criado seu projeto de modernização do país. João Cabral dá
voz ao homem pobre buscando ver essa realidade do ponto de vista do outro. Revela-se,
então, a percepção de que essa modernização não incluiu as classes trabalhadoras e os
mais pobres.

Severino, desde o início é representado como apenas “mais um”. “Somos muitos
Severinos, iguais em tudo na vida”, escreve João Cabral, que, na obra, tenta explicar a
condição periférica do país que só e lembrada na hora das estatísticas, ou como massa
de manobra para ganhar eleições. Logo no início da obra, já se apresenta uma crise de
identidade em que ora Severino é ele mesmo, ora ele é Severino povo retirante, não
mais pertencendo a si.

- O meu nome é Severino, não tenho outro de pia. Como


há muitos Severinos, que é Santo de Romaria, deram então
de me chamar Severino de Maria; {...} Somos muitos
Severinos iguais em tudo na vida: (CABRAL, 2000:13)

Severino, em sua viagem como retirante, tenta sair da sua condição de miséria e
morte, provocada pela seca, em busca de uma vida melhor, para o litoral pernambucano,
na ilusão de que o verde de lá o permitiria desviá-lo de sua sina em sua “peregrinação”.

No entanto, os constantes encontros com a morte faz com que ele perceba que a “Vida
Severina” é seu destino, por ser vitima de um sistema social e não do geográfico.
A jornada de Severino marcada pela certeza da morte e a incerteza da vida
autoriza o conceito de Bauman (2005, p.8), segundo o qual “A vida líquida é uma vida
precária, vivida em condições de incerteza constante”.

Severino se desloca da Serra da Costela para o Recife, em busca de uma vida


melhor e que, ironicamente, acaba por encontrar-se, constantemente, com a morte. O
seu primeiro encontro na sua trajetória é com os “irmãos das almas”, lavradores que
conduzem ao cemitério um “Severino” morto por latifundiários, numa emboscada, por
ter um pedaço de terra.
Segue sua viagem tendo como guia o rio Capiberibe, até presenciar a seca,
perdendo-se no caminho. Passa por um lugarejo e ouve uma cantoria vinda de uma casa.
Curioso, entra para ver o que estava acontecendo, encontra regadeiras, cantando um
canto fúnebre, em honra a outro Severino morto.
Nesse mesmo lugarejo, avista uma casa que lhe parece pertencer a uma pessoa
razoavelmente abastada e, conversando com a moradora à janela, pede emprego, mas
percebe que as funções que encontraria espaço ali seriam apenas aquelas ligadas à

morte, como rezadeira e coveiro.

Severino, na sua caminhada passa pela Zona da Mata, região muito próspera, no
interior do sertão. Deslumbra-se com a natureza verdejante do lugar, mas a morte ali
também prospera. Ao testemunhar o funeral de um lavrador que se realiza no cemitério
local frustra-se e prossegue sua viagem. Chega, então, ao Recife, cansado, senta-se ao
pé do muro de um cemitério e ouve o diálogo entre dois coveiros. Um, de um cemitério
de pessoas mais abastadas (Santo Amaro), o outro responsável pelo enterro de retirantes
(Casa Amarela), onde a morte era constante e sem floreios. Nesse momento da obra,
Severino reflete sobre o que seria melhor, lutar pela vida ou deleitar-se na morte. Pensa
em suicídio, pretendendo atirar-se em um dos rios que cortam a cidade.
A caminhada do retirante permite uma reflexão sobre o território brasileiro que
é composto historicamente, como um país multiétnico, de imensa pluralidade cultural.
A constatação de tamanha diversidade, implica em se ter a clareza de que os fatores
que constituem uma identidade não se constituem por uma rigidez, mas pelo contrário
inserem-se no campo da fluidez de uma pluralidade identitária. “A medida em que os
sistemas de significação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados
por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com
cada uma das quais poderíamos nos identificar – ao menos temporariamente”. (HALL,
1999, p.13)

Dentro dessa realidade torna-se, portanto imperativo a necessidade de se


considerar alteridade como elemento de sustentação para a (re) construção de uma
sociedade mais humana. Por mais recorrente que pareça, na prática essa perspectiva não
tem se efetivado, pelo simples fato de nos acostumarmos com a perpetuação das
aparências e não de essências.
A alteridade é um elemento marcante na obra de João Cabral, uma vez que ele
enxerga o outro como um ser singular. E o reconhecimento da diferença individual é o
primeiro passo para o exercício do respeito e da tolerância. A alteridade pode garantir
a coesão social, a chave para evitar o etnocentrismo, a exploração de outros povos, a
escravidão e o exercício da equidade. Pensando com a antropologia, alteridade é o meio
pelo qual é possível enxergar nas outras culturas as suas especificidades, evitando o
prejulgamento.

Na obra Aldeia do Silêncio, Frei Betto traz a riqueza de Guimarães Rosa, com a
criação de novas palavras, a delicadeza de Mario Quintana, na descrição da beleza que
reside nas pequenas coisas. Evoca também Manoel de Barros, com sua capacidade de
observar a natureza.

A narrativa do livro evidencia a Aldeia como um espaço inadjetivável, onde o


autor tece um extraordinário ensaio sobre o silêncio. Silêncio que não é falta de fala,
mas aquietação da alma, mergulho imponderável em si mesmo.

A estória é protagonizada por Nemo, que escreve suas memórias depois de dar
entrada em um hospital e de ser alfabetizado por uma voluntária durante o seu primeiro
ano de internação. Nemo relata como era sua vida na aldeia onde vivia. Desconhecia a
cidade, seu mundo se resumia à aldeia do silêncio. A estrada de ferro, que passava pelo
povoado, estreitava os laços com a cidade. Devido à ganância dos latifundiários, os
antigos habitantes foram mortos pelo envenenamento do curso das águas e os casebres
destruídos, restando apenas o avô, a mãe, o pai e o irmão. Nemo nasceu depois da
destruição do povoado, conhecendo dele apenas as ruínas e os relatos do avô.

O silêncio da aldeia propõe considerar sobre o excesso de palavras usadas nas


comunicações. Como exemplo pode-se citar uma fala do narrador-personagem: ”Agora
posso entender por que as pessoas comedidas se sentem incomodadas com a tagarelice.
Não é o discurso alheio que nos estorva. É o fluxo de palavras proferidas sem a menor
atenção, o menor cuidado. A verborragia é uma forma de incomunicabilidade”.

Na narrativa, Frei Betto silencia quanto à mãe de Nemo. O silêncio Perpassa a


questão da destinação da mãe do narrador e abre espaço para a reflexão de que na vida
real, os pobres continuam sem voz.

A mãe se agarrou ao casebre. Homens armados atiçaram fogo na


palha que o recobria e nos acusaram de invasores de
propriedade. Nosso lar ardeu em chamas. Arrastaram-nos para
dois furgões. A mãe foi jogada em um , eu em outro. Nunca
mais soube da mãe. Nem para onde levaram (BETTO, 2013, p
176).

Nemo é um sujeito anônimo, sem documentos, sem posses, sem estudo e sem
profissão. Frei Betto, por meio do seu texto, concede sua voz a alguém que
normalmente não possuiria. Ao expressar-se pelo marginalizado, analfabeto e o não
lembrado, abre-se um espaço para o questionamento sobre o que o silêncio, a
maioria das vezes esconde.

João Cabral de Melo Neto e Frei Betto, dois representantes da literatura


brasileira, empregaram recursos próprios da expressão poética para expor sentimentos e
mazelas de personagens que representam a margem da sociedade.

Janet M. Paterson em entrevista concedida a Sandra Regina Goulart Almeida


disse que não há dúvidas: o pensamento pós-moderno tem nos tornado mais sensíveis às
diferenças, às representações das vozes marginais e à importância da heterogeneidade.
Para Paterson alteridade e identidade são inseparáveis. Habitamos num mundo cheio de
diferenças e a questão fundamental é a forma pela qual interpretamos e lidamos com
todas essas diferenças. Daí a necessidade de refletir e reconsiderar o conceito de
alteridade.
Referências Bibliográficas

BAUMAN, Zygmunt. Vida Líquida. Trad. Carlos Alberto Medeiros. Rio de Janeiro: Jorge Zahar
Ed., 2007.

BETTO, Frei – Aldeia do Silêncio. Rio de Janeiro – Rocco - 2013

HALL, Stuart. A Identidade Cultural na Pós-Modernidade.11ª edição. Rio de Janeiro: DP&A


(2002)

MELO NETO, João Cabral de. Morte e vida Severina e outros poemas. Rio de Janeiro:
Alfaguara, 2007

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